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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Paideia de Werner Jaeger

Por Marcelo Vagner Bruggemann*.

A obra de Werner Jaeger, “Paideia, a formação do homem grego”, em sua 6ª edição de 2013, nos leva até a velha Grécia, já por volta do séc. XII a.C., chegando em Platão e Aristóteles  quando a dupla emergiu racionalmente a existência política e social do homem, a partir do século IV a.C. Posteriormente, essa cultura chegou aos confins geográficos do mundo oriental graças a expansão macedônica liderada por Alexandre o Grande, onde do lado ocidental, os romanos também absorveram a cultura grega, que por sua vez, fez todo mundo helenizado, tornar-se pavimento para o cristianismo.

Para o ocidente, a paideia se converteu em um dos legados imortais da mentalidade grega. Obviamente a palavra em si, “paideia”, não tem nos dias de hoje uma tradução ou um significado literal, tal nome remete a um conceito de entendimento global de “formação integral do ser humano”, como o próprio Jaeger assim diz:

Ao empregar um termo grego para exprimir uma coisa grega, quero dar a entender que essa coisa se contempla não com os olhos do homem moderno, mas sim com os do homem grego.

Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os gregos entendiam por paideia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de emprega-los todos de uma vez. (JAEGER, 2013)  

Refletindo em Jaeger (p.36), entende-se que o único caminho para a compreensão do conceito de “paideia”, é o debruçamento sobre a configuração da sociedade grega e como os gregos entendiam a cultura e a educação nessa sociedade. E a partir daí, como eles realizavam a educação dos seus cidadãos na forma como entendiam o ser humano. Ou seja, alguém que precisava se adaptar a sua estrutura biológica para alastrar-se às mais elevadas esferas espirituais, cujo fim, é a formação integral do homem para servir a cidade, tornando-se um exemplo de cidadão ético, moral, justo e virtuoso na pólis. 

Platão e Aristóteles entendem a pólis, como o lugar onde “se encontra aquilo que abrange todas as esferas da vida espiritual e humana e determina de modo decisivo a sua estrutura” (p.107), nesse sentido, a cidade e o cidadão são inseparáveis, sendo a cidade virtuosa o lugar do ser humano honrado que compreende a educação como um meio para a consolidação de valores sólidos como estruturas de uma polis justa:

É esta a significação do novo Estado na formação do homem. Platão afirma, com razão que cada forma do Estado implica a formação de um tipo de homem definido, e tanto ele como Aristóteles exigem que educação de um Estado perfeito imprima em todos a marca do seu espírito (p.142). 

Chegando até aqui, pode-se ampliar a educação grega, para os sofistas, conhecidos como os tiranos do logos, mas, na “Paideia” de Jaeger, receberam grande destaque, sendo considerados inclusive como “os fundadores da ciência da educação” (p.348), não é por menos que até nos dias de hoje esse debate sofístico é ainda pauta do “ser ou não ser” da pedagogia como uma “ciência ou arte”. De todo modo, foram os sofistas que ofereceram aos indivíduos a retórica, como ferramenta de ação em um mundo complexo, mutável e carregado de conflitos, onde cada cidadão pode, por meio de decisões tomadas individualmente, apontar o caminho da verdadeira educação.

A partir da reflexão política de Aristóteles, nos leva ao questionamento: qual é o papel humano diante da sociedade? A resposta se encontra na vivência para a ação na pólis como aponta Sócrates, tratado dogmaticamente por Platão, como “o educador” (p.511), ou seja, todo o esforço humano deve ser direcionado para a alma como templo da razão, da inteligência. Cuidar da alma, significa concretamente “um cuidado através do conhecimento do valor e da verdade” (p.521). Por este caminho, se pode chegar a uma venturosa “harmonia entre a existência moral do homem e a ordem natural do universo” (p. 535).

A respeito do conhecimento da verdade e da moral expressada por Sócrates, seu principal discípulo, teve todo cuidado artesanal de registrá-las em forma de diálogo na República. É nesta grande obra de Platão, que se encontra os mais elevados exemplos das virtudes dos velhos gregos, um verdadeiro tratado pedagógico em que o próprio Jean-Jacques Rousseau declarou “a República não era uma teoria de Estado, como pensavam que só julgavam os livros pelos títulos, mas sim o mais famoso estudo jamais escrito sobre educação” (p.759).

A República é o centro da obra de Jaeger. Nela, o autor lembra a justiça como um audacioso projeto de reforma da sociedade idealizado por Platão, o qual concebe o Estado perfeito pela imagem aumentada do homem. Formar o Estado para Platão, significa formar o verdadeiro homem, isso porque, esse homem “traz na sua alma o verdadeiro Estado e age e vive em vista dele” (p.982). A paideia grega é um projeto tão ambicioso que o próprio cristianismo, só encontra sentido por meio do ideal de transformação do indivíduo para reformar a sociedade.

Nesse sentido, Platão entende que as três virtudes do corpo – saúde, beleza e força – são as bases para a medicina, contribuindo diretamente para a harmonização com as quatro virtudes da alma – piedade, valentia, moderação e justiça, como tal, essa harmonia constitui a “essência da saúde e de toda perfeição física em geral” (p.1071).  Portanto, a Medicina como Paideia se resume em atitudes educadoras que ultrapassam em muito, os limites do tratamento da doença em si, incluindo as práticas esportivas, musicais, danças e teatros no cotidiano como práticas educativas, tendo no médico apenas um conhecedor da natureza e das ervas medicinais, o qual era chamado apenas para recompor a saúde do doente, eliminando a causa da dor para sarar o homem, afastando o que o fazia sofrer.

A rigor, a harmonia que Jaeger insiste em sua Paideia, remete a união entre a filosofia com a experiência humana e sua concepção com o lugar do indivíduo na polis, no caso grego, a sociedade. A Paideia dos velhos gregos se resume na educação para a formação do homem integral, livre, e apto para o exercício pleno da cidadania. O objetivo de tal educação, consiste em determinar as coisas que constituem a razão do ser e viver. É o horizonte a ser alcançado pela capacidade intelectual somado a liberdade moral e a apreciação estética com o controle das emoções evitando tudo que é nocivo à alma.

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* Marcelo Vagner Bruggemann é Doutor em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela FIAM-FAAM Centro Universitário. Especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Alvorada Paulista. Especialista em Gestão de Cidades e Planejamento Urbano pela Universidade Candido Mendes. Graduado em História pelo Centro Universitário Assunção. Jornalista profissional com Mtb 52.882. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8099-9410.

Texto do artigo disponível no link.


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Breve Introdução às Disciplinas Matemáticas

Capa do Livro Compedio Mathematico
de Tomás Vicente Tosca

Trecho retirado do livro Compendio Mathematico, en Que Se Contienen Todas las Materias Mas Principales de las Ciencias, Que Tratan de la Cantidad, Vol. 1, Tomás Vicente Tosca, tradução feita pelo Instituto Hugo de São Vitor na Coleção de Artes Liberais Vol. 9: Aritmética.

O desejo e o apetite pelo conhecimento são naturais nos homens, disse Aristóteles no livro I, capítulo I, da Metafísica, e entre todas as outras ciências naturais a que mais o satisfaz é a matemática: pois as excede sem comparação na pureza de suas verdades, na energia de suas provas, na clareza de suas demonstrações e no contínuo fio de suas consequências. Com isso, recebeu o nome de Matemática, que segundo sua derivação do grego, é o mesmo que doutrina, e disciplina, tornando-se seu este nobre título, que todos poderiam reivindicar como comum, pois carece de dúvidas e opiniões, tão frequente e comuns nas outras ciências, Essas névoas que tendem a obscurecer o esplendor de outras faculdades não atingem a região exaltada da Matemática; ao contrário, tais luzes descem de sua esfera elevada, descobrindo os caminhos para as outras artes naturais, para encontrar a verdade justamente desejada.

Com ela são descobertos os segredos mais escondidos da natureza. É ela quem descobre as forças do ímpeto, as condições do movimento, as causas, efeitos e diferenças dos sons: a admirável natureza da luz, as leis de sua propagação: ela ergue edifícios com beleza, torna quase inexpugnáveis as cidades, ordena admiravelmente os exércitos; e entre as ondas confusas e inconstantes do mar, abre estradas e caminhos a quem navega. Ultimamente a matemática se volta ao Céu, para descobrir a grandeza das estrelas, e o conceito e a harmonia de seus movimentos; e com várias invenções de telescópios, tornou comum o comércio da terra com o céu, tão desejado pelos séculos antigos. O tempo não será mal usado, então, se ele se consumir em seu estudo; nem será em vão o suor, se for usado em solo tão fértil, que retorna em frutos tão multiplicados.

I. Objetos, natureza e divisão da matemática

O objeto da matemática é a quantidade, não tomada como enquanto impenetrabilidade de um corpo com outro, que é a consideração própria da Física; mas apenas na medida em que é extensão ou número: e geralmente é objeto da matemática aquilo pelo qual uma coisa se diz maior, menor ou igual a outra; e a razão é porque todo o seu emprego consiste em descobrir e demonstrar as propriedade e atributos da referida quantidade. Com isso, a matemática nada mais é do que a ciência que lida com a quantidade enquanto mensurável ou contável.

Quase todos o matemáticos antigos, seguindo os pitagóricos, dividiram a matemática em quatro partes principais: aritmética, geometria, música e astronomia. Mas procedendo com melhor ordem, eu a divido em matemática pura e não pura. A primeira lida com a quantidade de tal maneira que não considera nela nenhum acidente ou afecção sensível: tais são a geometria e a aritmética; porque aquela fala do triângulo, independentemente de ser branco ou preto; de madeira, ou de ferro, etc. E a outra fala dos números, sem se envolver em descobrir se o que numera são homens, ou pedras, etc. As matemáticas não puras são aquelas que consideram a quantidade vestida e acompanhada de algum acidente ou condição sensível; e porque os afetos sensíveis são próprios da filosofia natural, ou física, elas são chamadas de físico-matemáticas: tais são a música, que trata da quantidade sonora; a óptica, da quantidade visível, etc. Estes subdividem-se em muitos outros, aos quais quero referir-me brevemente aqui, antes de entrar nesta obra; para que, vendo o estudioso reduzida a um breve mapa a agradável província que ele tem de caminhar, obterá um novo encorajamento a sua disposição.

II. As partes nas quais a matemática é dividida são declaradas

A primeiras delas é a geometria, que, tratando da extensão, mede linhas, ângulos, superfícies e sólidos: descobre suas proporções e abre as base sobre as quais se ergue a construção de toda a matemática. Segue-se a aritmética, que se vale dos números, especula sobre suas propriedades e realiza operações infalíveis com eles. Em terceiro lugar entra a Álgebra, que com incrível sagacidade, segue por vários e ocultos caminhos a verdade até encontrá-la; dissolve as equações mais difíceis e abre caminho nos labirintos mais intricados. Acompanha-lhe a trigonometria, cujo negócio é resolver triângulos: todo o sucesso da astronomia se deve a ela. A logarítmica aumenta a facilidade das operações, trata da nobre invenção dos logaritmos, números artificiais, que não pouco enriqueceram o muno literário. Todas as mencionadas são ciências puramente matemáticas.

Na ordem da físico-matemática, ocupa o primeiro lugar a música, que trata da quantidade sonora: descobre a razão das consonâncias e dissonâncias; expõe o sistema musical em diferentes gêneros: arranja os órgãos, fístulas, cravos etc., compõe diversas melodias, ajustando nelas o que está de acordo com o que está em desacordo, para o tranquilo entretenimento do ouvido. Segue a mecânica, que com máquinas artificiais aumenta muito as forças de qualquer potência: é incrível o quanto ela auxilia para se filosofar com sucesso sobre as coisas da natureza.

A estática, mesmo com o peso de seu objeto, eleva seu voo às regiões mais remotas da física, descobre as proporções e as causas da gravidade dos corpos, examina seus movimentos, esquadrinha a proporção deles ao longo de qualquer linha: seu aumento e diminuição: a balística e arte da artilharia dependem desta faculdade, de modo que sem ela nada se pode determinar corretamente. A hidrostática segue a estática, que trata das correntes das águas; descobre seus movimentos, compõe fontes artificiais deles, determina a origem e a causa dos seus movimentos naturais: examina os pesos dos metais e outros corpos no líquido e abre uma grande porte para o conhecimento das coisas naturais.

A arquitetura civil eleva os edifícios com firmeza, bela proporção e simetria, segundo as cinco ordens comuns. Isso foi conseguido pela arte chamada montea, que, usando regras geométricas, corta e ajusta as pedras, levantando com elas vários tipos de arcos e abóbodas nas fábricas. Segue-se a arquitetura militar, que ensina a fortalecer as praças, com tal arranjo de muralhas, baluartes, fossos e outras defesas, que podem poucos lutar e se defender de muitos. A artilharia trata das máquinas de fogo, arranja e examina os canhões; regula a forma de lançar as balas e outras invenções do fogo para um determinado local, por diversas linhas.

A óptica considera a quantidade enquanto é visível, e assim alarga sua consideração para os campos mais agradáveis da natureza, usando-se na especulação do movimento da luz e dos raios visuais: ela ensina a formação e a deformação das imagens, em tão diversas projeção e reduções que se formam a partir de um único ponto, que com desordem ordenada vai deformando muitos. Perspectiva, catóptrica e dióptrica nascem dela. Aquela com diferentes trajetórias, projeções e decussação dos raios, finge longe o que está perto, e avoluma o que não tem corpo. A dióptrica, ou arte anaclástica, trata dos raios de luz refratados, seus ângulos, competições e desvios: é usada na fabricação de todos os tipos de telescópios e microscópios, com os quais faz o que está longe, parecer próximo e perto; grande o que é pequeno e pequeno o que é grande: com isso ela deu a esses séculos novas notícias dos céus: novo conhecimento do artifício que a natureza escondeu por tanto tempo. A arte catóptrica, ou anacamptica, trata dos raios refletidos e, de acordo com suas leis, fabrica uma grande variedade de espelhos planos, côncavos e convexos, que, reunindo ou espalhando os raios, causam efeitos admiráveis.

A geografia considera o globo terrestre, e nos oferece, nos mapas que faz, uma ideia perfeita de seu traçado, apresentado a nossa vista em um curto espaço suas extensas regiões e províncias. A astronomia vai mais alto, sobe às regiões celestes, descobre as distâncias, grandezas e disposições dos astros, e num sistema nos esclarece a grande máquina de seus movimentos. A astronomia é seguida pela gnomômica, que com a sombra de um estilo nos mostra os movimentos dos céus; e com a variedade de relógios que fabrica, determina em diferentes planos os passos que o sol dá no curso luminoso de sua eclíptica. E ultimamente a cronografia usa na ordenação dos tempos, ajustando seus períodos aos movimentos do céu. Estas são as principais disciplinas da matemática.

III. Origem, progresso e utilidade da matemática

Não há dúvida de que com as outras ciências Deus incutiu em nosso primeiro pai Adão a notícia da matemática, que foi continuada por seus descendentes até Abraão, que a comunicou aos caldeus e aos egípcios: e destes passou sem dúvida para os gregos, porque Tales Milésio no ano 584 antes do Nascimento de Nosso Salvador passou da Grécia para o Egito, para aprender geometria, e depois comunicá-la aos seus: ele foi seguido por homens ilustres em matemática, como Pitágoras Sâmio, Anaxágoras Clazomênio, Enópides Quio, Anaximandro Milésio, Hipócrates Quio, Demócrito, Teodoro e seu discípulo Platão, Arquitas Tarentino, Teoteto, Euclides, Erastóstenes, Arquimedes, Gemino, Menelau, de cujos escritos Teodósio compôs os elementos esféricos na época de Pompeu, o Grande; estes foram seguidos por Ptolomeu Alexandrino, Proclo, Teão, Campano, João de Regiomonte, e muitos outros até nosso século, em que a matemática foi muito avançada por muitos e ilustres, especialmente São Basílio, que é elogiado por seu discípulo São Gregório Nazareno, por ter avançado muito em astronomia, geometria, aritmética e outras matemáticas; aos quais se acrescentam Santo Agostinho e Beda, o venerável, como se vê no que deixaram escrito sobre estes assuntos.

E não espanta se apreciaram tanto seu estudo, porque além de sua nobreza, ele é de imponderável proveito. Eles, disse Platão, animam o engenho e, usando a fala, a tornam apta para aprender melhor as outras ciências: por isso ele excluiu de sua Academia aqueles que eram ignorantes em geometria. Sem a matemática não é possível abrir caminho na filosofia natural com sucesso. Porque sem a estática, como explicar os movimentos dos corpos pesados, sua aceleração e suas proporções? Como a restituição do comprimido e tenso, no qual está indubitavelmente a maior parte dos efeitos da natureza? Sem a óptica, dióptrica, o que acontecerá em matéria de cores e luz, senão a escuridão? Que conceito pode ser feito da formação da íris, coroas e outros meteoros? Quanto aproveitam também para Teologia, Santo Agostinho o declara muito bem no livro 2 do Sobre a Doutrina Cristã, nos capítulo 16, 19 e 37; e São Jerônimo, no volume I, epístola I. E especialmente são necessários para o perfeito entendimento da Sagrada Escrituram, geometria, aritmética e geografia, pois são quase inumeráveis os texto que requerem estas notícias para sua inteligência.

IV. Explicação de alguns termos que são frequentes na Matemática

Autores, antigos e modernos, tendem a usar os seguintes termos em seus tratados de matemática: definições, axiomas, postulados, proposições, teoremas, problemas e lemas; que será bem explicado no início deste trabalho.

Definições são explicações de nomes e termos. E assim dizemos que por este nome Triângulo não entenderemos nada além de uma figura, que consiste em três ângulos. Estas explicações dos termos devem estar no início de qualquer Tratado, porque grande para das questões e também dos Paralogismos que se cometem, decorrem da ambiguidade e das diferentes inteligências dos nomes.

Os postulados são princípios tão claros e evidentes que não precisam de prova ou demonstração; e por serem frequentes no curso da ciência, podem que sejam concedidas no início, para que depois não haja tropeço nas demonstrações: como de um ponto a outro, pode-se traçar uma linha reta.

Axiomas, ou noções comuns, são os princípios gerais comuns a todas as ciências: tão evidentes e claros que, por si mesmo, apenas com a declaração dos termos, eles manifestam, como é "O todo é maior que sua parte"; porque sabendo que a coisa é todo e parte, a dita verdade é evidente.

Proposição é um nome geral e significa aqui qualquer conclusão da ciência que propomos provar por seus princípios. Das proposições, algumas são teoremas e outros problemas.

Teoremas, é uma proposição especulativa, que diz alguma propriedade ou paixão do sujeito, como é "Os três ângulos de qualquer triângulo junto são iguais a dois ângulos retos".

Problema é um Proposição prática, que propõe a maneira de fazer algo; como aquela que ensina a dividir uma linha em duas partes iguais.

Há também frequentemente uma proposição, que eles chamam de lema. Este é aquele que apenas é colocado, e é assumido para provar a proposição, ou as proposições seguintes, de modo que, se não fosse para este fim, nenhum menção seria feita.

Além do acima mencionado, o seguinte será encontrado neste tratado.

Corolário, ou consectário, é uma proposição, que por consequência legítima se infere do que já foi demonstrado.

Escólio é uma anotação, que às vezes é adicionada ao final de uma proposição, para sua explicação posterior, ou para uma maior extensão do que é ensinado nela.

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Os 9 tomos originais do Padre Tomás Vicente Tosca em espanhol se encontram aqui: drive.


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Paulo Freire, patrono ou ídolo de barro?

O impacto negativo de uma “pedagogia” construída sobre princípios errôneos.

Embora possa parecer o contrário, dada a forma prolixa e uma série de neologismos e a apropriação de termos do contexto católico [1], Paulo Freire, o atual patrono da educação brasileira [2], destoa e contradiz a concepção católica da educação. E como a concepção católica da educação fundamenta-se na filosofia perene, o dito patrono distancia-se e nega a própria tradição pedagógica e as verdades acerca da educação.

E, como a árvore se conhece pelos frutos que dá, é no ambiente escolar que se perceberá todo impacto negativo de uma “pedagogia” construída sobre princípios errôneos e por vezes contraditórios entre si [3]. O presente artigo visa, portanto, expor alguns dos principais erros em matéria pedagógica por negar os princípios perenes da educação, depois de que, algumas amargas consequências práticas da assunção destes erros na prática escolar sem uma maior reflexão, mas influenciado pelo misticismo que se construiu em torno ao seu inventor.

Para a educação católica, o fim último da educação é levar o homem a Deus e enobrecer este mesmo ser humano pelo que lhe é próprio: a alma racional e imortal [4]; Paulo Freire rebaixa o fim da educação à formação política do homem [5] – acepção essa bem diversa do zoon politikon de Aristóteles – de modo que a pedagogia freiriana visa a militância mais que o intelecto, tratando-se portanto de uma pedagogia materialista.

Para a educação católica, a busca da sabedoria é o mais alto ideal e para alcançá-la são necessários fundamentos vigorosos como o trabalho intelectual e a vida virtuosa [6]; para Paulo Freire a crítica vem antes do fundamento e a politização do educando antes da sabedoria [7].

Para a educação católica, a Religião ocupa lugar de destaque como possibilidade de síntese e sentido para o conhecimento e a elevação do mesmo; Paulo Freire, apesar de fazer uso de termos tirados do contexto católico, todavia, por apoiar-se em princípios materialistas, ignora ou mesmo nega o ensino religioso defendido e praticado pela educação católica – na esteira de seus inspiradores que dizem que a religião é alienante [8]. Paulo Freire inclusive mostra afinidades com regimes políticos condenados pela Igreja por tratar-se de regimes ateístas e que grande mal fizeram à humanidade [9].

Para a educação católica, o professor é a causa auxiliar da educação e o aluno a causa principal, de modo que o aluno é o principal responsável pelo próprio aprendizado, sem todavia negar ou diminuir o papel do professor e o seu saber maior que o do aluno a fim de auxiliá-lo com conteúdos e no próprio processo de aprendizagem [10]; a pedagogia freiriana reduz, quando não, nega o papel indispensável do professor e com isso dos conteúdos, da escola e da autoridade [11], visão oriunda da ideologia revolucionária e igualitarista a que conduz os sistemas nos quais se fundamenta.

Para a educação católica, conforme a ordem natural, a família tem a primazia inviolável, mas não despótica, na educação da prole e seu papel é indispensável, sendo ajudada pela Igreja e subsidiada pelo Estado [12]; Paulo Freire suprime a primazia da família em relação a educação da prole e a transfere para a ideologia do partido que assume as faces do Estado [13].

Algumas consequências práticas:

Analfabetismo funcional agravado

Alfabetização é o primeiro passo e o mais fundamental para o domínio da linguagem, portanto deve ser muito bem realizada a fim de deixar calçados os outros estágios. Paulo Freire nega o conceito tradicional de alfabetização, o qual afirma não passar de “ato mecânico de ‘depositar’ palavras, sílabas e letras nos alfabetizandos” ou ainda de “mera transfusão alienante” que em nada contribui para a “transformação revolucionária da sociedade de classes, em que a humanização é inviável” [14]. “A alfabetização, que era feita em poucos meses no primeiro ano do ensino fundamental, hoje não se completa em três anos. E 63% da população é analfabeta funcional” [15].

Rebaixamento do nível intelectual, moral e cultural

Ao prescindir da aquisição da humanidade no decorrer da história, desconsiderando conquistas e conteúdos, em favor de uma crítica carente de fundamentos, evidentemente a consequência é a queda do nível intelectual, moral e cultural, pois o que passa a contar é o que cada um traz consigo independentemente se certo ou errado, se tenha ou não princípios ou não que condigam com tal assertiva. Tudo passa a valer. De modo que a herança das gerações passadas não passa de domínio das elites. Uma prova cabal de tal rebaixamento a nível intelectual se nota a posição do Brasil no ranking do PISA: no fundo do poço. Mesmo o investimento em educação, em relação ao PIB, ultrapassando o de nações como os EUA, este 5,4%, o Brasil 7% [16].

Degradação do ambiente escolar

Tirada a finalidade real da educação e a definição correta de autoridade todo edifício tende a ruir-se – e, de fato, este é o objetivo revolucionário “o movimento real que suprime o estado de coisas atual”. Deixo aos interessados, como constatação, uma obra que descobri nos cantos da prateleira de uma livraria e que diz muito da degradação do ambiente escolar: “Indisciplina e impunidade na escola. Porque professores estão adoecendo e alunos não estão aprendendo” [17]. O tema por si só já é bastante sintomático.

Um ligeiro confronto com a concepção da educação conforme a filosofia católica, e por isso, perene, é suficiente para que o ídolo se despedace, tanto mais quando se olha para as consequências de uma tal “idolatria”. O ídolo esculpido não resiste a verdade, se quebra. Tomo por bem, concluir a reflexão com as palavras de Thomas GIULLIANO, organizador da obra Descontruindo Paulo Freire, na qual se baseou a presente reflexão: “Patrono é sinônimo de: padroeiro, protetor, defensor. No nosso caso, não encontramos em nosso modelo escolhido qualquer uma dessas virtudes. Temos o símbolo politicamente esculpido, porém, intimamente oco” (p. 49).


Referências

[1] GIULLIANO, T. Desconstruindo Paulo Freire. Porto Alegre: História Expressa, 2017. p. 181-182.

[2] Lei n. 12.612 de 13 de abril de 2012, sancionada por Dilma Rousseff.

[3] GIULLIANO. op. cit. p. 124ss.

[4] SIQUEIRA, A. A. Filosofia da Educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1948. p. 127ss.

[5] “...Paulo Freire não tem apenas preocupações pedagógicas, mas é também movido por intenções políticas. Aliás, um repórter do Jornal da República do Recife, aos 31/08/79, interrogou Paulo Freire, de passagem pelo Brasil, a respeito de eventual filiação a partido político; ao que respondeu o mestre: “Faço política através da pedagogia” (GIULLIANO. p. 163). “A conscientização, associada ou não ao processo de alfabetização, (...) não pode ser blá-blá-blá alienante, mas um esforço crítico de desvelamento da realidade, que envolve necessariamente um engajamento político” (FREIRE, P. Ação cultural: para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. p. 109).

[6] REDDEN, J. D.; RYAN F. A. Filosofia da Educação. Rio de Janeiro: Agir, 1973. p. 15.

[7] “...neste sistema nós não fazemos discurso, não fazemos aula, porque inclusive o que nós estamos conseguindo é uma espécie de subversões legítimas. (...) superamos o programa acadêmico por situações sociológicas desafiadoras que nós pomos diante dos grupos com quem nós provocamos e arrancamos uma sabedoria que existe e que é esta sabedoria opinativa e existencial do povo” (Discurso do professor Paulo Freire, em Angicos, ao encerramento do curso de alfabetização de adultos, p. 5-6. apud. GIULLIANO. op. cit. p. 205).

[8] GIULLIANO. op. cit. p. 196ss.

[9] GIULLIANO. op. cit. p. 184-190.

[10] SIQUEIRA. op. cit. p. 175ss.

[11] “Assim, em lugar da escola, que nos parece um conceito, entre nós demasiado carregado de passividade, em face de nossa própria formação (mesmo quando se lhe dá o atributo de ativa), contradizendo a dinâmica fase de transição, lançamos o Círculo de Cultura. Em lugar do professor, com tradições fortemente “doadoras”, o Coordenador de debates. Em lugar da aula discursiva, o diálogo. Em lugar de aluno, com tradições passivas, o participante de grupo. Em lugar de “pontos” e de programas alienados, “programação compacta”, “reduzida” e “codificada” em unidades de aprendizado” (FREIRE, P. A Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. p. 102-103).

[12] PIO XI. Divini Illius Magistri. Roma, 1929.

[13] Diz ele: “As relações pais-filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condições objetivo-culturais da totalidade de que participam. E, se estas são condições autoritárias, rígidas, dominadoras, penetram os lares, que incrementam o clima da opressão” (Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. p. 208). “Características da consciência ingênua: 2 – Há também uma tendência a considerar que o passado foi melhor. Por exemplo: os pais que se queixam da conduta de seus filhos, comparando-a ao que faziam quando jovens” (FREIRE, P. Educação e mudança. 36ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. p. 52). “Não podem nem devem omitir-se, mas precisam saber assumir que o futuro é de seus filhos e não seu. É preferível, para mim, reforçar o direito que tem à liberdade de decidir, mesmo correndo o risco de não acertar, a seguir a decisão dos pais. É decidindo que se aprende a decidir... a posição da mãe ou do pai (...) assessor ou assessora do filho ou da filha (...) jamais tenta impor sua vontade ou se abespinha porque seu ponto de vista não foi aceito” (FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. p. 103).

[14] ARAÚJO, P. H. A. Pedagogia católica e pedagogia da barbárie. Revista Catolicismo, Ano LXIX, nº 823, p. 44-45, julho, 2019. [Disponível no link: https://www.ipco.org.br/pedagogia-catolica-e-pedagogia-da-barbarie]

[15] GIULLIANO. op. cit. p. 192. Disse ele mesmo a respeito do próprio método: “Eu fiz, no Recife, no Movimento de Cultura Popular, que relato no livro ‘Educação como prática da liberdade’, uma experiência que durou de dois a três meses, se não me falha a memória. Eram cinco pessoas, das quais duas desistiram. As três que ficaram, depois de três meses, liam. Aliás, um dia eu levei uma aluna minha da faculdade pra ver isso e ela não acreditou. Pegou, ela mesma, um livro de Machado de Assis, da biblioteca do lugar onde se fazia a experiência. Deu ao homem e ele leu. Se você perguntar se foi possível discutir com ele a página que ele leu de Machado de Assis, eu acho que não discutimos, e se discutíssemos, possivelmente, ele não teria feito uma penetração mais profunda no texto, pois, para uma experiência de dois a três meses, o sujeito fazer isso é extraordinário” (PELANDRÉ, N. Efeitos a longo prazo do método de alfabetização Paulo Freire. UFSC, 1998. p. 304-305. apud. GIULLIANO. op. cit. p. 211).

[16] Há um excelente artigo de BRUGGEMANN Marcelo V. a este respeito na Revista Cidade Educadora, ano II, nº 18, p. 13-15, março, 2019. [Disponível no link: https://cidadeeducadora.net/noticias/capa/na-terra-de-paulo-freire-sobra-dinheiro-para-educacao-e-brasil-permanece-entre-os-ultimos-no-ranking-do-pisa/]

[17] SCHIMIEGUEL, O.; SCHIMIEGUEL, H. Indisciplina e impunidade na escola: por que os professores estão adoecendo e os alunos não estão aprendendo. Blumenau: Nova Letra, 2015.

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Texto de autoria do Padre Alexandre Alessio e retirado do link. Sobre o autor: Pe. Alexandre Alessio, CR - Religioso da Congregação da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo (CR). Concluiu os estudos de Filosofia no Instituto São Basílio Magno, Curitiba - PR, sua formação teológica ocorreu em Roma pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente é pároco da Paróquia Imaculada Conceição em Franco da Rocha, Diocese de Bragança Paulista - SP, local onde iniciou o Projeto de Evangelização Jesus ao Centro, sustentado pela Associação Bento XVI, da qual é o fundador.


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Hugo e Ricardo de São Vítor

Nesta iluminura de Giovanni di Paolo (séc. XV), Dante
e sua amada Beatriz (no alto, à esquerda) encontram-se
no Paraíso com alguns dos mais importantes religiosos
da história. Ricardo de São Vítor é o penúltimo direita
para a esquerda no arco de baixo. No alto, com Dante
e Beatriz, estão Tomás de Aquino e Alberto Magno. No
arco, da esquerda para a direita, Graciano de Chiusi,
Pedro Lombardo, Dionísio Areopagita, Salomão, Boécio,
Paulo Orósio, Isidoro de Sevilha (fitando o serafim),
Beda, Ricardo e Siger de Brabante.

Abaixo transcrevemos uma homilia do Papa Bento XVI sobre Hugo e Ricardo de São Vítor.

PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 25 de Novembro de 2009

Hugo e Ricardo de São Vítor

Queridos irmãos e irmãs!
Nestas Audiências de quarta-feira estou a apresentar algumas figuras exemplares de crentes, que se comprometeram a mostrar a concórdia entre a razão e a fé e a testemunhar com a sua vida o anúncio do Evangelho. Hoje, pretendo falar-vos de Hugo e Ricardo de São Vítor. Ambos se situam entre aqueles filósofos e teólogos conhecidos com o nome de Vitorianos, porque viveram e ensinaram na abadia de São Vítor, em Paris, fundada no início do século XII por Guilherme de Chapeaux. O próprio Guilherme foi mestre renomado, que conseguiu dar à sua abadia uma sólida identidade cultural. Em São Vítor, de facto, foi inaugurada uma escola para a formação dos monges, aberta também a estudantes externos, na qual se realizou uma síntese feliz entre os dois modos de fazer teologia, da qual já falei em catequeses precedentes:  isto é, a teologia monástica, orientada sobretudo para a contemplação dos mistérios da fé na Escritura, e a teologia escolástica, que utilizava a razão para procurar perscrutar estes mistérios com métodos inovadores, e criar um sistema teológico.

Temos poucas notícias da vida de Hugo de São Vítor. São incertos a data e o lugar do nascimento:  talvez na Saxónia ou na Flandres. Sabe-se que, tendo chegado a Paris – a capital europeia da cultura desse tempo – transcorreu o resto dos seus anos na abadia de São Vítor, onde foi primeiro discípulo e depois professor. Já antes da morte, no ano de 1141, alcançou uma grande fama e estima, a ponto de ser chamado um "segundo Santo Agostinho":  de facto, como Agostinho ele meditou muito sobre a relação entre fé e razão, entre ciências profanas e teologia. Segundo Hugo de São Vítor, todas as ciências, além de serem úteis para a compreensão das Escrituras, têm um valor em si mesmas e devem ser cultivadas para ampliar o saber do homem, assim como para corresponder ao seu anseio por conhecer a verdade. Esta sadia curiosidade intelectual levou-o a recomendar aos estudantes que jamais limitassem o desejo de aprender e no seu tratado de metodologia do saber e de pedagogia, intitulado significativamente Didascalicon (sobre o ensino), recomendava:  "Aprende de bom grado de todos o que não sabes. Será mais sábio do que todos aquele que terá querido aprender algo de todos. Quem recebe algo de todos, acaba por se tornar mais rico do que todos" (Eruditiones Didascalicae, 3, 14:  PL 176, 774).

A ciência da qual se ocupam os filósofos e os teólogos chamados Vitorianos é de modo particular a teologia, que exige antes de tudo o estudo amoroso da Sagrada Escritura. Com efeito, para conhecer Deus não se pode deixar de começar a partir do que o próprio Deus quis revelar de si mesmo através das Escrituras. Neste sentido, Hugo de São Vítor é um típico representante da teologia monástica, totalmente fundada na exegese bíblica. Para interpretar a Escritura, ele propõe a tradicional articulação patrístico-medieval, ou seja, em primeiro lugar o sentido histórico-literal, depois o alegórico e anagógico, e por fim o moral. Trata-se de quatro dimensões do sentido da Escritura, que também hoje se redescobrem, pelo qual se vê que no texto e na narração oferecida se esconde uma indicação mais profunda:  o fio da fé, que nos conduz para o alto e nos guia nesta terra, ensinando-nos a viver. Contudo, mesmo respeitando estas quatro dimensões do sentido da Escritura, de modo original em relação aos seus contemporâneos, ele insiste – e este é um aspecto novo – sobre a importância do sentido histórico-literal. Por outras palavras, antes de descobrir o valor simbólico, as dimensões mais profundas do texto bíblico, é preciso conhecer e aprofundar o significado da história narrada na Escritura:  caso contrário – adverte com uma comparação eficaz – corre-se o risco de ser como que um estudioso de gramática que ignora o alfabeto. Para quem conhece o sentido da história descrita na Bíblia, as vicissitudes humanas parecem marcadas pela Providência Divina, segundo um seu desígnio bem ordenado. Assim, para Hugo de São Vítor, a história não é o êxito de um destino cego ou de um caso absurdo, como poderia parecer. Ao contrário, na história humana age o Espírito Santo, que suscita um diálogo maravilhoso dos homens com Deus, seu amigo. Esta visão teológica da história põe em evidência a intervenção surpreendente e salvífica de Deus, que realmente entra e age na história, quase se faz parte da nossa história, mas salvaguardando e respeitando sempre a liberdade e a responsabilidade do homem.

Para o nosso autor, o estudo da Sagrada Escritura e do seu significado histórico-literal torna possível a teologia verdadeira, isto é, a ilustração sistemática das verdades, conhecer a sua estrutura, a explicação dos dogmas da fé, que ele apresenta numa síntese sólida no tratado De Sacramentis christianae fidei (Os sacramentos da fé cristã), onde se encontra, entre outras, uma definição de "sacramento" que, aperfeiçoada ulteriormente por outros teólogos, contém aspectos ainda hoje muito interessantes. "O sacramento", escreve ele, "é um elemento corpóreo ou material proposto de modo externo e sensível, que representa com a sua semelhança uma graça invisível e espiritual, a significa, porque para esta finalidade foi instituído, e a contém, porque é capaz de santificar" (9, 2; PL 176, 317). Por um lado a visibilidade no símbolo, a "corporeidade" do dom de Deus, no qual contudo, por outro lado, se esconde a graça divina que provém de uma história:  o próprio Jesus Cristo criou símbolos fundamentais. São portanto três os elementos que concorrem para definir um sacramento, segundo Hugo de São Vítor:  a instituição por parte de Cristo, a comunicação da graça e a analogia entre o elemento visível, o material e o elemento invisível, que são os dons divinos. Trata-se de uma visão muito próxima da sensibilidade contemporânea, porque os sacramentos são apresentados com uma linguagem rica de símbolos e imagens capazes de falar imediatamente ao coração dos homens. É importante também hoje que os animadores litúrgicos, e em particular os sacerdotes, valorizem com sabedoria pastoral os sinais próprios dos ritos sacramentais – esta visibilidade e tangibilidade da Graça – cuidando atentamente da sua catequese, para que cada celebração dos sacramentos seja vivida por todos os fiéis com devoção, intensidade e júbilo espiritual.

Um discípulo digno de Hugo de São Vítor é Ricardo, proveniente da Escócia. Ele foi prior da abadia de São Vítor de 1162 a 1173, ano da sua morte. Também Ricardo, naturalmente, atribui um papel fundamental ao estudo da Bíblia, mas, ao contrário do seu mestre, privilegia o sentido alegórico, o significado simbólico da Escritura com o qual, por exemplo, interpreta a figura veterotestamentária de Benjamim, filho de Jacob, como símbolo da contemplação e vértice da vida espiritual. Ricardo trata este tema em dois textos, Benjamim Menor e Benjamim Maior, nos quais propõe aos fiéis um caminho espiritual que convida antes de tudo a exercer as várias virtudes, aprendendo a disciplinar e a ordenar com a razão os sentimentos e os impulsos interiores afectivos e emotivos. Só quando o homem alcança equilíbrio e maturação humana neste campo, está pronto para aceder à contemplação, que Ricardo define como "um olhar profundo e puro da alma sobre as maravilhas da sabedoria, associado a um sentido estático de estupefacção e admiração" (Benjamim Maior, 1, 4; PL 196, 67).

Por conseguinte, a contemplação é o ponto de chegada, o resultado de um caminho difícil, que exige o diálogo entre a fé e a razão, ou seja – mais uma vez – um discurso teológico. A teologia começa a partir das verdades que são objecto da fé, mas procura aprofundar o conhecimento com o uso da razão, apropriando-se do dom da fé. Esta aplicação do raciocínio à compreensão da fé é praticada de modo convincente na obra-prima de Ricardo, um dos grandes livros da história, o De Trinitate (A Trindade). Nos seis livros que a compõem ele reflecte com perspicácia sobre o Mistério de Deus uno e trino. Segundo o nosso autor, dado que Deus é amor, a única substância divina exige comunicação, oblação e dilecção entre duas Pessoas, o Pai e o Filho, que se encontram entre si num intercâmbio eterno de amor. Mas a perfeição da felicidade e da bondade não admite exclusivismos nem fechamentos:  exige antes a presença eterna de uma terceira Pessoa, o Espírito Santo. O amor trinitário é participativo, concorde e requer superabundância de dilecção, gozo de alegria incessante. Isto é, Ricardo supõe que Deus é amor, analisa a essência do amor, o que está implicado na realidade do amor, chegando assim à Trindade das Pessoas, que é realmente a expressão lógica do facto de que Deus é amor.

Contudo Ricardo está consciente de que o amor, mesmo se nos revela a essência de Deus, nos faz "compreender" o Mistério da Trindade, contudo é uma analogia para falar de um Mistério que supera a mente humana, e – sendo poeta e místico – serve-se também de outras imagens. Por exemplo, compara a divindade com um rio, com uma onda amorosa que brota do Pai, flui e reflui no Filho, para ser depois felizmente difundida no Espírito Santo.

Queridos amigos, autores como Hugo e Ricardo de São Vítor elevam o nosso ânimo à contemplação das realidades divinas. Ao mesmo tempo, a imensa alegria que nos suscitam o pensamento, a admiração e o louvor da Santíssima Trindade, funda e apoia o compromisso concreto de nos inspirarmos neste modelo perfeito de comunhão no amor para construir as nossas relações humanas de todos os dias. A Trindade é deveras comunhão perfeita! Como mudaria o mundo se nas famílias, nas paróquias e em qualquer outra comunidade as relações fossem vividas seguindo sempre o exemplo das três Pessoas divinas, em que cada um vive não só com o outro, mas para o outro e no outro! Recordei isto há alguns meses no Angelus:  "Só o amor nos torna felizes, porque vivemos em relação, e vivemos para amar e para ser amados" (L'Oss. Rom., ed. port. de 13 de Junho de 2009). É o amor que realiza este milagre incessante:  como na vida da Santíssima Trindade, a pluralidade recompõe-se em unidade, onde tudo é complacência e júbilo. Com Santo Agostinho, tido em grande honra pelos Vitorianos, também nós podemos exclamar:  Vides Trinitatem, si caritatem vides – contemplas a Trindade, se vês a caridade" (De Trinitate VIII, 8, 12).

Texto retiro do site link.


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INTRODUÇÃO À ASTRONOMIA CLÁSSICA

Astrônomo Copérnico, ou conversa com Deus -
 Jan Alojzy Matejko - 1872

Texto retirado da Introdução do livro Os Lusíadas - vol. I Comentários de Francisco de Sales Lencastre, edição de Renan Santos. Editora Concreta, 2018.

IV. COSMOGRAFIA

Para complemento da interpretação dos Lusíadas, é indispensável proporcionar aos indoutos algumas breves noções do sistema cosmográfico exposto pelo poeta, as quais não poderiam caber em notas de cada estância. Às vezes exprime-se Camões na linguagem mitológica e até na linguagem da humanidade primitiva, cujas idéias sobre a forma do universo eram as duma criança ignorante. [8]

“O céu parece uma abóbada azul posta em cima da Terra chata e circular. Vemo-nos no meio deste disco da Terra. Assim supõem os povos antes de terem viajado. Cada um deles se julga no centro do mundo. A que distância chega o céu ao horizonte? A resposta é vaga, porque, para qualquer lado que se caminhe, não se chega a esse limite aparente. E a própria Terra onde pousa? É o que não se sabe, e ninguém ousa perguntá-lo; supõe-se primeiramente que ela é infinita em profundidade.

“Depois, vendo-se que o Sol, a Lua e as estrelas se levantam no horizonte, passam por cima das nossas cabeças, vão mergulhar no lado oposto e tornam a aparecer no dia seguinte outra vez no Oriente, sente-se que esses astros têm necessariamente uma passagem por baixo da Terra. Supõe-se então que esta não tem raízes infinitas, mas que é sustentada sobre montanhas ou colunas, entre as quais passam os astros.” [9]

Homero (séc. IX a.C.) afirmava que a Terra era um disco rodeado pelo Oceano e coberto por uma abóbada, debaixo da qual os astros do dia e da noite giravam sobre carros. A escola de Pitágoras, na antiga Grécia (séc. VI a.C.), foi a primeira que professou a idéia da esfericidade do globo terrestre.

No Canto X finge o poeta que a deusa Tétis, na Ilha dos Amores, está mostrando a Vasco da Gama um globo translúcido, que se sustenta no ar e que representa a estrutura do universo conforme a astronomia do tempo de Ptolomeu (séc. II d.C.).

Vinte nove anos antes da publicação dos Lusíadas, já fora impressa (1543) a obra de Copérnico – astrônomo polaco, fundador da astronomia moderna; mas adiante se dirá o motivo provável do ter adotado o poeta, na sua descrição cosmográfica, as antigas teorias.

Agora expliquemos, para inteligência do texto, qual era o sistema chamado de ptolomaico, e como se fundou.

Formada a idéia de que a abóbada celeste girava em volta de nós em 24 horas e de que as estrelas estavam aderentes a essa abóbada – que se supunha sólida –, admitia-se que a Terra era um globo – o qual, sem apoio algum, pairava no meio do universo – e que a esfera celeste o envolvia completamente.

Este sistema de aparências era consolidado pelas observações dos navios no mar, as quais confirmam ser esférica a Terra, visto que as montanhas vão desaparecendo pela parte inferior à proporção do afastamento.

“A observação das estrelas que descem para baixo do horizonte ao norte, aparecendo outras diferentes ao sul à proporção que o viajante vai caminhando das nossas latitudes para o equador; e a observação da sombra da Terra – que se desenha em círculo negro sobre a Lua eclipsada – acrescentam novas confirmações à idéia de que habitamos um globo colocado no meio da esfera estrelada.

“Nota-se mais tarde que alguns astros se deslocam entre as estrelas. O primeiro em que se notou o deslocamento foi Vênus – a radiante estrela da tarde e da manhã –, cuja mudança de sítio é sensível de dia para dia, pois umas vezes aparece depois do Sol posto, outras vezes precede o nascer do Sol.

“O segundo astro errante que se notou foi o brilhante Júpiter, que faz lentamente a volta do céu em doze anos.

“Observou-se depois um terceiro astro errante, com menos brilho do que os dois precedentes, mas às vezes muito rutilante: Marte, de irradiação avermelhada, que faz o giro do céu em dois anos.

“Depois um quarto: Saturno, que se move através da esfera celeste com tal lentidão, que emprega não menos de 30 anos em percorrer a sua órbita.

“Mais tarde notou-se ainda um quinto astro móvel: Mercúrio, que ora aparece de tarde a Oeste, ora de manhã a Leste, da mesma maneira que Vênus – mas menos brilhante –, e que se afasta menos do Sol; por isso mais difícil de se distinguir e reconhecer.

“Estes astros foram denominados planetas, vocábulo que significa ‘errantes’ – por oposição às outras estrelas (denominadas fixas, por se conservarem sempre no mesmo lugar respectivo da abóbada celeste).

“Em conseqüência de aparecer o Sol todas as manhãs mais tardiamente do que as estrelas e de não voltar ao mesmo ponto do céu senão depois de 365 dias e 6 horas, supunha-se que ele estava adstrito a um círculo distinto da esfera estrelada, e dentro desta se movia de leste para oeste em um ano.

“A Lua – executando uma revolução análoga em 27 dias e quase 8 horas – supuseram-na adstrita a um círculo colocado mais próximo da Terra e girando nesse círculo.

“A combinação deste movimento com o do Sol dava conta da série de fases lunares, que se realizam em 29 dias e meio. A mais destes dois círculos (do Sol e Lua) acrescentavam-se cinco para os cinco planetas que ficam nomeados, o que perfazia ao todo sete círculos (sete céus) sucessivos a partir da Terra para o céu, por esta ordem:

1º, da Lua (com um movimento de 27 dias);
2º, de Mercúrio;
3º, de Vênus, que tem freqüentemente mudado de posição;
4º, do Sol (365 dias);
5º, de Marte (2 anos);
6º, de Júpiter (12 anos);
7º, de Saturno (30 anos).

Superior a estes sete céus estava o 8º – o das estrelas fixas.

“Esta representação do universo, esta constituição do mundo físico (a etimologia grega da palavra sistema quer dizer “constituição”) representava a natureza terrestre e celeste, tal como parece à vista, e correspondia completamente ao testemunho dos olhos. Facilmente se concebe que diferentes povos – em separado – tivessem chegado a formar do mundo a mesma imagem geral e que a ciência astronômica – baseada sobre o estudo de observação de muitos séculos – tivesse erigido este conjunto em sistema absoluto, transmitindo-se, de geração para geração, duns povos para outros povos. Deste modo foi comunicado da Ásia oriental – berço da história humana – à China para leste; e da Caldéia ao Egito para sudoeste. Na seqüência dos séculos, a Grécia inteligente e artística, tendo chegado a elevado grau de esplendor, adotou do Egito os mesmos princípios, desenvolvendo-os e completando-os com as próprias observações. Dessa nação – ilustrada pelos monumentos gigantescos e pelas altas pirâmides – recebeu a Judéia também o mesmo sistema astronômico, do qual Moisés e Jó nos guardaram fragmentos – do mesmo modo que Hesíodo e Homero entre os gregos.

“O astrônomo cujos estudos mais contribuíram para estabelecer em sólida base o sistema das aparências foi Hiparco (séc. I a.C.). As suas observações ainda hoje prestam grande auxílio, o que não é para se admirar, quando se reflete que uma observação bem feita serve à astronomia moderna fundada na realidade, da mesma sorte que à astronomia antiga fundada sobre as aparências. A esse astrônomo se deve o ter verificado que o Sol não está, em cada ano, sobre o mesmo ponto do céu no momento do equinócio da primavera, mas que recua sucessivamente sob as estrelas: as que se vêem ao Sul, por exemplo, em determinado instante, não se vêem exatamente sobre o mesmo lugar no ano seguinte em igual instante; do mesmo modo vemos também as do Norte deslocarem-se, de sorte que o céu estrelado executa uma revolução completa calculada em 25.870 anos.

“Ao movimento da Terra é hoje atribuída esta grande revolução do céu – chamada ‘precessão dos equinócios’ –, que se supunha ser efetuada pela própria abóbada estrelada; e esse movimento secular é devido à atração do mar e do Sol sobre a protuberância equatorial do nosso globo. Deste modo as observações, sobre as quais se tinha estabelecido o sistema da imobilidade da Terra e do movimento dos céus, servem hoje para a teoria do movimento da Terra.

“Aristóteles (séc. IV a.C.) expusera e tentara demonstrar solidamente o sistema das aparências. O ilustre preceptor de Alexandre consagrou a vida a escrever uma enciclopédia dos conhecimentos humanos, na qual a astronomia ocupava o primeiro lugar.

“Até o século XVI, a Europa – ou para melhor dizer, as corporações de ensino –, reconhecendo em Aristóteles [10] o grande mestre, não quiseram admitir senão o que estava escrito nas suas obras; e ele tinha sustentado:

1º Que a Terra se conservava imóvel no centro do Universo;

2º Que o movimento de todas as esferas celestes procedia de origem inesgotável, inerente à própria essência do céu mais alto, designado pelo nome de Primeiro móbil;

3º Que, para além das estrelas fixas e do Primeiro móbil, estava a última e mais vasta esfera, que encerrava todas as outras, chamada Empíreo;

4º Que o Universo tinha portanto um limite: era verdadeiramente fechado pela última esfera imensa, além da qual não existia mais nada.

“Esta representação do Universo fez objeto de livro especial – o mais venerado dos tratados de astronomia –, intitulado Almagesto (vocábulo que quer dizer “o grande”) devido a Cláudio Ptolomeu. Este geógrafo-astrônomo coligiu toda a astronomia antiga (completada pelos trabalhos de Hiparco) e depois da sua obra – escrita no século II da nossa era – designou-se sob o seu próprio nome o antigo sistema do mundo, sob a denominação de Sistema de Ptolomeu.

“Os sucessores de Ptolomeu tiveram, como artigo de fé, a crença – aliás tão natural, aparentemente – da imobilidade da Terra no meio do universo. Tudo estava classificado no seu lugar e regrado para toda a duração do mundo. Dois elementos, a terra e a água, eram distinguidos cá em baixo: a terra, mais pesada, formava a base; a água do oceano e dos rios flutuava à superfície. Um terceiro elemento, mais leve do que os dois primeiros, envolvia o globo: era o ar ou a atmosfera. Por cima do ar, um quarto elemento, o fogo ou éter, mais leve do que os quatro, formava uma zona superior à atmosfera, e nele se acendiam os meteoros. Por cima vinham ainda os círculos ou orbes celestes, as órbitas dos planetas – na ordem já indicada. Para além desses sete círculos, estava colocada a esfera das estrelas fixas, que formava o oitavo céu. O décimo era o Empíreo, habitação da Divindade. Todo este edifício se supunha ser construído duma substância transparente, comparável a gelo ou cristal de rocha. Alguns espíritos superiores (Platão [11], por exemplo) não admitiam a solidez dos céus; mas a maior parte dos astrônomos declarava que era impossível conceber o maquinismo e o movimento dos astros, se os céus não fossem formados duma substância dura, sólida e eterna. Segundo conta Plutarco [12], pensavam os físicos antigos que os aerólitos eram pedaços destacados da abóbada celeste e que, subtraídos à força centrífuga, caíam sobre a Terra em conseqüência do próprio peso.”

Pelo sistema exposto – considerando a Terra como centro do universo –, Tétis explica a Vasco da Gama a estrutura do mundo (Canto X), apontando-lhe primeiro o Empíreo (est. 79), o céu imóvel onde residem as almas dos bem-aventurados. E do mesmo modo descreve o zodíaco com as suas doze constelações figuradas por animais – que se imaginou serem as doze estâncias do Sol, cujo caminho aparente sobre o céu estrelado é percorrido durante o chamado “ano sideral” (isto é: 365 dias, 6 horas, 9 minutos e 9 segundos), voltando à posição anterior, com referência às estrelas, no fim desse intervalo.

Deu-se o nome de zodíaco a uma faixa de 9 graus de largura, por cima e por baixo desse caminho aparente, dividida em doze signos de 30 graus cada um. Estes signos têm os mesmos nomes das constelações que ocupam essa faixa do céu, posto que não muito exatamente.

Foi cerca de 14 séculos antes da nossa era que os gregos dividiram o céu em constelações, cujos nomes latinos se contêm nos seguintes versos:

Sunt Aries, Taurus, Gemini, Cancer, Leo, Virgo,
Libraque, Scorpius, Arcitenens, Caper, Amphora, Pisces.

Estes nomes em português são: Áries, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, Virgem, Libra, Escorpião, Sagitário, Capricórnio, Aquário e Peixes. O poeta não só menciona as doze constelações do zodíaco, mas ainda outras muitas das mais notáveis, enumerando os planetas pela ordem em que se julgavam dispostos no céu estrelado – segundo o sistema de Ptolomeu, tendo-se referido também aos chamados excêntricos e epiciclos [13] – inventados pelos astrônomos para explicar o movimento das esferas. Estes excêntricos e epiciclos explica-os hoje [início do séc. XX] a ciência deste modo:

“Os movimentos aparentes dos planetas que observamos são resultantes da combinação da translação da Terra em volta do Sol com a translação dos planetas em volta do mesmo astro.

“Tomemos Júpiter para exemplo: este planeta circula em volta do Sol a uma distância cinco vezes maior do que a distância da Terra ao Sol. A sua órbita envolve portanto a nossa com um diâmetro cinco vezes maior, e leva doze anos esse mesmo planeta a efetuar a sua translação.

“Durante os doze anos que Júpiter emprega em fazer a sua revolução em torno do Sol, a Terra faz doze revoluções em torno do grande astro. Por conseqüência o movimento de Júpiter – visto daqui – não é um simples círculo seguido lentamente durante doze anos, mas uma combinação deste movimento com o da Terra. Dê-se o leitor ao incômodo de traçar a seguinte figura: um ponto representando o Sol – um pequeno círculo em volta a dois centímetros de distância representando a órbita da Terra – e um segundo círculo – a dez centímetros – representando a órbita de Júpiter; facilmente reconhecerá que, girando em volta do Sol, produzimos um deslocamento aparente de Júpiter sobre a esfera estrelada em que ele se projeta. Este deslocamento dá-se, à metade do ano, em um sentido, e, à metade do ano, em outro. É como se a órbita de Júpiter fosse composta de doze anéis. Para dar conta do movimento aparente de Júpiter, os astrônomos antigos não tinham podido conservar por muito tempo o simples círculo: viam-se obrigados a fazer rodar sobre ele – no decurso de doze anos – o centro dum outro pequeno círculo, em cuja circunferência supunham o planeta encaixilhado. Deste modo, Júpiter não seguia diretamente o seu grande círculo: percorria o círculo pequeno que fazia doze giros no mesmo plano, rodando ao longo do círculo primitivo em um período de doze anos.

“Saturno em 30 anos faz o seu giro à volta do Sol. Para explicar as marchas e contramarchas aparentes vistas da Terra, tinha-se semelhantemente ajuntado à sua órbita um segundo círculo, cujo centro seguia esta órbita e cuja circunferência, levando encrostado o planeta, girava 30 vezes sobre si própria durante a revolução inteira.

“Estes segundos círculos receberam o nome de epiciclos.

“O de Marte era menor que os precedentes; os de Vênus e Mercúrio eram muito maiores.

“Eis uma primeira complicação do sistema circular primitivo. Mas não era só esta.

“Os planetas, visto que geralmente seguem elipses, estão em uns pontos do seu percurso mais perto do Sol do que em outros pontos. E, visto que todos os planetas – compreendendo a Terra – se movem em períodos diferentes à volta do Sol, o resultado é cada planeta estar ora mais próximo, ora mais afastado da própria Terra. Em certos pontos da sua órbita, Marte, por exemplo, chega a estar afastado de nós mais quatro vezes do que noutros pontos.

“Para dar conta destas variações de distância, os astrônomos modificaram os círculos primitivos. Como se pretendia conservar a figura circular, supôs-se que os círculos percorridos por cada planeta tinham por centro não precisamente o próprio globo terrestre, mas um ponto situado fora da Terra. Por este estratagema, Marte, por exemplo, descrevendo uma circunferência à roda dum centro situado ao lado da Terra, encontrava-se ora mais afastado, ora mais próximo dela. O centro real de cada órbita celeste não coincidia com o centro da Terra, senão por meio do subterfúgio do segundo centro móvel em torno do qual se efetuava essa órbita.

“Esta nova acomodação mecânica foi designada com o nome de ‘sistema dos excêntricos’.

“Estes epiciclos e estes excêntricos foram sucessivamente inventados, modificados e multiplicados conforme as necessidades do caso. À medida que as observações se tornavam mais exatas, era necessário acrescentar novos círculos para representar mais precisamente os movimentos celestes. Cada século acrescentava novo círculo e nova engrenagem ao mecanismo do universo, de modo que, no tempo de Copérnico – isto é, no começo do século XVI –, havia já deles número imenso, inextricáveis, emaranhados uns nos outros.

“Os astrônomos e os sábios oficiais da época dificilmente permitiam que se tocasse nesse edifício secular. Segundo Aristóteles e a sua escola, havia uma linha de demarcação natural que da Terra separava o Céu. A Terra, cercada pelos seus quatro elementos, era a sede das mudanças; o Céu, a partir do círculo da Lua, era incorruptível e imutável. Os movimentos celestes, guiados por leis que lhes eram próprias, não tinham relação alguma com as que governam a Terra. Traçada, deste modo, uma linha de demarcação entre a mecânica celeste e a mecânica terrestre, a filosofia colocava uma delas fora do campo das indagações experimentais e punha obstáculos a qualquer progresso da outra, estabelecendo princípios fundados sobre observações incompletas. Continuou por isso a astronomia, durante séculos, a ser uma ciência pura de tradições, em que a teoria não entrava senão no intento de conciliar as desigualdades dos movimentos celestes e uma pretendida lei de revolução circular e uniforme, que se considerava compatível com a perfeição do mecanismo celeste.

“Daí procedia o acervo (informe e contraditório) de movimentos hipotéticos do Sol, da Lua e dos planetas em círculos, que eram sucessivamente centros doutros círculos, até que finalmente – tornando-se mais exata a observação e multiplicando-se constantemente os epiciclos – tornou-se palpável o absurdo de sistema tão confuso.”

Expostas como ficam, sumariamente, as velhas teorias que serviram de base à descrição do universo feita pelo poeta no Canto X, é conveniente que também aqui se dê breve notícia das teorias modernas para as quais concorreu Copérnico [14], transformando o sistema de Ptolomeu, mudando a posição da Terra e demonstrando que o centro do universo é o Sol.

“Copérnico ainda manteve a esfericidade das órbitas celestes, a confusa engrenagem dos epiciclos e excêntricos e outras teorias que os sucessores do grande astrônomo foram modificando – ao ponto de engrandecerem e idealizarem o mundo pela maneira hoje conhecida. Quando se lêem os filósofos gregos – cujos conhecimentos científicos se podem apreciar, ainda que por maneira muito restrita –, causam notável impressão a sutileza que desenvolviam nas discussões, o êxito prodigioso dos raciocínios abstratos, a admirável sagacidade nos assuntos puramente intelectuais – todas estas qualidades formando contraste com a negligência e os poucos cuidados que prestavam ao estudo da natureza externa. Em certos casos, tiravam conclusões ilógicas de princípios de generalização fundados sobre fatos pouco numerosos e mal observados. Alguns desses filósofos prevaleciam-se com inconcebível leveza de princípios abstratos que não se referiam à natureza e dos quais, todavia, deduziam, como supostos axiomas matemáticos, todos os fenômenos e leis que os regem. Estavam, por exemplo, convencidos de que o círculo devia ser a figura mais perfeita, e daí concluíam naturalmente que as revoluções dos corpos celestes deviam fazer-se em círculos exatos e movimentos uniformes; se a observação estabelecia o contrário, não levantavam dúvidas sobre o princípio ou fundamento que haviam estabelecido. Longe disso: não cuidavam senão de salvar a sua perfeição ideal; e, para o conseguir, não havia espécie de combinações de movimentos circulares que eles não imaginassem.

“Nesta guerra de palavras, era desprezado o estudo da natureza, e considerava-se indigna dum sábio a paciente e modesta investigação dos fatos. O radical erro da filosofia grega foi imaginar que era aplicável à física o método que tão bons resultados dera nas matemáticas e que, partindo de noções simples quase evidentes, ou de axiomas, se podia resolver tudo. Por isso todos esses sábios que cultivavam a física andavam sempre ocupados em raciocinar ou desarrazoar sobre pretendidos princípios. Um considera o fogo como sendo a matéria essencial e a origem do Universo; outro adota o ar; um terceiro encontra a solução e a explicação de todos os fenômenos no “infinito”; um quarto vê-os no “ser” e “não ser”. Enfim, um filósofo, que havia de estabelecer opinião durante dois mil anos, decidia que a matéria, a forma e a privação deviam ser consideradas princípios de todas as causas.

“Esta maneira de perder o tempo em argumentos metafísicos, sob o pretexto de fazer ciência, durou nas escolas desde a Antiguidade até Copérnico, e retardou por muito tempo a supremacia das ciências exatas. A astronomia de observação progredia entre os árabes e na escola de Alexandria, mas o seu estudo tornava-se estéril, e sem a teoria era quase impossível atingir o alvo da ciência, o qual consiste em tornar conhecida a natureza. Reconhecemos contudo, para não sermos acusados de ingratidão com a Antiguidade e a Idade Média, que, se não houvesse os trabalhos antigos, não existiria a ciência moderna. Chega-se a grande, depois de se ser pequeno. Graças às observações e explicações antigas é que se pôde verificar a insuficiência das hipóteses e imaginar outras melhores.

“Foi nos séculos XV e XVI que se estabeleceu o método experimental, aparecendo sábios independentes, que se podem chamar precursores de Copérnico: George Peurbach (1423–1461), Jean Muller (1436–1476), Fracastori (1483–1553).

“Enquanto os astrônomos faziam os últimos esforços para explicar do melhor modo possível os movimentos celestes – sem se afastarem da velha hipótese da imobilidade da Terra –, o célebre Colombo descobria o Novo Mundo; e o globo terrestre desvendava-se por todos os lados às vistas da ciência aventurosa; o espírito humano, conhecendo, daí por diante, diretamente e por experiência, a esfericidade do globo e o seu isolamento no espaço, adquiria o elemento mais essencial para conceber o seu movimento.

“No ano imediato à morte do grande navegador, estava Copérnico tratando de destruir as idéias antigas sobre astronomia; e em 1543 publicava em Nuremberg a obra imortal, que mudou a face da astronomia, e cujo título era: Nicolai Copernici Torinensis, de Revolutionibus orbium celestium, libri VI.

“O sistema das aparências, a opinião da imobilidade do globo terrestre e do movimento do Céu, era ainda no século XVI – e ainda hoje é – a idéia simples e vaga que reina no espírito do povo ignorante.

“Refletindo nas condições mecânicas do sistema das aparências, Copérnico pensou que esse sistema, tão complicado e tão grosseiro, não podia ser divino nem natural, porque tudo na natureza é extremamente simples; e, depois de 30 anos de estudos, convenceu-se de que, atribuído à Terra duplo movimento – um, de rotação sobre si própria em 24 horas, e outro, de translação à volta do sol em 365 dias e um quarto –, se explicavam todos os movimentos celestes, para os quais se tinham inventado esses numerosos círculos de cristal.

“O sistema existente parecia estar de harmonia com a observação, mas era aparente essa harmonia. Para que o universo fosse constituído de tal maneira, seriam indispensáveis condições mecânicas que não existem: seria preciso, por exemplo, que a Terra fosse mais pesada que o Sol; que ela fosse o astro mais importante do sistema solar; que as estrelas não estivessem separadas de nós por tão prodigiosas distâncias. Reconheceu-se, pois, que os planetas não circulam em volta do globo terrestre, mas sim em companhia da própria Terra em volta do Sol (relativamente imóvel) – seguindo, no seu movimento, elipses e não círculos.”

Eis alguns dos pontos fundamentais do método de Copérnico e das suas demonstrações – em que todavia aparecem restos das antigas teorias:

“A Terra é esférica [15], porque a esfera é de todas as figuras a mais perfeita, e a que sob a mesma superfície circunscreve maior espaço em todos os sentidos.

“O Sol e a Lua são de forma esférica. É a forma que tomam naturalmente os corpos, como se vê nas gotas de água. Todos os corpos celestes têm forma esférica. Demonstra-se a esfericidade da Terra: um objeto visível ao longe na ponta do mastro dum navio que, visto da praia, parece descer à medida que o navio se afasta: prova-se também pelos eclipses da Lua, na qual se vê a sombra redonda da Terra.

“Qual é a posição da Terra no Universo? Quase todos os autores estão de acordo em supor que a Terra é imóvel; parece-lhes até ridícula a opinião contrária. Examine-se atentamente o caso. Qualquer deslocação observada procede, ou do movimento do objeto observado, ou do observador, ou do movimento simultâneo de ambos; porque, se os dois movimentos forem iguais, não haverá meio de os perceber. Ora, é da parte de cima da Terra que observamos o Céu. Se a Terra se move, parecer-nos-á que o Céu se move em sentido contrário, transportado de Oriente para Ocidente em cerca de 24 horas. Deixai o Céu em repouso e dai movimento à Terra, mas do Ocidente para Oriente: tereis as mesmas aparências exatamente.

“Sendo imensa a esfera celeste, como se pode conceber que ela gire em 24 horas? Não é mais natural atribuir este movimento à Terra, e só à Terra? Quando a Terra gira, tudo que está no Céu nos parece girar; mas as nuvens e tudo que está no ar participam do movimento dela.

“Se todos os astros girassem em volta da Terra, o que sucederia?

“O astro mais próximo de nós (a Lua) está a 96.000 léguas da Terra. Ser-lhe-ia, portanto, necessário percorrer em 24 horas uma circunferência de 192.000 léguas de diâmetro, isto é, 603.000 léguas de extensão; teria, por isso, de correr com uma velocidade de 25.125 léguas por hora, ou 400 léguas por minuto, ou 7 léguas por segundo… Mas isto é o de menos.

“O Sol – a 37 milhões de léguas de nós – teria de percorrer no mesmo intervalo de 24 horas uma circunferência de 232 milhões de léguas em volta da Terra; ser-lhe-ia preciso voar com uma velocidade de 9.680.000 léguas por hora e 161.300 léguas por minuto, ou 2.690 léguas por segundo!

“Os planetas Marte, Júpiter e Saturno, mais longe da Terra do que o Sol – que participam igualmente do movimento diurno –, seriam levados no espaço com uma rapidez ainda mais inconcebível. O último planeta conhecido dos antigos – Saturno –, nove vezes e meia mais afastado de nós do que o Sol, seria obrigado, para em 24 horas dar a volta em roda da Terra, a descrever uma circunferência de dois bilhões de léguas de extensão e a queimar o espaço com uma rapidez de mais de 20 mil léguas por segundo.

“E as estrelas? A imaginação assusta-se com a rapidez que seria necessário supor a esse movimento se elas dessem a volta da Terra em 24 horas. Saturno está distante de nós 218.431 semidiâmetros do globo terrestre. Ora, as estrelas estão para lá do orbe de Saturno. Sabe-se que a estrela mais próxima de nós está à distância de 275.000 vezes a distância da Terra ao Sol, isto é, dez trilhões de léguas. Essa estrela – o alfa de Centauro – deveria percorrer, no intervalo de 24 horas, uma circunferência de 63 trilhões de léguas em extensão, e a sua velocidade seria de 2.666 bilhões de léguas por hora, 44.400 milhões por minuto – em suma, 740 milhões de léguas por segundo.

“Havendo vários centros, não é crível que o centro do mundo seja o da Terra e da gravidade terrestre. A gravidade não é mais do que a tendência natural dada pelo Criador a todas as partes do mundo, e que as leva a reunirem-se e a formarem globos. Esta força deu ao Sol, à Lua e aos outros planetas a forma esférica, o que não obsta a que executem revoluções diversas. Se a Terra, portanto, tem movimento em volta dum centro, esse movimento será semelhante àquele que percebemos nos outros corpos – teremos um circuito anual. O movimento do Sol será substituído pelo movimento da Terra. Tornado imóvel o Sol, realizar-se-ão do mesmo modo o nascimento e o ocaso dos astros; as estações e as retrogradações serão resultado do movimento da Terra; o Sol será o centro do mundo. É a ordem natural de tudo que sucede, é o que ensina a harmonia do mundo – e que é forçoso admitir.

“A esfera superior a todas é a das estrelas fixas – esfera imóvel que abraça o conjunto do Universo. Seguem-se entre os planetas errantes primeiramente Saturno, que precisa de 30 anos para fazer a sua revolução; depois Júpiter, que faz o caminho em doze anos; segue-se Marte, que precisa de dois anos. Na quarta linha encontram-se a Terra e a Lua, que – no espaço de um ano – chegam ao seu ponto de partida. O quinto lugar é ocupado por Vênus, que precisa de nove meses para o seu caminho; Mercúrio ocupa o sexto lugar, e precisa apenas de 24 dias para descrever a sua órbita. No meio de todos, reside o Sol. Qual é o homem que, em templo tão majestoso, poderia escolher outro e melhor lugar para o brilhante astro que ilumina todos os planetas e os seus satélites? Não é sem razão que o Sol se chama a luz do mundo, a alma e o pensamento do universo. Colocando-o no centro dos planetas, como sobre um trono real, entregamos-lhe o governo da grande família dos corpos celestes.”

Em seguida se encontra a figura deste sistema, copiada de um fac-símile da mão de Copérnico:

Breve notícia dos sábios astrônomos que sucederam a Copérnico, confirmando constantemente o seu sistema e concorrendo para os progressos da astronomia moderna, constitui completa explicação dos motivos que induziram Camões a explicar a contextura do Universo segundo o sistema de Ptolomeu. Se doutro modo procedesse, a censura inquisitorial não permitiria a publicação do poema, e levaria talvez a severidade ao ponto de encarcerar o poeta.

A teoria de Copérnico – a do movimento da Terra em volta do Sol, sendo este astro o centro do Universo – continuou a ser tida por absurda, ridícula e inadmissível. Dois anos depois da morte do venerável renovador do mundo, celebrava-se o Concílio ecumênico de Trento (1545), que estabeleceu como fundamental artigo de fé a imobilidade da Terra no centro do mundo. Tycho Brahe (1546–1601), notável astrônomo, tinha exaltada admiração pelo talento de Copérnico, mas deixou-se arrastar naturalmente por escrúpulos religiosos, não admitindo o novo sistema senão corrigido.

Kepler (alemão) e Galileu (italiano), professor de astronomia em Pisa, dois sábios eminentes da sua época (fins do século XVI e princípios do século XVII), defendendo a doutrina de Copérnico, foram dela os primeiros propagandistas. Galileu, escrevendo a Kepler, dizia-lhe: “Copérnico era digno duma glória imortal, e foi tido por insensato!” Kepler respondia-lhe que lhe comunicasse os seus escritos, pois talvez pudesse publicá-los na Alemanha, visto a Itália pôr obstáculo às suas publicações.

Galileu (1610), dirigindo para a Lua as lunetas astronômicas pouco antes inventadas, descobriu que o vizinho astro era uma terra como a nossa, coberta de montanhas e vales; dirigindo-as para o Sol, verificou a existência de manchas na sua superfície e a rotação dele de Oeste para Leste. Esta rotação do astro do dia apresentava um testemunho de alta presunção em favor de movimento de translação dos planetas e da Terra em volta do Sol no mesmo sentido. Voltando a luneta para Júpiter, o ilustre astrônomo descobriu que esse imenso planeta é acompanhado de quatro luas ou satélites, que o seguem no seu curso do mesmo modo que a Lua acompanha a Terra: este pequeno sistema representava em miniatura o sistema planetário todo inteiro. Assim se acumulavam, como por encanto, os testemunhos favoráveis a Copérnico. O mais palpável e mais significativo de todos foi ver-se que se realizava no campo do óculo a profecia que 60 anos antes tinha feito Copérnico perante os seus detratores. Diziam-lhe estes:

— Se o Sol estivesse realmente no centro do sistema planetário, e se Mercúrio e Vênus girassem em torno dele numa órbita interior à da Terra, esses dois planetas deviam ter fases; Vênus, quando estivesse do lado de cá do Sol, devia estar em crescente como se fosse a Lua; e, quando formasse ângulo reto com o Sol e a Terra, devia apresentar-se com o aspecto de quarto crescente. Ora, isso é que nunca se viu.

— Essa é a realidade, respondeu Copérnico, e é o que os homens hão de ver um dia, se acharem meio de aperfeiçoar a vista.

Por isso Galileu [16] exclamou, entusiasmado, quando com a lente descobriu as fases de Vênus:

— Ó, Nicolau Copérnico! Que felicidade seria a tua, se tivesses podido gozar estas novas observações, que tão plenamente confirmam as tuas idéias.

Até então, a nova doutrina não tinha sido objeto de perseguição direta. Mas quando tomou corpo, e pareceu impor-se para substituir os princípios ensinados desde séculos, ligaram-se os sábios oficiais de comum acordo – alguns de boa-fé, outros por interesse ou ciúme – para impedir que triunfasse a novidade. Os teólogos decidiram unanimemente que era contrária às Escrituras. A Congregação do Index, estabelecida para manter a fé católica, foi incumbida pelo Papa de estudar a questão sob o ponto de vista dogmático. Em 1616, publicou essa Congregação um decreto declarando que a nova teoria do movimento da Terra era contrária às Escrituras, e que seria considerado herege quem a sustentasse, proibindo que ela fosse ensinada em qualquer país cristão, e interditando a obra de Copérnico até ser corrigida.

Quatro anos depois, a mesma Congregação indicou as alterações que se deviam fazer na obra de Copérnico: as mais importantes eram intercalar a palavra hipótese em todos os lugares em que o autor expunha a teoria do movimento da Terra e apagar a palavra astro em todos os lugares onde estivesse aplicada à Terra.

Todos sabem que Galileu foi condenado à prisão perpétua por não ter obedecido às proibições da autoridade eclesiástica e que morreu em 1642, depois de ter confirmado com provas indestrutíveis a teoria de Copérnico.

As sentenças eclesiásticas contra a crença do movimento da Terra, no século XVII, foram revogadas pelo Papa Bento XI [17], e hoje a Igreja Católica admite o verdadeiro sistema do mundo.

Kepler (1571–1630) declarou-se, ao mesmo tempo que Galileu, em favor de Copérnico, e na Alemanha publicou – com mais liberdade do que o seu êmulo em Itália – trabalhos profundos que concorreram para radicar, em bases inabaláveis, a teoria discutida do movimento da Terra e imobilidade relativa do Sol no centro das órbitas planetárias. Dos trabalhos de Kepler, resultou saber-se que os astros, no seu curso, não descrevem círculos mas elipses; e foi ele que estabeleceu, além de outras, duas leis imortais, que completaram a obra de Copérnico: 1) que os planetas se movem seguindo elipses, das quais o Sol ocupa um dos focos; 2) que os quadrados dos tempos das revoluções planetárias são proporcionais aos cubos dos eixos maiores das órbitas (os cubos das distâncias) – leis cuja aplicação se resolve por meio de problemas de geometria.

Estas descobertas expurgaram do sistema de Copérnico os círculos excêntricos e os epiciclos, que o embaraçavam ainda, e que tinham ficado como herança orgânica do antigo sistema.

Copérnico foi o fundador, o pai espiritual da astronomia moderna; e esta foi sendo aperfeiçoada por Tycho Brahe (1546–1601), Francis Bacon (1561–1626), Newton (1642–1727), Kepler (1571–1630), Galileu (1564–1642), Herschel (1732–1822), Halley (1656–1742), e muitos outros de todas as nações.

“A obra capital de Newton foi demonstrar que a causa da suspensão da Terra e de todos os astros, no espaço, é uma força determinada – calculável –, cuja intensidade diminui na razão inversa do quadrado da distância; e que em virtude da qual os corpos celestes se atraem reciprocamente; e que se movem e se sustentam no equilíbrio duma rede invisível. A atração universal, a gravitação – demonstrou-o esse sábio – rege os mais ínfimos movimentos que se operam tanto à superfície do solo, como nas mais longínquas regiões acessíveis ao telescópio, sustentando os nossos passos e as nossas habitações, regendo a gota de chuva, o grão de pó levantado pelo vento, dirigindo a Lua em volta da Terra, esta em volta do Sol, e organizando os movimentos das estrelas.”

Em notas ao Canto X, acrescentam-se mais algumas breves noções de astronomia popular, para auxiliar a interpretação das estrofes 77 a 90, onde se descreve o sistema cosmográfico consagrado no tempo do poeta.

Notas:

[8] V. Prefácio do Editor, p. 14. [Nota do Editor]
[9] Estas citações e transcrições ou extratos e os que se seguem são principalmente da obra de Camille Flammarion, L’Astronomie et ses Fondateurs – Copernic et le Sistème du Monde.
[10] Todavia Aristóteles já conhecia opiniões opostas às que sustentava (Do Céu, II, 13, 1): “Os partidários chamados pitagóricos eram de parecer contrário. Pretendiam eles que o fogo estava no centro do mundo, que a Terra era um dos astros que fazem revolução em torno desse centro, a qual produzia o dia e a noite”.
[11] Séc. IV a.C.
[12] Séc. I d.C.
[13] “Em todos estes orbes, diferente curso verás” (X, 90).
[14] Nicolau Copérnico, ilustre fundador da astronomia moderna, nasceu em Thorm (Polônia) a 10 de fevereiro de 1473; era eslavo por parte dos ascendentes e pelo nascimento.
[15] Demonstrou-se mais tarde que é um esferóide, achatado nos pólos.
[16] Nasceu 21 anos depois da morte de Copérnico, mas foi o primeiro astrônomo que se declarou aberta e calorosamente em favor do novo sistema, por escrito – daí procede a sua glória.
[17] Na verdade, o Papa Bento XIV.


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