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Música e a Educação da criança

Canção dos Anjos, 1881 -
William Adolphe Bouguereau

1) Introdução.

Cultivar até à excelência a virtude e a inteligência são os requisitos imediatos da vida contemplativa; nisto afirmamos consistir aquela fase da pedagogia a que chamamos de intencional, por supor a intenção do aluno de alcançar este objetivo.

Antes disso, porém, temos a pedagogia não intencional, que consiste em uma preparação para o trabalho intencional da virtude e da inteligência em que no mais das vezes o aluno não tem condições de compreender o fim último de seus esforços.

Foi no fim do VII da Política e no VIII da mesma obra que Aristóteles abordou este assunto, analisando a educação da criança desde os seus primeiros anos. Entretanto, deixou este tratado incompleto ainda nos próprios princípios.

Santo Tomás de Aquino não chegou a comentar sequer este texto inacabado de Aristóteles. Seu comentário se interrompe ao longo do III da Política; um de seus discípulos, seguindo a orientação do mestre, completou o comentário até o ponto em que Aristóteles havia escrito. Este discípulo que continuou o Comentário demonstra conhecer bem a obra e o pensamento de Tomás, de modo que o Comentário à Política escrito pelos dois autores tem sido publicado como uma só obra, apenas com uma pequena nota assinalando o ponto em que termina o texto de Tomás e se inicia o do discípulo.

Não é difícil, ademais, supor o que Tomás de Aquino pensaria sobre Aristóteles nos textos que ele não comenta. A não ser em pouquíssimos pontos onde Aristóteles afirma algo manifestamente inconciliável com o conjunto do pensamento de Tomás, este último sempre concorda com o primeiro e, o mais freqüentemente, aprofunda o pensamento de Aristóteles. De modo que pode-se dizer que o presente capítulo desta trabalho, baseado no texto com que um aluno de Tomás de Aquino completou o Comentário à Política que ele havia deixado inacabado, não foge ao pensamento de Tomás de Aquino.

2) Princípio geral para a educação da criança.

O final do Comentário ao VII da Política, que inicia a abordagem dos requisitos remotos da educação em seus primeiros estágios, abordagem que infelizmente encontra-se interrompida ainda em seus começos, enuncia um princípio geral a ser observado em tudo quanto irá e iria ser tratado posteriormente.

Depois de ter declarado qual é o fim último da vida humana, diz o Comentário, deve-se considerar como se deve proceder para tornar os homens bons e aplicados em se ordenarem a este fim. Devemos distinguir três coisas que para isso são necessárias: a natureza, o costume, que nesta passagem é para Aristóteles um termo pelo qual se designam as disposições do apetite, e a razão [588].

É necessário considerar se as crianças devem ser instruídas primeiramente segundo a razão ou inteligência, ou se devem ser instruídas segundo o costume ou apetite. E antes mesmo disto, deve-se considerar se não devem ser bem dispostas segundo o corpo antes que tratemos de bem dispor as suas almas. De fato, é necessário harmonizar entre si estas coisas do modo devido para que tratemos de dispor em primeiro lugar àquilo que a natureza previu que deve ser disposto em primeiro lugar [589].

Ora, é manifesto nas coisas que são segundo a natureza e segundo a arte que qualquer geração começa por algum princípio imperfeito e termina em algo perfeito e final. O termo e fim natural do homem é a razão e a inteligência em ato e não em potência; pelo que importa ordenar primeiro o corpo do que a alma, e o apetite antes que a inteligência [590]. De fato, observa-se que o apetite precede segundo a via da geração o intelecto e a razão em ato, pois o irascível e a concupiscência estão nas crianças imediatamente desde o nascimento, enquanto que o intelecto e a razão em ato não estão senão depois de um certo tempo [591].

Portanto, como é necessário dispor aquilo que se ordena ao fim antes de dispor o próprio fim, e o corpo se ordena ao intelecto e à razão como a um fim, e o apetite se ordena à inteligência assim como a matéria à forma, será preciso primeiro ocupar-se do corpo do que da alma; e depois, na alma, daquilo que pertence ao apetite por causa do intelecto e tendo em vista ao mesmo, e por causa do intelecto cuidar de tudo quanto há na alma. De fato, todas as partes da alma e os seus hábitos se ordenam à perfeição que é segundo o intelecto [592].

3) A educação do nascimento ao terceiro ano.

O alimento mais conveniente às crianças logo após o parto, diz o Comentário, é o leite natural, e mais ainda o leite da mulher do que o dos animais, e ainda maximamente o da própria mãe do que o de outra. Aqueles que são alimentados com o leite da própria mãe crescerão melhor dispostos segundo a natureza [593].

Logo após o nascimento é importante acostumar as crianças a pequenos movimentos, por exemplo, das mãos, dos pés e de outras partes. E, segundo diz Avicenna, com o movimento deve-se procurar a consonância da música e a voz da canção para produzir na criança o deleite da consonância musical por causa do que será dito mais adiante [594].

4) A educação do terceiro ao quinto ano.

Nesta idade as crianças não são capazes do aprendizado por causa de sua tenra compleição e imperfeição das virtudes, nem podem fazer grandes trabalhos. Por isso é necessário exercitá-las em pequenos movimentos que podem ser feitos em diversas ações e brincadeiras. As brincadeiras não devem declinar à servilidade, nem ser muito trabalhosas ou violentas, para que não prejudiquem as virtudes por causa do excesso, nem muito moles e remissas, para que não se transformem em causa de preguiça [595].

Nesta idade devem ser exercitadas em ouvir pequenas histórias e fábulas, para que se exercitem no falar e nas razões dos nomes. Deve-se observar porém que, nesta idade, tudo em que as crianças forem acostumadas, movimentos, ações, brincadeiras, histórias e fábulas que ouvem e também que vêem, sejam imagens das coisas em que depois deverão tratar seriamente, e como que um caminho para as coisas que depois deverão estudar ou em que se ocupar, pois as coisas que por primeiro nos acostumamos mais inclinam posteriormente, já que aquilo de que temos costume nos é mais deleitável [596].

Deve-se evitar que ouçam, nesta idade, coisas torpes. Ao contrário, o bom legislador deveria exterminar completamente da cidade os discursos torpes sobre o que é venéreo e outras coisas que estão além da razão e honestidade, pois pelo fato de discorrer sobre o que é torpe segue-se a inclinação à ação torpe. Freqüentemente ocorre que, falando de alguma ação torpe, mais freqüentemente se pense sobre a mesma, e do freqüente pensamento segue-se uma inclinação maior a esta ação. Isto que deve ser universalmente proibido na cidade, deve ser maximamente proibido aos jovens e na presença deles, de modo que nem falem nem ouçam falar a respeito. De fato, tudo quanto ouvem ou vêem ou operam nesta primeira idade é admirado como coisa nova, por causa do que é melhor lembrado e se faz mais deleitável, pois as coisas admiráveis são deleitáveis e às coisas nas quais nos deleitamos mais facilmente nos inclinamos [597].

Deve-se evitar nesta idade que as crianças vejam o que é desonesto; de fato, diz o Filósofo, se devemos exterminar da cidade fazer ou dizer o que é torpe, manifesto é que deve-se evitar também o ver estas coisas, pois pelo vê-las produz-se a imaginação e a memória das mesmas, e isto principalmente nas crianças, as quais vivem da admiração [598].

5) A educação do quinto ao sétimo ano.

Nesta idade as crianças devem examinar as disciplinas em que irão ser posteriormente educadas. Por exemplo, se deverão ser educadas na música, devem ser levadas a ouvir os músicos, para que, pelo ouvido e pela inspeção de tais coisas adquiram o costume e mais se inclinem às mesmas [599].

6) A educação do sétimo ao décimo quarto ano.

As crianças podem aprender música depois dos sete anos. Há três finalidades na educação musical das crianças: para que brinquem [600], para que se tornem puras [601] e para acostumá-las a julgar retamente e deleitar-se segundo a razão, dispondo-as à virtude [602].

É coisa manifesta que pelo correto uso da música nos tornamos bem dispostos às virtudes. De fato, diz o Filósofo, os sacerdotes do monte Olimpo se utilizavam de muitas melodias para este fim [603].

A razão pela qual a música dispõe às virtudes consiste em que a música faz parte das coisas que são deleitáveis segundo si mesmas, e a virtude moral diz respeito como a uma matéria própria às deleitações, às tristezas e às demais paixões. Ora, é manifesto que nada acostuma tanto à geração dos hábitos morais e às ações das mesmas do que o reto julgamento dos movimentos das paixões e o deleitar-se nelas segundo a razão [604]. Acostumar-se, porém, a julgar o que é semelhante às ações e deleitações morais é acostumar-se a julgar das próprias ações morais e deleitar-se nelas.

Mas as harmonias musicais são semelhantes às paixões, aos hábitos e às ações morais [605], pois nas melodias musicais se encontram manifestamente imitações dos costumes, já que pelas diferenças das harmonias podem se dispor de modo imediato as paixões e os movimentos dos ouvintes de tal ou qual maneira. Assim é que a melodia lídia do sétimo tom retrai o espírito ao seu interior; a melodia lídia do quinto tom, também denominada de hipolídia, manifestamente predispõe à preguiça; a melodia dórica do primeiro tom dispõe os ouvintes à constância nas obras, pelo que é maximamente moral; a melodia frígia do terceiro tom recolhe fortissimamente o espírito do exterior ao interior [606].

Estes exemplos mostram como nas melodias encontramos as semelhanças das virtudes [607]; de onde que acostumar-se a julgar e a deleitar-se corretamente nas harmonias musicais é acostumar-se a julgar e a deleitar-se retamente nos hábitos e nas ações morais [608]. Deve-se, portanto, concluir que a música pode dispor à virtude, pelo que é importante educar e acostumar os jovens à mesma [609].

A música também pode purificar os jovens, porque a purificação é a corrupção de alguma paixão nociva que passa a não existir, o que se obtém pela geração do contrário, assim como a corrupção da ira se dá pela geração da mansidão [610].

7) A música como arte liberal.

O homem é dito livre quando ele é causa de si próprio sob a razão de causa movente e de causa final.

Ele é causa de si mesmo sob a razão de causa movente quando, mediante aquilo pelo qual ele possui natureza humana e é principal nele, isto é, a inteligência, é movido julgando e ordenando o modo e a razão do agir.

É causa de si mesmo sob a razão de causa final quando é movido ao bem e ao seu fim próprio segundo aquilo que há de principal nele, isto é, a inteligência; e tanto mais livre será segundo a natureza quanto mais for capaz de ser movido por aquilo que é principalíssimo nele e em direção ao seu fim e bem seguindo este mesmo principalíssimo [611].

Já o homem é dito servo quando não é capaz, por causa da indisposição da matéria, de mover-se pela inteligência própria, devendo por isso ser movido pela de outro; e quando nem também age por causa dela, mas por causa daquela de outro [612].

Neste sentido uma ciência era chamada liberal pelos antigos quando, por meio dela, o homem se dispunha segundo a inteligência ao seu fim próprio. E, entre as ciências liberais, aquela que é maximamente livre é aquela que dispõe de modo imediato a inteligência ao fim ótimo, isto é, aquela em cuja operação consiste a felicidade.

Aquelas que dispõem a inteligência ao fim ótimo do homem de modo mediato são menos livres, como o são as ciências posteriores nas quais o conhecimento que delas advém se ordena ao conhecimento das que lhe são superiores, embora estes conhecimentos já sejam tais que possam ser buscados por si mesmos.

Será minimamente liberal entre as ciências especulativas aquela em que minimamente se buscar o conhecimento por causa dela mesma e que se ordenar apenas através de muitos meios ao bem último do homem [613].

Embora a ciência maximamente liberal não possa ser mal usada quanto ao seu uso em si mesmo considerado, as ciências posteriores menos liberais podem ser mal usadas mesmo quando consideradas em si mesmas.

De fato, se considerarmos esta questão não segundo determinado aspecto, mas em relação ao próprio fim último do homem considerado em si mesmo, não é possível fazer mau uso deste fim último. Nas coisas que são meios para se alcançar um fim, mesmo consideradas em si mesmas e não segundo algum determinado aspecto, pode ocorrer que sejam mal usadas. Isto ocorre quando pela consideração ou pelo exercício das mesmas alguém se afasta seja do próprio fim, seja das coisas que são mais próximas àquele fim; é o que acontece quando, pela consideração de alguma ciência posterior que trata de um conhecimento menos nobre alguém se afasta da consideração da ciência primeira que trata do conhecimento maximamente elevado [614].

É freqüente que isto ocorra com a música, porque muitos há que acabam por colocar nela o seu fim último. Mas a música não é o fim último do homem, este fato só vindo a ocorrer porque são poucos os homens que alcançam o fim último da vida, efetivamente uma coisa rara. Os homens encontram para isto muitos impedimentos, por parte da natureza, por parte do costume, por causas externas, ou mesmo porque fogem do trabalho necessário para alcançá-lo. Quando isto acontece muitos acabam por colocar seu fim último na música apenas por causa da deleitação que ela proporciona; pelo fato de não poderem alcançar a felicidade que reside no fim último do homem, acabam por buscar na música a deleitação por si mesma. A razão disto é que o fim último da vida humana possui deleitação, não qualquer deleitação, mas a deleitação máxima; a música, de modo semelhante, possui deleitação; por isso, os que buscavam a primeira que está no fim último, não a alcançando, tomam aquela que está na música por aquela que lhe é mais nobre, pela semelhança que nesta segunda encontram com a do fim último [615].

8) O plano de Aristóteles.

Era a intenção de Aristóteles, conforme manifestado nas últimas linhas do livro VII da Política, tratar da educação após os sete anos em três etapas; a primeira, dos sete aos catorze anos; a segunda, dos catorze aos vinte e um; a terceira, dos vinte e um aos trinta e sete [616].

Entretanto, tendo mencionado previamente algumas disciplinas em que conviria exercitar os jovens dos sete aos catorze anos, entre as quais figurava a música, após ter iniciado a tratar a respeito da música, interrompeu repentinamente o seu livro.


Notas:

[588] In libros Politicorum Expositio, L. VII, l. 12, 1220.

[589] Idem, loc. cit..

[590] In libros Politicorum Expositio, L. VII, l. 12, 1221.

[591] Idem, loc. cit..

[592] Idem, L. VII, l. 12, 1223.

[593] Idem, L. VII, l. 12, 1246.

[594] Idem, loc. cit..

[595] Idem, L. VII, l. 14, 1249.

[596] Idem, L. VII, l. 12, 1250.

[597] Idem, L. VII, l. 12, 1253.

[598] Idem, L. VII, l. 12, 1254.

[599] Idem, L. VII, l. 12, 1257.

[600] Idem, L. VIII, l. 2, 1290.

[601] Idem, L. VIII, l. 3, 1331.

[602] Idem, L. VIII, l. 3, 1290.

[603] Idem, L. VIII, l. 2, 1302.

[604] Idem, L. VIII, l. 2, 1307

[605] Idem, L. VIII, l. 2, 1308.

[606] Idem, L. VIII, l. 8, 1312.

[607] Idem, loc. cit..

[608] Idem, L. VIII, l. 2, 1308.

[609] Idem, L. VIII, l. 2, 1314-1315.

[610] Idem, L. VIII, l. 3, 1331.

[611] Idem, L. VIII, l. 1, 1266.

[612] Idem, loc. cit..

[613] Idem, L. VIII, l. 1, 1267.

[614] Idem, L. VIII, l. 1, 1268.

[615] Idem, L. VIII, l. 2, 1299-1300.

[616] Idem, L. VII, l. 12, 1258.

***

Trecho retirado capítulo VII A Pedagogia da Sabedoria IIIª Parte do livro Educação segundo a Filosofia Perene disponível no link.


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Princípios Fundamentais de Pedagogia - parte 1

Hugo de São Vítor. Teólogo
 e filósofo francês. Século XII.
Gravura do século XVII.

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DE PEDAGOGIA

Parte 1

Introdução Geral

1. Princípios fundamentais de pedagogia

O objetivo deste livro é o de apresentar uma concepção de pedagogia bastante diversa do que a maioria dos mais arrojados educadores modernos ousaria conceber.

E, não obstante isso, não se trata de uma utopia, como tantas que foram registradas nos anais da história da educação, nem apenas um projeto, mas algo que foi realidade durante gerações, não em alguma civilização distante, mas na Europa do século XII. E, no entanto, ainda apesar disso, a pedagogia aqui descrita transcende a época em que se realizou como fato histórico; ela pertence, pensamos também nós, ao número daquelas coisas que não passam mais. Foi por isto que demos a este livro o título simplesmente de Princípios Fundamentais da Pedagogia.

Procuramos descrever esta pedagogia através dos textos de um dos educadores daquela época, responsável que foi pela escola anexa ao mosteiro de São Vítor. Limitando-nos aos seus textos, porém, e à sua escola, não apresentamos apenas as idéias educacionais de um só homem, pois ele próprio é o primeiro que se esforça por apresentar em seus textos, nas suas linhas gerais, não as suas idéias pessoais, mas as da tradição em que vive e em que desenvolve o seu trabalho de educador.

A escola de São Vítor, de que foi responsável, tem sua origem em Paris, no fim do século XI, anexa à abadia de São Vítor. Desempenhou no século seguinte papel de elevada importância nos acontecimentos culturais e espirituais da Europa. Fundada por Guilherme de Champeaux, depois de alguns anos teve o nome de Hugo de São Vítor ligado a si própria de uma forma muito semelhante àquela pela qual no século seguinte o de S. Tomás de Aquino se ligaria aos inícios da história da ordem dominicana.

Hugo de São Vítor, o autor dos trabalhos traduzidos neste livro, nasceu provavelmente no ano de 1096 na Saxônia, atual território da Alemanha, onde recebeu sua primeira educação em uma escola monástica. De lá transferiu-se para Paris, o maior centro de estudos da Europa de seu tempo, ingressando no mosteiro de São Vítor, ainda há pouco tempo fundado por Guilherme de Champeaux.

Em 1125 tornou-se professor no mosteiro; em 1133, diretor da escola anexa; logo depois, também prior. Faleceu em São Vítor aos 11 de fevereiro de 1141.

Foi provavelmente o maior dos teólogos do século XII; assim como S. Tomás de Aquino, S. Boaventura, Pedro Lombardo, foi também professor de teologia. Pode parecer redundante hoje em dia acrescentar que um teólogo tenha sido professor de teologia; mas o fato é que os maiores teólogos antes da idade média não o foram.

Ao contrário, porém, de seus demais colegas medievais, Hugo de São Vítor, além de professor, foi também diretor de uma escola, de um dos principais centros de ensino superior do mundo de seu tempo e que, não obstante esta importância, mal acabava de ter sido fundada. Ambas estas características, a direção de uma escola deste porte juntamente com a sua recente fundação, iriam conferir à obra de Hugo de São Vítor contornos inexistentes nas de seus colegas.

Sua obra ocupa três volumes da Patrologia Latina de Migne, respectivamente, os volumes 175, 176 e 177. Para os que não conhecem a coleção, cada um destes livros tem aproximadamente o mesmo tamanho dos volumes da Enciclopédia Britânica; o que temos traduzido neste trabalho é, assim, bem menos do que um por cento da obra de Hugo.

Os trabalhos de Hugo de São Vítor, em uma primeira aproximação, podem ser divididos em quatro grupos: os exegéticos, os ascéticos, os dogmáticos e os pedagógicos. Para os fins deste trabalho, nos interessarão os dois últimos, e mais especialmente os pedagógicos.

Entre os trabalhos dogmáticos os principais são um breve tratado intitulado Summa Sententiarum e outro bem maior, considerado a obra prima de Hugo, o De Sacramentis Fidei Christianae. Nesta última, o autor se propõe a expor o conteúdo teológico das Sagradas Escrituras, nela demonstrando uma capacidade de síntese e sistematização desconhecidas até então, comparáveis, em sua novidade, à especulação metafísico teológica contida nos trabalhos de Santo Anselmo. Ambas estas características seriam posteriormente assimiladas, aprofundadas e fundidas em um mesmo todo por São Tomás de Aquino na sua Summa Teologiae.

De maior interesse, porém, para o presente trabalho, são as obras pedagógicas de Hugo de São Vítor, únicas, talvez, em seu feitio, não só na idade antiga e média, como talvez mesmo em toda a história da pedagogia. Esta singularidade deve sua causa ao fato de que poucas vezes na história pode ter-se reunido, em uma só pessoa, uma inteligência notavelmente brilhante, uma vida de manifesta santidade, a vocação e a atividade docente e a direção de uma das mais importantes escolas do mundo que, não obstante a importância que já desfrutava, ainda estava em fase de formação. Por causa desta confluência de fatores, Hugo se viu obrigado não só a ensinar, mas também a explicar aos alunos como se deveria aprender, aos professores orientar como se deveria ensinar, e à escola como se deveria organizar.

O resultado desta conjunção de fatores foi o surgimento de alguma coisa que merece estar com pleno merecimento tanto na história da pedagogia como na história da espiritualidade: parece ser uma forma de ascese cujo lugar próprio é uma escola.

É um caso particularmente notável de uma pedagogia em que não há interferência destrutiva entre vida intelectual e vida espiritual, nem separação entre estas atividades como coisas independentes uma da outra. Ao contrário, cria-se propositalmente uma situação em que ambas agem entre si no sentido de se amplificarem mutuamente. Que estas duas coisas sejam mutuamente possíveis temos diversos exemplos históricos, entre os quais figuram, de um lado, o exemplo de São Tomás de Aquino, e de outro, o de Santo Antônio de Pádua.

Mas destes dois talvez o que fale mais alto seja o de Santo Antônio de Pádua. Quem conhece um pouco melhor a sua vida não pode deixar de ter a viva impressão de assistir a uma representação literal das palavras de Hugo de São Vítor escritas no fim de sua principal obra pedagógica:

"Olhai, vos peço,
o que seja a luz,
senão o dia,
e o que sejam as trevas,
senão a noite.

E assim como os olhos do corpo
tem o seu dia e a sua noite,
assim também os olhos do coração
tem o seu dia e a sua noite.

Três são os dias da luz invisível,
pelos quais se distingue o curso interior
da vida espiritual.

O primeiro é o temor,
o segundo é a verdade,
o terceiro é o amor".

2. Influência da escola de São Vítor.

Uma lista de quem passou ou esteve em contato com a escola de São Vítor pode dar uma idéia do papel que esta desempenhou no contexto do século XII.

Pedro Abelardo já era aluno de Guilherme de Champeaux quando este ensinava na escola anexa à catedral de Notre Dame. Após Guilherme ter abandonado a escola catedralícia para fundar o mosteiro de São Vítor, consta Pedro Abelardo ainda ter continuado a ser seu aluno.

Após a fundação de São Vítor, São Bernardo de Claraval fez questão de ser ordenado sacerdote por Guilherme de Champeaux, já bispo. Conserva-se até hoje na Patrologia Latina de Migne uma troca de correspondência entre São Bernardo e Hugo de São Vítor acerca de matéria teológica.

Em 1134 São Bernardo escreveu uma carta ao superior de São Vítor pedindo que o mosteiro recebesse como hóspede o jovem Pedro Lombardo até o dia da festa da natividade de Maria. O jovem, porém, não voltou mais. Ficou em Paris até morrer, quase trinta anos depois, em 1160, ocupando o cargo de bispo daquela cidade. Ao que tudo indica, Pedro Lombardo foi aluno de Hugo de São Vítor; antes de ter sido nomeado bispo de Paris, ensinou teologia na escola anexa à catedral de Notre Dame onde já antes havia ensinado Guilherme de Champeaux. Enquanto professor em Notre Dame, redigiu os célebres Quatro Livros das Sentenças, que no século seguinte se tornaria livro a ser obrigatoriamente comentado por todos os candidatos ao doutoramento em teologia. Os primeiros trabalhos teológicos de São Boaventura e São Tomás de Aquino foram comentários aos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo, texto tornado básico para o ensino e aprendizado da teologia no século XIII.

A influência de Hugo de São Vítor na teologia posterior exerceu-se também através de sua obra mais extensa, o De Sacramentis Fidei Christianae, aproximadamente traduzível por Os Mistérios da Fé Cristã, uma obra de síntese como até então não havia surgido no cristianismo. Esta obra foi o primeiro exemplo e o precursor de todas as Summas Teológicas que iriam aparecer logo em seguida. Tomás de Aquino e Boaventura testemunham, conforme veremos, terem estudado e muito se aproveitado das obras de Hugo.

Discípulo de Hugo de São Vítor e seu sucessor na escola São Vítor foi também Ricardo de São Vítor, contado, juntamente com ele, entre os grandes teólogos do século XII.

Consta que na época em que Ricardo de São Vítor era prior de São Vítor, foi ali que S. Thomas Beckett, o arcebispo da Cantuária expulso da Inglaterra pelo Rei Henrique VII, foi buscar seu primeiro refúgio.

Em relação aos futuros povos de língua portuguesa, nos séculos XII e XIII o principal centro lusitano de estudos era o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, dos Cônegos Agostinianos, onde por mais de uma década estudou Santo Antônio de Pádua antes de transferir-se à ordem franciscana. Os principais professores de Santa Cruz de Coimbra haviam estudado em São Vítor no século XII e organizado os estudos de Coimbra segundo o modelo da escola de São Vítor. Apesar de não ter estado nunca em Paris, pode-se dizer que a formação de Antônio de Pádua foi, não só do ponto de vista da doutrina teológica, como também do ponto de vista ascético e pedagógico, baseado no modelo de São Vítor, cuja doutrina, ascese e pedagogia haviam sido moldados por Hugo.

No ano de 1190 o rei de Portugal Dom Sancho I fundou uma bolsa permanente de manutenção para os clérigos de Coimbra que iam estudar em Paris. Durante o século XIII, quando já havia sido fundada a Universidade, consta que os clérigos portugueses que se aproveitavam desta bolsa para estudarem na Universidade de Paris hospedavam-se no mosteiro de São Vítor durante sua permanência em território francês.

3. Obras pedagógicas de Hugo de São Vítor.

Hugo de São Vítor escreveu três obras que a nosso ver podem ser classificadas como estando entre as obras de caráter mais nitidamente pedagógico.

A primeira delas é o opúsculo intitulado Sobre o Modo de Aprender e de Meditar*; a segunda é o opúsculo Sobre a Arte de Meditar; e a terceira e mais conhecida é um verdadeiro tratado sobre a pedagogia da época, conhecido como Didascalicon.

O Didascalicon é dividido em seis ou sete livros, de acordo com a edição. Alguns editores, como foi o caso na Patrologia Latina de Migne, apresentam todos os sete livros como sendo uma só obra. Outros editores julgam que o Didascalicon termina no livro sexto; e que o sétimo é na verdade um tratado à parte, denominado De Tribus Diebus, o Tratado dos Três Dias. Seja como for, ambas as obras são de Hugo, e uma é a continuação natural da outra.

4. Uma pedagogia centrada no aluno.

A primeira impressão que temos ao analisar as obras pedagógicas de Hugo de São Vítor é o fato de todas elas se dirigirem, na íntegra, ao aluno; não ao professor, para quem nada têm a dizer sobre organização escolar; não a mais ninguém, senão unicamente ao aluno, não obstante a tarefa de Hugo fosse a de organizar a escola em todos os seus aspectos.

Esta aparente enorme lacuna se explica pelo fato de que a pedagogia no século XII era manifestamente centrada no aluno e não no professor.

Em dois textos do século XIII, geralmente mais conhecidos entre os estudiosos modernos do que as obras de Hugo de S. Vítor, São Tomás de Aquino (1) afirma que no ensino o professor não pode, por necessidade ontológica, ser a causa principal do conhecimento. Esta causa é a atividade do aluno; o papel do mestre não é o de infundir a ciência, mas a de auxiliar o discípulo. "Assim como o médico é dito causar a saúde no enfermo através das operações da natureza, assim também o mestre", diz Tomás de Aquino, "é dito causar a ciência no discípulo através da operação da razão natural do discípulo, e isto é ensinar" (2) . Se o mestre tentar seguir uma conduta diversa, diz ainda Tomás, o resultado será que ele "não produzirá no discípulo a ciência, mas apenas a opinião ou a fé" (3).

Nos textos de São Tomás de Aquino estas conclusões são deduzidas a partir de princípios da filosofia aristotélica; como, porém, quando muito, dificilmente se conhece atualmente da pedagogia desta época, alguma coisa além destes dois textos, torna-se difícil ao homem de hoje imaginar ao que S. Tomás de Aquino estava se referindo na prática.

Os textos de Hugo de S. Vítor fornecem em parte uma ilustração para tais princípios. Ao redigir uma série de textos para organizar os métodos educacionais que seriam usados em sua escola, Hugo não dirigiu quase uma única palavra aos professores, e sim aos alunos. É exatamente o contrário do que vemos na literatura pedagógica do século XX: toda a literatura sobre metodologia é escrita para a leitura do professor, não do aluno. Aquele era um ensino centrado no aluno; este, embora às vezes se diga o contrário, é um ensino centrado no mestre.

Os resultados destes modos diversos de encarar a pedagogia são também diversos. O primeiro, encontrado no mestre, tende a tornar-se uma transferência mecânica de conhecimento do professor para o aluno; o segundo, centrado no aluno, tende a tornar-se uma aventura do espírito. A escola centrada no mestre só irá produzir um discípulo melhor do que o mestre por acaso, quando o discípulo, apesar do método utilizado, puder fugir espontaneamente às regras desta pedagogia; a escola centrada no aluno tende a produzir por sua natureza um certo número de alunos melhores do que o mestre. Consequência destes fatos é que os professores da escola centrada no mestre são, no que depende da escola, a cada geração possuidores de um nível cada vez mais baixo, enquanto que na escola centrada no aluno a tendência é a oposta.

É um fato conhecido na história da educação que desde a renascença, quando o centro de gravidade do ensino passou a deslocar-se, todas as gerações sempre têm reclamado que o nível do ensino estava caindo, e que o ensino na geração anterior era melhor do que o então ministrado. Tal constatação pode parecer à primeira vista paradoxal, porque, pensamos nós, se isto fosse realmente verdade, após tanto tempo, há muito que o ensino teria sido totalmente pulverizado. A explicação para este fenômeno é que realmente houve muitos momentos históricos desde então em que o ensino não só não decaiu, como inclusive subiu de nível, e às vezes acentuadamente. Mas, se isto aconteceu, não se deveu a fatores internos à pedagogia, e sim a contingências externas ao método educacional: a fundação, por exemplo, de uma nova ordem religiosa; uma reforma educacional; os decretos de algum príncipe. Nestes momentos dava-se uma melhora da qualidade de ensino para, a partir daí, entregue às suas forças intrínsecas, cair gradualmente sem perspectiva aparente de reversão, senão por uma nova interferência externa.

5. Um princípio básico da educação vitorina.

Uma das idéias fundamentais em torno da qual construiu-se a pedagogia vitorina está contida no opúsculo sobre o modo de aprender e de meditar.

Nele, Hugo afirma que há três operações básicas da alma racional, as quais constituem entre si uma hierarquia, e que devem, portanto, ser desenvolvidas uma em sequência à outra.

A primeira ele a denomina de pensamento. A segunda, de meditação. A terceira, de contemplação.

O pensamento ocorre, diz Hugo, "quando a mente é tocada transitoriamente pela noção das coisas, ao se apresentar a própria coisa, pela sua imagem, subitamente à alma, seja entrando pelo sentido, seja surgindo da memória".

Entre os ensinamentos de Hugo de São Vítor entra aqui o papel que a leitura adquire na pedagogia. A importância da leitura reside em que ela pode ser utilizada para estimular a primeira operação da inteligência que é o pensamento. Mas ao mesmo tempo a limitação da leitura está em que ela não pode estimular as operações seguintes da inteligência, a meditação e a contemplação, a não ser indiretamente, na medida em que a leitura estimula o primeiro estágio do pensamento que é pressuposto dos demais. Isto significa que requer-se uma teoria da leitura em que o mestre saiba utilizar-se dela para produzir o pensamento, e ao mesmo tempo compreenda que há outros processos mentais mais elevados que devem também ser desenvolvidos mas que podem vir a ser impedidos por uma concepção errônea por parte do mestre que não conseguisse compreender que estes não dependem mais diretamente da leitura. A importância do assunto é tão grande que os seis primeiros livros do Didascalicon serão dedicados à teoria da leitura.

A segunda operação da inteligência, continua Hugo, é a meditação. A meditação baseia-se no pensamento, e é "um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento, esforçando-se para explicar algo obscuro, ou procurando penetrar no que ainda nos é oculto".

O exercício da meditação, assim entendido, exercita o engenho. Como a meditação, porém, se baseia por sua vez no pensamento e o pensamento é estimulado pela leitura, temos na realidade duas coisas que exercitam o engenho: a leitura e a meditação.

Segundo as palavras de Hugo, "na leitura, mediante regras e preceitos, somos instruídos a partir das coisas que estão escritas. A leitura também é uma investigação do sentido por uma alma disciplinada. A meditação toma, depois, por sua vez, seu princípio da leitura, embora não se realizando por nenhuma das regras ou dos preceitos da leitura. A meditação é uma cogitação frequente com conselho, que investiga prudentemente a causa e a origem, o modo e a utilidade de cada coisa".

Mas acima da meditação e baseando-se nela, existe ainda o que Hugo chama de contemplação. Ele explica o que é a contemplação e no que difere da meditação do seguinte modo:

"A contemplação é uma visão
livre e perspicaz da alma
de coisas que existem em si
de modo amplamente disperso.

Entre a meditação e a contemplação
o que parece ser relevante
é que a meditação é sempre de coisas ocultas
à nossa inteligência;
a contemplação, porém, é de coisas que,
segundo a sua natureza,
ou segundo a nossa capacidade,
são manifestas;
e que a meditação sempre se ocupa
em buscar alguma coisa única,
enquanto que a contemplação se extende
à compreensão de muitas,
ou também de todas as coisas.

A meditação é, portanto,
um certo vagar curioso da mente,
um investigar sagaz do obscuro,
um desatar o que é intrincado.

A contemplação é aquela vivacidade da inteligência,
a qual, já possuindo todas as coisas,
as abarca em uma visão plenamente manifesta,
e isto de tal maneira que aquilo que a meditação busca,
a contemplação possui".

Estas passagens do Opúsculo sobre o Modo de Aprender mostram um dos pontos básicos da pedagogia de Hugo, o de levar o discípulo do pensamento à contemplação. Em outras partes de sua obra ele abordará o modo como isto pode ser feito.

Mas antes que tratemos deste outro aspecto da questão, cumpre fazer a seguinte pergunta, importantíssima para os educadores de hoje. Um dos maiores pensadores educacionais brasileiros de nosso século, Anísio Teixeira, escreveu em um famoso livro intitulado Educação para a Democracia exatamente as seguintes palavras:

"A vida já não é governada
pelos velhos índices de intelectualidade
herdados da idade média.

Hoje todos têm que produzir.

Técnicas científicas e industriais
sobrepuseram-se aos encantamentos da vida do espírito.

Precisamos sentir o problema da educação
conforme ele é,
um processo pelo qual a população se distribui
pelos diferentes ramos do trabalho diversificado
da sociedade moderna" (4).


Ora, Hugo de S. Vítor desenvolve uma pedagogia que desemboca em uma atividade chamada contemplação que se ocupa, conforme ele próprio diz, de coisas que já nos são manifestas. Mas se nos são já manifestas, por que se ocupar ainda nelas? Poderá uma educação assim ter ainda alguma justificativa na sociedade moderna?

Hugo provavelmente responderia a esta pergunta com três argumentos.

Em primeiro lugar, a contemplação se ocupa, é verdade, de coisas já manifestas, e o homem moderno, ocupado em seu utilitarismo imediato, geralmente não percebe as vantagens de se cultivar uma qualidade destas. Pelo fato de se ocupar com coisas manifestas, a contemplação, conforme disse Hugo, não se ocupa em buscar "alguma coisa única, mas se estende à compreensão simultânea de muitas ou também de todas as coisas". Ora, é evidente que esta é a atividade fundamental que está por trás de todas as grandes sínteses filosóficas da história, como as obras de Aristóteles, de Tomás de Aquino, e outras. É evidente que é também esta a atividade fundamental que está por trás das grandes sínteses científicas, como a física Newtoniana e a Teoria da Relatividade. É evidente que esta é a operação intelectual fundamental que deveria estar por trás também de outras atividades tão vivamente exigidas nos dias de hoje como a correta orientação política de uma nação e até mesmo o ordenamento plenamente consciente de um sistema educacional. Em suma, é a contemplação, e não a análise, a atividade básica das mais fundamentais conquistas do pensamento humano em todos os tempos. Foi também, evidentemente, a atividade fundamental que estava por trás do monumento do pensamento que foi em sua época o tratado De Sacramentis Fidei Christianae, uma obra de síntese e sistematização em teologia como até aquela época, conforme já mencionamos, ainda não havia aparecido igual.

Obras filosóficas e sínteses deste porte ainda surgem hoje em dia; mas a diferença é que hoje em dia elas aparecem apesar das escolas, enquanto que na época da escola de São Vítor e na época em que Aristóteles estudou com Platão elas surgiam por causa das escolas. O tipo de gênio que havia em Newton e em Einstein foi desenvolvido por eles próprios sem que, entretanto, o soubessem desenvolver em seus alunos. Na escola de Platão, o gênio do mestre soube reproduzir-se em Aristóteles, e na de São Vítor o gênio de Hugo soube reproduzir-se em Ricardo, e, menos diretamente, em diversos contemporâneos que reproduziram seu sistema de ensino.

Mas, ademais, em segundo lugar, não é necessário produzir obra alguma para que a contemplação seja alguma coisa de enorme importância para o homem. A contemplação sempre foi colocada em todas as épocas da história, com exceção, talvez, da idade moderna, como o mais significativo elemento de enobrecimento da mente humana, algo que não precisava de nenhuma justificativa além de si mesma para ser cultivada. Esta foi a posição de todos os principais filósofos gregos. No cristianismo, também, a experiência religiosa dos primeiros Santos Padres apontou esta capacidade como sendo elemento fundamental para a compreensão profunda das grandes verdades do cristianismo, apesar de, e isto é significativo, em nenhuma parte das Sagradas Escrituras esta capacidade ser descrita nos termos empregados por Hugo de São Vítor. Esta afirmação dos Santos Padres tem sua similar nos antigos filósofos gregos quando estes também colocaram que nenhum dos problemas existenciais básicos do ser humano pode ser convenientemente abordado sem ser por este meio.

Estes dois motivos talvez já bastassem, mas existe ainda um terceiro para Hugo de S. Vítor que talvez seja o mais importante. É que, ao contrário do que parece dar a entender o opúsculo sobre o modo de aprender, a contemplação não é ainda a meta final da pedagogia. Assim como a meditação se fundamenta no pensamento, e a contemplação se baseia na meditação, outras operações se baseiam, por sua vez, na contemplação. Estas, porém, são tratadas em outros trabalhos de Hugo.

6. A presente tradução.

Na presente tradução encontramos, primeiramente, o opúsculo Sobre o Modo de Aprender e de Meditar. Nele encontramos expostos a sequência das fases do aprendizado do pensamento, intimamente relacionado com a leitura, à meditação e desta à contemplação. Nele encontramos também vários conselhos relativamente à leitura.

Em outras obras de Hugo encontramos uma explicação mais pormenorizada sobre cada uma destas fases.

A teoria da meditação é encontrada num opúsculo intitulado Sobre a Arte de Meditar, cuja tradução vem em seguida à do modo de aprender e de meditar.

A contemplação é exposta no livro sétimo do Didascalicon, cuja tradução vem em seguida à da arte de meditar.

Os seis primeiros livros do Didascalicon, não traduzidos neste trabalho senão em parte, se ocupam mais extensamente com o problema da leitura. Os três primeiros tratam da leitura e do estudo dos temas que hoje chamaríamos de profanos; os três últimos tratam da leitura e do estudo das Sagradas Escrituras.

Em ambas estas partes aborda-se o problema da leitura tanto do ponto de vista sobre o que ler, como sobre de que modo ler.

Nos três primeiros livros, em relação a o que ler, Hugo expõe o conteúdo das artes liberais, isto é, as dos ciclos de estudos denominados na idade média de trivium e quadrivium. O trivium, introdução ao quadrivium, constituía-se de gramática, retórica e lógica. O quadrivium, introdução aos estudos superiores, constituía-se de matemática, geometria, astronomia e música. Hugo também expõe o conteúdo de outras artes além destas. Quanto ao problema de como ler, o conteúdo dos três primeiros livros do Didascalicon parece-se muito com o Opúsculo sobre o Modo de Aprender. Os três livros restantes do Didascalicon ocupam-se com a leitura e o estudo das Sagradas Escrituras.

Neste trabalho traduzimos integralmente o livro sétimo do Didascalicon que versa sobre a contemplação. Precedemos a tradução deste sétimo livro de passagens tiradas dos livros primeiro e segundo, sobre o caráter da filosofia, e do livro quinto e sexto, passagens todas que pudessem servir para introduzir o assunto contido no sétimo, reproduzindo-lhe algo do contexto relevante dos livros anteriores.

A omissão quanto ao conteúdo de cada arte e das Escrituras Sagradas, consideravelmente extensa, foi proposital. Já existem traduções em línguas modernas dos seis primeiros livros do Didascalicon, tal como a em língua inglesa de 1961 devida a Jeromy Taylor e publicada pela Columbia University Press; quanto aos três textos aqui traduzidos, entretanto, não nos consta existir tradução alguma.

Por outro lado, estes três textos formam uma sequência muito bem concatenada: interrompê-la, traduzindo os seis primeiros livros do Didascalicon na íntegra e introduzindo assim uma enorme massa de material sobre um aspecto bastante diverso, embora da mesma questão que temos em pauta, seria dificultar ainda mais o acesso a uma concepção de pedagogia que é, já sem isto, bastante difícil para a compreensão do homem moderno.

Precedendo os três trabalhos de Hugo, intitulados, pois, Sobre o modo de Aprender e de Meditar, Sobre a Arte de Meditar, e o último, que neste trabalho pode ser encontrado sob o nome de Tratado dos Três Dias, temos ainda uma tradução condensada da introdução de Monsenhor Hugonin sobre a Fundação da Escola de São Vítor que precede as obras de Hugo no volume 175 da Patrologia Latina de Migne.


Referências

(1) São Tomás de Aquino: Summa Theologiae, Prima Pars, Q. 117, a. l. São Tomás de Aquino: Quaestiones Disputatae de Veritate, Quaestio 11, a. 1.
(2) São Tomás de Aquino: Quaestiones Disputatae de Veritate, Q. 11 a. 1.
(3) São Tomás de Aquino: idem.
(4) Anísio Teixeira: Educação para a Democracia. Anísio Teixeira: Bases para uma programação da Educação Primária no Brasil, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.

Texto retirado do Link.

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O ensino da Matemática (Quadrivium) no período clássico

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas em 2017).

OS ESTUDOS CIENTÍFICOS

Mas não eram tão somente os estudos literários que, em princípio, integravam o programa do ensino secundário: Platão e Isócrates, concordes por uma vez, recomendavam, a exemplos de Hípias, o estudo das matemáticas, tão preciosas para a formação do espírito.

ENSINO DAS MATEMÁTICAS

Diversos indícios permitem-nos entrever que esses conselhos não passaram desaparecidos na época helenística. No quadro que, por volta de 240 antes de Cristo, traçou das penas da vida humana (1) (quadro que dois séculos mais tarde seria retomado, por sua vez, pelo autor de Axiochos (2)), Teles escolhe precisamente os professores de aritmética e de geometria (άριθμητικός, γεωμέτρης) para caracterizar, juntamente com o monitor de equitação, o grau secundário da educação, interposto entre a escola primária e a efebia.

Um catálogo dos vencedores dos concursos escolares de Magnésia do Meandro, datado do segundo século antes de Cristo, menciona uma competição de aritmética (3), ao lado de provas de desenho, de música e de poesia lírica, num contexto que, por conseguinte, evoca o ensino do segundo grau. Assim também no colégio do "Diogeneion", em Atenas, os (futuros) efebos aprendiam, como nos diz Plutarco (4) [1], geometria e música, ao mesmo tempo que letras e retórica. Em Delfos, no primeiro século antes de Cristo, um astrônomo pronuncia conferências no ginásio (5).

Estes testemunhos, como se vê, são bastante esparsos, e devemos perguntar-nos se sua relativa raridade não constitui, precisamente, um indício do pequeno interesse que, na prática, o ensino helenístico dispensava às ciências.

O IDEAL DA ΕΓΚΥΚΛΙΟΣ ΠΑΙΔΕΙΑ

Teoricamente, pelo menos, tal princípio jamais foi posto em causa: as ciências matemáticas jamais cessaram de figurar, como as disciplinas literárias, no programa ideal da "cultura geral" dos gregos helenísticos, a έγκύκλοις παιδεία [2].

Com efeito, nos escritores da época helenística e romana encontram-se numerosas menções deste termo, que não caberia transcrever literalmente por "enciclopédia", noção esta bem moderna (a palavra data apenas do século XVI) [3] e que não corresponde, absolutamente, à expressão antiga. "Enciclopédia" evoca, para nós, um saber universal: por mais elástico que possam ter sido seus limites, a έγκύκλοις παιδεία jamais pretendeu abarcar a totalidade do saber humano: na verdade, de acordo com o sentido que reveste normalmente o vocábulo έγκύκλοις no grego helenístico, έγκύκλοις παιδεία significa, simplesmente, "educação vulgar, corrente, comumente transmitida" -- donde a tradução que propus: "cultura geral".

Tal noção sempre apresentou contornos bastante vagos: o uso que dela se faz hesita entre duas concepções: ora é a cultura geral que convém ao perfeito cavalheiro, sem referência explícita ao ensino, e que reúne o teor de toda a educação, secundária e superior, escolar e pessoal; ora é a cultura de base, a propedêutica, as προπαιδεύματα (6), que devem preparar o espírito para receber as formas superiores do ensino e da cultura, ou, numa palavra, o programa ideal do ensino secundário. Esta concepção é, em particular, a dos filósofos, seja quando denunciam a inutilidade da έγκύκλοις παιδεία para a cultura filosófica, como a fazem Epicuro (7) e, com ele, os cínicos (8) e cético (9) de todas as escolas, seja quando insistem em sua necessidade, como convêm em fazê-lo a maioria das seita (10) e, notadamente, desde Crisipo (11), os estóicos (12).

Depois disso, as fronteiras ficam muito mal definidas: entendida no sentido perfectivo do vocábulo "cultura", a έγκύκλοις παιδεία tendeu a absorver não somente a própria filosofia, mas também diversas técnicas, em número que varia segundo os autores: medicina, arquitetura, direito, desenho, arte militar [4]. Mas a essência de seu programa, aquela a que se restringem os filósofos, permanece sempre constituída pelo conjunto das sete artes liberais, que a Idade Média herdaria da tradição escolar da baixa Antiguidade e cuja lista, encerrada definitivamente pelos meados do primeiro século antes Cristo, entre Dionísio o Trácio e Varrão, compreendida, como se sabe, além das três artes literárias, o Trivium dos carolíngios --- gramática, retórica e dialética ---, as quatro disciplinas matemáticas do Quadrivium --- geometria, aritmética, astronomia e teoria musical ---, cuja divisão era tradicional desde Arquitas de Tarento (13), senão desde o próprio Pitágoras [5].

Podemos fazer ideia precisa do que seria a iniciação de um jovem grego em cada uma dessas ciências através da farta coleção de manuais que a época helenística nos legou [6]. Conquanto desde Arquimedes até Papo e Diofanto as épocas helenísticas e romanas tenham vista a ciência grega realizar ainda grandes progressos, o traço dominante desde período é dado por um esforço de acerto final de maturação dos resultados obtidos pelas gerações que se haviam sucedido a partir de Tales e de Pitágoras. É então que a ciência grega atinge esta forma perfeita que jamais ultrapassaria.

A GEOMETRIA

No domínio da geometria, a ciência grega por excelência, o grande clássico é, sem dúvida, Euclides (330-275 aproximadamente), cujos Elementos alcançaram a glória de todos conhecida: diretamente ou indiretamente, forma eles a base de todo o ensino da geometria, não somente entre os gregos, mas também entre os romanos e os árabes e, depois entre os modernos (é sabido que, até uma data recente, os escolares britânicos utilizavam, como manual de geometria, uma tradução, levemente retocada, dos Elementos).

Não é, pois, necessário analisar longamente, aqui, o conteúdo e o método deste livro célebre: um e outro nos são familiares. A essência da exposição é formada pela seqüência dos teoremas às demonstrações. encadeadas a partir de uma série de definições e de αἰτήματα (termo que agrupa o que hoje distinguimos em axiomas e postulados). Ressaltarei, depois de tantos outros, o rigor lógico dessas demonstrações, o caráter estritamente racional da ciência: o geômetra raciocina sobre figuras inteligíveis e procede com extrema desconfiança em relação a tudo o que lembra a experiência sensível. Diversamente da pedagogia matemática de hoje, Euclides evita, tanto quanto possível (para escapar às dificuldade teóricas levantadas pela crítica eleata da noção de movimento), os procedimentos, a nós familiares, da rotação e da superposição: assim à demonstração de que num triângulo isósceles ABC os ângulos da base B e C são iguais, propriedade fundamental que demonstramos sem esforço, por simples giro, Euclides só chega à custa de longos rodeios; traça no prolongamento de AB e de AC, segmento iguais BD e CE, de modo a obter dois pares de triângulos iguais ABE e ACD, BCD e BCE... (14).

Ao método sintético sintético das demonstrações encadeadas, o ensino grego associava, intimamente aquilo que chamamos de análise, isto é, problemas, particularmente problemas, particularmente problemas de construção; os Elementos abrem-se com um exemplo característico: construir um triângulo equilátero sobre uma base dada (15). A importância metodológica dos problemas é, realmente, considerável (somente platônicos como Espeusipo, fechados em seu apriorismo, podiam pô-la em dúvida (16)): a construção permite demonstrar a existência real da figura considerada. O método que geralmente se seguia era o mesmo que hoje seguimos: supor o problema resolvido e, por ἁπαγωγή, reduzi-lo a proposições já estabelecidas. É sabido que a história da ciência grega mostra-se-nos toda balizada pelo estudo de tais problemas, os quais bem depressa, após a elementar duplicação do quadrado, deparam com dificuldades enormes ou intransponíveis: duplicação do cubo, trissecção do ângulo, quadratura do círculo.

Naturalmente, tais problemas se enquadram numa ordem estritamente especulativa: as aplicações numéricas e práticas, cálculos de áreas ou de volumes, não correspondem à geometria, mas a outras disciplinas, como a geodésia ou a metrologia, que eram, também por sua vez, objeto de ensino: possuimos manuais, como os de Hierão de Alexandria (segundo século antes de Cristo (17)), e papiro que oferecem exemplos concretos dos exercícios que eram propostos aos alunos (18); mas esse ensino dirigia-se somente aos futuros práticos agrimensores, empreiteiros, engenheiros ou carpinteiros; era um ensino, que não fazia parte da educação liberal e permanecia estranho ao ensino, propriamente dito, das matemáticas.

A ARITMÉTICA

As mesmas observações podem-se fazer com relação à aritmética: ciência teórica do número, negligencia ela, fiel aos conselhos de Platão, os problemas realísticos tão caros ao nosso ensino primário: problemas de lucro, de preço de venda ou de renda; a Antigüidade gabava o grande Pitágoras como tendo sido o primeiro a elevar a aritmética acima das necessidades dos comerciantes (19).

Não dispondo de um sistema de símbolos apropriados, a aritmética grega não pode ascender a um nível de generalidade e de perfeição tão alto como a geometria. É sabido (lembramo-lo mais acima) que os gregos utilizavam símbolos alfabéticos: três séries de noves sinais correspondiam às unidades, dezenas e centenas. Com um iota subscrito à esquerda, indicavam-se os milhares: o sistema permitia assim, teoricamente, nota todos os números inteiros de $1$ a $999.999$.

Menos maleável que o nosso sistema "árabe" de posição (que a civilização maia também descobriu, de seu lado), a notação grega, bastante cômoda para o uso prático, não permitia distinguir números elevados. Com efeito, os gregos não faziam a notação direta dos números superiores a $100.000$ (à diferença dos matemáticos da Índia dos séculos IV e V da nossa era, que gostavam de especular com números enormes, como $1.577.917.828$, diante dos quais um grego teria experimentado a angústia do ἄπειρον, do temível infinito). E, o que é mais grave, essa notação não permitia introduzir os números fracionários ou irracionais: é sob a forma geométrica que as matemáticas gregas levavam mais longe o estudo da noção de grandeza: isto se vê, particularmente, no livro X dos Elementos de Euclides, consagrado às grandezas irracionais.

A aritmética grega deve ser entendia, portanto, como a ciência do ἀριθμός no sentido preciso deste termos, isto é. do número inteiro. São ainda os Elementos de Euclides (20) que nos fornecem dele uma cômoda exposição, embora a Introdução Aritmética de Nicômaco de Gerasa (cerca de 100 anos depois de Cristo) tenha sido o manual que maior papel histórico desempenhou: logo adotado no ensino, abundantemente comentado, traduzido para o latim (e, mais tarde, para o árabe), sua influência foi tão profunda que desde então a aritmética suplantou a geometria e se tornou, em substituição a esta, a base e o campo mais importante do ensino das matemáticas.

Estudavam-se, então, as propriedade do número inteiro; distinguiam-se os números pares e os ímpares, e, em seguida, entre os pares, distinguiam-se números parmente pares (do tipo $2^n$), parmente ímpares (2 multiplicado por um número ímpar), imparmente pares, $2^{n+1}(2m +1)$. De outro ponto de vista, distinguiam-se os números primos, compostos primos entre si, de fatores comuns; os números iguais e desiguais, múltiplos e sub-múltiplos, superparciais e sub-superparciais (ou sejam, os números de fórmula $\dfrac{m+1}{m}$), etc. As proporções e as médias (aritméticas, geométricas, harmônicas, esta última estabelecida pela relação $\dfrac{a}{b} = \dfrac{m-a}{b-m}$)...

A esse estudo, surpreendentemente desenvolvido em suas minúcias, mas que, na verdade, pertence à ciência matemática, juntavam-se --- o que nos causa bastante estranheza --- considerações qualitativas e estéticas acerca das propriedade dos números. Não me refiro às classificação dos números compostos (isto é, dos números formados pelo produtos de diversos fatores), classificação esta de origem pitagórica, que a aritmética helenística levara, como se vê pela obra de Nicômaco, a um alto grau de precisão: números planos (produtos de dois fatores) e números sólidos (produtos de três fatores), e, entre os primeiros, números quadrado, triangulares, retangulares (distinguiam-se os "promekes", de fórmula $m(m+1)$ e os "heteromekes", de fórmula $m(m+n)$ sendo $n> 1$); entre os números sólidos, distinguiam-se os cúbicos, os piramidais, os paralelepipóides: $m^2(m+1)$, etc. Tal nomenclatura era perfeitamente legítima: os antigos representavam-se o número (inteiro) como uma coleção de unidade, de mônadas, figuradas por pontos materiais, e era, pois, cabível estudar-lhes os modos de reunião e unir, assim, a aritmética e a geometria.

Refiro-me, antes, à interpolação de juízos de valor, de ordem estética e às vezes moral, que se patenteia, por exemplo, na designação de números perfeitos, dada a números que, como 28, são iguais à soma de suas parte alíquotas ($28 = 1 + 2 + 4 + 7 + 14$), de números amigos (φίλιοι), como 220 e 284, cada um dos quais é iguais soma das partes alíquotas do outro ($220 = 1 + 2 + 4 + 71 + 142$ e $284 = 1 + 2 + 4 + 5 + 10 + 11 + 20 + 22 + 44 + 55 + 110$). Refiro-me, ainda, às especulações, por vezes espantosamente pueris, feitas acerca das propriedades maravilhosas dos dez primeiros números, desta década a que se reduza a toda série numérica: o fascínio pelas virtudes da unidade, princípio de todas as coisas, indivisível e imutável, que jamais extravasa de sua natureza própria através da multiplicação $(1\times 1 = 1)$... E, ainda, à "perfeição" do número três, o primeiro número que tem começo, meio e fim, representado cada um destes termos pela unidade $(1 + 1 + 1 = 3)$; também à estrutura harmoniosa e à pujança do quaternário, da τετρακτύς: $1 + 3 = 2 \times 2 = 4$, e à soma $1 + 2 + 3 + 4 = 10$, o quaternário engendrando a década... Era natural que se passasse, daí, à associação de um valor simbólico a cada um desses primeiros números: é sabido que os Pitágoras juravam pelo quaternário, "fonte da natureza eterna" (21). A unidade, isto é, a mônada, era objeto de uma verdadeira mística: "É nela que resida todo o Inteligível e o Inengendrado, a natureza das Ideias, Deus, o Espírito, o Belo, o Bem e cada uma das essências inteligíveis..." (22); o número Sete é Atena, a deusa sem genitora e sem genitura: não é ele o único número que não gera nenhum dos outros números da década e que não é, ele próprio, gera por nenhum outro? (23) Mas o Sete é também (e não apenas isto) Ares, Osíris, a Fortuna, a Ocasião, o sono, a voz, o canto, Clio ou Adrastéia (24).

Tudo isto provém do velho pitagorismo, mas a ciência grega jamais conseguiu despojar desses elementos qualitativos sua concepção do número: Nicômaco de Gerasa, o mesmo que nos legou a Introdução Aritmética, dedicou a esta aritmologia, a esta teologia do número, uma obra especial, os Theologoumena arithmetica; dela nos apenas o comentário, pormenorizado aliás, feito pelo patriarca Fócion (25), mas encontramos seu eco em vários tratados da baixa época romana (26).

A MÚSICA

É também a Pitágoras que remonta a terceira das ciências matemáticas, a das leis numéricas que regem a música. Dispomos de uma farta literatura, escalonada desde Aristóxeno até Boécio, que nos permite avaliar com exatidão, a amplitude dos conhecimentos da Antigüidade neste domínio [7]. A ciência "musical" compreendia duas partes: o estudo da estrutura dos intervalos e o estudo da rítmica. O primeiro, harmônico ou canônico, analisava as relações numéricas que marcam os intervalos da gama: $\dfrac{2}{1}$ para a oitava, $\dfrac{3}{2}$ para a quinta, $\dfrac{4}{3}$ para a quarta, $\dfrac{5}{4}$ e $\dfrac{6}{5}$ para as terças, maior e menor, e assim por diante: $\dfrac{9}{8}$, o excesso da quinta sobre a quarta ($\dfrac{3}{2}:\dfrac{4}{3} = \dfrac{9}{8}$), mede o tom (maior); a teoria leva muito adiante: para dar conta das sutilezas de acorde que os músicos gregos chamavam χροαί, era preciso chegar a medir o duodécimo de tom.

Todos estes números encontram-se, ainda hoje, em nossos tratados de acústica: sabemos que representam a relação das frequências que marcam a altura de cada som. Os antigos não dispunham de meio de medir, diretamente, a frequência das vibrações sonoras; faziam-no indiretamente, medindo, no monocórdio, o comprimento da corda vibrante, ou, então, o comprimento do tudo sonoro (comprimento estes que são inversamente proporcionais à frequência das vibrações). A descoberta de tais relações constitui uma das mais  notáveis proezas da ciência grega, e hoje podemos compreender por que não somente a escola pitagórica, mas todo o pensamento antigo, ficou por ela deslumbrado: não se havia conseguido estabelecer correspondência entre um número definido e, além disso, simples $(2, 3/2, \cdots)$, e a impressão subjetiva e o valor estético que constitui a noção de intervalo justo, de consonância (oitava, quinta ...)? Como duvidar, diante disto, de que seja o número a tessitura secreta do cosmos, de que todo o universo seja número?

Menos complicada em sua elaboração numérica, mas não menos precisa e não menos fecunda, era a teoria do ritmo: sequência de durações determinadas, o ritmo podia ser, mais facilmente ainda, reduzido a combinações simples de valores aritméticos, iguais, duplos ou sesquiálteros (exatamente como falamos, ainda, em ritmos binários e ternários). À diferença da nossa, a rítmica musical (e poética) dos gregos procedia não por divisão e subdivisões de um valor inicial (nossa semibreve), mas da adição de valores unitários indivisíveis, o "primeiro tempo" (χρόνος πρῶτος) de Aristóxeno: sistema mais matizado, compreendo ritmos mais ricos e mais complexos do que a nossa incipiente teoria do solfejo. Neste terreno, também, o luminoso gênio racional da Hélade construiu um monumento imperecível (κτῆμά ἐς ἀεί), que pertence ao tesouro de nossa tradição ocidental: seja-me permitido lembrar que o estudo dos fragmentos que conservaram dos Elementos Rítmicos de Aristóxeno permitiu a Westphal fazer uma sugestiva e aprofundada análise do ritmo das fugas do Cravo bem temperado [8].

A ASTRONOMIA

De desenvolvimento talvez mais tardio, também a astronomia matemática grega realizou, por sua vez, conquistas notáveis, particularmente no curso do período helenístico, desde Aristarco de Samos (310-250) e Hiparco (fim do segundo século a. C.): suas messes estão reunidas e, de certo modo, codificadas na Suma que representam os trezes livros do Almagesta deste último [9].

Este livro notável --- que alcançou tão grande sucesso na Idade Média bizantina, árabe e latina --- foi usado, como obra didática, por exemplo na escola neoplatônica de Atenas, no Baixo Império; para a iniciação elementar, entretanto, nas escolas gregas dispunha, de manuais mais modestos, como (sem falar na obra de Arato, à qual me reportarei mais adiante) a Introdução aos Fenômenos, do estóico Gemino de Rodes (século I a. C.): pequeno tratado, despretensioso, que começa por uma exposição sobre o zodíaco e as constelações, prossegue pelo estudo da esfera celeste --- eixo, polos, círculos (ártico, trópico, equador...) ---, do dia e da noite, dos meses, das fases da Lua, dos planetas, e termina com um calendário do nascer e do pôr das estrelas, fornecendo, ao mesmo tempo, muito dados numéricos.

Esse manual não é único em seu gênero: sabemos da existência ou possuímos os restos de uma serie bastante numerosa deles; alguns forma encontrados em papiros, como o tratado elementar, em 23 colunas, contido no Papiro de Letronne I (27) e que se apresenta como um resumo dos princípios de Eudoxo, segundo nos revela seu título acróstico --- Εὔδοξον τέχνη.

Das quatro disciplinas matemáticas, a astronomia era a mais popular, e objeto da mais viva curiosidade: esses interesse não era puramente especulativo e deve ser relacionado ao gosto, sempre crescente, que a sociedade helenístico-romana manifestou pela astrologia. Astrologia e astronomia era, de fato, inseparáveis (as duas palavras aparecem, praticamente, como equivalentes): um verdadeiro cientista, como Ptolomeu, pôs seu nome não somente num tratado de verdadeira astronomia, como Almagesta, mas também num manual de astrologia, o famoso Tetrabiblos. Contudo não há nenhum indício que nos permita afirmar que a astronomia houve penetrado nas escolas ou figurasse no programa do ensino liberal.

RETRATAÇÃO NO ESTUDO DAS CIÊNCIAS

É bem fácil, como se viu, fazer uma ideia do conteúdo e dos métodos do ensino das ciências na época helenística. O verdadeiro problema que desafia a sagacidade do historiador não é o de saber em que consistia esse ensino, mas o de averiguar a quem era ele ministrado.

A teoria, tal como fora formulada por Platão e Isócrates, e que na época helenística se exprimia pela fórmula da έγκύκλοις παιδεία, pretendia que as matemáticas fizessem parte de toda educação verdadeiramente liberal. Que se passava, realmente, na prática? A quem se dirigia o ensino das matemáticas: a todos ou a uma elite de especialistas? Estava ele integrado, como o pretendia a teoria, no ensino secundário, ou estava circunscrito apenas aos estudos superiores?

Problema difícil de resolver. O leitor não terá deixado de admirar-se do escasso número de testemunhos diretos que me foi possível reunir, no começo deste capítulo. É claro que se poderia empandeirá-los, mediante a anexação de alguns outros dados, sobretudo daqueles que deparamos nas fichas biográficas e bibliográficas referentes a certo número de escritores ou de personagens conhecidos. Diógenes Laércio fala-nos dos anos de formação do filósofo Arcesilau --- conduzindo-nos, assim, aos meados do século III a. C. (28). Como é natural, sua cultura tinha sólida base literária; ele admirava Píndaro e nunca deixava de começar e encerrar seu dia com uma leitura Homero; havia-se exercitado, ainda, na poesia e na crítica literária. Mas estudara também matemáticas e sabemos até os nomes de seus mestres, Autólico, o músico Xanto e o geômetra Hiponico; além do que a história registra, a propósito dos dois primeiros, que ele lhes seguira curso antes de proceder à decisiva escolha entre a filosofia e retórica, as duas formas rivais do ensino superior: tais estudos matemáticos inscrevem-se, pois, no caso particular de Arcesilau, no período que corresponde ao nosso ensino secundário.

Nicolau de Damasco, historiador contemporâneo de Augusto, informa-nos diretamente, num texto autobiográfico (29), que inicialmente estudara gramática, depois retórica, música e matemáticas, antes de dedicar-se, por fim, à filosofia. O médico Galeno, nascido em Pérgamo em 129 d. C.,  também nos informa, no interessante tratado que dedica a Seus próprios Escritos, que em sua juventude estudara não somente gramática, dialética e filosofia, disciplinas a que mais tarde consagrou muitas obras (30), mais também geometria, aritmética e suas aplicações práticas (logística) (31).

Poder-se-iam juntar, sem dúvida, alguns outros testemunhos do mesmo gênero: não creio, porém, que sejam numerosos a ponto de modificarem nossa impressão de conjunto: na verdade, nota-se que, à medida que se avança, nos tempos helenísticos e romanos, o estudo das ciências, cada vez mais, cede terreno às disciplinas literárias. Invoco, entre meus leitores, o testemunhos de todos os humanistas: a leitura dos clássicos desta época bem mostra que a cultura helenística se havia tornado eminentemente literária e que as matemáticas nela ocupavam um lugar modesto. É de crer-se que estas não mais desempenhavam um papel muito atuante na formação dos espíritos.

Não creio que se possa, no plano educacional, contestar esta conclusão: os estudos literários praticamente acabaram por eliminar as matemáticas do programa do ensino secundário. Não há dúvida que o estudo das ciências não é abandonado, mas os que por ele se interessam, sejam estes especialistas, sejam filósofos que reputem as matemáticas uma propedêutica indispensável, nada mais podem esperar das escolas secundárias: urge-lhes alojar o estudo destas disciplinas no ensino superior. 

É significativo que um Teon de Esmirna tenha, no começo do século II da nossa era, julgado necessário escrever um epítome matemático em cinco livros (aritmética, geometria plana, geometria no espaço, astronomia e "música"), sob o título de Conhecimento Matemáticos Úteis ao Conhecimento de Platão: como ele próprio explica no começo (32), muitas pessoas que gostariam de estudar Platão não haviam tido oportunidade de exercitar-se o necessário, nas ciências matemáticas, desde a infância.

O testemunho dos neoplatônicos do Baixo Império é ainda mais significativo: eles são suficiente fiéis ao ensino da República para insistirem ainda, resolutamente, na necessidade de uma "purificação preliminar" do espírito (προκαθαρσία), através das matemáticas; mas os jovens que vêm sentar-se à sua escola receberam, apenas, uma formação estritamente literária, e é dentro mesmo da escola que urge proporcionar-lhes aquela iniciação científica [10]. Recordarei, a título de exemplo, a experiência de Proclo, cujos anos de aprendizado conhecemos bem, graças à biografia deixada por Marino de Néapoles. Sua primeira formação havia sido puramente literário: gramática e retórica (33); foi somente após sua conversão à filosofia que ele empreendeu o estudo das matemáticas, sob a direção de Héron, ao mesmo tempo que, conduzido por Olimpiodoro, iniciava o estudo da lógica de Aristóteles (34).

ARATO E O ESTUDO LITERÁRIO DA ASTRONOMIA

É-nos possível, num caso particularmente expressivo, surpreender esta invasão das disciplinas científicas pela técnica literária do "gramático". A astronomia, como já observei, era objeto de especial predileção; mas, se procurarmos determinar a forma em que esta ciência figurava nas escolas helenísticas [11], descobriremos surpresos, que seu estudo tinha como ponto de partida não um destes manuais elementares de teor matemático, a que fiz alusões, mas o poema, em 1154 hexâmetros, que Arato de Soles havia composto, por volta de 276-274 a. C., sob o título de Fenômenos (não se devendo destacar-lhe a segunda parte (35), consagrada aos Prognósticos).

Este texto conheceu uma divulgação extraordinária, contou  com uma constante preferência nos círculos escolas, como o atestam, fartamente, comentários, escólios e traduções, sem mencionar os monumentos figurativos: para a arte helênica, Arato é o Astrônomo, como Homero simboliza a poesia [12]. E, todavia, Arato não era um sábio, um técnico em astronomia: sua cultura era de cunho essencialmente literário e filosófico; ele pertencia ao círculo de espíritos de escol, reunidos na corte de Antígono Gônatas. Seu papel constituiu, apenas, em reduzir a versos, de ponta a ponta, dois trabalhos compostos em prosa, a saber, os Fenômenos, de Eudoxo de Cnidos, e a segunda parte do medíocre Περί σημείων, de Teofrasto. Tal como se nos apresenta, o poema de Arato nada tem de matemático; nada de números, algumas indicações bastante sumárias referentes à esferas celeste, seu eixo, os polos (36); o essencial é descrição, pormenorizada e "realista", das figuras tradicionalmente referidas às constelações: mostra-nos (37) Perseu, sustentando nos ombros sua esposa Andrômeda, a mão direita estendida em direção ao leito de sua sogra (Cassiopeia), avançando velozmente em meio a uma nuvem de poeira (uma miríade de estrelas que povoam esta região do céu)... O mesmo antropomorfismo na descrição do nascer e do por das constelações (38), que sucede a uma breve evocação dos planetas e dos círculos da esfera celeste (39). Os erros de observação não faltam: como o assinalava já o comentário de Hiparco (40), Arato ignora que as Plêiades apresentam, na verdade, sete, e não seis estrela visíveis a olho nu (embora a menor seja quase imperceptível (41)). Erros, ainda mais graves, encontram-se na segunda parte, os Prognósticos, que encerra muitas superstições populares.

Tal caráter exotérico era, ainda, fortalecido pela maneira segundo a qual se orientava o estudo de Arato nas escolas helenísticas. Embora matemáticos e astrônomos não se furtassem a comentar os Fenômenos (conforme se vê, no segundo século antes de Cristo, por Átalo de Rodes e Hiparco), o poema era explicado mais frequentemente, por gramáticos. Do ponto de vista científico, o comentário destes limitava-se a uma introdução, bastante sumária, à esfera, definindo o que se entendia por eixo, polos, círculos (ártico, trópicos, equador, eclíptica); é possível que se valessem, para tal exposição, de um modelo da esfera celeste, mas, a julgar pelos escólios que conservaram, essa iniciação não ia muito longe em precisão matemática. O comentário era, antes tudo, literário, e estendia-se às etimologia e, principalmente, às lendas mitológicas relacionadas com a descrição de Arato.

Eis um ponto de capital importância: se a astronomia ocupa um lugar de certo destaque no programa das escolas secundárias, tal lugar ela deve a Arato, e é sob a forma de uma explicação de texto, de uma explicação essencialmente literária, que ela ali aparecia. Não obstante certa resistência da parte dos matemáticos (42), parece que o gramático, ou melhor, o professor de letras conseguiu, praticamente, eliminar os geômetras e outros professores especializados nas ciências. As matemáticas continuam representadas no ensino somente por pequenos detalhes, consignados de passagem num comentário, ou por introduções gerais, extremamente sumárias, elaboradas por alguns gramáticos com alguma tintura de ciência, como este Mnáseas de Corcira, cujo epitáfio foi descoberto, e que nos informa, orgulhosamente, ter-se dedicado à astronomia (43) e à geometria (44), tanto como ao comentário dos poemas homéricos (45).

Na época helenística, a educação clássica acaba com esta evolução, adquirindo um dos traços que vão caracterizar sua fisionomia definitiva. Com efeito, nada é mais característico da tradição clássica (podemos avaliá-lo pela influência que ela exerceu e ainda exerce sobre nossa educação) do que esta preeminência literária, esta adversão a alojar as matemáticas na base da formação geral dos espíritos: as matemáticas são respeitadas, são admiradas, mas entenda-se que permanecem circunscritas apenas aos especialistas, isto é, que exigem uma vocação específica.

Tal caráter manifesta-se na época helenística: estamos, então, longe de Hípias e de Platão, e mesmo de Isócrates. Enquanto ciência particular, as matemáticas, sem dúvida, continuam, como o recordei, a desenvolver-se e a evoluir; senão seu ensino, seu estudo continua difundindo-se amplamente; podemos, graças aos papiros, avaliar sua difusão no Egito: descobrem-se fragmentos dos Elementos de Euclides em Oxirrinco, no Fayum (46), tratados de ciência musical (47), de astronomia (48), problemas de geometria, Tudo isto é, porém, doravante, matéria de especialista: as matemáticas não mais se acham, realmente, representadas na cultura comum, como tampouco neste alicerce profundo, que assegura a unidade de todas as variedades da cultura de uma época, e que é a formação primeira do adolescente, a saber, o ensino secundário.


Referências:

(1) TELES ap. ESTOBEU, Extratos, 98, 72.
(2) [PLATÃO], "Axiochos", 366e.
(3) W. DITTENBERGER, Sylloge Inscriptionum Graecarum (3.ª ed.), 960, 17.
(4) PLUTARCO, Questões de Banquete, IX, 736 D.
(5) Bibliothèque de l'Ecole pratique des Hautes-Êtudes (section des Sciences historiques et philologiques), 272, 15.
(6) FILÃO DE ALEXANDRIA, Sobre os Estudos Preparatórios (ed. Cohn, t. III), 9; ORÍGENES, Carta a São Gregório o Taumaturgo, 1.
(7) DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas dos Filósofos, X, 6.
(8) [PSEUDO-CEBES], Quadro.
(9) SEXTO EMPÍRICO, Contra os Matemáticos.
(10) DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas dos Filósofos, II, 79; IV. 10; V, 29-33. 
(11) Idem, VII, 129; cf. QUINTILIANO, Instituição Oratória. I, 10, 15.
(12) SÊNECA O FILÓSOFO, Cartas a Lucílio, 88, 20.
(13) ARQUITAS DE TARENTO, frag. 1 (Diels, Fragmente der Vorsokratiker, § 47).
(14) EUCLIDES, Elementos de Geometria, I, pr. 5.
(15) Idem, I, pr. 1.
(16) PROCLO, Comentário aos "Elementos" de Euclides, I, p. 77, 15 s.
(17) HIERÃO DE ALEXANDRIA, Geometria; Geodésia; Estereometria.
(18) Papiro Ayer (American Journal of Philology, 19, 1898), 25 s; Mizraim, 3 (1936) 18 s.
(19) ESTOBEU, Extratos, I, 9, 2.
(20) EUCLIDES, Elementos de Geometria, VII-IX; cf. II.
(21) [PSEUDO-PITÁGORAS], Os Versos de Ouro. 47-48.
(22) TEON DE ESMIRNA, Aritmética, 40.
(23) Idem, 46.
(24) NICÔMACO DE GERASA ap. FÓCIO O PATRIARCA, Biblioteca (Migne, Patrologie Grecque, t. 103 ou t. 104), 187, 600 B; FILÃO DE ALEXANDRIA, De opficio mundi, 100.
(25) Idem, 187, 591 s. 
(26) ANATÓLIO DE LAODICÉIA, Sobre a Década (P. Tannery, Mémoires Scientifiques, III); TEON DE ESMIRNA, Aritmética, 37-49; [JÂMBLICO], Teologia dos Números; SANTO AGOSTINHO, Sobre a Música, I, 11 (18) - 12 (26).
(27) Notices et Extraits des Manuscrits de la Bibliothèque Nacional (ex-Imperial), XVIII, 2, 25-76.
(28) DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas dos Filósofos, IV, 29-33.
(29) Ap. SUIDAS, Lexicon, III, p. 468.
(30) GALENO, Sobre seus próprios Escritos (ed. Kühn, t. XIX), 11-18, ps. 39-48
(31) Idem, 11, p. 40.
(32) TEON DE ESMIRNA, Aritmética, 1.
(33) MARINO DE NEÁPOLIS, Vida de Proclo, 8.
(34) Idem, 9.
(35) ARATO DE SOLES, Os Fenômenos, 733 s.
(36) Idem, 19-27.
(37) Idem, 248-253.
(38) Idem, 559-732.
(39) Idem, 454-558.
(40) HIPARCO, Comentário aos "Fenômenos" de Arato, I, 6, 12.
(41) ARATO DE SOLES, Os Fenômenos, 254-258.
(42) Escólios de Arato, 19; 23.
(43) Inscriptiones Graecae, IX, 1, 880, 6-8.
(44) Idem, 8-9.
(45) Idem, 9-13.
(46) B. P. GRENFELL, A. S. Hunt, H. I. BELL, etc., The Oxyrhynchus Papyri, 29; B. P. GRENFELL, A. S. HUNT, D. G. HOGARTH, Fayûm Towns and their Papyri, 9.
(47) B. P. GRENFELL, A. S. Hunt, J. G. SYMLY, E. J. GOODSPEED, The Tebtunis Papyri, 694: TH. REINACH, Papytus Grecs et Démotiques (paris, 1905), 5; B. P. GRENFELL, A. S. Hunt, H. I. BELL, etc., The Oxyrhynchus Papyri, 9; 667; Papiro Hibeh, I, 13.
(48) Papyrus Letronne (Notices et Extraits des manuscrits de la Bibliothèque Nationale, t. XVIII), 1.

Notas complementares:

[1] A que época se refere o depoimento de Plutarco sobre o ensino das ciências do "Diogeneion" (Quaest. Conv., IX, 736 D) ? Parece impossível determiná-la com segurança. Plutarco diz simplesmente: "Sendo estratego, Amônio instituíra um exame no "Dieogeneion" para os efebos (sic: de fato, como vimos, esse colégio recebia os "melefebos", os jovens que, no ano seguinte, entrariam na efebia) que aprendiam as letras, a geometria, a retórica e a música". Muitos personagens tiveram o nome Amônio e não podemos afirmar que algum deles tenha sido estratego; como Plutarco não julga necessário esclarecer esse ponto, poder-se-ia supor que se trate do Amônio mais conhecido do nosso autor: o décimo-segundo referido no artigo dedicado aos Ammonios por PAULY-WISSOWA (I, c. 1862), ou seja, o filósofo platônico de quem Plutarco foi aluno em Atenas e do qual fala, ou faz falar, várias vezes em sua obra (cf. a Introduction de R. FLACELIÈRE à sua edição do tratado Sur l'E de Delphes, Annalaes de l'Université de Lyon, 3, Lettres, 11, ps. 8-10): remontaríamos assim à época de Nero. Mas essa é apenas uma hipótese.

[2] Dediquei à história da έγκύκλοις παιδεία um capítulos de minha tese, Saint Augustin et la Fin de la Culture antique, Paris, 1937, ps. 211-235. Faço questão de sublinhar os dois pontos em que hoje me parece necessário corrigir a doutrina em que me havia detido naquela ocasião: a) o aparecimento desse ideal da formação do espírito não deve ser situado, como eu o afirmava, na geração que sucede Aristóteles; como vimos, ele fora afinal, formulado, nitidamente, ao mesmo tempo por Platão e por Isócrates, concordes em juntar as matemáticas à instrução literária; pode-se, pois, evitar desacreditar (op. cit., p. 221, n. 1) o testemunho de DIÓGENES LAÉRCIO (II, 79) sobre Aristipo que comparava os que negligenciam a filosofia depois de ter estudado os έγκύκλια μαθήματα aos amantes de Penélope; b) já não estou mais tão certo que a concepção de έγκύκλοις παιδεία como "cultura geral" em oposição à "cultura propedêutica" seja o resultado de um "abastardamento", devido à decadência do ensino secundário na época romana (op. cit., ps. 226-227). Integrando a retórica, o programa da έγκύκλοις παιδεία ultrapassava, desde a origem, o domínio do ensino secundário propriamente dito; podia satisfazer plenamente um discípulo de Isócrates; somente os filósofos, herdeiros de Platão, viam-se obrigados a lhe conferir um caráter estritamente propedêutico. Sustento, em compensação, apesar das críticas de A.-J. FESTUGIÈRE (ap. Revue des Études grecques, LII [1939], p. 239), que esse programa não define mais do que um ideal, muito raramente e muito imperfeitamente realizado na prática.

[3] Enciclopédia é um conceito moderno: cf., ainda, meu Saint Augustin, ps. 228-229: o grego só conhece a έγκύκλοις παιδεία; a forma έγκύκλοιςπαιδεία só se encontra nos manuscritos de QUINTILIANO (I, 10, 1), e é sem dúvida uma corruptela devida aos copistas. O termo enciclopédia aparece no século XVI (em inglês: Elyot, 1531; em francês; Rabelais, 1532) e foi recriado ou pelo menos repensado, em função de uma etimologia radicando-o diretamente a κύκλος (o ciclo completo dos conhecimentos humanos), enquanto que no grego helenístico o adjetivo έγκύκλοις tinha um valor derivado muito menos forte: "em circulação", de onde "corrente", "vulgar", ou ainda "que volta periodicamente", ou seja, "quotidiano", "de cada dia".

[4] Extensão variável do programa έγκύκλοις παιδεία: ver os testemunhos por mim citados ap. Saint Augustin..., p. 227, n. 1: VITR., I, 1, 3-10; GAL., Protrept., 14, ps. 38-39; MAR. VICTOR., ap. KEIL, Grammatici Latini, VI, p. 187; Scsol. em D. THR., ap. HILGARD, Grammatici Graeci, III, p. 112; PHILSTR., Gym., 1.

[5] O programa da έγκύκλοις παιδεία entre os filósofos helenísticos e romanos: ver o quadro descrito ap. Saint Augustun, ps. 216-217: Heraclides o Pôntico (DL., V, 86-88), Arcesilau (DL., IV, 29-33), PS. Cebes (Pinax), Filão (De Congr., pass.) Sêneca (Ep., 88, 3-14), Sexto Empírico (plano do Contra Matemáticos), Orígenes (Ep. ad Greg. 1; cf. EUS., H. E., VI, 18, 3-4), Anatólio de Laodicéia (EUS., H. E., VII, 32, 6; HIER., Vir. Ill., 73), Porfírio (TZETZ. Chil., XI, 532), Lactâncio (Inst., III, 25, 1); cf. ibid., p. 189, para Santo Agostinho (de Ord., II, 12, 35 segs.; II, 4, 13 segs.; De Quant. an., 23, 72; Retract., I, 6; Conf., IV, 16, 30.

Quanto à data do aparecimento do setenário das artes liberais, entre Dionísio o Trácio e Varrão, acompanho F. MARX, Prolegomena à sua edição de CELSO, ap. Corpus Medicorum Latinorum, I, Leipzig, 1915, p. x (cf. meu Saint Augustin, p. 220, n.º 2).

[6] História da geometria e da aritmética gregas: existem vários livros elementares sobre o assunto (a meu ver, o melhor é: D. E. SMITH, History of Mathematics, 2. vols., Boston, 1925), mas convém reler: J. Gow, A short history of Greek mathematics, Cambridge, 1884, que diversas obras mais recente se limitam a copiar. Sem dúvida, um estudo mais profundo não poderia ignorar os trabalhos de M. CANTOR, Vorlesungen über Geschichte der Mathematik, I4, Leipzig, 1922, e P. TANNERY, La Géométrie grecque. Comment son histoire nous est parvenue, ce que nous en savons, I, Paris, 1887, e os artigos reunidos na edição póstuma de suas Mémoires scientifiques, t. I-IV, Paris-Toulouse, 1912-1920.

[7] Sobre a ciência musical grega, cf. além de L. LALOY, Aristoxène de Tarente, e Th. REINACH, La Musique grecque, aos quais já remeti o leitor: M. EMMANUEL, Histoire de la Langue musicale, I, Paris, 1911, ps. 61-165; Grèce ('Art gréco-romain), ap. H. LAVIGNAC, Encyclopédie de la Musique, 1, I, ps. 377-537.

[8] R. G. H. WESTPHAL ligou o estudo da rítmica grega ao da rítmica de nossa música clássica: cf. suas conhecidas obras: Die Fragmente und Lehrsätze der grieschischen Rhythmiker (1861) e Allgemeine Theorie der musikalischen Rhythmik seit J. S. Bach (1881).

[9] Sobre a astronomia grega: é sempre interessante retomar: J.-B. DELAMBRE, Histoire de l'Astronomie ancienne, Paris, 1817; ver, em seguida: P. TANNERY, Recherches sur l'Histoire de l'Astronomie ancienne, Paris, 1893; J. HARTMANN, Astronomie, ap. Die Kultur der Gegenwart, III, 3, 3, Leipzig, 1921.

[10] Sobre o ensino das ciências nas escolas neoplatônicas: F. SCHEMMEL, Die Hochschule von Konstantinopel im IV. Jahrhundert, ap. Neue Jahrbücher das klassische Altertumsgeschichte und deutsche Literatur, 22 (1908), ps. 147-168; Die Hochschule von Athen im IV. und V. Jahrhundert, ibid., ps. 494-513;  Die Hochschule von Alexandreia in IV. und V. Jahrhundeert, ibid., 24 (1909), ps. 438-457; O. SCHISSEL VON FLESCHENBERG, Marinos von Neapolis und die neuplatonischen Tugendgrade, Atenas, 1928 (e a resenha de E. BRÉHIER, ap. Revue d'Histoire de la Philosophie, 1929, ps. 226-227); C. LACOMBRADE, Synesios de Cyrène, hellène et chrétien, Paris, 951, ps. 39-46, 64-71.

[11] O ensino de astronomia: cf. H. WEINHOLD, Die Astronomie in der antiker Schule, dissertação de Munique, 1912: obra excelente, mas o autor não percebeu as conclusões que se tiram dos fatos que tão bem reuniu; acrescentar L. ROBERT, ap. Études Épigraphiques et Philologiques (BEHE, 272), Paris, 1938, p. 15.

[12] Arato de Soles, representado em companhia da musa Urânia, como imagem típica da ciência astronômica: por exemplo, numa taça de prata do tesouro de Berthouville: Ch. PICARD, Monuments Piot, t. XLIV, 1950, ps. 55-60, pr. V., e em geral: K. SCHEFOLD, Die Bildnissse der antiken Dichter, Redner und Denker, Basileia, 1943. Sobre a vida e a obra de Arato, ver em último lugar V. BUESCU, edição de CICÉRON, Les Aratea (coleção de edições críticas do Instituto romeno de Estudos latinos, 1), Paris-Bucareste, 1941, ps. 15 segs.



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