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Matemática Sagrada na Divina Comédia de Dante

Deus como criador geômetra do
Universo, ideia muito presente
no Quadrivium

Por José Carlos Fernández -- Escritor e diretor da Nova Acrópole Portugal.

Giovanni Bocaccio na sua belíssima biografia de Dante Aliguieri, no capítulo sobre a sua educação, diz:

“E dando-se conta de que as obras dos poetas não são vãs nem simplesmente fábulas ou maravilhas, como pensa a estulta multidão, senão que nela se encontram os doces frutos da verdade histórica e filosófica (motivo pelo qual a intenção dos poetas não pode ser entendida completamente sem um conhecimento de história, de moral e de filosofia natural) elaborou uma sensata divisão do seu tempo e esforçou-se em aprender história pelos seus próprios meios e filosofia sob a tutela de vários mestres, o que conseguiu com prolongado estudo e esforço. E arrebatado pela doçura em conhecer a verdade das coisas divinas e não encontrando na vida nada que lhe fosse mais querido, pôs completamente de parte todas as outras preocupações, consagrando-se por completo à sua demanda. E para que não deixasse qualquer parte da filosofia sem investigar, a sua mente sagaz examinou as profundezas mais ínfimas da teologia. E o resultado não ficou muito distante da intensão. Insensível ao frio e ao calor, com jejuns e vigílias, e no meio de qualquer outro tipo de aspereza física, acabou por conhecer graças a um estudo assíduo, tudo o que inteligência humana pode conhecer da essência divina e dos anjos. E como nas várias etapas da sua vida estudou os diferentes ramos do conhecimento, deste modo continuou os seus diversos estudos sob a direção de diversos mestres.”

O que diz implica que estudou a fundo as disciplinas do Trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia).

Recordemos que estas disciplinas, e seguindo a filosofia platônica, estavam desenhadas para elevar a consciência humana ao plano dos Ideais, abrindo o olho da alma a esta dimensão do inteligível. Isto é, permitiam conjugar e viver a chave que faz irmãos todos os outros conhecimentos, afirmar o sentido e lei de analogia que nos permite penetrar no mistério. O objetivo não era simplesmente aumentar o conjunto dos nossos conhecimentos, mas também ir desvelando cada vez mais claramente as certezas, como estrelas, no “Tudo está em Tudo” dos magos e alquimistas. Repito, o objetivo, que seria coroado após a morte, deixando as roupas velhas que nos atam aos sentidos, era voltar às “estrelas do Real”, pois tudo o que existe é filho de uma Estrela (não as do céu sensível), de uma Verdade infinitamente simples, o desenvolvimento do seu “fio de vida” nos caminhos do espaço, do tempo e da causalidade.

Não seria Dante alheio a este mistério, como o insinua várias vezes na sua Divina Comédia. Além disso, para o confirmar, o último verso da cada parte (ou seja, Inferno, Purgatório e Paraíso) termina, como nos recorda Boccaccio, com a palavra “estrelas”.

Há uma relação entre as Estrelas, os Deuses ou Arquétipos, as Monadas, os Átomos e os Números, e a Matemática que se expõe de modo aberto ou oculto, encriptado, na Divina Comédia é uma Matemática Sagrada.

Esquema do Purgatório da Divina Comédia de Dante

Vejamos alguns exemplos e simetrias:

O triângulo, figura geométrica que alude à Santíssima Trindade (ou seja, o Fogo Divino) e o número $3$, que é o seu fundamento aritmético, aparecem continuamente na obra que está dividida em três partes, de $33$ cantos cada uma, aos que se somam um de introdução. A soma total é então de $100$ cantos, o número da perfeição, do desenvolvimento vivo e no todo da Unidade.

Os versos, hendecassílabos, dançam também de $3$ em $3$, com uma rima entrelaçada, ABA BCB CDC, etc., ou seja, tercetos entrelaçados ou terza rima, que Dante diz ter inventado, em estrofes de $10$ versos.

A respeito da importância do $10$, recordemos que resume a Tetractis e fecha um ciclo. Na Matemática Sagrada diz-se que está completo tudo o que chega ao estado quatro da sua realização (por exemplo, Fogo, Ar, Água e Terra) dado que cada elemento se soma aos anteriores e assim dizer $4$ é como dizer $10$. Sendo $10$ ($1+2+3+4$) o número triangular por excelência (junto com o $3$ ou o próprio triângulo).

Dez são, também, as esferas celestes (as $7$ dos planetas, a $8$ correspondente às Estrelas fixas, a $9$ à do Primeiro Móbil, e a $10$ o Empíreo ou Luz pura de Deus) sobre as que reinam as hierarquias angélicas, também dispostas em torno do Ponto Central ou Deus.

Como reflexo invertido, $9$ são os Infernos, sendo o centro imóvel a massa pétrea da Terra, para onde tende toda a gravidade do material, o décimo invertido. Ou talvez o décimo seja a antessala, onde moram os que não deixaram pegada no mundo, nem infâmias, nem mérito algum, que correm sem descanso picados por insetos, os das obras por realizar. 

Inclusivamente, o Purgatório também está dividido em dez, sete para redenção e purificação dos pecados capitais, dos ante-purgatórios e o Paraíso Terrenal ou Éden onde viveram de forma pura os primeiros pais, já aberto ao Paraíso Celestial.

Como já temos visto em vários artigos, um dos grandes segredos matemáticos da antiguidade foi a chamada Divina Proporção, que Platão define como a relação entre duas partes de um segmento de modo que a relação entre a menor e a maior seja equivalente à da maior e o segmento inteiro.

Já sabemos que este Número ou Proporção, $\varphi = 0,618...$ e a sua inversão, $1,618$ (a relação entre a parte maior e a menor, entre o todo e a parte maior).

Ainda que este segredo – como nasceu, a equação, qual o seu significado matemático filosófico – devia estar reservado a um círculo restrito, mas não a sua aplicação em geometria como vemos continuamente nas catedrais góticas, por exemplo.

No artigo “Números na Comédia” de Marcos Perilli, o autor aplica a mesma proporção ao número de cantos da obra e também em cada uma das partes obtendo um resultado realmente surpreendente.

Os $100$ Cantos, multiplicados por $0,618$, dá-nos o canto $61.8$, ou seja, os últimos parágrafos do $61$. E é exatamente, quando Virgílio, no Purgatório, anuncia a separação com Dante.

Literalmente:

“Não esperes minhas palavras, nem conselhos
Já; são e reto é teu arbítrio,
e seria um erro não obrar o que ele te diga:
e por isto te mitro e te coroo”.

Se entendermos que Virgílio, como Mestre-Guia representa a Mente Superior ou a Razão Humana (Manas) e Beatriz a Alma divina (Budhi), é um ponto de viragem muito importante. Virgílio guiou-o pelo Inferno e pelo Purgatório. Como muito bem explica o autor do artigo:

“A chave está nos cantos contínuos: foi a despedida de Virgílio, a última sentença que a razão expressa. O tema do livre-arbítrio é central na Comédia; e é central no sentido geométrico do plano. A razão humana, a filosofia, o juízo que se aperfeiçoa, são o processo que leva a alma a conhecer-se a si mesma e, por fim, portanto, a preparar-se para a viagem transcendente: Virgílio vai-se, chega Beatriz, a teologia, o caminho imaterial para o céu. O ponto áureo do poema coincide com esta transição: da filosofia à teologia, da razão humana à razão divina, do corpo ao espírito, da terra e da água ao ar e ao fogo”.

Aplica de novo esta proporção no livro do Inferno, e surge o parágrafo em que se revela como este se quebrou antes da chegada do Salvador, é a fenda que marca o seu caminho. Outro ponto de viragem é o da luz divina de Cristo entrando no Inferno e destruindo-o, abrindo o caminho para o Céu.

Estrutura geocêntrica do Paraíso de Dante.

Aplica-o depois aos $33$ cantos do Purgatório dando $20$ que indica o tremor, um terramoto, quando uma Alma é salva, que dele sai e é recebida no Paraíso, outro ponto de viragem.

E de novo aplica a secção áurea no Paraíso, que também surge no canto $20$, onde se explica como se salvam, milagrosamente e contra todo o prognóstico as almas de alguns pagãos por interseção divina, por exemplo, a de Trajano.

Tal como vemos no “homem de Vitrúvio”, a Proporção de Ouro, aplicada às diferentes partes e subpartes, vai marcando as articulações. Dante aplica-a a vários cantos e coincide com o fim ou princípio de uma história. Por exemplo, no Canto $34$ do Inferno, o verso que coincide com a proporção áurea é quando Virgílio sai do Inferno e faz que Dante saia de lá.

“Todos os exemplos apontam ao clímax narrativo ou ao nó conceptual de cada canto. O princípio é ativo no conjunto e nas partes, é norma de uso, ferramenta inteligente para traçar a geometria do mais além, a estrutura pensada como ideia, como trama e conteúdo.”

Explica também que o verso que exatamente se encontra no centro da obra completa diz: 

“se chora; e agora quero que conheças”
É o verso número $7117$ (de entre os $14.233$ da obra). Que está no terceto:
“Este triforme amor aqui debaixo
Se chora; e agora quero que conheças,
O que corre até ao bem corruptamente.”

Que é o coração filosófico da obra, pois diz Dante que a essência da natureza é o Amor, que simplesmente flui até ao terrenal e instinto de conservação, ou até ao celeste. Quem o determina é o livre-arbítrio de cada um.

Vejamos algumas simetrias mais que aparecem no dito artigo o qual recomendo a sua leitura, pois aqui simplesmente esboçam-se algumas ideias básicas.

“O nome de Virgílio aparece $32$ vezes, o nome de Beatriz, $64$ vezes. Virgílio está presente em $64$ cantos, Beatriz em $32$ cantos”.

A palavra “virtude” aparece $64$ vezes.

Logo sendo o $6$ o número da Justiça (as seis faces de um cubo perfeito, ou o duplo triângulo Fogo-Água) o Canto 6 do Inferno trata da situação política em Florença; no Purgatório, idem, na Itália inteira; e no Paraíso, idem, a história do Império Romano.

Outro número muito importante é o DXV dos versos. Depois de explicar a corrupção da Igreja e a sua rivalidade com o Império, um gigante, diz que:

Em que um quinhentos (D), um dez (X), um quinhentos (V)
Enviado de Deus, à rameira
Matará o gigante com quem peca.
(Purg., XXXIII, 43-45)

Diz-se que representa o DUX, um imperador arauto da vontade divina, que trará de novo a concórdia e a unidade a todos.

Sobre todos os valores, significados e alusões de este DXV, o pintor, escritor e especialista em Matemática Sagrada, Lima de Freitas (1927-1998) escreveu um livro, “$515$, o Lugar do Espelho”.

Ainda que o número que subjaz é o $10$, ou o $100$, como símbolos da Unidade desenvolvida, o que organiza a estrutura da natureza e a vida é o $7$, como temos analisado já muitas vezes. Isto mesmo vemos na Divina Comédia:

Os $7$ pecados capitais com os seus lugares de castigo próprios no Inferno.

As $7$ divisões do Purgatório, em que as almas se purificam destes pecados (os $7$ P’s na frente de Dante, que são gravados ao entrar no Purgatório e que um anjo vai apagando à medida que vai ascendendo pela sua montanha de purificação).

As $7$ damas que rodeiam o Carro tirado pelo Grifo e que representam as $7$ virtudes (incluídas as $4$ cardeais de Justiça, Prudência, Fortaleza e Temperança; e as $3$ teologais de Fé, Esperança e Caridade).

Os $7$ Planetas e as $7$ primeiras esferas associadas, no Paraíso.

Como bem diz o autor do artigo mencionado:

“O $7$, na Idade Média, é o número que ordena e organiza os sistemas, toda a articulação do pensamento”.

Dante e Beatriz encontram dois grupos de doze sábios na Esfera do Sol

Na Idade Média, seguindo o pensamento aristotélico da matéria e da forma, esta última é a alma, o espiritual de qualquer existência (que é, existência, precisamente, onde a matéria e a forma convergem). Mas a Forma não é apenas o perfil visual de algo, mas a sua alma, e, portanto, as qualidades e propriedades derivadas dela, e estas derivam, em última instância, de números.


Diz Dante, na sua Divina Comédia:

“Em tudo quanto existe há uma ordem, e esta é a forma pela qual o universo é semelhante a Deus. Aqui veem as altas criaturas o molde do eterno valor, o fim em que a referida forma é feita.”

De este modo, as almas desvinculadas do seu contato com a carne e a matéria grosseira são, como dizia Marco Aurélio, esferas perfeitas (mentalmente somos ovos de vida, tal é a forma da nossa aura em que se reflete a nossa existência de pensamentos e estados de consciência), ou pontos luminosos, os mesmos em que as fadas se fazem muitas vezes presentes.

Assim vê Dante, no Paraíso, na esfera de Saturno, os espíritos contemplativos:

“Voltei os olhos como ela quis [Beatriz] e vi cem pequenas esferas que se embelezavam umas às outras com os seus respetivos raios.”

E a respeito da forma, ainda não no Paraíso, Dante sente-se como uma pirâmide, como um tetraedro, firme e flamejante, bem como o fogo que esta forma representa: “Oh, minha querida planta, que te elevas tanto, que olhando o Ponto a quem todas as coisas são presentes, vês as coisas contingentes antes de serem elas mesmas, como veem as inteligências terrestres que dois ângulos obtusos não podem caber num triângulo! Enquanto acompanhado por Virgílio subi a montanha onde as almas se curam e quando baixava pelo mundo dos mortos, disseram-me coisas graves acerca da minha vida futura, e ainda que me considere um tetrágono diante dos golpes da desgraça, quisera saber qual é a sorte que me está reservada, pois o dardo previsto fere com menos força.”

Dante e Beatriz veem Deus como
um Ponto de Luz rodeado de anjos

Deus, que é o que irradia a essência ou Luz Divina Absoluta de que estão feitas todas as formas, é, para Dante, “a Igualdade Primeira”, ou seja, aquele em que tudo é unidade, ou a unidade da que tudo é. Diz:

“Desde que a Primeira Igualdade se tornou evidente, o afeto e a inteligência têm um peso igual em cada um de vós, porque nesse Sol, que vos ilumina e vos queima com a sua luz [sabedoria] e calor [amor] são tão iguais nessa virtude que toda a semelhança é pouca.”

O no Canto $28$ do Paraíso que vê a Deus como Ponto Único e Infinito. E é lógico que seja neste lugar, e no nono céu, o Primeiro Móbil. O Canto é o $28$ porque este número é um número perfeito (ou seja, aquele que é a soma dos seus divisores, neste caso $1, 2, 4, 7, 14$). Este Ponto Único é a melhor forma de simbolizar Deus, ainda que não fique claro, na minha opinião se é ou não é Deus, dado que este é percebido no final como a Santíssima Trindade, como $3$ Círculos entrelaçados pela Luz divina. Todas as hierarquias angélicas giram ao redor de este Ponto e de Ele recebem a sua luz e o seu poder. É um Ponto, como nas tradições orientais para representar o mistério da Divindade, cujo movimento é perpétuo. Recordemos os ensinamentos da Doutrina Secreta de Blavatsky em que se representa Deus como um “Ponto voltado sobre si mesmo”, ou como um Perpétuo Movimento (chamado precisamente “o Grande Alento”). Ou a dos pitagóricos, Nicolás de Cusa, Giordano Bruno e Espinosa, em que Deus é uma circunferência cujo centro está em todas as partes.

Em torno de esse Ponto giram círculos de fogo, tanto mais rápido quanto mais estão perto dele. Estes círculos são e dão vida aos querubins, serafins, tronos, domínios, virtudes, potestades, arcanjos e anjos.

Dante diz que “de este Ponto depende o Céu e toda a natureza”. As esferas celestes copiam em velocidade inversa, os círculos de fogo dos Poderes dirigentes que giram em seu torno. Nas esferas, até chegar ao Primeiro Móbil, na nona, cada vez são mais rápidos, aqui é ao contrário, quanto mais perto estão do Ponto, mais rápido giram, segundo diz:

“Vê aquele círculo que está mais próximo dele, e sabe que o seu movimento é tão rápido por causa do ardente amor que o impulsiona.”

Dante vai referindo as sucessivas formas da Geometria Sagrada que são a expressão da unidade e figuram os números, e que representam o Divino até chegar ao Fogo que seria o Tetraedro:

1. Ponto Central num Círculo

2. Deus como Diâmetro, como a letra I (que é Jod, o $10$ hebreu ou o jota, o $10$ grego, ainda que também pode representar o I, o uno romano). Falando Adão a Dante, diz: “Antes de que eu descesse às angústias infernais, se dava o nome de I ao Sumo Bem de quem procede a alegria que me circunda”. Este mesmo Diâmetro é o Rio Divino de Luz do Canto 30 do Paraíso: “E vi em forma de rio uma luz áurea que se desprendia em esplêndidos fulgores entre duas bordas adornadas de admirável primavera. Deste rio saíam vivas centelhas que por todas as partes choviam sobre as flores, parecendo rubis engastados em ouro.”

3. O Duplo Diâmetro no Círculo que é o símbolo que irradia a coragem e a virtude no quinto Céu e que ele associa a Marte: “O Venerável signo que produz a intersecção dos quadrantes num círculo”.

3. Também associado com o $3$, Deus como Santíssima Trindade (Pai-Filho-Espírito Santo), que diz que é absolutamente incapaz de descrever na sua glória e refulgência; e com a que finaliza a Divina Comédia. “Na profunda e clara substância de alta luz apareceram-me três círculos de três cores e de uma só dimensão. O uno parecia refletido pelo outro como um Iris por outro Iris, e o terceiro parecia fogo refletido por ambos por igual.”

Os Três Círculos da Trindade, ilustração de John Flaxman, Canto 33.

4. O Tetraedro ou expressão geométrica do fogo, e com o qual se identifica, como antes dissemos.

Também é interessante no Canto $28$ do Paraíso como o Fogo Divino se espalha na Natureza, numa escala descendente, como num sistema de espelhos, seguindo o processo de potencialização. E em concreto da potência crescente do $2$. Já que se usa como exemplo o xadrez com as suas $64$ casas. $1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128...$ “Começaram a faiscar os círculos, como chispa de ferro incandescente, e aquele centelho, parecia um incêndio, era imitado por cada chispa por si, sendo estas tantas, que o seu número se multiplicava mil vezes mais que o produzido pela multiplicação das casas de um tabuleiro de xadrez.”

Vamos ver que as operações do $4$ e do $3$ são fundamentais na Matemática Sagrada e na Divina Comédia.

$4 + 3 = 7$

$4 \times 3 = 12$ (os signos do zodíaco, os sábios na esfera do Sol, dois grupos de 12) $4^3 = 64$ (Número de vezes que aparece o nome de Beatriz e a palavra “virtude” na Divina Comédia [1]).

E como diz Thomas Rendall no seu artigo The Numerology of Dante’s Divine Vision, mais importante ainda é o número $3^4$, ou seja, o $81 (9 \times 9)$. Explica que este, o verso número $81$ do canto $33$ do paraíso (o final do livro), é onde culmina a aproximação do poeta a Deus, e não deve ser casualidade, pois o verso indica esta fusão da sua alma-luz-olhar com Deus:

“Pela intensidade do vivo raio que suportei sem cegar, creio que me tivera perdido, se eu tivesse separado os meus olhos dele; e recordo que por isto fui tão ousado para suportá-lo, que uni o meu olhar com o Poder infinito.”

E’ mi ricorda ch’io fui pi`u ardito
per questo a sostener, tanto ch’i’ giunsi
l’aspetto mio col valore infinito (verso 81 do Canto 33)

E ainda que, depois da sublime visão desta Divina Comédia, retornará aos seus trabalhos na terra dos mortais, neste Infinito consumou a sua união definitiva com Beatriz e não só, mas também com a Alma de tudo o que vive n’Ela e em Deus e cuja suma expressão é a Rosa Mística.

Notas:

[1] Segundo o artigo mencionado anteriormente

***

Texto retirado do link.


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A incrível história do papa matemático

Iluminura do Codex Manesse
mostra a escola da catedral de
Reims, comandada por Gerberto
Por Marcio Antonio Campos

Na virada do primeiro para o segundo milênio, um dos maiores matemáticos e astrônomos do Ocidente cristão, se não o maior deles, não estava em uma das escolas que se tornariam os embriões das universidades medievais: estava sentado no trono de São Pedro. O papa Silvestre II, ou Gerberto de Aurillac, é o tema da biografia The abacus and the cross, de Nancy Marie Brown. Após ler o livro, o retrato que temos da época de Gerberto se mostra bem diferente de muitas das lendas que costumamos ouvir sobre a cristandade medieval – uma delas é justamente a de que havia uma firme crença de que o mundo acabaria na passagem do ano 999 para o ano 1000. Na verdade, provavelmente nossa geração ficou mais estressada com o bug do milênio que os medievais com um eventual fim do mundo, até porque nem todos sabiam exatamente em que ano estavam…

Mas, voltando a Gerberto, é inegável que ele chegou aonde chegou por seu brilhantismo intelectual, mas ter conhecido as pessoas certas nas horas certas também ajudou. Monge beneditino em Aurillac, ele se mostrou genial no trivium, formado por gramática, retórica e dialética. Mas não havia em toda a França quem ensinasse sua continuação, o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Para sorte de Gerberto, um conde catalão passou pelo mosteiro e, a pedido do abade, levou consigo o jovem monge, que passou a estudar em uma cidade próxima a Barcelona.

Na época, a Catalunha era uma das fronteiras entre o Ocidente cristão e a Península Ibérica islâmica. Os três anos que Gerberto passou lá moldaram toda a sua vida, pois o intercâmbio cultural e científico era enorme. O monge absorveu tudo o que podia (não se sabe se ele chegou a conhecer a Espanha árabe ou se ficou apenas na Catalunha) e, acompanhando o conde Borrell e o bispo Ato em uma peregrinação a Roma, em 970, impressionou o papa João XIII com seu conhecimento. O pontífice avisou o imperador Oto I, do Sacro Império Romano-Germânico, que havia encontrado a pessoa perfeita para ser tutor do príncipe que se tornaria Oto II. Gerberto trocou a Catalunha pela corte germânica, mas por pouco tempo. Com o casamento do príncipe, Gerberto ficaria sem emprego, mas foi imediatamente recrutado por Adalbero, arcebispo de Reims, então a principal cidade da França. Começou ensinando o quadrivium na escola da catedral, e depois se tornou diretor da escola. Pelas suas mãos passaram futuros bispos, arcebispos, abades, um futuro rei da França e um futuro papa.

Os anos de Gerberto como chefe da escola da catedral de Reims foram os mais produtivos da vida do religioso, e suas realizações científicas estão descritas na segunda parte do livro. Gerberto introduziu no Ocidente cristão os numerais indo-arábicos e o zero, e reintroduziu o ábaco e a esfera armilar (uma espécie de planetário primitivo), instrumentos que construiu; e pode ter feito um astrolábio (não há registros, mas sabe-se que ele conhecia o objeto). Deixou tratados de matemática, normalmente escritos a pedido de alunos e ex-alunos. Construiu órgãos de tubo e armas de cerco. Na base de toda essa produção e paixão pelos números e pelo conhecimento, estava a convicção de que Deus havia feito tudo “com medida, quantidade e peso”, de acordo com o livro bíblico da Sabedoria: conhecer matemática era ter um vislumbre da mente divina.

Página do tratado “De Geometria”,
um dos diversos livros sobre
matemática escritos por Gerberto.

Mas a carreira de Gerberto como cientista e professor acabaria dando lugar à intensa politicagem em que se meteu, e que de certa forma o acompanhou até o fim da vida, muitas vezes contra a sua vontade. Em 980, ele já tinha passado pela experiência de ser abade em Bobbio, na Itália, o mosteiro com a maior biblioteca da Europa cristã. Mas Gerberto tinha sido enviado para lá por Oto II para ser um administrador, não um erudito. Tudo correu muito mal, e o monge voltou para Reims e sua escola. Anos depois, ele e o arcebispo Adalbero trabalharam pelos interesses do Sacro Império contra o rei Lotário, da França, motivo pelo qual Gerberto quase foi morto por traição. Com a morte de Lotário, a dupla interferiu na sucessão do trono francês, ajudando Hugo Capeto a encerrar a dinastia carolíngia.

Adalbero morreu em 989, e não escondia de ninguém que queria Gerberto como sucessor. Mas Hugo colocou um filho ilegítimo do rei Lotário no posto (sim, era uma época em que a mistura entre Igreja e Estado corria a todo vapor), dando início a uma disputa feroz em que se questionou até a extensão do poder do papa e na qual Gerberto chegou a ser excomungado. Por isso, ele agarrou a chance de ser tutor e conselheiro do imperador Oto III, que em 996 influenciou a ascensão ao papado de seu primo, que se tornou Gregório V. O novo papa não entregou a sé de Reims a Gerberto, mas o nomeou como arcebispo de Ravenna. Em 999, Gregório morreu e Oto forçou a eleição de Gerberto, que se tornou Silvestre II (lembremos que o sistema atual de conclaves só surgiu quase 200 anos depois).

Silvestre II e Oto III compartilhavam da paixão pela ciência e do ideal de um grande império cristão. Juntos, eles seriam como o primeiro papa Silvestre e o imperador Constantino. Mas a realidade foi outra: as tarefas do papado não deram a Gerberto tempo para retomar seus estudos. Ele até conseguiu grandes feitos, trazendo para a Igreja povos na Europa Central, Leste Europeu e Escandinávia, e tentou moralizar o clero. Mas a nobreza romana não gostava nem de ser governada por um imperador estrangeiro, nem que o bispo da cidade não fosse um dos seus – Gregório V teve de lidar com um antipapa promovido pelas famílias romanas. Por isso, em uma de várias revoltas, em 1001, Oto e Silvestre foram postos para correr, refugiando-se em Ravenna. No ano seguinte, Oto morreu tentando reconquistar Roma; Silvestre conseguiu voltar para a sua sé, mas com pouco poder, e morreu em 1003.

A autora conta a história de Gerberto, mas não se limita a ela, fazendo uma série de digressões ao longo do livro: ela explica em detalhes como era o dia a dia de um mosteiro e como se copiavam os livros na época de Gerberto, descreve os avanços científicos-tecnológicos do mundo árabe e como se contava o tempo naquela época, narra desventuras dos imperadores romano-germânicos e a guerra entre carolíngios e capetos, e até conta como um biógrafo de Cristóvão Colombo inventou a lenda de que os cristãos medievais acreditavam que a Terra era plana (talvez o “desvio” que mais se afaste do assunto do livro, mas interessante mesmo assim). Há quem considere que tanta informação adicional distraia o leitor do que mais importa, que é a história de Gerberto; já eu considero que as histórias acrescentam sabor ao livro e ajudam o leitor a se ambientar.

É quando a história de Silvestre II termina que o livro degringola. Menos mal que Nancy Brown reconhece que todas as lendas surgidas em volta de Silvestre II, de que seu conhecimento científico era fruto de um pacto com o demônio (uma “demônia”, para ser mais preciso) e coisas parecidas, não provinham de nenhum preconceito católico contra a ciência, e sim de um ataque pessoal de um cardeal adversário de Gregório VII, pontífice que trabalhou pelo fortalecimento do poder papal. Gregório teria sido educado por discípulos de Gerberto, e foi assim que ele entrou na história. Só com a Reforma, no século 16, é que os protestantes usaram as lendas anti-Silvestre para tentar provar que os católicos eram inimigos da ciência e inventaram histórias para denegrir um grande matemático e astrônomo.

A autora tenta criar uma oposição entre a Idade Média pré-Gerberto, em que ciência e fé eram aliadas, em que os homens da Igreja buscavam o conhecimento – e, apesar de o subtítulo do livro, “O papa que levou a luz da ciência para a Idade das Trevas”, ser uma boa ferramenta de marketing, é desmentido pelo próprio conteúdo da obra –, e uma Idade Média pós-Gerberto, dominada pela superstição e pela intolerância. Vejamos esse trecho: “A Igreja na qual Gerberto cresceu tinha acabado. Clérigos que se opusessem a esse novo tipo de catolicismo, que repudiavam os rituais da veneração das relíquias, o batismo de crianças, a santificação do casamento, a intercessão pelos falecidos, a confissão aos padres e a veneração da cruz (…) eram denunciados como hereges” (p. 238). Ora, todas essas práticas e doutrinas remontam à era dos apóstolos (a única que ainda não tinha se tornado regra universal era a confissão auricular)! Mesmo a noção de que a ciência desaparece da Igreja após a virada do milênio é falsa (o livro cuja leitura interrompi para pegar The abacus and the cross ajuda a demonstrar isso), e historiadores como James Hannam têm trabalhado no tema. A vida de Gerberto é extraordinária por si só; não era preciso rebaixar o que veio depois para ressaltar a fantástica história do papa matemático.

***

Texto retirado do link.


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O Heliocentrismo: O cônego Nicolau Copérnico

Sistema heliocêntrico copernicano do
universo, século XVII - Johannes Hevelius
"Tão grande é sem dúvida esta obra
divina do Sumo Artífice".
-- Nicolau Copérnico

A ideia da revolução copernicana que chega ao grande público é sinteticamente esta: o heliocentrismo proposto por Nicolau Copérnico teria, de certo modo, desequilibrado a estrutura do mundo como entendia a Bíblia. Além disso, distanciando o homem do centro geográfico do universo, o teria destronado, negando assim, implicitamente, a sua origem divina (e por conseguinte a sua diferença ontológica em relação às outras criaturas). Copérnico seria, portanto, um daqueles cientistas -- na verdade, o primeiro deles -- que colocou em crise a fé num Deus transcendente, Criador e Providência, própria da Europa cristã, alargando o universo ao infinito, no qual o homem ia se reduzindo. Assim escreveu recentemente Umberto Veronesi, em Scienza e futuro dell'uomo (2010): com Copérnico a "posição" do homem "que diríamos quase divina enquanto criatura de Deus, desmorona para voltar a ser parte de um processo evolutivo que inclui animais, plantas e todos seres vivos. O homem é assim redimensionado, daí nasce o pensamento científico moderno". Essa interpretação da revolução copernicana é absolutamente anti-histórica e totalmente falsa. Não se encontra nenhuma verificação quando se lê o próprio Copérnico, e nem em Galileu Galilei, muito menos nos devotíssimos Kepler e Pascal, para citar apenas alguns dos primeiros e mais célebres "copernicanos". "Deve-se dizer com clareza -- escreve o historiador da ciência Paulo Musso -- que o fim do geocentrismo não significou absolutamente, como hoje se busca insistentemente fazer crer, o fim do antropocentrismo, entendido no sentido de uma radical desvalorização do homem e da sua importância na concepção global do cosmo". Para um cristão, de fato, na época de Copérnico, como antes e depois dele, "o valor do homem não pode depender da sua colocação geográfica, nem de algum outro fato material, mas somente de sua relação com o infinito" [1].

Um dos dos temores de Copérnico, escreve a sua biógrafa Dava Sobel, é que

seus colegas astrônomos [ligados ao sistema aristotélico-ptolomaico, N.d.A] teriam observado que a Terra estava bem no centro de tudo, não porque a morada do gênero humano merecesse um lugar de honra, mas bem ao contrário, porque no centro era o lugar onde caía e perecia as coisas materiais e, por isso, a ruína, a mudança e morte estavam no destino dos habitantes da Terra. Em suma, a Terra era o centro não porque era o auge, mas porque era a parte baixa da criação, e não se devia ter a ousadia de meter o Sol, que muitos chamavam de luz celeste, no buraco infernal posto no centro do cosmo [2].

Portanto, a perda da centralidade física da Terra não significa, para Copérnico, uma perda da verdadeira centralidade do homem, ligada à sua natureza espiritual, a suas peculiaridades excepcionais e únicas (pensamento, liberdade, razão...) e nem exatamente a sua posição geográfica.

Muitos anos depois, observando os céus com o telescópio, Galileu Galilei descobriu que existem depressões e asperezas na Lua e que o Sol tem manchas, e isso significa que ele vai se apagando. Tal descoberta irá afastar definitivamente a ideia pagã dos planetas divinos, sem que com isso a dignidade d Terra fosse rebaixada -- "nobilíssima e admirável", e não mais, como para os aristotélicos, "esgoto de sordidezas terrenas e de feiura" [3]. Isso a elevará ao nível dos outros corpos celestiais, reafirmando indiretamente a centralidade não apenas geográfica e material, mas, sobretudo, substancial e espiritual do homem. Não são as estrelas-divindades que controlam os homens (como o corolário para a astrologia, o horóscopo etc.), mas como já era claro aos primeiros cristãos, são os homens que, em vez de diminuírem-se, honram-se, reconhecendo o rastro da própria origem divina, de poder ler e compreender as leis que regulam os astros, por um lado reduzido à matéria criada em movimento, e por ouro, como repetirá insistentemente Kepler, que gostava de citar o Salmo Coeli enarrant gloriam Dei (Sl 18), enaltecendo os sinais evidentes da grandeza e da beleza do Criador.

Também é exatamente esse o pensamento de Copérnico quando na sua obra mais célebre, o De revolutionibus, no capítulo I, renega o vitalismo pagão e assim define o cosmo: "A máquina do universo (machina mundi), que foi criada para nós pelo melhor  e mais perfeito Artífice".

Mas quem é Copérnico? Quem é o homem que primeiro propõe vivamente um sistema complexo baseado sobre a hipótese heliocêntrica (apesar de não demonstrada), e que expande, por assim dizer, o universo, embora continue considerando-o finito?

Arthur Koetler o define como um "clérigo conservador e tímido", ou seja, tudo menos um revolucionário como Francesco d'Arcais, Margherita Hack e Francesco Barone, que concordavam com ele. Ulianich recorda que Copérnico foi um clérigo pertencente à Congregação reformada dos Cônegos Agostinianos, e que, como filósofo, sustentava a necessidade de buscar a verdade em todas as coisas, quatenus id a Deo rationi humanae premissum est [4]. Seu objetivo como cientista era "buscar e colher, através da experiência, uma realidade que já foi constituída no seu ser 'ab optimo et regularíssimo omnium Opifice' "[5]. 

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Nascido em 1473 em Torùn, na atual Polônia, muito cedo Copérnico fica órfão de pai. Quem cuida dele e dos irmão é um tio materno, Lukasz Watzenrode, clérigo que depois se tornou bispo de Vármia. Em 1497, depois dos estudos na Universidade de Cracóvia, e direito canônico em Bolonha, torna-se cônego em Frombork. Em 1500, nós os encontramos empregado na chancelaria pontifícia de Roma. Inicia os estudos de medicina em Pádua, e conclui os de Direito em Ferrara, enquanto colabora com o tio bispo, tornando-se seu físico privado.

É nesse período, por volta de 1507, que começa a elaborar a sua teoria heliocêntrica. Em 1512, torna-se chanceler do capítulo de cônegos da catedral de Frombork, enquanto em 1513, a pedido do Concílio de Latrão e de Paulo de Midelburgo, matemático e astrônomo, seu admirador e bispo de Fossombrone, copila uma proposta de reforma do calendário que envia a Roma.

O calendário em questão é o gregoriano, assim nomeado porque fora promovido pelo Papa Gregório XII, com a ajuda de grandes cientistas eclesiásticos como Calvius e Danti. O calendário, recorda Paolo Musso, "foi o primeiro verdadeiramente preciso que a humanidade tinha visto em toda a sua história, tanto é verdade que o usamos ainda hoje em plena era espacial, ainda que com alguma pequena modificação" [6].

Em 1523, Copérnico foi nomeado administrador geral para a sé arquidiocesana de Vármia. Em 1537, o seu nome está na lista dos quatro candidatos ao título de Bispo de Vármia. Enquanto exercia várias funções eclesiásticas e atividades médica, cuidando dos enfermos frequentemente de forma gratuita, segundo o seu primeiro biógrafo (sacerdote e astrônomo Pierre Gassendi, 1654), em 1543 publicou e, Nuremberg, por seu discípulo Rethicus, o seu De revolutionibus orbium coelestium, Morre no mesmo ano em Frombork [7] e é sepultado na catedral da cidade, próximo ao altar de São Venceslau, na qual tinha sido designado cônego, para provar mais uma vez, se fosse necessário, a sua fé e a estima da qual gozava.

Mas por que Copérnico havia publicado o seu pequeno e inovador volume tão tarde? Em parte, devia temer perseguições e ataques. Porém, mais do que ser perseguido, talvez temesse não ser compreendido. Foi o próprio Copérnico a escrever que não faltaria quem, vendo contradizer a opinião comum e a cosmologia de Aristóteles e Ptolomeu, teria zombado das suas opiniões. Mas essas resposta é incompleta e parcial.

Na verdade, Copérnico já tinha na época inúmeros admiradores como, por exemplo, Johann A. Widmannstetter, secretário do Papa, conquistando louvor e sucesso. Porém, já era consciente de quanto as suas  observações eram ainda imprecisas. As demonstrações da teoria heliocêntrica viriam, de fato, somente em 1850, graças ao físico Jean-Bernard Léon Foucault e o seu famoso Pêndulo.

A obra de Copérnico, depois de muitas incertezas, apareceu com uma dedicatória ao Papa Paulo III.

Também podemos dizer que talvez não teria sido publicada se não fosse pelas pressões de um cristão protestante como Rheticus e por alguns clérigos. Em primeiro lugar, o cônego Tiedemann Giese, que se tornou depois Bispo de Julme, que é talvez o seu amigo mais íntimo, o primeiro a quem Copérnico havia revelado os "secretos conhecimentos astronômicos" [8] --- Giese foi também o autor, com outros clérigos depois dele, de um tratado sobre a compatibilidade entre o sistema heliocêntrico e a Bíblia ---; além dele, o Cardeal Nikolaus vom Schönberg, Arcebispo de Cápua e homem de confiança de três papas, que no dia 1º de novembro de 1536 escreveu a Copérnico para convidá-lo formalmente a publicar o livro de que tonha ouvido Widmannstetter falar tão bem (a carta de Von Schönberg foi colocada precisamente na abertura do De revolutionibus).

Nos primeiros anos que seguiram a publicação da obra, a hipótese de Copérnico sofreu, como é óbvio, os ataques quase exclusivamente dos aristotélicos, de inúmeros pares, de Melanchthon e de Lutero. 

Em 1616, durante o caso Galilei, uma comissão de teólogos da Sagrada Congregação condenou algumas teses do De revolutionibus, ordenando que o livro não fosse destruído, mas interditado "até que fosse corrigido". Em particular, as correções, que cabiam numa página, implicavam a supressão do capítulo VIII do livro I (que consistia na refutação do geocentrismo dos antigos) [9]. O teólogos se enganaram (justificados pelo fato de que a tese de Copérnico não fora comprovada) não tanto no universo pudesse lhe diminuir a importância, mas simplesmente porque sustentavam que alguma passagens da Bíblia devia ter tomada literalmente. Mas isso não tira de Copérnico ter sido uma das glórias da Igreja: filho, não por acaso, da Europa cristã e das suas universidades; filho da Igreja, na qual foi educado e onde viveu sempre seguindo suas próprias hipóteses cosmológicas, a partir da fé grega e cristã no ordenamento racional do mundo, que traz em si, com sua "maravilhosa simetria", os sinais da harmonia e da beleza do seu Artífice [10].

Um primado nos estudos astronômicos que a Igreja conservou por longo tempo. É verdade que por alguns séculos serão as catedrais católicos a agir como embrionários de observatórios astronômicos [11], enquanto que os primeiros "organizados com critérios profissionais" nasceram na Itália somente na segunda metade do século XVIII, e graças a três sacerdotes: Padre Beccaria em Turim, Padre Boscovich em Milão e D. Piazzi em Palermo [12]. Piazzi será também o primeiro a descobrir um pequeno planeta (Ceres, 1801), como o jesuíta Padre Angelo Secchi será o pai da espectroscopia e o sacerdote Georges Henri Joseph Édouard Lemaître o teórico do Big Bang e o pai da cosmologia contemporânea.


Notas:

[1] Paolo Musso, La scienza e l'idea di ragione. Mimesis, Milão, 2011.

[2] Dava Sobel, Il segreto di Copernico. Rizzoli, Milão, 2012.

[3] Diálogos sobre os dois grandes sistemas do mundo.

[4] "Até o quanto é permitido à razão por Deus".

[5] Mesa redonda com Francesco d'Arcais, Francesco Barone, Margherita Hack, Emilio Segrè, Boris Ulianich (filósofo, historiador e ex-senador da esquerda independente), La conoscenza dell'universo, em "Civiltà delle macchine", ano XXI, nn. 1-2, 1973. É claríssimo, portanto, para Copérnico, continua Ulianich, que a "máquina do mundo" do universo "remete a um Criador, postula um Criador".

[6] Musso, op. cit., p. 43.

[7] Copernico e lo studio di Ferrara, Clueb, Bolonha 2003.

[8] Sobel, op. cit., p. 34.

[9] Nicolau Copérnico, La struttura del cosmo, comentado por J. Seidengart, Olschki, Florença, 2009, p. 17. 

[10] Copérnico sustenta em várias ocasiões que a sua visão do universo tinha sido guiado pela ideia de que o sistema aristotélico-ptolomaico fosse muito complexo e portanto, "feio"; por outro lado, muito mais simples, unitário, elegante e belo, seria um universo em que o Sol estivesse no centro, como todas as consequências que isso poderia trazer. Ele escreveu: "Encontramos, portanto, nesta ordem uma maravilhosa simetria do universo e uma forte ligação de harmonia que une o movimento e a grandeza das esferas, que não se pode encontrar de outro modo" (De revolutionibus, livro I, cap. X). Comenta Seidegart: "Eis o critério decisivo que consagra o sucesso do sistema heliocêntrico porque permite reduzir toda irregularidade aparente a uma mesma e única causa sem nenhum resíduo. Copérnico descobriu, portanto, a ordem autêntica dos corpos celestes que exprime as perfeições do amor divino" (Copérnico, op. cit.). O capítulo X termina assim: "Tão grande é sem dúvida essa obra divina do sumo Artífice".

[11] J. Heilbron, Il sole nella Chiesa: Le grandi chiese come osservatori astronomici. Compositori, Bolonha, 2005.

[12] Piero Bianucci, Storia sentimentale dell'astronomia. Longanesi, Milão, 2012, p. 159.

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Texto retirado de AGNOLI, Francesco; BARTELLONI, Andrea. Cientistas de batina: de Copérnico, pai do heliocentrismo, a Lemaìtre, pai do Big Bang. 1 ed. Ecclesiae, 2018.


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Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 2

Jan Davidsz de Heem 
Still Life with Books 1625-30
Em um texto passado (disponível nesse link), eu trouxe a parte 1 de uma lista com alguns livros em língua portuguesa sobre educação. Agora trago uma parte 2. O critério daquela lista foi e continua sendo o mesmo: livros sobre educação que não contivessem influências ideológicas e que estivessem preocupados em explanar sobre uma verdadeira educação. Novamente muitos desses livros foram publicados pela primeira vez ou republicados recentemente no Brasil. Obviamente esta parte 2 complementa e amplia a lista anterior. Pode ser que saia uma parte 3 posteriormente.


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Como Ler Livros - O guia clássico para a leitura inteligenteMortimer Adler e Charles Van Doren. Editora É Realizações, 2010.

Sinopse: Neste clássico, Mortimer Adler nos ensina a praticar a leitura em diferentes níveis – elementar, inspecional, analítica e sintópica – e nos ajuda a adequar nossa expectativa e forma de leitura ao tipo de livro que pretendemos ler. Não se lê um romance da mesma forma que se lê ciência. Não se lê ciência da mesma forma que se lê história. Mais que um livro de técnicas de leitura, trata-se de um verdadeiro tratado de filosofia da educação.





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O Trivium - As artes liberais da lógica, da gramática e da retórica. Irmã Miriam Joseph. Editora É Realizações, 2014

Sinopse: O Trivium, da Irmã Miriam Joseph, resgata a abordagem integrada dos componentes da ciência da linguagem praticada na Idade Média e conduz o leitor por uma esclarecedora exposição da lógica, da gramática e da retórica. Mais importante do que o domínio destes assuntos, este livro pretende fornecer as ferramentas necessárias para o aperfeiçoamento da inteligência.






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Quadrivium - As quatro artes liberais clássicas da aritmética, da geometria, da música e da cosmologia. Org. John MartineauEditora É Realizações, 2014.

Sinopse: Um almanaque ilustrado de curiosidades sobre a presença da matemática no mundo à nossa volta. Trata da simbologia dos números, das proporções na natureza, na arte e na arquitetura; mostra a relação entre música e matemática e nos ajuda a compreender o funcionamento do nosso sistema solar.






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Coleção 7 Artes liberais: O Guia da Educação Clássica. Vários AutoresEdições Hugo de São Vitor, 2020-2023.

Sinopse: A Coleção 7 Artes Liberais: o Guia da Educação Clássica. Não é mais um livro, mas uma coleção completa. Não é só um livro que fala sobre Trivium e/ou Quadrivium, mas sim os livros necessários para o estudo pleno, os quais seguem a doutrina clássica sobre o assunto.

E isso faz toda a diferença, pois no mercado vemos muitos livros úteis, mas que falam só de forma teórica ou histórica das Artes Liberais. Agora você terá o material apropriado para realmente aprender e se exercitar nelas; um material que leva em conta o tempo necessário, o rigor dos estudos, bem como os resultados pretendidos.

Pensamos esta Coleção com o fim de que você possa obter todo o material e a orientação necessários para, finalmente, adquirir a formação de base, aquela que prepara e conduz aos estudos superiores e à vida refletida.

Trivium e Quadrivium:

Trivium e Quadrivium é o primeiro volume da Coleção 7 Artes Liberais e trata da doutrina geral das Artes Liberais.

O livro abre com uma introdução que discorre sobre a origem e a função da Coleção. Em seguida vêm as cartas ao aluno escritas pelo Prof. Clístenes Hafner Fernandes, as quais tratam dos diversos aspectos da pedagogia das Artes; na segunda parte do livro, as sete Artes são apresentadas uma a uma em detalhe, preparando o aluno para os livros específicos.

Além desse conteúdo, este primeiro volume traz no apêndice 5 obras clássicas sobre as Artes Liberais traduzidas pelo Prof. Clístenes; são opúsculos dos seguintes autores: Hugo de São Vítor, Rabano Mauro, Santo Alcuíno de Iorque, São Boaventura e Flávio Magno Aurélio Cassiodoro.

Gramática:

No primeiro livro sobre a Gramática, os temas são literatura e gramática do português. Estas disciplinas vêm para suprir o material e para conferir uma ordenação mais fina ao pensamento do estudante que está iniciando sua jornada intelectual pelas Artes Liberais.

Sabe-se bem que existe um déficit nos estudos literários, bem como no de gramática básica do português, no Brasil. Projetamos este volume com vistas a sanar estes problemas, antes de o aluno começar a avançar para águas mais profundas.

Este livro constitui-se num introito. A boa assimilação do seu conteúdo fará toda a diferença no prosseguimento dos estudos.

O terceiro e quarto livro da Coleção são os mais densos; eles reúnem uma gama de estudos que demandará muito tempo e esforço do aluno para dominá-la.

Estamos diante da mais grandiosa e influente obra didática que já existiu.

As Institutições Gramaticais de Manuel Álvares foram expressamente recomendadas na Ratio Studiorum para o ensino de latim em todos os colégios jesuítas. A obra recebeu nada mais, nada menos do que 530 edições em vinte e dois países, sendo a mais comentada e mais referida gramática latina de todos os tempos. Depois de ter caído no esquecimento de brasileiros e portugueses desde os tempos do Marquês do Pombal, chegou a hora de revermos o mais completo e eficaz curso de gramática já publicado na história.

A gramática de Álvares é dividida em três livros. Cada um trata de uma das partes da gramática: a etimologia, a sintaxe e a prosódia. Depois de 270 anos de exílio, a monumental obra de Manuel Álvares está de volta para terror dos pombalinos, e para nossa alegria. Em dois volumes majestosos de quase 900 páginas cada.

Arrematando os estudos de gramaticais, o aluno aprenderá a respeito da crítica dos poetas, uma disciplina que não tem o mesmo significado atualmente, mas é um aprofundamento em todos os aspectos de um texto literário.

Retórica:

No quinto livro da Coleção, apresentamos a doutrina retórica do grande Cipriano Soares, mestre jesuíta e um clássico da disciplina, em uma edição bilíngue.

O livro inicia com um tratado sobre a arte poética como ligação entre a gramática e a retórica, que mostra como as duas artes têm íntima conexão, revelando a transição de uma para outra a fim de que o aluno não fique boiando.

Segue-se a doutrina segura de Cipriano Soares comentada à luz de Aristóteles, Cícero e Quintiliano, os quais foram os autores que estruturaram a retórica no formato que se tornou célebre e aceito durante 2000 anos no Ocidente.

O sexto livro é uma antologia de discurso clássicos, que dá ênfase aos nomes de Demóstenes, Cícero e do Pe. Antônio Vieira, isto é, um grego, um romano e um cristão, perfazendo assim as culturas formativas da nossa civilização.

A seleta de discursos tem como finalidade ser matéria para assinalar e ilustrar os preceitos estudados no livro anterior. Finalizando o volume, há a parte que trata da arte da composição de discursos retóricos, com regras adaptadas ao mundo atual, sem, porém, perder de vista os cânones sempre aceitos.

Dialética:

Os livros sétimo e oitavo da Coleção são dedicados ao estudo da teoria da dialética. Isto se dará principalmente através do famoso tratado de Pedro da Fonseca, o Aristóteles português, que estará na íntegra em edição bilíngue, em latim e português. Caso o aluno ainda tenha problemas em alguma passagem mais difícil, os volumes contarão com aportes explicativos dos autores clássicos na matéria.

Exercitam-se os conceitos aprendidos, mediante a leitura ativa de diálogos de Platão. De maneira guiada, o aluno se imaginará no lugar dos personagens da trama, como se estivesse participando da discussão.

Assim, ele poderá aproximar-se do espírito dialético, que busca a verdade entre as contradições, onde quer que ela possa ser encontrada. Após essa experiência, ele fará o mesmo com as questões disputadas de Santo Tomás de Aquino e Duns Scotus — o que exigirá mais esforço, tanto imaginativo, quanto analítico.

Ao findar este volume, o aluno terá completado o curso do Trivium.

Quadrivium:

Eis os volumes do Quadrivium, o conjunto de disciplinas que tratam dos números aplicados às coisas.

A Aritmética sempre foi considerada a disciplina introdutória do Quadrivium, pois lida com os números enquanto tais. Para embasar este volume, adotamos o livro de Tomás Vicente Tosca, mestre da disciplina do Sec. XVIII, o qual, porém, segue de perto os clássicos do assunto. Aprofundam o texto principal passagens de Cassiodoro, Boécio, Santo Alcuíno de Iorque e Nicômaco de Gerasa. O volume único divide-se em três partes temáticas: a doutrina dos números enquanto quantidades puras, seguida pela exposição de suas qualidades simbólicas (aspecto esquecido ou desprezado, sem razão, nos dias de hoje), terminando com problemas matemáticos confeccionados para desenvolver agudez mental e maior intimidade com o cálculo.

No volume de Geometria o expoente maior, não pode haver qualquer dúvida, é Euclides, cujas lições nos serão trazidas ainda pelo mestre Tomás Vicente Tosca, o qual dará guiamento para que o aluno entenda bem do que se está tratando. Trar-se-ão, contudo, as definições iniciais que constam do livro original de Euclides, as quais fundamentam tudo que se segue, em três línguas, Grego, Latim e Português.

Na segunda parte do livro, o aluno estudará a teoria simbólica das figuras geométricas, com todas as ramificações cosmológicas que possuem e ênfase especial nos sólidos platônicos.

O assunto do décimo primeiro livro é a música. A espinha dorsal é a obra de José Bernardo Alzedo, teórico e compositor de primeira monta. Junto dele, trazem-se passagens de obras clássicas de Boécio, Santo Isidoro de Sevilha e Santo Agostinho de Hipona. Expõe-se, assim, a teoria musical de amplo espectro, isto é, que leva em conta não só a música instrumental, mas também as músicas, ou harmonias, que se encontram na alma e no mundo — esta última, a famosa música das esferas.

O volume de Astronomia está dividido em três partes: primeiramente, trata do aspecto material e visível do céu, a mecânica celeste; a parte intermediária visa a suprir a lacuna com referência aos conceitos da cosmologia e da física clássicas que ainda possam ser aproveitados; por fim, o aluno estudará o simbolismo do céu, que para os antigos era uma súmula do conhecimento, de onde se poderiam colher analogias para ilustrar argumentos, e até para se aproximar da verdade pela via da imaginação.

A primeira parte será aprendida por meio de um tratado que parte da descrição que Camões fez dos Céus para ensinar a antiga visão cosmológica, tratado chamado a Astronomia de Os Lusíadas. A segunda parte será apresentada principalmente por meio do Tratado clássico de Plotino, a segunda Enéada. A terceira parte se embasará de novo em Tomás Vicente Tosca.

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O Trivium Clássico - O lugar de Thomas Nashe no ensino de seu tempo. Marshall McLuhanEditora É Realizações, 2012.

Sinopse: Marshall McLuhan se mostra neste livro um historiador da cultura clássica e o arquiteto de um projeto educacional para as gerações futuras. Trata das disciplinas do trivium (gramática, lógica e retórica) em recortes temporais que vão até S. Agostinho, de S. Agostinho a Abelardo e, depois, de Abelardo a Erasmo. Por fim, dedica uma seção a Thomas Nashe, romancista e dramaturgo britânico contemporâneo de Shakespeare.





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Trivium de Santo Agostinho. Edições Kírion, 2021 e Edições Hugo de São Vitor, 2016 (texto latino)

Sinopse: Na primeira fase de sua vida, Santo Agostinho foi professor de gramática em Tagaste, e de retórica em Cartago, Roma e Milão; e foi Santo Ambrósio, mestre de retórica mais velho e experiente, a principal influência sobre o futuro bispo de Hipona. Portando em si, como excelente humanista, toda a cultura romana, a conversão do jovem retor africano no grande Padre Latino representou a assimilação do saber antigo pelo cristianismo, e a fundação da Idade Média européia.





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A Vida Intelectual: Seu espírito, suas condições, seus métodos. A.-D. Sertillanges. Editora É Realizações, 2010 e Edições Kírion, 2019.

Sinopse: A Vida Intelectual, do padre A.-D. Sertillanges, redigida originalmente em 1920, ainda se mantém atual para os leitores do novo milênio. Para aqueles que desejam não apenas um manual prático que permita esboçar orientações de como entrar na vida dos estudos, o livro vai além e também oferece um exemplo de vida bem-sucedida no mundo intelectual – a do próprio padre Sertillanges, que por meio de dicas preciosas permite e disponibiliza, para qualquer pessoa que tenha abertura e coragem necessárias, uma nova forma de viver que abrange gradualmente a dimensão intelectual e todos os percalços que essa vida traz consigo. Para aqueles que desejam não apenas um manual prático que permita esboçar orientações de como entrar na vida dos estudos, o livro vai além e também oferece um exemplo de vida bem-sucedida no mundo intelectual – a do próprio padre Sertillanges, que por meio de dicas preciosas permite e disponibiliza, para qualquer pessoa que tenha abertura e coragem necessárias, uma nova forma de viver que abrange gradualmente a dimensão intelectual e todos os percalços que essa vida traz consigo. Assim, o espírito de uma vida intelectual está no fato de que se ela transcende a vida prática, deve ser no sentido de propiciar um maior entendimento dela. Suas condições são os valores éticos, como a honestidade intelectual e a sinceridade. Seu método consiste nos exemplos que percorrem toda a escrita do padre Sertillanges. Este livro é dedicado a todos aqueles que desejam uma vida plena – em todas as suas potencialidades, e não há nada mais atual que esse desejo.

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De Magistro, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, Edições Kírion, 2017.

Sinopse: Esta edição bilíngue reúne dois livros de mesmo título: o De magistro de Santo Agostinho e a questão 11 do De veritate, o De magistro de Santo Tomás de Aquino. Separados por quase um milênio, esses dois textos carregam, compactamente, todo o problema do ensino no nível dos princípios, mirando o ponto central da atividade do magistério: é possível que um homem ensine outro? O De magistro de Agostinho é a transcrição de um diálogo com seu filho Adeodato, então com 15 anos, que veio a falecer no ano seguinte. O de Santo Tomás, por sua vez, é uma questão disputada, procedimento característico da escolástica Embora curtos, ambos merecem leitura repetida e constante meditação, a fim de que possamos captar as idéias de pedagogia e de verdade subjacentes a ambos, e descobrir, na profundidade e no alcance que têm em cada detalhe, tesouros de valor inestimável.


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As Sete Artes Liberais: Um Estudo sobre a Cultura Medieval. Paul Abelson. Edições Kírion, 2019

Sinopse: Este é um exame detalhado do material didático usado nas escolas medievais, com o intuito de compreender os objetivos, os limites e os traços característicos do ensino de cada uma das sete artes liberais. O autor parte do princípio de que a educação liberal da Idade Média foi um desdobramento do sistema grego e romano, alterado em vista dos ideais cristãos até atingir a forma estável que perdurou por séculos. Ele acaba por revelar, assim, a relação entre a concepção pedagógica e a riqueza da cosmovisão medieval. Serve ao estudioso como introdução à história e à concepção das artes liberais e como excelente base para mapear um estudo aprofundado de cada uma delas.




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Sobre O Modo de Aprender. Gilberto de Tournai. Edições Kírion, 2019.

Sinopse: Gilberto de Tournai nasceu no início do século XIII, que foi, sob muitos aspectos, o apogeu da civilização medieval, no qual traçou-se o destino intelectual da Europa. Foi frade franciscano, grande pregador e diretor espiritual, amigo e conselheiro do Rei São Luís IX e sucessor de São Boaventura como mestre regente dos franciscanos na Universidade de Paris. O tratado “Sobre o modo de aprender” é um retrato perfeito da educação medieval. Ele é a terceira parte de uma obra mais ampla, o “Rudimentum doctrinae”, a primeira tentativa sólida de compor uma enciclopédia pedagógica que abarcasse, sistematicamente, toda a teoria da educação. Fiel à tradição filosófica que vigorava na escola franciscana e aos ensinamentos dos mestres monásticos do século XII, como Hugo e Ricardo de São Vítor, frei Gilberto descreveu técnicas de estudo e traçou um plano de trabalho inteiramente voltados para o seu elevado ideal de aperfeiçoamento espiritual e impregnados do anseio de alcançar, através do estudo, a meta final de união com o próprio Deus.

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Meditar e aprender. Hugo de São Vítor. Edição bilíngue Latim-Português. Tradução: Roger Campanhari. Edições Kírion, 2024

Sinopse: Hugo de São Vítor foi certamente um dos homens mais célebres de seu tempo por suas virtudes e por sua ciência, o mais renomado de todos os vitorinos. Nascido na Saxônia em 1096, foi professor e diretor da escola do Mosteiro de São Vítor, além de prior deste mesmo mosteiro e bispo. Baseada na tradição cristã e nas Escrituras, toda a sua pedagogia visava formar os estudantes para alcançarem a contemplação, o último grau da Sabedoria — com a qual “tem-se um antegosto nesta vida do que será a recompensa futura” —, uma formação integral que proporcionasse a união com Deus.

Nos dois escritos aqui reunidos, o pequeno tratado Sobre o modo de aprender e meditar e o Opúsculo áureo sobre a arte de meditar, o mestre de São Vítor tratou propriamente da meditação. Se o princípio do conhecimento reside na leitura, que estimula o pensamento, a sua consumação está na meditação, na atenta e assídua recondução do pensamento com vistas a esclarecer o que é obscuro e penetrar o que está oculto. Hugo explica os diferentes gêneros de meditação e que frutos se podem tirar deles, e expõe, com uma descrição precisa e exemplos muito concretos, como devem operar nossas faculdades e como devemos proceder nesse labor, de tal modo que, “avançando sem desanimar, alcemos, no tempo devido, aquilo que vem depois”.

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A Instrução Dos Principiantes. Hugo de São Vítor. Edições Kírion, 2021.

Sinopse: Na Instrução dos principiantes, Hugo apresenta o treinamento em que eram conduzidos, sob a guia do mestre de noviços, os recém-chegados à escola, cujo objetivo era aprender “o bom termo e a medida adequada em todas as palavras e ações”, isto é, a disciplina: como se comportar e governar o corpo — no caminhar, nos gestos, na fala, no tratamento dos outros e nos modos à mesa. Esse aprendizado de autodomínio corporal era anterior ao estudo das letras descrito no Didascalicon, pois, segundo o mestre, “os movimentos desordenados do corpo refletem a corrupção e a dissolução da mente”, e, para ingressar no caminho da sabedoria, é preciso antes imprimir na mente, pela disciplina do corpo, a forma da virtude.



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Institutiones. Introdução às Letras Divinas e Seculares. Cassiodoro. Edições Kírion, 2018.

Sinopse: Com a queda do Império Romano, a transmissão de todo o saber antigo à Idade Média teve de ser operada por meio da laboriosa cópia dos manuscritos conservados nos mosteiros e nas igrejas e da elaboração de manuais e coletâneas. Ao lado de Marciano Capela, Boécio e Isidoro de Sevilha, Cassiodoro foi um dos próceres da cultura cristã. Conselheiro dos reis ostrogodos, fundou em 555 o mosteiro do Vivarium, embrião dos centros culturais medievais. Ali desenvolveu métodos e estabeleceu preceitos para a produção de códices fidedignos, agrupando em sua biblioteca tudo o que pôde colher do tesouro literário greco-romano. Foi Cassiodoro quem imprimiu à vida monástica do Ocidente o culto apaixonado dos livros.

Suas Institutiones, uma introdução ao estudo das letras, possuíam o objetivo primeiro de instruir os monges do Vivarium, mas acabaram como uma das obras mais influentes e difundidas na Idade Média. No primeiro livro, a Introdução às letras divinas, o pedagogo disserta sobre os textos da Sagrada Escritura, sobre seu estudo e seus comentadores; no segundo, Introdução às letras seculares, trata das sete artes liberais, fixadas mais tarde como o trivium e o quadrivium, a base mesma da educação oferecida nas escolas monásticas e catedrais e, posteriormente, em todas as universidades medievais.

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Proposta Paideia. Mortimer J. Adler. Edições Kírion, 2021.

Sinopse: A proposta Paidéia o projeto de Mortimer Adler para uma reforma radical do ensino público dos Estados Unidos. O filósofo partia do princípio de que uma sociedade democrática deve fornecer oportunidades educacionais iguais, não apenas proporcionando a mesma quantidade de ensino básico — isto é, o mesmo número de anos na escola —, mas também deve garantir a todos, sem exceção, uma educação da mesma qualidade. O programa Paidéia pretende estabelecer um plano de estudos que seja geral, e não especializado; liberal, e não vocacional; humanista, e não técnico. Apenas desse modo é possível atingir o significado das palavras paidéia e humanitas, ou seja, a erudição geral que todo ser humano deve possuir. Dividindo o ensino e o aprendizado em três modalidades — a instrução didática, expositiva; o treinamento, que se dá pela repetição; e o seminário, uma discussão à moda socrática —, o programa abrange o ensino de língua e literatura, matemática e ciências naturais, história e estudos sociais, educação física e artes manuais, e uma introdução geral ao mundo do trabalho; enfim, uma escolarização básica capaz de preparar toda criança para ser um eleitor instruído da democracia, ganhar a vida e viver bem. Publicado em 1982, o manifesto explicava e defendia a proposta, que depois foi completada, nos dois anos subseqüentes, pela discussão de suas questões práticas e dos problemas de sua implementação, e por ensaios complementares dos membros do Grupo Paidéia — além do próprio Adler, Charles van Doren, James O’Toole, Jacques Barzun e muitos outros — esclarecendo pontos específicos do programa. Este volume o leitor tem nas mãos traz, juntos, os três livros que delinearam a teora pedagógica de Mortimer Adler.

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As ferramentas perdidas da aprendizagemDorothy L. Sayers. Edições Kírion, 2023.

Sinopse“Vivemos por aí soltando frases sobre a importância da educação — soltando frases e, quando muito, uma graninha ou outra; adiamos a idade de saída da escola, planejamos a construção de instalações maiores, em melhores condições; os professores se acabam feito escravos, com toda a diligência do mundo, por horas e horas de trabalho extra, até que a responsabilidade se torna um fardo insuportável, um pesadelo; e mesmo assim, creio eu, todo esse esforço é jogado no lixo, porque nós perdemos as ferramentas da aprendizagem; e, na ausência delas, só o que podemos fabricar é uma versão estragada e em frangalhos daquilo que um dia foi a educação.” — Dorothy Sayers

“O diagnóstico de Dorothy Sayers é demolidor — e, como é evidente, aplica-se de modo preciso à situação da educação no Brasil: repetimos frases sobre a importância da educação, gastamos dinheiro, sobrecarregamos os professores, sem percebermos que deixamos de lado o mais importante: o ensino das ferramentas de aprendizagem. Aquilo a que chamamos ‘educação’ não passa de escolarização — uma educação imperfeita, e muitas vezes uma verdadeira deseducação.” — Gustavo Bertoche, na introdução

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Carlos Magno e a restauração da educaçãoJames Bass Mullinger. Edições Kírion, 2022.

Sinopse: Pode-se afirmar com tranqüilidade que a história do imperador Carlos Magno, cujo gênio penetrante soube reconhecer num jovem clérigo inglês, Alcuíno de York, a promessa de uma ajuda eficaz para um gigantesco renascimento cultural, se confunde com a própria história da Europa, e que a história de suas escolas não difere da própria história da nossa civilização.

O período histórico que este livro retrata é aquele em que se encontra a verdadeira fronteira entre a história antiga e a moderna, e que encerra a chave de compreensão para aquelas tradições que, desde então, prevaleceram na educação ocidental, e que não podem, ainda hoje, ser menosprezadas ou consideradas ultrapassadas.



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A Inveja dos Anjos — as Escolas Catedrais e os Ideais Sociais na Europa Medieval (950 – 1200)C. Stephen Jaeger. Edições Kírion, 2019.

Sinopse: Antes do surgimento das universidades, a máxima das escolas catedrais do século XI era formar os alunos nas “letras e costumes”, ou seja, aperfeiçoar neles não só o conhecimento teórico, mas sobretudo a postura, os modos e a eloquência. Muitos foram os jovens que ingressaram nessas escolas para de lá ressurgirem como grandes bispos, conselheiros reais, santos e beatos. Com frequência referiam-se a esses centros de ensino como “uma segunda Atenas”, “uma segunda Roma”; os mestres eram chamados de “nosso Platão”, “nosso Sócrates”, “um segundo Cícero”. Seu princípio fundamental era que a verdade se expressa na personalidade humana, em sua conduta, em seu porte, e sua pedagogia se baseava na irradiação, a partir da presença física do mestre, de uma virtude transformadora. Tão maravilhosa é essa força que os próprios anjos poderiam invejar dos homens esse magnífico dom. Neste livro, Jaeger explora esse intrigante capítulo da história da educação e inaugura uma nova visão sobre a vida intelectual e social dos séculos XI e XII na Europa. “visitaremos aqui as escolas catedrais do século XI. Nós as tomaremos desde o ponto de vista dos seus objetivos, valores e ideais. Essas instituições foram humanistas em diversos sentidos da palavra: miravam o desenvolvimento do indivíduo como um todo, sua integração à sociedade, seu papel na política e na administração; buscavam humanizar o indivíduo, e por meio do ser humano individual, a sociedade. Baseadas em modelos clássicos, cultivavam a poesia, a oratória e a conduta”.

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A falácia socioconstrutivista: Por que os alunos brasileiros deixaram de aprender a ler e escreverKátia Simone Benedetti. Edições Kírion, 2020.

Sinopse: Os dois grandes flagelos da educação brasileira, seja pública ou privada, são a indisciplina e a incapacidade de leitura e escrita dos alunos, que chegam aos anos finais do ensino fundamental sem as noções mais básicas do processo de alfabetização. Isso é resultado da maneira como foram alfabetizados, e de como o ensino da língua foi abordado pelos currículos do ensino fundamental. São seqüelas decorrentes da metodologia global socioconstrutivista e da abordagem sociointeracionista do ensino de língua portuguesa, ambas inteiramente contrárias à natureza neurobiológica do aprendizado da escrita e da compreensão leitora. Nesta obra, procuro trazer para a educação o que as ciências do cérebro, em especial a psicologia cognitiva e as neurociências da aprendizagem, têm descoberto sobre a natureza do aprendizado da leitura e da escrita, e esclarecer por que os alunos acabam chegando à universidade sem saber ler e escrever.

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Sobre alguns autores:

Flávio Aurélio Cassiodoro nasceu em 490 d.C. em Squillace, na Itália. Figura importante no fim do Império Romano, substituiu Boécio como conselheiro do rei ostrogodo Teodorico, o Grande. Em 555 fundou o mosteiro do Vivarium, embrião dos centros culturais medievais. Ali desenvolveu métodos e estabeleceu preceitos para a produção de códices fidedignos, agrupando em sua biblioteca tudo o que pôde colher do tesouro literário greco-romano, permitindo que todo o saber antigo passasse em herança à Idade Média por meio da laboriosa cópia dos manuscritos conservados nos mosteiros e nas igrejas. Foi ele quem imprimiu à vida monástica do Ocidente a marca do estudo das letras, sagradas e profanas. Faleceu em 591 d.C.

A.-D. Sertillanges, Filósofo, teólogo e padre dominicano, foi um dos maiores expoentes do neotomismo na primeira metade do século XX, exercendo grande influência sobre Étienne Gilson e Jacques Maritain. Também estudou Aristóteles e Blaise Pascal. Foi membro da Académie des Sciences Morales et Politiques e grande amigo de Henri Bergson.

Irmã Miriam Joseph

Interessada desde muito nova pelas letras e pela arte da comunicação, graduou-se em Jornalismo, mestrou-se em Inglês pela Universidade de Notre Dame e doutorou-se em Inglês e Literatura Comparada, com uma tese sobre William Shakespeare, pela Universidade de Columbia. Também estudou na Universidade de Chicago, sob os auspícios de Mortimer Adler. Pertenceu à Congregação das Irmãs da Santa Cruz e escreveu inúmeros artigos sobre Shakespeare e o trivium.

Santo Agostinho, Religioso e teólogo cristão. Doutor da Igreja, sistematizou a doutrina cristã com enfoque neoplatônico.

"O último dos antigos" e o "primeiro dos modernos", santo Agostinho foi o primeiro filósofo a refletir sobre o sentido da história, mas tornou-se acima de tudo o arquiteto do projeto intelectual da Igreja. Católica.

Aurélio Agostinho, em latim Aurelius Augustinus, nasceu em Tagaste, atualmente Suk Ahras, na Argélia, em 13 de novembro de 354, filho de Patrício, homem pagão e de posses, que no final da vida se converteu, e da cristã Mônica, mais tarde canonizada. Agostinho estudou retórica em Cartago, onde aos 17 anos passou a viver com uma concubina, da qual teve um filho, Adeodato. A leitura do Hortensius, de Cícero, despertou-o para a filosofia. Aderiu, nessa época, ao maniqueísmo, doutrina de que logo se afastou. Em 384 começou a ensinar retórica em Milão, onde conheceu Santo Ambrósio, bispo da cidade.

Cada vez mais interessado pelo cristianismo, Agostinho viveu longo conflito interior, voltou-se para o estudo dos filósofos neoplatônicos, renunciou aos prazeres físicos e em 387 foi batizado por Santo Ambrósio, junto com o filho Adeodato. Tomado pelo ideal da ascese, decidiu fundar um mosteiro em Tagasta, onde nascera. Nessa época perdeu a mãe e, pouco depois, o filho. Ordenado padre em Hipona (391), pequeno porto do Mediterrâneo, também na atual Argélia, em 395 tornou-se bispo-coadjutor de Hipona, passando a titular com a morte do bispo diocesano Valério. Não tardou para que fundasse uma comunidade ascética nas dependências da catedral.

Em sua vida e em sua obra, Santo Agostinho testemunha acontecimentos decisivos da história universal, com o fim do Império Romano e da antiguidade clássica. O poderoso estado que durante meio milênio dominara a Europa estava a esfacelar-se em lutas internas e sob o ataque dos bárbaros. Em 410 santo Agostinho viu a invasão de Roma pelos visigodos e, pouco antes de morrer, presenciou o cerco de Hipona pelo rei dos vândalos, Genserico. Nesse clima, em que os cismas e as heresias eram das poucas coisas a prosperar, ele estudou, ensinou e escreveu suas obras.

Pensamento. As obras mais importantes de Santo Agostinho são De Trinitate (Da Trindade), sistematização da teologia e filosofia cristãs, divulgada de 400 a 416 em 15 volumes; De civitate Dei (Da cidade de Deus), divulgada de 413 a 426, em que são discutidas as questões do bem e do mal, da vida espiritual e material, e a teologia da história; Confessiones (Confissões), sua autobiografia, divulgada por volta de 400; e muitos trabalhos de polêmica (contra as heresias de seu tempo), de catequese e de uso didático, além dos sermões e cartas, em que interpreta minuciosamente passagens das Escrituras.

No pensamento de Santo Agostinho, o ponto de partida é a defesa dos dogmas (pontos de fé indiscutíveis) do cristianismo, principalmente na luta contra os pagãos, com as armas intelectuais disponíveis que provêm da filosofia helenístico-romana, em especial dos neoplatônicos como Plotino. Para pregar o novo Evangelho, é indispensável conhecer a fundo as Escrituras, que só podem ser bem interpretadas através da fé, pois apenas esta sabe ver ali a revelação de verdades divinas. Compreender para crer e crer para compreender, tal é a regra a seguir.

Baseado em Plotino, Santo Agostinho acha que o homem é uma alma que faz uso de um corpo. Até naquele conhecimento que se adquire pelos sentidos, a alma se mantém em atividade e ultrapassa o corpo. Os sentidos só mostram o imediato e particular, enquanto a alma chega ao universal e ao que é de pura compreensão, como os enunciados matemáticos. Mas se não é através dos sentidos, por qual via a alma consegue alcançar as verdades eternas? Será através do sujeito particular e contingente, ou seja, o homem que muda, adoece e morre?

Tudo indica que, se o homem mutável, destrutível, é capaz de atingir verdades eternas, sua razão deve ter algo que vai além dela mesma, não se origina no homem nem no mundo externo, mas em Deus. Portanto, Deus faz parte do pensamento e o supera o tempo todo. Desse modo só pode ser achado e conhecido no fundo de cada um, no percurso que se faz de fora para dentro e das coisas inferiores para as coisas superiores. Ele não pode ser dito ou definido: é o que é, em todos os tempos e em qualquer lugar (é clara, nessa concepção, a influência de Platão, que Santo Agostinho assume em vários pontos de sua obra).

Outra contribuição decisiva é sua doutrina sobre a Santíssima Trindade. Para Agostinho a unidade das três pessoas é perfeita: não se podem separar, nem uma se subordina à outra, como defenderam Orígenes e Tertuliano, mas a natureza divina seria anterior ao aparecimento das três pessoas; estas se apresentam como os três modos de se revelar o mistério de Deus. A alma, para Santo Agostinho, se confunde com o pensamento, e sua expressão, sua manifestação é o conhecimento: por meio deste a alma -- ou o pensamento -- se ama a si mesma. Assim, o homem recompõe nele próprio o mistério da Trindade e se vê feito à imagem e semelhança de Deus: se ele ama e se conhece dessa maneira, ele conhece e ama a Deus, conseqüentemente mais interior ao ser humano do que este mesmo.

O famoso cogito de Descartes ("Penso, logo existo"), em que a evidência do eu resiste a toda dúvida, é genialmente antecipado por santo Agostinho em seu "Se me engano, sou; quem não é não pode enganar-se". Ele valoriza, pois, a pessoa humana individual até quando erra (o que, neste aspecto, não a torna diferente da que acerta). Talvez por isso dê o mesmo peso à parte humana e à parte divina no que diz respeito à encarnação do Cristo.

A salvação do homem, na teologia agostiniana, é algo completamente imerecido e que depende tão só da graça de Deus; graça que, no entanto, se manifesta aos homens por meio dos sacramentos da Igreja visível, católica. Importantes para a salvação, esses sacramentos compreendem todos os símbolos sagrados, como o exorcismo e o incenso, embora a eucaristia e o batismo sejam os principais para ele.

Da mesma forma que concebe a natureza divina, Santo Agostinho concebe a criação, idéia pouco tratada pelos gregos e característica dos cristãos. As coisas se originaram em Deus, que a partir do nada as criou. Pois o que muda e se move, o que é relativo e passa ou desaparece requer o imutável e o absoluto, essência do próprio Deus, que criou as coisas segundo modelos eternos como ele mesmo. Assim, o que o platonismo chamava de lugar do céu passa a ser, no pensamento agostiniano, a presença de Deus. Tudo o que existe no mundo foi criado ao mesmo tempo, em estado de germe e de semente. Como estes existem desde o início, a história do mundo evolui continuamente, mas nada de novo se cria. Entre os seres da criação existe uma hierarquia, em que o homem ocupa o segundo lugar, depois dos anjos.

Santo Agostinho afirma-se incapaz de solucionar a questão da origem da alma e, embora tão influenciado por Platão, não acha a matéria por si mesma condenável, assim como não encara como castigo a união da alma com o corpo. Não seria este, como se disse tanto, a prisão da alma: o que faz do homem prisioneiro da matéria é o pecado, do qual deve libertar-se pela vida moral, pelas virtudes cristãs. O pecado leva o corpo a dominar a alma; a religião, porém, é o contrário do pecado, é a dominação do corpo pela alma, que se orienta livremente para Deus, assistida pela graça.

Uma das mais belas concepções de Santo Agostinho é a da cidade de Deus. Amando-se uns aos outros no amor a Deus, os cristãos, embora vivam nas cidades temporais, constituem os habitantes da eterna cidade de Deus. Na aparência, ela se confunde com as outras, como o povo cristão com os outros povos, mas o sentido da história e sua razão de ser é a construção da cidade de Deus, em toda parte e todo tempo. A obra de santo Agostinho, em si mesma imensa, de extraordinária riqueza, antecipa, além disso, o cartesianismo e a filosofia da existência; funda a filosofia da história e domina todo o pensamento ocidental até o século XIII, quando dá lugar ao tomismo e à influência aristotélica. Voltando à cena com os teólogos protestantes (Lutero e, sobretudo, Calvino), hoje é um dos alicerces da teologia dialética. Santo Agostinho morreu em Hipona, em 28 de agosto de 430. E nessa data, 28 de agosto, é festejado como doutor da Igreja.

(retirado de http://www.veritatis.com.br/patristica/biografias/8477-biografia-de-santo-agostinho) [link atual: https://www.veritatis.com.br/biografia-de-santo-agostinho/]

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