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Galileu Galilei, a Ciência e a Igreja

Retrato de Galileu Galilei explicando suas
teorias na Universidade de Pádua - Félix Parra
A Igreja e a ciência

Terá sido apenas coincidência que a ciência moderna se desenvolvesse em um ambiente em ampla medida católico, ou houve coisa coisa no princípio catolicismo que possibilitou o seu progresso? O simples fato de levantarmos esta questão já significa transgredir as fronteiras da opinião em voga. No entanto, são cada vez em maior número os estudiosos que a levantam, e as suas respostas podem surpreender-nos.
Não é um assunto secundário. Na mentalidade popular, a alegada hostilidade da Igreja Católica para com a ciência talvez constitua o seu principal ponto fraco. O caso Galileu, na versão deturpada com a qual a maior parte das pessoas está familiarizada, é largamente responsável pela crença tão difundida de que a Igreja obstruiu o avanço da pesquisa científica. Porém, ainda que esse caso tenha sido bem menos ruim do que as pessoas pensam, o cardeal John Henry Newman, famoso converso do anglicanismo do século XIX, achou revelador que seja esse praticamente o único exemplo que sempre acode à mente das pessoas quando se pensa na relação entre a Igreja e ciência.

Galileu

A controvérsia de Galileu centrou-se em torno do trabalho do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543). Alguns estudiosos modernos de Copérnico afirmam que era padre, mas não existe nenhuma evidência direta de que tivesse chegado a receber as ordens maiores, embora tivesse sido nomeado cônego do cabido de Frauenburg no final da década de 1490, Fosse qual fosse o seu estado estado clerical, porém, o certo é que nasceu e se criou em uma família profundamente religiosa, na qual todos pertenciam à Ordem Terceira de São Domingos, a associação de fiéis vinculada à Ordem que estendera aos leigos a oportunidade de participar da espiritualidade e da tradição dominicanas [1].

Como cientista, Copérnico era uma figura de renome nos meios eclesiásticos, tendo sido consultado pelo V Concílio de Latrão (1512-1517) sobre a reforma do calendário. A pedido dos amigos, de colegas acadêmicos e de vários prelados, que o instalavam a publicar o seu trabalho, Copérnico acabou e publicou Seis Livros sobre as Revoluções das Órbitas Celestes, que dedicou ao papa Paulo III, em 1543. Antes ainda, em 1531, tinha redigido para os amigos um sumário do seu sistema heliocêntrico que viria a atrair as atenções até do papa Clemente VII; este convidaria o humanista e advogado Johann Albert Widmanstadt a dar uma conferência pública no Vaticano sobre o tema, ficando muito bem impressionado com o que ouviu [2].

No seu trabalho, Copérnico conservou muito da astronomia convencional da sua época, a qual se devia quase por completo a Aristóteles e, acima de tudo, a Ptolomeu (87-150 d.C.), um brilhante astrônomo grego para quem o universo era geocêntrico. A astronomia copernicana partilhou com a dos seus precursores gregos alguns aspectos, tais como a perfeita esfericidade dos corpos celestes, as órbitas circulares e a velocidade constante dos planetas. Mas introduziu uma diferença significativa ao situar o Sol, ao invés da Terra, no centro do sistema; no seu modelo, a Terra e os outros planetas moviam-se em torno do Sol.

Apesar do feroz ataque dos protestantes, que viam no sistema copernicano uma frontal oposição à Sagrada Escritura, esse sistema não foi objeto de uma censura católica formal até que surgiu o caso Galileu.

Galileu Galilei (1564-1642), além dos seus trabalhos no campo da física, fez com o seu telescópio algumas observações astronômicas importantes que contribuíram para abalar o sistema ptolomaico. Observou montanhas na lua, com o que derrubava a velha certeza de que os corpos celestes eram perfeitamente esféricos. Descobriu as quatro luas que orbitam em torno de Júpiter, demonstrando não só a presença de fenômenos celestes que Ptolomeu e os antecessores não haviam percebido, mas também que um planeta, movendo-se na sua órbita, não deixa para trás os satélites. (Um dos argumentos contrários ao movimento da Terra era o de que a Lua seria deixada para trás). A descoberta das fases de Vênus foi outra peça de evidência em favor do sistema copernicano.

Inicialmente, Galileu e a sua obra foram bem acolhidos e festejados por eminentes eclesiásticos. Em fins de 1610, o pe. Cristóvão Clavius [3] comunicava por carta a Galileu que os seus amigos astrônomos jesuítas haviam confirmados suas descobertas. Quando foi a Roma no ano seguinte, o astrônomo foi saudado com entusiasmo tanto pelos religiosos como por personalidades leigas. Escreveu a um amigo: <<Tenho sido recebido e favorecido por muitos cardeais ilustres, prelados e príncipes desta cidade>>. O papa Paulo V concedeu-lhe uma longa audiência e os jesuítas do Colégio Romano organizaram um dia de atividades em homenagem às suas descobertas.

Galileu estava encantado: perante uma audiência de cardeais, matemáticos e líderes civis, alguns dos pes. Grienberger [4] e Clavius discorreram sobre as descobertas do astrônomos. Tudo parecia favorecê-lo. Quando, em 1612, publicou o seu História e demonstrações em torno das marchas solares e dos seus acidentes, em que pela primeira vez aderia publicamente ao sistema copernicano, uma das muitas e entusiásticas cartas de congratulação que recebeu veio de ninguém menos que o cardeal Maffeo Barberini, futuro papa Urbano VIII [5].

A Igreja não fazia objeção ao uso do sistema copernicano como um modelo teórico, como uma hipótese cuja verdade literal não tinha sido comprovada [6], pois efetivamente explica os fenômenos celestes de maneira mais elegante e precisa que o sistema ptolomaico. Pensava-se que não havia nenhum mal em apresentá-lo e usá-lo como um sistema hipotético.

Galileu, porém, acreditava que o sistema copernicano era literalmente verdadeiro, e não uma simples hipótese que fornecesse previsões precisas, mas não dispunha de evidências adequadas que respaldassem a sua crença. Assim, por exemplo, argumentava que o movimento das marés constituía uma prova do movimento da Terra, argumento que hoje, curiosamente, os cientistas consideram ridículo. Não era capaz de responder à objeção dos geocentristas -- que vinha de Aristóteles -- de que, se a Terra se movia, então deveria ser possível observar uma mudança de paralaxe quando observássemos as estrelas, coisas que não acontecia [7]. No entanto, apesar da falta de provas estritamente científicas, Galileu insistiu na verdade literal do sistema copernicano e recusou-se a aceitar um compromisso pelo qual o copernicanismo deveria ser ensinado como hipótese até que pudesse apoiar-se em evidências conclusivas. Quando foi mais longe ainda e sugeriu que, pelo contrário, eram os versículos da Sagrada Escrituras que deviam ser reinterpretados, passou a ser visto como alguém que usurpara a autoridade dos teólogos.

Jerome Langford, um dos mais judiciosos estudiosos modernos deste assunto, fornece-nos um sumário muito útil da posição de Galileu:

<<Galileu estava convencido de possuir a verdade, mas não tinha provas objetivas para convencer os homens de mente aberta. É uma completa injustiça afirmar, como fazem alguns historiadores, que ninguém ouvia os seus argumentos e que nunca  teve uma oportunidade. Os astrônomos jesuítas tinham confirmado as suas descobertas e esperavam ansiosamente por provas ulteriores para poderem abandonar o sistema de Tycho [8] e passarem a apoiar com segurança o copernicanismo. Muitos eclesiásticos influentes acreditavam que Galileu devia estar certo, mas tinham de esperar por mais provas>>.

<<Como é evidente, não é inteiramente correto pintar Galileu como uma vítima inocente do preconceito e da ignorância do mundo", acrescenta Langford. "Parte da culpa dos acontecimentos subsequentes deve ser atribuída ao próprio Galileu, que recusou qualquer ressalva e, sem provas suficientes, fez derivar o debate para o terreno próprio dos teólogos>> [9]

Foi, portanto, a insistência de Galileu sobre a verdade literal do copernicanismo que causou a dificuldade, uma vez que, aparentemente, o modelo heliocêntrico parecia contradizer certas passagens da Escritura. A Igreja, sensível às acusações protestantes de que os católicos não faziam muito caso da Bíblia, hesitou em acolher a sugestão de que se pusesse de lado o sentido literal da Escritura -- que, às vezes, parecia implicar na ausência de movimento da Terra -- para acomodar uma teoria científica sem provas [10]. Mesmo assim, aqui a Igreja não foi inflexível. Como comentou na época o célebre cardeal Roberto Belarmino,

<<Se houvesse uma verdadeira prova de que o Sol é o centro do universo, de que a Terra está no terceiro céu e de que o Sol não gira em torno da Terra, mas a Terra torno do Sol, então deveríamos agir com grande circunspeção ao explicar passagens da Escritura que parecem narrar o contrário, e admitir que não as havíamos entendido, em vez de declarar como falsa uma opinião que se prova verdadeira. Mas eu mesmo não devo acreditar que existam tais provas enquanto não me sejam mostradas>> [11].

A abertura de princípio do cardeal Belarmino a novas interpretações da Escritura à luz dos acréscimos feitos ao universo do conhecimento humano não era nada de novo. Santo Alberto Magno era do mesmo parecer: <<Acontece com frequência>>, escreveu certa vez, <<que surge alguma questão sobre a terra, o céu ou outros elementos deste mundo, a respeito da qual um não-cristão possui conhecimentos derivados dos mais acurados raciocínios ou observações. Neste caso, deve-se evitar cuidadosamente, porque seria muito desonroso e prejudicial para fé, que um cristão, ao falar dessas matérias de acordo com o que pensa que dizem as Sagradas Escrituras, seja ouvido por um não-crente a dizer tais tolices que esse não-crente -- percebendo que o outro está tão afastado da realidade como o leste o está do oeste -- quase não conseguisse conter o riso>> [12]. Também São Tomás de Aquino advertiu sobre as consequências de se querer sustentar uma determinada interpretação da Sagrada Escritura a respeito da qual tivessem surgido sérios motivos para pensar que não era correta:

<<Primeiro, é preciso crer que a verdade da Escritura é inviolável. Segundo, quando há diferentes maneiras de explicar um texto da Escritura, nenhuma das interpretações particulares deve ser sustentada com tanta rigidez que, se argumentos convincentes mostrarem que é falsa, alguém ouse insistir em que, mesmo assim, esse ainda é o sentido correto do texto. Caso contrário, os não-crentes desprezarão a Sagrada Escritura e o caminho da fé se fechará para eles>> [13].

Em 1616, depois de ter ensinado pública e insistentemente a teoria copernicana, Galileu foi avisado pelas autoridades da Igreja de que devia parar de sustentá-la como verdade, embora fosse livre para apresentá-la como hipótese. Galileu concordou e prosseguiu com os seus trabalhos.

Em 1624, fez outra viagem a Roma, onde foi novamente recebido com grande entusiasmo e procurado por influentes cardeais desejosos de discutir com ele questões científicas. O papa Urbano VIII deu-lhe muitos presentes valiosos e emitiu um breve de recomendação ao grão-duque da Toscana em que o reconhecia como um homem “cuja fama brilha no céu e se espalha por todo o mundo". Comentou com ele, em particular, que a Igreja não tinha declarado herético o copernicanismo e que nunca o faria.

No entanto, o Diálogo sobre os dois grandes sistemas do mundo, que Galileu publicou em 1632 e fora escrito a pedido do papa, ignorou a instrução de que o copernicanismo devia ser tratado como hipótese e não como verdade estabelecida [14]. Para sua infelicidade, em 1633 o astrônomo foi declarado suspeito de heresia e proibido de publicar escritos sobre o tema. Continuou a produzir outras obras, aliás ainda melhores e mais importantes, particularmente os seus Discursos e demonstrações matemáticas em torno de duas novas ciências (1635). Mas essa censura insensata machucou por muito tempo a reputação da Igreja.

É importante, porém, não exagerar o que aconteceu. Como explica J.L Heilbron:

<<Os contemporâneos bem informados foram da opinião de que a alusão à heresia no caso de Galileu ou Copérnico não tinha nenhum alcance geral ou teológico. Em 1642, Gassendi observou que a decisão dos cardeais, embora importante para os fiéis, não teve a categoria de um artigo de fé; em 1651, Riccioli afirmou que o heliocentrismo não era uma heresia; em 1675, Mengoli declarou que as interpretações da Escritura só podem obrigar os católicos se forem aprovadas em um concílio geral; e em 1678, Baldigiani acrescentou que não havia ninguém que não soubesse disso” [15].

O certo é que os cientistas católicos, muitos deles jesuítas ou membros de outras Ordens religiosas, continuaram a fazer suas pesquisas sem nenhum tipo de entraves, cuidando apenas de tratar como hipótese o movimento da terra, como aliás já o tinha recomendado o decreto da Santa Sé de 1616. Um decreto de 1633, pouco posterior ao processo, excluiu das discussões acadêmicas qualquer menção ao movimento da terra; no entanto, cientistas como o pe. Rogério Boscovich continua a usar nas suas obras a ideia de uma terra em movimento, por isso os historiadores especulam que se tratava apenas de um reforço da censura original e era <<dirigido a Galileu Galilei pessoalmente>>, não aos cientistas católicos como um todo [16].

De qualquer modo, a condenação de Galileu, mesmo que enquadrada no seu contexto, tão distante da colocação exagerada e sensacionalista da mídia, criou embaraços à Igreja e deu origem ao mito de que ela seria hostil à ciência [17].


Notas:

[1] Cf. por exemplo J.G. Hagen, <<Nicolaus Copernicus>>, em Catholic Encyclopedia.

[2] Jerome J. Langford OP, Galileo, Science and the Church, Desclée, New York, 1966, pág. 35.

[3] O pe. Cristóvão Clavius (1538-1612), um dos grandes matemáticos do seu tempo, havia chefiado a comissão encarregada de elaborar o calendário gregoriano, que entrou em vigor em 1582, eliminando as imprecisões que afetavam o antigo calendário juliano. Os seus cálculos em relação à duração do ano solar e ao número de dias necessários para manter o calendário ajustado ao ano solar -- saltar noventa e sete dias a cada quatrocentos anos -- foram de tal precisão que até hoje os estudiosos não sabem como conseguiu realizá-los (cf. Joseph E. MacDonnell, Jesuit Geometers, pág. 19).

[4] O pe. Cristoph Grienberger (1531-1636), que comprovou pessoalmente a descoberta das luas de Júpiter por Galileu, era um competente astrônomo, inventor da montagem equatorial, que fazia girar um telescópio sobre um eixo paralelo ao da Terra. Também contribuiu para o desenvolvimento do telescópio de refração que se utiliza hoje em dia (ibid.).

[5] Cf. Jerome J. Langford, Galileo, Science and the Church, págs. 45 a 52.

[6] É precisamente o que era na época. A rotação da terra e o heliocentrismo só vieram a ser comprovados experimentalmente em 1851, com o pêndulo que Léon Folcault pendurou do ápice do domo do Panteão de Paris (N. do E.).

[7] Paralaxe é o deslocamento aparente que se deveria observar na posição de umas estrelas em relação às outras por causa da mudança de posição do observador. O argumento diz que, se a Terra se move em torno do Sol, as estrelas (não os planetas) deveriam aparecer em posições diferentes ao longo do ano, à medida que o nosso ponto de observação delas mudasse com o deslocamento da Terra, e isso não acontece. Na realidade, até a época de Galileu não se podia observar nenhuma mudança de paralaxe porque os instrumentos de que se dispunha -- ou o olho humano -- não eram precisos o suficiente; além disso, a distância das estrelas fixas mais próximas é enorme, de maneira que a paralaxe é extremamente pequena (N. do E.).

[8] Tycho Brahe (1546-1601) propôs um sistema astronômico que se situava mais ou menos entre o geocentrismo ptolomaico e o heliocentrismo copernicano. Nesse sistema, todos os planetas, com exceção da Terra, giravam em todo do Sol, mas o Sol girava em todo da Terra, que permanecia estacionária. 

[9] Cf. Jerome J. Langford, Galileo, Science and the Church, págs. 68-69.

[10] Cf. Jacques Barzun, From Dawn to Decadence, Harper Collins, New York, 2001, pág. 40; um bom resumo deste assunto aparece em H.W Crocker III, Triumph, Prima, Roseville, California, 2001, pág. 309-11

[11] James Brodrick, The Life and Work of Blessed Robert Francis Cardinal Bellarmine, SJ, 1542-1621, vol. 2. Burns, Oates and Washbourne, Londres, 1928, pág. 359.

[12] James J. Walsh, The Popes and Science, Fordham University Press, New York, 1911, págs. 296-97.

[13] Cit. por Edward Grant, “Science and Technology in the Middle Ages”, em David C. Lindberg e Ronald L. Numbers, eds., God and Nature: Historical Essays on the Encounter Between Christianity and Science, University of California Press, Berkeley, 1986, pág. 63.

[14] Anos mais tarde, o pe. Griemberger comentou que, se Galileu tivesse tratado as suas conclusões como hipóteses, poderia ter escrito qualquer coisa que quisesse (cfr. Joseph MacDonnel, Jesuit Geometers, Apêndice 1, 6-7).

[15] J.L Heilbron, The Sun in the Church, pág. 203.

[16] Zdenek Kopal, “The Contribution of Boscovich to Astronomy and Geodesy”, em Lancelot Law Whyte, ed., Roger Joseph Boscovich, S.J, F. R.S., 1711-1787, Fordham University Press, New York, 1961, pág. 175.

[17] Para uma narrativa mais completa da vida de Galileu e uma análise mais detalhada da condenação, pode-se ver Jorge Pimentel Cintra, Galileu, 2ª. ed. , Quadrante, São Paulo, 1995 (N do E.).

***

Trecho retirado do livro Como a Igreja construiu a civilização ocidentalThomas E. Woods, Jr. Quadrante, 2008.

Leia mais em Galileu Galilei à luz da História e da Astronomia.

Leia mais em O Heliocentrismo: O cônego Nicolau Copérnico.

Leia mais em Nicolau de Oresme, precursor de Copérnico.

Leia mais em Introdução Astronomia Clássica.


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A Educação no Brasil - por Ruy de Ayres Bello

A Primeira Missa no Brasil,
quadro de Victor Meirelles (1860)

1. A EDUCAÇÃO NO BRASIL-COLÔNIA

A história da educação no Brasil começa com o ato de D. João III determinando a vinda dos padres jesuítas para a catequese dos primitivos habitantes do país. Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil com o governador Tomé de Sousa, em 1549, tendo como superior o padre Manuel da Nóbrega. Foram eles os padres Leonardo Nunes, Antônio. Pires, João Aspicuelta Navarro e os noviços Vicente Rodrigues e Diogo Jácome. Em 1550 vieram os padres Afonso Brás, Francisco Pires, Salvador Rodrigues e Manuel Paiva. Com esses novos elementos, pôde o padre Nóbrega fundar a primeira escola jesuíta do Brasil, um orfanato, localizado na Bahia e que se denominou de “Colégio dos Meninos de Jesus”. A este se seguiu, em 1553, o “Colégio dos Meninos de Jesus de S. Vicente”.

Numerosos estabelecimentos da mesma natureza foram, em breve, criados nos centros mais populosos da colônia.

Primitivamente, as condições materiais desses estabelecimentos eram as mais rudimentares (1). A matéria de ensino constava de catecismo, leitura escrita e cálculo. Material didático não existia. As lições eram preparadas em retalhos de papel que se distribuíam entre os alunos.

Como os índios não mandavam espontaneamente os seus “curumis” para a escola, os padres eram obrigados a caminhar grandes distância para recrutar alunos por entre as aldeias indígenas.

A finalidade da Companhia de Jesus não era, porém, o ensino primário, sim o secundário. Por essa razão, o “Colégio dos meninos de Jesus”, da Bahia, foi, em 1556, elevado a colégio secundário, de acordo com o plano pedagógico da Companhia, passando a denominar-se “Colégio de Jesus”. Dentro em breve, o mesmo aconteceu a todos os outros colégios jesuítas.

Pedagogos realistas, adotavam os jesuítas práticas educativas de acordo com a mentalidade dos índios e as realidades ambientes. Assim, foi que utilizaram. a música, o teatro, as festas pomposas e barulhentas, tão do gosto dos indígenas (2), como meios pedagógicos.

Apesar das necessidades encontradas, o trabalho educativo dos jesuítas produziu os melhores resultados. Segundo Afrânio Peixoto, decorridos vinte anos da vinda dos jesuítas, já havia nos seus colégios de S. Paulo, Rio, Bahia e Pernambuco “lentes que lêem gramática, lógica, latim e até uma hora de poesia do 2º livro da “Eneida”. Escrevendo para seus superiores do reino, podia Anchieta informar que os seus discípulos brasileiros sabiam melhor o vernáculo e o latim, de que muitos portugueses (3).

À proporção que a Colônia se desenvolvia, a obra da educação que, durante dois séculos ficou quase que exclusivamente a cargo dos jesuítas, “o elemento moral da colónia”, no testemunho autorizado de João Ribeiro (4), se foi intensificando e irradiando. Muitos colégios se fundaram, cada vez mais aperfeiçoados, com melhores instalações, o currículo mais vasto e aprofundado.

Toda essa obra educacional foi lançada por terra quando, em 1759, o Marquês de Pombal determinou a expulsão dos jesuítas, justificando o seu ato iníquo com alegações caluniosas contra os padres de Companhia e suas atividades catequéticas pedagógicas. Foram extintas todas as escolas e as missões de catequese deixaram de existir.

Para substituir o ensino jesuíta, foi instituído o ensino público, mantido graças a um imposto especial, o chamado “subsídio literário”. Mas as novas escolas, sem a autoridade moral dos padres da Companhia, logo se mostraram inteiramente ineficazes. Tamanha era a indisciplina, devida à incapacidade dos mestres improvisados, que houve necessidade várias vezes, de se apelar para a polícia, com o fim de se manter a ordem nas escolas. A decadência do ensino chegou a tal ponto que, segundo Pedro Calmon, em 1777, só existiam em toda a Bahia dois professores, havendo províncias, como Santa Catarina, em que não existia uma só escola pública. Em 1828, vemos os deputados à primeira Constituinte do Império, que deveriam estar bastante informados sobre o assunto, denunciando descalabros de nossa educação do fim da era colonial: Sousa França clama contra o “ensino sem escolas e sem mestres”; Carneiro Campos lamenta a “situação de miséria” dos poucos professores existentes; Duarte Silva protesta contra o fato de não existir uma só cadeira pública em Santa Catarina. E assim por diante.

A única exceção nesse estado de coisas era constituída pelos seminários católicos, que, desde os tempos coloniais, exerceram uma enorme influência na vida intelectual do Brasil. Na época da Independência, já existiam os seguintes seminários: Nossa Senhora da Lapa, São José, São Joaquim, no Rio; Nossa Senhora da Lapa, em Campos; de Itu, em Santana; Nossa Senhora da Glória, em São Paulo; o Seminário Episcopal e o dos Órfãos, na Bahia; o de Olinda, em Pernambuco, e o de Pará, na capital dessa província. A influência desses educandários na vida social e intelectual do Brasil foi muito grande. Do Seminário de Olinda, por exemplo, disse Oliveira Lima que “transformou as condições do ensino e, com estas, as condições intelectuais do Brasil” (5) e Capistrano de Abreu afirma que esse seminário exerceu uma “extraordinária influência na mentalidade pátria” (6). 

Com a vinda da família real, em 1808, verificou-se um certo interesse do governo em relação ao ensino superior, instituindo-se na Corte, a Escola Médico-Cirúrgica, O Liceu de Artes e a Academia de Marinha. Foi, também, criada a Biblioteca real. Entretanto, em relação ao ensino primário, e secundário, não se registrou qualquer iniciativa do governo.

2. A EDUCAÇÃO NO BRASIL, DURANTE O PRIMEIRO REINADO

Depois da Independência, verificou-se uma certa preocupação com os problemas educacionais de nossa. gente. Tanto que o primeiro projeto de Constituição, em 1823, estabelecia que deveria haver escolas primárias em cada termo, ginásios em cada comarca e universidades nos mais apropriados locais. A experiência veio mostrar quanto isso era a inexequível, pois ainda hoje, muito mais de um século decorrido, aquela grandiosa aspiração está longe de ser realizada.

A Constituição outorgada pelo imperador era mais modesta em matéria de educação, apenas. estabelecendo a gratuidade da instrução primária e atribuindo a qualquer cidadão o direito de abrir escola, sem qualquer exigência quanto à idoneidade profissional.

Nesse tempo, para suprir a falta de professores, foi adotado o sistema do ensino mútuo, de Lancaster, que consiste em dividir os alunos em classe de dez, ou decúria, ficando cada classe sob a responsabilidade de um aluno dos mais capazes. Mas esse sistema que, naquele tempo, era uma panacéia universal, não produziu os resultados esperados.

A 15 de novembro de 1827 foi promulgada a nossa, primeira lei orgânica do ensino, que entre outras coisas, estabelecia o seguinte: “Em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos haverá escolas de primeiras letras que forem necessárias”... “Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações da aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da, língua nacional, os princípios da moral cristã e da doutrina católico, apostólica, romana, proporcionadas à compreensão dos meninos, preferindo para o ensino de leitura a Constituição do Império e a História do Brasil"... “Os que pretenderem ser providos nas cadeiras, serão examinados publicamente perante o presidente da Província, em conselho, e estes provarão os que forem julgados mais dignos e darão parte ao governo para sua nomeação legal”... “Só serão admitidos à posição e examinados os cidadãos brasileiros que estiverem no gozo de seus direitos civis e políticos, sem nota de culpa na regularidade da conduta.”... “Haverá escolas de meninas nas cidades, vilas e lugares mais populosos em que os presidentes das províncias, em conselho, julgarem conveniente este estabelecimento.”... Na província em que estiver à Corte, pertence ao Ministro do Império o que nas outras se incumbe aos presidentes”.

É claro que a maioria desses dispositivos ficaram só no papel, por serem impraticáveis, sobretudo por não haver professores que pudessem satisfazer as condições estatuídas pela lei, pois os mestres existentes eram apenas capazes de ensinar a ler, escrever e contar, sendo em geral, ignorantes das outras matérias do currículo.

Ainda no primeiro reinado, deve ser assinalada, como acontecimento dos mais notáveis na história da educação brasileira, a instituição dos “primeiros cursos jurídicos, criados pelo decreto de 11 de agosto de 1827, um em S. Paulo e outro em Olinda. Dois anos antes, havia sido criado um curso dessa natureza, na capital do Império, mas que não chegou à funcionar, sendo, depois substituído pelos de S. Paulo e Olinda.

Constavam esses cursos de 9 cadeiras, sendo de 5 anos a sua duração. Como condição para a matrícula, exigia-se à idade de 15 anos, no mínimo e a aprovação nos exames de língua francesa e latina, retórica, filosofia racional e moral, e geometria (7).

3. A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO SEGUNDO REINADO

Durante a Regência, foi, pelo ato adicional de 1834, transferida às províncias a administração do ensino primário, ficando com o poder central o ensino médio, em geral, e o superior, na Corte. Essa medida não trouxe nenhuma vantagem. Ao contrário, estando as províncias em condições ainda mais desfavoráveis de que o poder central, em face do problema da educação, este ainda mais se agravou com à descentralização administrativa. Em 1867 o conselheiro Liberato Barroso assim se refere aos resultados da descentralização: “as idéias descentralizadoras deram origem a esta disposição da qual até hoje o país não conheceu vantagem alguma. As Assembléias provinciais não têm cuidado dos importantes interesses da instrução pública: o ensino oficial oferece ainda hoje este espetáculo de anomalia e desordem que assusta os espíritos, porque nele se contemplam o descalabro e a ruína moral do país”.

Ainda durante a Regência deve ser registrada a primeira experiência do ensino normal, no Brasil. Em 1835, foi instalada no Rio uma escola destinada à formação dos professores. O corpo docente se resumia no próprio diretor, ao qual a lei atribuía função de ministrar todos os ensinamentos do curso, que eram: leitura e escrita, quatro operações de aritmética, quebrados, decimais e proporções; noções gerais de geometria prática; gramática da língua nacional; elementos de geografia e princípios de moral cristã. Os candidatos à matrícula deveriam ser cidadãos brasileiros, alfabetizados, maiores de 18 anos, tendo “boa morigeração”. Em 1846 o presidente da Província, Pedreira de Couto Ferraz suprimia a escola por falta de frequência. (8) Em 1859, foi restaurada a Escola Normal, do Rio de Janeiro, já então em bases mais sólidas e com mais favoráveis condições de eficiência. As cadeiras que constituíam a nova escola, cuja provisão deveria ser feita mediante concurso, eram as seguintes: 1 — língua nacional, caligrafia, doutrina cristã e pedagogia, 2 — aritmética, inclusive metrologia, álgebra até equação do 2º grau, noções gerais de geometria teórica e prática; 3 — elementos de geografia e história, principalmente do Brasil.

Um ano depois, foi fundada outra escola normal na Bahia, a qual foi reorganizada em 1862. Em 1864, foi fundada a de Pernambuco, seguindo-se no mesmo ano a da Paraíba; em 1869, a do Rio Grande do Sul e a do Espirito Santo; em 1871 a do Pará; em 1873, a do Amazonas; em 1874 as do Rio eram de do Norte e Paraná e em 1875 a de São Paulo.

Também no período regencial foi oficializado o ensino secundário, com a criação do Colégio Pedro II. Depois da expulsão dos jesuítas, o ensino secundário ficara reduzido às aulas avulsas criadas pela reforma do Marquês de Pombal e alguns raros institutos mantidos pelas províncias, entre estes o Liceu Provincial de Pernambuco, criado em. 1825 atual Colégio Estadual de Pernambuco. Em 2 de dezembro de 1837, o) governo regencial converteu em colégio secundário o seminário de S. Joaquim, dando-lhe a denominação de Colégio Pedro II. O currículo desse colégio constava de línguas latina, grega e francesa, retórica, botânica, química, física, álgebra, geometria e astronomia, não incluindo, porém a língua portuguesa... Em 1837 foi expedido o regulamento do colégio (9). 

Em 1854 foi reformada a instrução pública na Corte, sendo estabelecidas condições para o exercício do magistério particular, passou a ser fiscalizado pelo governo, Foram também cominadas penalidades para os pais que não mandassem os filhos à escola. Outras reformas foram, ainda feitas, mas sem maior importância.

Em 1879, verificou-se outra reforma do ensino, a reforma Leôncio de Carvalho, que visava, sobretudo, a conceder uma maior liberdade à iniciativa particular, no domínio da educação, para que, por esse meio, se incrementasse a abertura de escolas, que viessem remediar a situação de verdadeiro descalabro do ensino, naquela época, quando as estatísticas revelavam não ser superior a 2% da população do país o número de crianças matriculadas nas escolas.

No artigo 1.º, rezava o decreto de reforma: "É completamente livre o ensino primário e secundário no município da Corte, e o ensino superior em todo o império, salvo a inspeção necessária para garantir as condições de moralidade e higiene". Além disso, estabelecia o decreto a obrigatoriedade do ensino primário, para toda criança entre 7 e 14 anos; regulava o currículo da escola primária do 1.º e 2.º graus, de 6 e 2 anos, respectivamente; determinava que o governo subvencionaria o ensino particular e criaria escolas normais na Corte e nas províncias, como também, escolas profissionais; organizava o plano de estudos das escolas normais; criava normas para os exames vestibulares ao curso superior, estabelecendo que das comissões julgadoras deveria, sempre que possível, participar um membro do magistério oficial, sendo esses exames fiscalizados pelo governo; criava seis lugares de inspetores de alunos, como auxiliares do inspetor geral do ensino primário e secundário, na Corte; reorganizava o Conselho Diretor da Instrução Pública; dispensava a freqüência nas escolas oficiais, podendo os alunos comparecer, apenas para os exames; por fim, estabelecia o decreto aludido que, qualquer escola de iniciativa privada de grau superior, que, durante sete anos tivesse pelo menos 40 alunos concluintes, poderia ser considerada Faculdade Livre, equiparada para todos os feitos às oficiais.

Foi essa reforma que deu ensejo aos famosos pareceres sobre a instrução pública, de autoria de Rui Barbosa, pareceres de centenas de páginas, em que se abordam com inteira proficiência os mais diversos problemas de educação, desde a organização do ensino, à Metodologia, à Psicologia Educacional, à Biologia, à Sociologia da educação etc. Pode muito bem esse documento ser considerado, não só em ordem de antiguidade, como pela sua excepcional importância, como um dos mais completos tratados de Pedagogia geral que já se escreveram no Brasil

4. A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO REGIME REPUBLICANO

A primeira Constituição republicana apenas tratou de educação para definir atribuições, nisso se conformando com o dispositivo do Ato Adicional, que atribuía às províncias a manutenção do ensino primário e superior, ficando a cargo do governo central apenas o ensino secundário nacional e o ensino superior na, capital do país. Além disso, estabeleceu a Constituição a laicidade do ensino Oficial, dispositivo que, indevidamente interpretado, baniu da escola brasileira qualquer influência religiosa, tornando-a assim incapaz de atingir sua finalidade, principalmente em relação à formação da consciência e dos caracteres.

No regime republicano, inúmeras reformas tem sofrido o ensino oficial no Brasil, principalmente o ensino secundário, a cargo do governo federal. Dentre essas, citaremos as mais importantes.

Em 1890, vários decretos do governo provisório estabeleceram, entre outras medidas, a liberdade de freqüência e a faculdade dos exames cumulativos, resultando disso a maior prodigalidade na distribuição dos diplomas do curso superior, na capital do país. Em 1911, a lei Rivadávia Correia desoficializou o ensino, reservando-se o governo apenas “uma função fiscalizadora e orientadora. Foi criado o Conselho Superior do Ensino para fiscalizar e orientar o funcionamento das escolas. Outras reformas se sucederam, mas sem alterar substancialmente a situação: Apenas a lei Maximiliano, de 1915, modificou os dispositivos da lei anterior, referente ao exercício do magistério, estabelecendo exigências relativas à idoneidade profissional dos professores, coisa de que não cogitava a lei antiga. Além disso, foi estabelecido o regime de concurso para o provimento das cadeiras das escolas oficiais e fixadas condições para o reconhecimento do ensino particular. Essa lei trouxe ainda uma inovação: a dos exames preparatórios parcelados, permitindo-se que o curso secundário fosse feito em parcelas, por matérias escolhidas cada ano pelo estudante, independente da frequência escolar. Na lei Maximiliano havia um dispositivo que merece ser ressaltado, porque deu origens à instituição do regime universitário no Brasil. Nesse dispositivo se estabelecia que, quando julgasse oportuno, poderia O governo federal reunir em Universidade as Faculdades de Medicina e de Direito e à Escola Politécnica, mantidas pelo poder público na Capital Federal.

Em 1920 foi criada a Universidade do Rio de Janeiro, depois, Universidade do Brasil.

Em 1945, a reforma Rocha Vaz, entre outras medidas, instituiu o Departamento Nacional do Ensino.

Depois da revolução de 1930, veio a reforma Francisco de Campos que reorganizou quase completamente o curso secundário. Modificou-se o currículo, com a inclusão de novas matérias, criou-se o curso complementar, intermediário entre o ginasial e o superior, alterou-se o sistema de exames etc. Além disso, foi regularizado o exercício do magistério secundário, com o registro obrigatório dos professores, mediante certas. condições, e se reformou o Conselho Nacional do Ensino, que passou à denominar-se Conselho Nacional de Educação. 

Pelo decreto de 30 de abril de 1931, foi abolida a laicidade compulsória de ensino, permitindo-se, em caráter facultativo, o ensino religioso nas escolas, com o que se atendeu aos reclamos da consciência nacional, traduzidos num movimento de opinião que empolgou o país inteiro, e se abriram novas perspectivas para a educação do Brasil. Nesse mesmo ano, foi promulgada a lei orgânica das universidades brasileiras.

A última reforma do curso secundário, que estabeleceu o regime atual, foi devida ao Ministro Gustavo Capanema. Essa reforma não alterou substancialmente a organização do ensino estabelecida na lei Francisco de Campos.

Em 1937 foi instituída a primeira Faculdade de Filosofia, no Brasil, com sede no Rio de Janeiro, de iniciativa do governo federal.

RESUMO

A EDUCAÇÃO NO BRASIL-COLÔNIA. — Começou com à vinda dos jesuítas em 1549, os quais, fundaram, em 1550, o “Colégio dos meninos de Jesus”, na Bahia, ao qual se seguiram o de São Vicente e muitos outros. Essas escolas eram primárias passando, depois, a secundárias. Com a expulsão dos jesuítas, em 1759, a educação brasileira ficou completamente ao abandono, sendo os seminários católicos as quase únicas escolas existentes. Com a vinda da família real em 1808, tomaram-se algumas medidas em prol do ensino superior.

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO PRIMEIRO REINO. — Em 1827, foi promulgada a primeira lei orgânica do ensino, e nesse mesmo ano era instalados os primeiros cursos jurídicos, um em São Paulo, outro em Olinda.

NO SEGUNDO REINADO. — Durante a Regência, foi descentralizado o ensino primário, medida que não trouxe nenhum benefício. Em 1835, foi feita a primeira experiência de ensino normal. Em 1837, foi oficializado o ensino secundário, com a criação do Colégio Pedro II. Em 1859, foi criada, definitivamente a primeira escola normal, no Rio, seguindo-se a da Bahia, a de Pernambuco, a da Paraíba, a do Rio Grande do Sul e várias outras.

NO REGIME REPUBLICANO. — O ensino primário continuou descentralizado, a cargo dos Estados. O ensino secundário e superior tem sofrido repetidas reformas, como as de Rivadávia Correia (1911) desoficializando o ensino e criando o Conselho Superior de Ensino; a de Maximiliano (1915), que permitiu os preparatórios parcelados, e permitiu a instituição de uma universidade. Em 1920, criou-se a Universidade do Rio de Janeiro, depois do Brasil. Em 1931, veio a reforma Francisco de Campos, que estabeleceu o curso secundário atual, apenas com as modificações da lei Capanema. Em 1931, foi revogada a laicidade obrigatória do ensino e em 1937, foi criada a primeira Faculdade de Filosofia.


Bibliografia

Almeida, Pires de, — “L'instructión publique au Brésil”. Rio de Janeiro, 1949.

Barbosa, Rui, — “Pareceres sôbre a reforma do ensino secundário e superior". Obras completas, vols, IX e X.

Calógeras, Pandiá. — “Formação histórica do Brasil”. Companhia Editora Nacional, 1935.

    — “Os jesuítas e o ensino”. Imprensa Nacional, Rio, 1911.

Calmon, Pedro. — “História social do Brasil”. Companhia Editora Nacional, 1937.

Filho, Lourenço. — “A pedagogia de Rui Barbosa”, Edições Melhoramentos 1956.

Leite, Serafim, S. J. — “História da Companhia de Jesus no Brasil”. Lisboa, 1938.

Moacir, Primitivo. — “A instrução primária e secundária no município da Corte, na Regência e maioridade”. Imprensa Nacional, Rio, 1924.

Morais, José Mariz de. — “Nóbrega o primeiro jesuíta do Brasil”, Imprensa Nacional, Rio, 1940.

Norton, Luís. — “A Corte de Portugal no Brasil”, Companhia Editora Nacional, 1938.

Peixoto, Afrânio. — “Noções de História da Educação”. Companhia Editora Nacional, 1933.

Prado, Paulo, — “Retrato do Brasil. F. Briguet & Cia. Rio, 1931.

Santos, Teobaldo de Miranda. — “Noções de História da Educação”. Companhia Editora Nacional, 1945.

Viana, Oliveira. — “Evolução do Povo Brasileiro”, Companhia Editora Nacional 1933.


Notas:

(1) Numa carta a Santo Inácio, assim descreve Anchieta uma dessas escolas: “Aqui estamos às vezes mais de vinte dos nossos, numa barraquinha de caniço e barro, coberta de palha, longa de catorze pés, larga de dez. É isto a escola, a enfermaria, dormitório, refeitório, cozinha e dispensa. Quando a fumaça da cozinha incomoda professores e alunos, a lição prossegue ao ar livre, porque é preferível sofrer o incômodo do frio, lá fora, do que o fumo aqui dentro”.

(2) Os nossos índios eram, como diz José Mariz de Morais, (“Nóbrega, o primeiro jesuíta do Brasil”, Imprensa Nacional, Rio, 1940) "Festeiros inveterados e doidos por música".

(3) João Ribeiro, “História do Brasil”, 11ª. edição, Livraria Francisco Alves, Rio.

(4) Vide Afrânio Peixoto, “Noções de História da Educação” Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1933.

(5) “A revolução de Pernambuco em 1817”.

(6) Apud Clóvis Beviláqua, “História da Faculdade de Direito do Recife”.

(7) Era o seguinte o currículo desses primeiros cursos jurídicos: 1º Ano, — Primeira Cadeira: — Direito Natural, análise da Constituição do Império, Direito das Gentes e Diplomacia; 2º Ano — Primeira Cadeiras — Continuação das matérias do ano anterior; Segunda Cadeira: — Direito Público eclesiástico; 3º Ano — Primeira Cadeira: — Direito Pátrio Civil; Segunda Cadeira: — Direito Pátrio Criminal, com teoria do processo criminal; 4º Ano — Primeira Cadeira: — Continuação do Direito Pátrio Civil; Segunda Cadeira: — Direito Mercantil e Marítimo; 5º Ano — Primeira Cadeira: — Economia Política; Segunda Cadeira: — Teoria e prática do processo adotadas pelas leis do Império.

(8) Justificando o seu ato, alegava Couto Ferraz que a Escola havia falhado quase completamente, apenas tendo formado, nos seus 10 anos de funcionamento, 4 ou 5 professores, não conseguindo criar nos alunos “os hábitos de mediania, de retiro e de ordem, que são necessários para o seu viver medíocre, nas freguesias do Interior, não lhes dando educação prática, isto é, educação adequada à vida que devem seguir”. Argumentos valiosos, mas que se prevalecessem hoje, justificariam o fechamento de muita Escola Normal da atualidade...

(9) Desse regulamento constava o seguinte: Atribuições dos professores: "ensinar aos seus alunos as letras e ciências, na parte que lhes couber, como, também, quando se oferecer ocasião, lembrar-lhes seus deveres para com Deus, para com seus pais, pátria e governo; entregar cada sábado ao vice-reitor um mapa sobre o procedimento e trabalho dos alunos; entrarem nas aulas vestidos decentemente, nas horas prescritas, imediatamente antes da entrada dos alunos; é-lhes proibido aceitar dos alunos retribuição ou presente de qualquer natureza que seja”. Condições de matrícula: idade pelo menos de 8 anos e de 12 quando muito; saber ler, escrever e as quatro operações da aritmética; atestado de bom comportamento e de vacina. Disciplina: privação de recreio, de passeio, de saída, trabalho extraordinários, prisão, privação de férias, vestir roupas às avessas, expulsão.

***

Trecho retirado de Pequena História da Educação, Ruy de Ayres Bello, Editora do Brasil, 1969.


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A interpretação tomista da Física de Aristóteles


Sobre a imagem: O triunfo de São Tomás de Aquino sobre Averroes por Benozzo Gozzoli, representando Aquino (centro superior), um dos principais críticos de Averroes, “triunfando” sobre Averroes (abaixo), retratado aos pés de Aquino.


A INTERPRETAÇÃO TOMISTA DA FÍSICA DE ARISTÓTELES

por M. AMELIA M. DANTES

O pensamento antigo não se perdeu completamente no Ocidente, permanecendo pela Alta Idade Média uma coleção de fragmentos de filósofos gregos e romanos que se transmitiram por enciclopédias como as de Boécio (480-524 d.C.), Isidoro de Sevilha (560-636 d.C.), Cassiodoro (490-580 d.C.) e Beda (673-735 d.C.).

No século IX, com o reatamento comercial do Ocidente com o Oriente, começaram a chegar à Europa textos inéditos que haviam sido preservados, assimilados e criticados pelos pensadores árabes. Às cidades italianas voltadas para o comércio foram as primeiras cidades européias a entrar em contato com estes textos, porem, a sua difusão só se deu depois da tomada de Toledo pelos cruzados em 1085 e da Sicília em 1091.

O número extraordinário de obras traduzidas do árabe para o latim, nos séculos XII e XII, testemunha o entusiasmo com que o mundo ocidental recebeu os textos greco-árabes. Já por 1250, estava assimilado quase tudo o que se transmitira pela Espanha e sul da Itália.

As obras que foram traduzidas neste período compreendiam principalmente textos de filosofia e filosofia natural.

A redescoberta da obra de Aristóteles.

Da extensa obra de Aristóteles, até o século XII, era conhecida na Europa apenas a primeira parte do tratado de lógica, o Organum, em tradução de Boécio. Este texto passou a ser conhecido como a logica vetus quando, por volta de 1250, a tradução latina da logica nova tornou conhecida a parte final do Organum.

Ainda no século XII alguns textos filosóficos de Aristóteles tornaram-se conhecidos, por meio de traduções feitas diretamente do grego. Porem, as traduções mais difundidas foram as de Gerardo de Cremona e as de Miguel Escoto, do início do século XIII, que eram traduções de textos árabes, que por sua vez eram traduções de versões siríacas da obra original. Neste processo os textos aristotélicos sofreram deformações, tendo sido transmitida uma fusão da filosofia aristotélica com a filosofia dos neoplatônicos árabes. O interesse pelos textos aristotélicos puros motivou uma segunda etapa de traduções. Guilherme de Moerbeke, de 1260 a 1271, fez uma revisão das traduções existentes, partindo de manuscritos gregos. No último quarto do século XIII, já era conhecida praticamente toda a obra de Aristóteles.

A reação à entrada dos textos aristotélicos foi diversificada. Ao mesmo tempo em que os intelectuais se entusiasmavam com a riqueza contida nestes textos, um clima de apreensão crescia na Europa.

Havia razões para esta apreensão: de um lado a redescoberta das obras de Aristóteles e de outros pensadores gregos como Euclides, mostrava a riqueza dos sistemas construídos racionalmente. Já no século XII, os dialéticos embrenhavam-se pela sofística. Santo Anselmo e Fulberto pregavam o uso da dialética como a forma mais eficaz de se chegar à verdade, gerando temores em relação à pretensão de se incorporar a dialética à Teologia.

Além disso, os textos aristotélicos apresentavam idéias, como a da eternidade do mundo, que estavam em oposição ao pensamento cristão. Estas idéias foram em parte modificadas por alguns comentadores neoplatônicos árabes, como Avicena. Porem, na obra de Averróes, cujos comentários sobre a obra de Aristóteles foram traduzidos para o latim no início do século XIII por Miguel Escoto, o aristotelismo era apresentado mais puro, o que tornava mais críticas as contradições.

Devido à amplitude do problema, já que foi grande a receptividade à obra de Aristóteles, não tardaram medidas oficiais do Papado, no sentido de limitar a transmissão da obra de Aristóteles.

A proibição de 1210 testemunha a apreensão da Igreja. Neste ano, o conselho provincial de Paris, então o mais importante centro de ensino teológico e reduto dos dialéticos, proibiu, sob pena de excomunhão, o ensino público ou privado dos textos aristotélicos de filosofia natural ou seus comentários.

Porem, se uma parte do clero se orientou para uma repulsa à obra de Aristóteles e uma valorização do misticismo, houve paralelamente a preocupação pela incorporação do aristotelismo ao Cristianismo, com a Teologia enriquecida pelas formas de pensamento racional.

Pela segunda década do século XIII, no entanto, a posição oficial da Igreja continuou sendo de repulsa à obra filosófica de Aristóteles. Os estatutos da Universidade de Paris, sancionados em 1215 só autorizavam o ensino do Organum, proibindo o ensino da Metaphysica, da Physica e outras obras de filosofia natural e de seus comentadores, como David de Dinant e Amalrico de Bena.

Porém, a proibição não conseguiu barrar a corrente que se desenvolvia, tanto que em 1228 Gregório IX dirigiu-se especialmente aos professores de Teologia de Paris, chamando a atenção para os abusos da Filosofia e reiterando a crença em que a Teologia estava além da razão humana.

Uma mudança de atitude já transparece numa mensagem do próprio Gregório IX, em 1231, em que esclarece que o ensino da Physica permaneceria proibido, até que este texto fosse submetido à censura e purgado de seus erros. Poucos dias depois Gregório IX já nomeava uma comissão que deveria fazer uma revisão da filosofia natural aristotélica, a fim de torna-la utilizável no ensino. Este ato iniciou uma nova fase, em que o Papado incentivou os magistri para o comentário do corpus aristotélico, tendo em vista sua assimilação ao pensamento cristão.

Entre 1240 e 1248, Alberto Magno (1206 ou 1207-1280) fez cinco comentários das obras de filosofia natural de Aristóteles, quando ainda era proibido tratar destas obras nas escolas parisienses. Ainda mais: Alberto Magno utilizou extensamente os comentários de Averróes, apesar das críticas que eram feitas ao aristotelismo averroista.

O franciscano Rogério Bacon (1210, 1214?-1294), então também na Universidade de Paris, foi outro teólogo que se dedicou ao comentário da filosofia natural aristotélica.

Porém, foi na obra de São Tomás de Aquino (1225-1274) que se atingiu o ápice deste trabalho de assimilação da filosofia aristotélica à Teologia. Seus comentários mostram a preocupação de demonstrar a afinidade das idéias aristotélicas e o pensamento cristão, chegando à concepção de sínteses teológicas.

Esta fase de assimilação da obra de Aristóteles tem seu ponto alto em 1255, quando os novos estatutos da Universidade de Paris liberaram à especulação filosófica os escritos de lógica, estética, metafísica e filosofia natural.

Já em 1277, uma condenação levantada por Étienne Tempier, chanceler da Universidade de Paris, proibia 219 teses, em sua maioria averroistas, o que atingia principalmente Siger de Brabante. Porém, 20 das teses eram tomistas, o que mostra uma reação do Papado à obra de harmonização do aristotelismo ao Cristianismo. Uma reafirmação dos princípios tomistas só se deu no fim do século XIX, com Leão XIII declarando ser o Tomismo a Filosofia oficial da Igreja.

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O comentário dos 8 livros da "Física" por São Tomás de Aquino.

O trabalho sobre textos, em forma de comentários, foi extensamente utilizado pelos intelectuais do século XIII. Chenu (1) considera mesmo que o comentário foi o gênero de base da renascença cultural então ocorrida.

São Tomás dedicou-se extensamente a comentários de obras de autores gregos ou árabes, como Boécio, Amônio, Proclo, Pseudo-Dionísio, Temístio, Avicena, Averróes. Porem, seu interesse de comentarista se voltou mais para os textos de Aristóteles, que comentou em sua totalidade (2).

Os comentários tomistas de textos aristotélicos se caracterizam por uma procura constante da intentio Aristotelis (3), que segundo São Tomás havia sido deturpada pelos outros comentadores. Esta preocupação de expor as idéias de Aristóteles sem deformações, fez com que São Tomás optasse por comentários de tipo literal.

A figura mais constantemente visada em suas críticas é mesmo Averróes, cujos comentários haviam tido grande aceitação no Ocidente. São Tomás se refere depreciativamente em relação aos averroistas:

“Estas pessoas preferem errar em companhia de Averróes, do que partilhar uma ciência exata com os outros peripatéticos; Averróes, entretanto, foi menos um peripatético que o corruptor da filosofia peripatética” (4).

Apesar disso, foi grande a atração de São Tomás pelo filósofo árabe, cuja presença permanece em toda a obra tomista.

O comentário sobre a “Física” parece ter sido escrito entre 1268 e 1269 (5).

O comentário é extremamente esquematizado. Como as leituras se desenvolvem em geral sobre um tema determinado, o primeiro parágrafo de cada leitura apresenta uma subdivisão do tema em suas partes, com subdivisões secundárias quando necessário. O tema em questão é analisado minuciosamente em seus elementos. Isto faz com que, já de início, o leitor tenha uma visão geral do que Aristóteles vai tratar. Este comportamento analítico faz com que o comentário seja extremamente árido, já que os valores estéticos são preteridos nesta procura por uma apresentação objetiva do texto aristotélico.

São Tomás utilizou todo o seu conhecimento do corpus aristotélico para tornar mais claro o texto, em geral muito conciso, de Aristóteles. Sua familiaridade com a obra do Filósofo fica patenteada por todo o comentário.

Porém, se São Tomás torna mais claro, com seu comentário, o texto aristotélico, por outro lado não põe em dúvida os princípios básicos da física aristotélica. Sua física é aristotélica e mesmo os exemplos que utiliza para esclarecer o texto, enquadram-se perfeitamente nos princípios da filosofia natural aristotélica.

Somente em pontos em que o desenvolvimento lógico do estudo do movimento leva Aristóteles a conclusões que estão em oposição a crença cristã, é que as idéias do comentador aparecem. Estes pontos contraditórios da Física de Aristóteles já haviam sido levantados em sua maior parte, principalmente pelos comentadores árabes. Avicena, pela sua posição neoplatonizante não levantou tantas contradições como Averróes, que se aproximou muito mais do pensamento aristotélico puro, pondo a claro os pontos em que a filosofia aristotélica entrava em choque com o pensamento cristão.

A crítica que São Tomás fez a Averróes e a presença constante do filósofo árabe no comentário, mostram que um dos objetivos de São Tomás neste texto, foi de refutar as contradições levantadas por Averróes, mostrando assim a harmonia entre a filosofia aristotélica e a Teologia.

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Nos três primeiros livros da Física, Aristóteles trata do embasamento conceitual e metodológico da filosofia natural. O comentário destes livros trata mais de um esclarecimento do exposto, sem que o comentador ponha em dúvida o exposto.

Mesmo nos livros 4.º, 5.º, 6.º e 7.º, em que Aristóteles trata de problemas mais específicos em relação ao estudo do movimento, são poucos os pontos polêmicos. Em geral São Tomás procura esclarecer as interpretações feitas por comentadores anteriores, como quando no comentário do livro 4.º, São Tomás refuta a interpretação averroista do movimento da primeira esfera, concluindo pela validade da interpretação de Temístio (6).

É no livro 8.º que estão contidos os trechos mais polêmicos do comentário e isso justamente pelo fato de ser neste livro que Aristóteles trata dos limites do real: sobre o ponto inicial ou final do tempo e do movimento ou sobre o Primeiro Motor.

Vejamos alguns destes pontos:

a eternidade do movimento.

No 1.º capítulo do livro 8.º da Física, Aristóteles postula a eternidade do movimento, que ele prova por 3 argumentos: um primeiro fundado sobre a definição do movimento, um segundo sobre a noção de movimento e um terceiro sobre a eternidade do tempo.

Iniciando o primeiro argumento, em um trecho compreendido entre 251a8 e 251a15 (notação Bekker), Aristóteles diz:

... o movimento é a enteléquia do móvel enquanto móvel. É portanto necessário que existam primeiramente as coisas que tem o poder de mover segundo cada movimento ..." (7).

O texto de Aristóteles é obscuro e Averróes no seu comentário extrapola o argumento de Aristóteles para o primeiro agente universal, força ativa da totalidade do ser, tocando assim na própria Criação: a matéria primeira seria anterior à Criação, já que a própria Criação seria uma forma de movimento. Portanto, a matéria primeira não teria sido criada por Deus, o que se opõe à concepção agostiniana da Criação.

No seu comentário São Tomás procura mostrar que Averróes interpretou mal o texto aristotélico, utilizando outros textos do corpus aristotélico. Este ponto São Tomás consegue esclarecer pela afirmação de Aristóteles na Metafisica II, de que a matéria também é derivada do primeiro principio do ser (9).

Este é um trecho bem característico deste comentário de São Tomás, que mostra sua fidelidade ao aristotelismo, partindo dele para refutar interpretações de filósofos anteriores.

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— Ainda no capítulo 1 do livro 8.°, aparece um outro ponto controvertido, também ligado ao problema da Criação. Corresponde ao trecho que vai de 251a10 a 251b28, em que Aristóteles desenvolve a terceira prova da eternidade do movimento, baseada na eternidade do tempo. O argumento de Aristóteles para provar a eternidade do tempo é o seguinte: como o instante é um começo e um fim, começo do tempo futuro e fim do tempo passado, então necessariamente o tempo existiu sempre. Se é assim para o tempo, será também para o movimento, já que o tempo é uma manifestação do movimento (10). Este argumento leva a conclusões que são frontalmente contra o pensamento cristão e São Tomás procura esclarecê-lo.

A sua refutação do argumento aristotélico é brilhante, partindo da observação de que a definição que Aristóteles dá para o tempo é tendenciosa, o que a faz necessariamente levar à conclusão esperada. No parágrafo 983 do seu comentário São Tomás ressalta a analogia entre a relação instante-tempo e a ponto-reta, analogia que o próprio Aristóteles utiliza no livro 6.º da Física. Neste livro o Filósofo afirma que o ponto geométrico é um começo e um fim, somente se for parte de uma linha infinita, o que leva São Tomás a concluir que Aristóteles, na demonstração sobre a eternidade do tempo, pressupôs de início esta eternidade, quando queria prová-la. Além disso, São Tomás chama a atenção para o fato de que a concepção cristã da Criação como um começo do tempo, não entra em choque com a definição aristotélica de que todo o instante é um começo e um fim, já que o instante primeiro sendo tal que antes dele não existia tempo, além de ser um início, é também um fim, o fim do tempo não existente (11). Assim, a definição aristotélica do instante não leva necessariamente à eternidade do tempo, podendo ser mantida paralelamente à idéia de Criação.

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Vem completar a visão tomista da Física aristotélica, a parte do comentário correspondente ao texto que vai de 251b28 a 252a5, em que o Filósofo prova a eternidade do movimento. O argumento usado por Aristóteles é o mesmo usado anteriormente, para provar a eternidade do tempo: de um encadeamento de movimentos, se chega à impossibilidade de um limite no passado remoto, o movimento sempre existiu e sempre existirá. Este argumento é construído essencialmente pelo raciocínio, partindo de considerações sobre o movimento como existe na Natureza.

Se os comentadores anteriores procuravam transformar esta prova aristotélica, procurando colocar o texto em acordo com as verdades da fé, São Tomás aceita completamente a prova aristotélica, dizendo que o texto expressava exatamente as idéias do autor, sendo também correto o raciocínio empregado. Se Aristóteles chega a uma conclusão falsa é simplesmente porque suas considerações se referem a uma concepção da Natureza como sendo regida apenas por leis naturais. Porém, esta não é uma concepção cristã da Natureza, já que o ato da Criação dos corpos por Deus não se enquadra no que se chama processo natural, pois Deus age pela Sua vontade e não pela natureza.

Esta parte do comentário é muito significativa, pois mostra, num ponto de impasse, a posição de São Tomás: como Aristóteles foi um filósofo não cristão, é compreensível que em sua obra apareçam conclusões opostas às crenças cristãs, já que se trata de uma concepção cósmica distinta. Se vimos anteriormente, nas críticas à Averróes, São Tomás fiel ao aristotelismo, vemos aqui mais claramente sua posição frente à filosofia aristotélica: ela deve ser aceita quando não vai contra o testemunho do Evangelho. No caso de uma oposição é ao Evangelho que o cristão deve se prender.

sobre o Primeiro Motor.

No final do livro 8.º da Física, Aristóteles conclui que necessariamente há um Primeiro Motor, que é infinito e uno. Na Metafísica se completa a concepção deste Primeiro Motor, responsável pelo movimento da primeira esfera celeste: o Primeiro Motor é uma substância eterna e imóvel, separada dos seres, indivisível e divina (12). Encontram-se assim no corpus aristotélico, se bem que não especificamente na Física, os elementos para a extrapolação tomista de que existe necessariamente o Primeiro Motor, que pelos seus atributos só pode ser Deus:

“E então o Filósofo termina sua discussão geral sobre as coisas naturais com o primeiro princípio de toda a Natureza, que está sobre todas as coisas, Deus, abençoado para sempre, Amem” (13).

Esta prova da existência de Deus encontra-se já na obra de Alberto Magno e foi incorporada por São Tomás à Suma Teológica, questão II, art. II, quando São Tomás coloca que a existência de Deus é demonstrável a partir dos efeitos que conhecemos. (14).

São 5 as provas que São Tomás apresenta, da existência de Deus. A primeira é a aristotélica da existência do Primeiro Motor (15). Era a preferida por São Tomás que a qualificava de prima et manifestior via. Segundo Paulus (16), esta preferência se devia a acessibilidade desta prova à razão.

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Conclusões.

A análise deste comentário de São Tomás de Aquino sobre a Física de Aristóteles, nos revela que o que norteia o texto é a preocupação do teólogo Tomás, por questões de filosofia natural. Isto quer dizer que o interesse pelo estudo do movimento existe, na medida em que esteja relacionado à ciência das coisas divinas. E neste comentário, se bem que São Tomás esteja constantemente preocupado no esclarecimento do texto aristotélico, seu interesse está acima de tudo no esclarecimento das oposições existentes entre a filosofia natural aristotélica e o pensamento cristão.

O esclarecimento destes pontos de atrito se fazia necessário, já que as contradições haviam se tornado mais agudas nos comentários dos filósofos árabes. Não foi por acaso que as constantes proibições decretadas quanto ao ensino e divulgação dos textos aristotélicos, se referia sempre aos textos de filosofia natural. Eram justamente estes textos que continham estes pontos contraditórios.

São Tomás, como escolástico, procurou resolver as contradições por meio do raciocínio, utilizado sempre de forma rigorosa. Porem, esta independência da dialética não é total, o que aparece bem claramente neste comentário sobre a Física: a verdade é uma só; portanto, o homem deve chegar racionalmente a resultados em harmonia com a crença cristã. No referente à conceituação básica da Física, São Tomás é totalmente aristotélico: sua física é aristotélica. Porem aqui também o aristotelismo de São Tomás se mantém enquanto não entra em choque com o pensamento cristão. Como diz Duhem (16), São Tomás não se importava de ser infiel ao aristotelismo, já que a Filosofia devia se subordinar à Teologia. A tarefa a que São Tomás se propõe é mesmo a de cristianizar o aristotelismo.

Por outro lado aos poucos a epistemologia aristotélica foi substituindo a platônica, trazendo a idéia de que se deve partir do sensível para se chegar ao conhecimento. Esta nova conceituação metodológica penetra na própria experiência religiosa, já que os objetos sensíveis guardam sinais da natureza divina e são assim ponto de partida para a experiência religiosa. É a partir desta nova concepção epistemológica que deve ser compreendida a aquisição, pela Teologia, da primeira prova da existência de Deus, a prova aristotélica da existência do Primeiro Motor.

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MARIA AMELIA MASCARENHAS DANTES. — Nascida em São Paulo, Estado de São Paulo. Bacharel em Física pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1964). Doutora em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (1973). Professora Assistente-Doutora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Atualmente estagiando no Instituto de História da Ciência de Sorbonne, França.

Principais Trabalhos:

— Sobre a Medicina de Paracelso (tese de doutoramento). ed. mimeografada.
— Da Alquimia à Química Moderna in História da Ciência e Perspectiva Científica, coleção da Revista de História, nº 46, 1974.
— Física Auto-Instrutiva, em colaboração, 5 vols.
— Um Estudo do Comentário de São Tomás de Aquino Sobre a Física de Aristóteles, Ciência e Cultura, vol. 25, nº 6, 1972.
— (Sobre) a História das Invenções Mecânicas de Usher, Revista de História, vol. 51, n° 102, 1975.


Notas:

(1) M. D. Chenu, Introduction a l'étude de St. Thomas d'Aquin (Montreal, Publications de l'Institut d'études médievales, 1954), p. 176.

(2) São comentários de São Tomás sobre textos de Aristóteles: In perihermenian (até a IL 2); In posteriores analyticorum, In VIII libros physicorum, In VII libros de caelo et mundo (até III, 8), In II libros de generatione et corruptione (até I, 17), In IV livros meteorum (até II, 10), In III libros de anima, In librum de sensu et sensato, On librum de memoria et reminiscentia, In XII libros Metaphysicorum, In X libros Ethicorum e In libros Politicorum (até III, 6).

(3) P. Moraux et al., “Les sources de St. Thomas” artigo de D. A. Callus in Aristote et St. Thomas d’Aquin (Paris, Ed. Béatrice, 1967), p. 98.

(4) P. Duhem, Le systeme du monde, vol. V (Paris, 1973-1917), p. 536.

(5) St. Thomas d’Aquin, Commentary on Aristotle's Physics (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1963), p. XXI, introd. de V. J. Bourke.

(6) Idem, ibidem, p. 214 e seg.

(7) Aristote, Physique (Paris, Les belles lettres, 1952), vol. 2, p. 102.

(8) St. T. Aquinas, Op. cit., pp. 475 e 476.

(9) Idem, ibidem, p. 476.

(10) Aristote, Op. cit., p. 104.

(11) St. T. Aquinas, Op. cit., p. 482.

(12). — Apud. R. Mondolfo, O pensamento antigo, vol. 2 (São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1964-5), p. 40 e 41.

(13). — St. T. Aquinas, Op. cit., p. 592.

(14) S. Tomás, Suma Teológica (São Paulo, Ed. Fac. Fil. Sedes Sapientiae, 1944), p. 68.

(15) Idem, ibidem, p. 72 a 79.

(16) P. Duhem, Op. cit., p. 560.

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Os Números Divinos

por Javier Ruiz

Platão, ao falar sobre as ideias puras ou os arquétipos, diz-nos a mesma coisa. Que os objetos físicos e os seres vivos nada mais são do que vestígios na matéria das ideias puras presentes no reino do inteligível.

A origem dos números naturais (1, 2, 3 ...) sempre foi objeto de controvérsia entre matemáticos e filósofos de todos os tempos. Assim, para Filolau, filósofo pitagórico do século V a.C. … grande, toda-poderosa, aperfeiçoadora e divina é a força do número, início e governante da vida divina e humana, participante de tudo e em tudo. Sem número, nada tem limites e é confuso e sombrio. Porque a natureza do número proporciona conhecimento e é guia e professor para todos em tudo o que é duvidoso ou desconhecido. Porque nenhuma das coisas seria clara, nem no seu próprio ser, nem nas suas relações mútuas, se o número e a sua essência não existissem. Este é quem harmoniza na alma as coisas com a sua perfeição, tornando-as cognoscíveis e congruentes entre si segundo a sua natureza, dotando-as de corporeidade

Assim vemos que para os pitagóricos a própria constituição do Universo é número e harmonia. Esta ideia foi formulada pelo físico Galileu Galilei, no século XVII, quando disse que o livro da Natureza estava escrito em caracteres matemáticos e geométricos: tal livro está aberto diante dos nossos olhos, mas nem todos podem lê-lo, porque o seu alfabeto é composto de números, proporções e figuras geométricas.

Toda a Matemática se baseia na noção de números naturais e nas suas operações aritméticas. Agora podemos perguntar-nos: como se fundamenta a aritmética? Qual é a base dos números naturais? Vejamos brevemente os cinco axiomas da aritmética.

1. O 1 é um número natural;

2. A cada número natural x corresponde univocamente outro denominado o seguinte: s(x). [ou seja, s: \mathbb{N} \rightarrow \mathbb{N} também chamada função sucessor];

3. O 1 não tem número precedente;

4. Se s(x)=s(y), deduz-se que x=y. [injetividade];

5. Princípio de indução completa. Se um conjunto C de números naturais atende às duas seguintes condições:

a) C contém o número 1;

b) Se C contém x, também contém s(x), então C contém todos os números naturais.

Os cinco axiomas anteriores eram o objetivo do programa formalista da Matemática: reduzir a aritmética à lógica, derivar os conceitos da aritmética a partir de conceitos lógicos e deduzir princípios aritméticos a partir de princípios lógicos. Se isso fosse possível, poderíamos dizer que os números naturais e toda aritmética têm a sua base no cérebro, ou melhor, na mente humana. Toda a Matemática seria criação da mente humana, e não só a Matemática, mas também a Física, a Química, a Biologia, a Geologia; ou seja, todas as ciências que em maior ou menor grau utilizam estruturas matemáticas nas suas definições e nos seus métodos empíricos. Não esqueçamos que existe uma relação íntima entre os fenómenos experimentais e as estruturas matemáticas, o que é verdadeiramente surpreendente quando meditamos sobre eles.

Como vemos, uma fundamentação lógica da Matemática resolveria muitas questões sobre a natureza do mundo e do homem. De certa forma, embora com certo exagero, poderíamos dizer que todo o Universo, com todas as suas leis, os planetas, as estrelas, as galáxias, seria criação da mente humana.

Contudo, em 1931, um matemático checo, Kurt Gödel, declarou um teorema segundo o qual a coerência lógica não pode ser provada de qualquer sistema formal axiomático rico o suficiente para ser capaz de conter a aritmética pelo raciocínio matemático. O máximo que se pode esperar é que tal sistema seja incoerente. Este teorema deixa claro, entre outras coisas, a incapacidade da Matemática de colocar os seus fundamentos fora de qualquer dúvida (impossibilidade de demonstrar autoconsistência, isto é, a ausência de contradição lógica da construção matemática).

Voltando aos números naturais, devemos então distinguir entre os números que usamos na vida cotidiana e os verdadeiros números. Para o filósofo Jorge Angel Livraga, cada número distingue-se de qualquer outro número por um não-número, mas mesmo assim “valor”, que os diferencia. Sempre haverá algo entre fração e fração que não pode ser capturado com os padrões atuais.

Os números naturais são geralmente representados como pontos numa linha reta, igualmente espaçados entre si. Dizem-nos que o segmento de reta é ocupado por números racionais (números que podem ser expressos como um quociente de dois números inteiros, por exemplo, 5/3) e números irracionais (números que, como a raiz quadrada de dois, não podem ser expressos como um quociente de dois inteiros). A hipótese do contínuo, expressa pelo matemático Georg Cantor, diz que o conjunto dos números reais (naturais, inteiros, racionais e irracionais) preenche completamente a reta. Esta hipótese não pode ser comprovada, o que acrescenta valor à teoria do Professor Livraga sobre a diferenciação de números por não-números. Esses não-números são governados pela matemática dinâmica ou viva, enquanto os números naturais são governados pela matemática estática, a única que conhecemos no momento (lembre-se que esta última não pode dar coerência lógica às suas bases, que são os números naturais).

Por mais que procuremos uma fundamentação lógica para a Matemática, que é a nossa ferramenta para o estudo da Natureza, as suas fundações, que são os cinco axiomas citados, não têm fundamento lógico.

Assim, com um pouco de ousadia, podemos afirmar que o Universo com as suas leis, e o homem com sua mente, têm uma base irracional, ou pararacional, como preferirem; algo que está além da nossa mente e que esta não consegue justificar. Com a nossa mente racional, focada em nós mesmos, não podemos saber nem a origem dos números naturais nem a origem do Cosmos.

Esta ideia não é nova. O filósofo ateniense Platão, no século V a.C. dizia-nos: …o que dá verdade aos objetos do conhecimento, e a faculdade de conhecer aquele que conhece, é a Ideia do Bem, que deverás conceber como objeto do conhecimento, mas também como causa da ciência e verdade; e assim, por mais belos que sejam o conhecimento e a verdade, julgarás corretamente se considerares essa ideia como algo diferente e ainda mais belo do que eles. E, quanto ao conhecimento e à verdade, assim como neste mundo é possível acreditar que a luz e a visão se assemelham ao sol, mas não que sejam o mesmo sol, também nesse mundo é correto considerar que um e outro são semelhantes ao bem, mas não o é ter qualquer um dos dois pelo bem, pois a consideração que se deve à Natureza do Bem é muito maior [1].

Não devemos pensar que a Matemática e as Ciências que utilizam as suas estruturas perdem a sua validade; eles simplesmente assumem validade relativa. Para Platão, o matemático toma certas noções como certas, como os cinco axiomas da aritmética mencionados acima. Destas noções, que não podem ser demonstradas, são de onde ele inicia a sua caminhada dedutiva rumo às conclusões; caminhada na qual não pode apoiar-se em ideias puras, mas deve recorrer a representações materiais dessas ideias puras (números). Os números não são ideias puras, mas a sombra (mental, acrescentaremos nós) de ideias puras. Por outro lado, o dialético, imagem do filósofo, também parte de hipóteses, mas essas hipóteses nada mais são para ele do que algo provisório, degraus, trampolins ou qualquer outra coisa que sirva para passar de um estado a outro no processo. Assim, vai ascendendo passo a passo até o início de tudo, um princípio não hipotético, e nesta ascensão nunca é obrigado a recorrer a outra coisa senão às ideias tomadas por si próprias. Isto não significa que o estudo da Natureza perca toda a sua validade. É conveniente lembrar a máxima socrática: conhece-te a ti mesmo, ó homem! e conhecerás o Universo e os Deuses.

[...]

Se há algo verdadeiramente fascinante no mundo que nos rodeia, é que podemos compreendê-lo, que é acessível às nossas mentes. Embora os primeiros princípios e os fins últimos nos escapem, o universo em geral está sujeito a leis que podemos descobrir através da observação, da pesquisa e do estudo. Nas palavras de John D. Barrows, físico inglês: A razão pela qual temos tido tanto sucesso em desvendar o funcionamento interno do universo é que descobrimos a linguagem em que o livro da natureza parece estar escrito. Em essência, ele está apenas citando Galileu Galilei, que disse que Deus criou o universo e escreveu as suas leis na linguagem da matemática.

Por que isto é desta forma é no fundo um verdadeiro mistério; serão a matemática, as formas geométricas, uma ferramenta fabricada pela nossa mente, ou antes, têm existência independente e estão fora dela? Para Roger Penrose, um dos melhores matemáticos atuais e co-criador com Stephen Hawking da entropia dos buracos negros, a matemática está de alguma forma “lá”, e a única coisa que o matemático faz é descobri-la. Ele é um fervoroso defensor do platonismo e da teoria dos arquétipos platônicos, imagens ou primeiros modelos que existem na mente de Deus e que utiliza ao criar o universo. Assim, a filosofia profunda e a matemática superior caminham juntas.

Dentre os números infinitos, escolhemos para estudo simbólico os mais conhecidos, como o número áureo, o número π, o número e, a base dos logaritmos naturais, e os números transfinitos de Cantor. Com o estudo destas belas sombras do pensamento divino que os referidos números nos mostram, a nossa mente terá a possibilidade de intuir as maravilhas da criação e poder seguir os seus passos de forma harmoniosa.

O número de ouro, Φ

Não há melhor impressão desta harmonia universal, deste desenho inteligente do universo, conforme postulado pela ciência moderna, que a velha ideia da Proporção Divina (segundo Luca Pacioli), a secção áurea para Leonardo da Vinci, simplesmente o número dourado, para nós.

Pitágoras é creditado com a descoberta da proporção áurea, o teorema que leva o seu nome e o pentagrama, uma estrela regular de cinco pontas onde o número áureo é um suporte básico. Ele fez da estrela de cinco pontas o símbolo distintivo dos membros da escola filosófica que fundou, o pitagorismo. Os pitagóricos destacavam-se pela sua sobriedade, pela sua altura moral, pela sua coerência. O princípio fundamental da filosofia pitagórica era que todas as coisas são números ou são compostas de números.

Platão, no Timeu, ecoa os ensinamentos pitagóricos. Bem, quando quaisquer três números, sejam lineares ou planos, o do meio é de tal tipo que tem em relação ao último a mesma relação que o primeiro tem em relação a ele; e inversamente, quando é de tal tipo que tem em relação ao primeiro a mesma relação que o último tem com ele, sendo então o primeiro e o último ao mesmo tempo o termo médio dos dois, acontece que todos os termos têm necessariamente a mesma função, que todos desempenham o mesmo papel uns em relação aos outros e, nesse caso, todos formam uma unidade perfeita. Aqui encontramos a definição matemática do número de ouro. O que Euclides coletará mais tarde nos seus Elementos de Geometria como a divisão em razão média e extrema.

Precisamente a estrela de cinco pontas contém o número dourado nas suas proporções. É um conceito matemático cuja aplicação na arte produz sensações belas e agradáveis. Desperta-nos uma ressonância, pois o homem e o universo são regidos pelas mesmas leis. Consequentemente, os antigos encerravam o ser humano perfeito dentro de uma estrela de cinco pontas, um símbolo de beleza e harmonia proporcional. Que estávamos sujeitos a leis e proporções semelhantes, reflexo do Demiurgo, do Divino Criador ao ordenar o mundo.

1. A sequência de Fibonacci.

Um matemático dos séculos XII-XIII, Leonardo de Pisa, mais conhecido como Fibonacci, descobriu essa sequência ao estudar a reprodução e a morte de coelhos na sua quinta. Cada termo da sequência é gerado pela soma dos dois anteriores. Assim, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, 233... Esta sequência tem propriedades muito curiosas, entre elas que o quociente entre dois termos consecutivos é próximo do número dourado. Aparece no triângulo de Pascal, em algoritmos de cálculo de máximos e mínimos para funções complicadas, uma das suas aplicações é na física óptica, no cálculo das trajetórias dos raios de luz quando atingem duas lâminas planas de vidro e em contato (aplica-se à leitura e gravação de dados digitais através de laser), etc. Os exemplos poderiam ser incontáveis.

2. O número de ouro na natureza.

Se tivermos um retângulo áureo e eliminarmos o quadrado do lado menor, o retângulo resultante terá ainda a proporção áurea e assim por diante. Isto dá origem a uma das espirais mais belas e recorrentes da natureza; a espiral logarítmica. Esta espiral logarítmica governa o crescimento de muitas formas vegetais e animais; por exemplo a concha do caracol marinho Nautilus, ou os caramujos marinhos tão presentes nas nossas costas. Também na dupla espiral das flores de girassol aparecem termos consecutivos da sequência de Fibonacci, o crescimento das pinhas segue a proporção áurea, um ovo de galinha pode ser inscrito em um retângulo áureo, etc. E, claro, a estrela do mar segue um padrão pentagonal no seu desenvolvimento. Se levarmos em conta que aqui ocorre o salto evolutivo crucial dos vertebrados para os invertebrados, verificamos empiricamente a importância da nossa proporção. A simetria pentagonal e a estrela de cinco pontas são a base do desenvolvimento formal de muitas flores e arbustos.

Até nas proporções do corpo humano aparece o número dourado. A distância do chão ao umbigo em relação à altura humana segue a proporção áurea. A proporção áurea também rege outras medidas anatómicas do homem, como A. Zeising estudou em meados do século XIX.

3. O número de ouro na arte

Como meio e modelo para retratar a beleza, a proporção divina tem sido utilizada por todas as culturas, e os povos com sentido estético aplicaram-na nos seus monumentos. Encontramos os seus vestígios na grande pirâmide, onde a altura do triângulo de suas faces tem dupla proporção áurea com a base, na Porta do Sol de Tiahuanaco aparece o triângulo dourado, numa tumba rupestre em Mira, Turquia, do século II a.C. surge novamente. Não está perdido durante a Idade Média. O número dourado é a base do arco parabólico e do arco pontiagudo, inovações geométricas que foram aplicadas no gótico. Mesmo em numerosos portais românicos e góticos, o triângulo áurico aparece como borda e fronteira.

No Renascimento foi recuperado novamente de forma maciça na arte. O Homem de Vitrúvio de Leonardo foi concebido para ilustrar o livro do frade Luca Paccioli, A Proporção Divina. Também aparece na Anunciação da Virgem Maria, as dimensões de La Gioconda são 89×55 cm., curiosamente dois números consecutivos da série Fibonacci. Devemos precisamente o nome da secção áurea a Leonardo. Na bela pintura de El Greco, O Enterro do Conde de Orgaz, vemos como o mundo terrestre inferior é governado pelo retângulo dourado, e o mundo celestial superior é governado pelo pentagrama místico e pelo pentágono no qual está inscrito. A nível matemático, Kepler enfatiza a proporção áurea no âmbito das suas teorias cosmológicas e cosmogónicas.

O número áureo foi recuperado novamente no século XIX, justamente com o surgimento do já mencionado trabalho de Zeising sobre medidas anatómicas no homem, e como este autor trabalhando em milhares de medições encontrou novamente o aparecimento do número áureo. Assim, na obra de Theodore Cook, The Curves of Life, a proporção áurea é aplicada ao estudo das formas botânicas e zoológicas. No início do século XX, uma exposição de obras pictóricas foi inaugurada em Paris sob o título La Section d’Or. A sua influência é inegável nas obras de Juan Gris, Picasso e Dalí. Isto pode ser visto na pintura Leda Atómica, onde um esboço de Dalí indica a estrutura da pintura em torno do pentagrama.

Um dos principais arquitetos do século XX, Le Corbusier, recupera o uso da proporção no desenho urbanístico e na construção. Em 1929 projetou o Mundaneum, um complexo localizado em Genebra que serviria como instituição mundial e sede da Liga das Nações. O layout do design segue a proporção áurea. Na sua obra El Modulor, realizada em 1950, e novamente baseada nesta proporção, onde tenta sistematizar o desenho das obras para que sejam úteis ao movimento humano. Einstein veio comentar esse trabalho, é uma gama de proporções que torna o mau mais difícil e o bom fácil.

A sua influência também se faz notar na música, na linguagem musical criada por Bela Bartok e baseada no sistema da secção áurea, que integra movimentos pentatônicos primitivos e afinidades primitivas. Podemos traçar a influência da secção na sua obra Concerto para Orquestra e Quatro Peças para Orquestra. E anteriormente, Robert Schuman nas suas Cenas Infantis também havia usado a proporção áurea para regular o número de compassos e os intervalos entre eles.

O número π

Estudado por todos nós durante os anos escolares, o número π contém em si próprio um grande mistério. Na escola dizem-nos que é a razão entre o comprimento da circunferência e o seu diâmetro, dizem-nos que vale 3,1416, e começam a ditar-nos uma fórmula atrás da outra, com múltiplas aplicações, efetivamente. A verdade é que esta relação entre a circunferência e o diâmetro que hoje conhecemos como π sempre atraiu a atenção de cientistas e matemáticos de todos os lugares e de todos os tempos. A Bíblia declara o valor de π como 3 [2]. Os antigos egípcios calcularam o valor de π como 256/81, ou 3,16…, o que é uma boa aproximação. Para os antigos chineses, π valia 355/113, uma aproximação mais próxima do que a de Arquimedes, que, através de métodos de inscrição e circunscrição de polígonos num círculo, aumentando o número de lados dos polígonos, conseguiu limitar o valor de π entre 3,141590… e 3,141601…, uma aproximação que continua a ser usada até hoje. Nos séculos XVII e XVIII, através do desenvolvimento de séries numéricas, foi possível calcular o valor de π com um número crescente de casas decimais. Atualmente, mais de 206 bilhões de casas decimais de π foram calculadas usando métodos computacionais. Além do interesse dos decimais em si, a precisão do cálculo é usada para determinar o poder computacional dos computadores e a sua confiabilidade.

O número π, assim como o número áureo, é um número irracional, ou seja, não pode ser expresso como quociente de dois inteiros. Noutras palavras, o seu número de decimais nunca terminará nem seguirá um padrão de repetição. Desta forma, o valor de π nunca pode ser calculado exatamente. Sempre haverá uma sequência numérica infinita e não periódica subsequente, não importa quão grande seja o decimal a que chegamos através dos cálculos. Embora a irracionalidade de π só tenha sido demonstrada no século XVIII pelo brilhante matemático suíço Leonard Euler, o filósofo grego Aristóteles no século IV a.C. e o filósofo judeu Maimônides, no século XII, já haviam intuído essa irracionalidade e ficaram fascinados por ela.

O resultado desse fascínio tem sido tentar conseguir a quadratura do círculo, ou seja, construir um quadrado com a mesma área de um círculo usando apenas régua e compasso. Este foi, juntamente com a duplicação do cubo e a trissecção do ângulo, um dos problemas clássicos da geometria grega. Hoje sabemos que são insolúveis, mas estimularam a imaginação dos matemáticos de todos os tempos e, até que o matemático alemão Lindeman demonstrasse a sua impossibilidade, foram um incentivo contínuo aos trabalhos e às descobertas matemáticas. Conseguir a quadratura do círculo é impossível porque o número π é um número transcendente. O número π não pode ser encontrado pelas operações aritméticas de adição, subtração, multiplicação, divisão ou extração de raízes. No entanto, o número dourado Φ não é um número transcendente, daí a enorme variedade de formas naturais em que aparece. O número π praticamente não aparece na natureza, pelo menos tão explicitamente quanto Φ.

O que significa tudo isto? Vamos fazer uma análise simbólica do número π e dos elementos que lhe dão origem. Lembremos que π é a razão entre o comprimento da circunferência e seu diâmetro. No simbolismo tradicional, a circunferência representa a Divindade Absoluta. Citemos Blavatsky, a grande esoterista do século XIX. Parabrahman, a Realidade Única, o Absoluto, é o campo da Consciência Absoluta; isto é, aquela essência que está fora de qualquer relação com a existência condicionada e da qual a existência consciente é um símbolo condicionado [3]. A circunferência sem um ponto central é impossível de conceber, porém o universo sempre foi descrito como um círculo cujo centro está em toda parte e a circunferência em lugar nenhum. O círculo é o símbolo da Divindade, e ao representá-lo com um ponto no centro simboliza a primeira emanação desta Divindade. Sigamos Blavatsky, um disco com um ponto no centro representa, no símbolo arcaico, a primeira diferenciação nas manifestações periódicas da Natureza eterna, assexuada e infinita, “Aditi em AQUILO” ou Espaço potencial no Espaço abstrato. Na terceira etapa, a ponta é transformada em diâmetro. Então simboliza uma Mãe-Natureza imaculada e divina, no Infinito absoluto que tudo abrange [4]. Noutras palavras, a relação entre a circunferência e seu diâmetro é o equivalente entre a Divindade e a Natureza no seu estado de pureza imaculada. Esse é o significado de π.

Não é surpreendente, então, que π seja irracional e transcendente, uma vez que a sua relação não é com o mundo natural, como a de Φ, mas com o mundo das ideias puras ou arquétipos platónicos. É neste mundo geométrico, sombra das ideias puras, que π ganha significado e valor. A irracionalidade e a transcendência de π simbolizam os esforços vãos da mente humana para tentar raciocinar sobre o Mistério de Deus e da Criação. Porém, π é um número fascinante e ao qual, como humanos, temos acesso, pois podemos capturá-lo em formas geométricas. Mas sempre haverá um decimal de π que nos escapará, e não poderemos reduzir o seu cálculo a uma equação racional, pois a natureza de π é semelhante à natureza da Divindade. Está acima da nossa simples razão, mas não da nossa intuição, graças à qual elevamos a nossa mente ao reino dos arquétipos e captamos as ideias geométricas puras nele presentes.

O número e

A história deste número só começa no século XVIII, quando foi descoberto pelo matemático Leonard Euler como a constante para a qual tende a soma de numerosas séries convergentes de números naturais. É um número definido por um limite que pode ser consultado em qualquer manual de matemática. O que nos interessa aqui é saber que também é um número irracional e transcendente, como π.

Com a descoberta do número e nasceu a função exponencial e logarítmica, que rege numerosos processos físicos de crescimento e variação de unidades, como o decaimento radioativo ou a absorção de luz ou ondas por um meio contínuo. É surpreendente como um número irracional e transcendente aparece em numerosos processos físicos e biológicos. Um número que não pode ser expresso como uma fracção ou calculado por uma equação racional está continuamente presente na natureza. É uma impressão direta do mundo arquetípico no mundo natural, como um selo direto que nos diz que a natureza segue leis matemáticas profundamente belas e harmoniosas.

Deve-se notar que e rege tanto o crescimento quanto a diminuição de uma quantidade, desde que esta não dependa do restante da quantidade que esteja presente. Ou seja, e aparece sempre que a substância que varia não possui informações sobre o ambiente restante. Só assim o crescimento exponencial aparece como uma lei. Para explicar isto, vamos dar um exemplo clássico. Se semearmos uma bactéria que se duplica a cada vinte minutos num meio rico em alimentos, depois de uma hora teremos 8 bactérias, depois de 2 horas 499 bactérias, e depois de 12 horas cerca de 18.000. Evidentemente, mais cedo ou mais tarde, a comida deve impor um limite no crescimento, caso contrário o número de bactérias acabaria tomando conta da terra. Mas este é o poder do número e, que governa o crescimento ilimitado ou a decadência sem fim, mas mais cedo ou mais tarde a oferta do meio imporá uma limitação ao seu poder.

O que significa tudo isto? Que a matéria tem um limite, que pelas suas próprias leis ela tem o seu lugar bem definido dentro do Grande Cosmos e que se tentar ultrapassá-lo, as leis nela inscritas acabarão por fazê-la retornar ao crescimento harmonioso. É importante então que o homem aprenda o mesmo, porque o crescimento ilimitado que o nosso mundo propõe como solução para todos os problemas sociais e ambientais acabará por cair numa recessão. É inevitável. Mas, como humanidade, podemos voltar ao curso natural das coisas. Para isso recebemos a inteligência, não só para resolver problemas matemáticos e descobrir teoremas, mas também para aplicá-los ao nosso ambiente no seu significado filosófico.

Os números transfinitos

Pode haver números além do infinito? Esta foi a pergunta feita pelo matemático Georg Cantor, descobridor da moderna teoria dos conjuntos. Para nos aprofundarmos nesta questão, vamos começar por estudar a sequência dos números naturais.

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, ...

Obviamente esta sequência não tem fim, pois podemos adicionar 1 a qualquer número natural e obter o próximo desta lista, e assim por diante. É um conjunto sem fim ou infinito. Podemos dizer que esta sequência tende ao infinito, e iremos designá-la com o símbolo . Agora, é um número real? Obviamente que não, pois não podemos incluir o infinito nos números naturais e ao mesmo tempo manter os axiomas fundamentais da aritmética que vimos anteriormente. Não podemos adicionar nada ao infinito, porque não é um número. No entanto, o conceito de infinito invade toda a matemática. Dizemos então que o conjunto dos números naturais é composto por infinitos elementos.

Para ver alguns dos paradoxos do infinito, vejamos o seguinte caso; a sequência de números pares,

2, 4, 6, 8, 10, 12, 14, ...

Está incluída na sequência de números naturais. Mas nenhuma delas tem fim, ambas têm elementos infinitos, pois ambas podem ser colocadas lado a lado, de modo que o primeiro par corresponda ao número 1, o segundo par corresponda ao número 2, o terceiro par corresponda ao número 3 e assim por diante. Certamente parece que ambas possuem o mesmo número de elementos, ou seja, . Mas a sequência dos números pares está incluída na sequência dos números naturais. Este é um dos paradoxos que aparecem quando se considera o infinito como um número. É melhor então, como fez Cantor, falar em termos de conjuntos e dizer que dois conjuntos são equivalentes se ambos puderem ser numerados da mesma maneira, de modo que cada elemento do primeiro conjunto corresponda a um e apenas um do segundo. Desta forma podemos começar a estabelecer uma aritmética do infinito.

Cantor demonstrou que o conjunto dos números naturais, o dos inteiros e o dos números racionais era enumerável, ou seja, que uma relação termo a termo pode ser estabelecida com cada um dos elementos dos conjuntos vistos acima e com cada um dos números naturais. Um conjunto de elementos enumerável ​​é composto por um número infinito de elementos. Agora, o conjunto dos números reais (racionais e irracionais) é enumerável? Por outras palavras, os números reais têm elementos infinitos? Cantor mostrou, utilizando um método de diagonalização, que este não é o caso. O conjunto dos números reais não é enumerável. Foi assim que nasceram os números transfinitos. Os números reais têm um grau de infinitude maior, por assim dizer, do que os números naturais. Lembremos, como vimos anteriormente, que os números reais segundo a hipótese do contínuo preenchem a reta. Portanto, o número de pontos na reta é transfinito.

Para denotar esta hierarquia de infinitos, Cantor tomou emprestada uma letra do alfabeto hebraico, o aleph, (\aleph). Ele chamou o infinito contável dos números naturais aleph sub-zero, (\aleph_0) e ao infinito incontável dos números reais ou ao infinito do contínuo numérico da linha reta, ele o chamou de aleph sub-um, (\aleph_1). Além disso, no aleph sub-um apresenta-se também o mesmo paradoxo do infinito, pois o número de pontos de um segmento de reta e o número de pontos de toda a reta são equivalentes, ou seja, pode-se estabelecer uma correspondência termo a termo (neste caso ponto a ponto) entre o número de pontos de um segmento e o número de pontos de toda a reta. Além do mais, esta correspondência também pode ser estabelecida entre o número de pontos na reta, o número de pontos no plano e o número de pontos no espaço tridimensional. Assim, o número de pontos de um determinado segmento, da reta, do plano bidimensional e do espaço tridimensional é o mesmo, número transfinito denominado \aleph_1 por Cantor.

Procurando o significado filosófico de tudo isto, podemos equiparar o dos números naturais à ideia de tempo sucessivo, ao passado, ao presente e ao futuro. Da mesma forma que o presente é um ponto incompreensível no tempo, a sucessão temporal sucessiva que chamamos de passado e futuro nada mais é do que uma ilusão da nossa mente. O infinito sucessivo é \aleph_0. Agora, pode haver algo além disso sucessão temporal ilusória? A matemática transfinita nos diz que sim, é \aleph_1. E curiosamente, há cerca de dois mil e quinhentos anos, um homem que deixou uma marca muito profunda na filosofia disse-nos que o tempo é a imagem em movimento da eternidade. Esse homem era Platão, e o diálogo em que ele o faz é o Timeu. Vamos pensar sobre as propriedades de \aleph_1. Está incluído em qualquer segmento geométrico que possamos conceber. Não é enumerável e da mesma forma que é impossível captar um ponto no espaço, também não podemos captar o momento presente. E além disso, a lógica simplista que nos diz que o todo é maior que a soma das suas partes desmorona, pois em cada região do plano ou espaço encontramos o mesmo número transfinito de pontos. O \aleph_1 é o símbolo matemático da eternidade, pois é igual a todo e qualquer uma de suas partes, independentemente do tamanho aparente.

Mais ainda, o mesmo raciocínio que fizemos para o tempo pode ser estendido ao espaço. Um número de pontos que se encontra ao longo de uma reta e em qualquer segmento desta, por menor que seja, um número que se encontra igualmente em qualquer região do plano e do espaço que tomemos, não importa o tamanho deste, indica-nos que o conceito de dimensão e extensão espacial também é ilusório. A ideia de comprimento desaparece, assim como a comparação entre o grande e o pequeno, da mesma forma que desapareceu a temporalidade do passado e do futuro. O tempo e o espaço nada mais são do que uma ilusão criada pela nossa mente. Platão, ao falar sobre as ideias puras ou os arquétipos, diz-nos a mesma coisa. Que os objetos físicos e os seres vivos nada mais são do que vestígios na matéria das ideias puras presentes no reino do inteligível.

À primeira vista, tudo isto nos parece absurdo. Isto porque estamos habituados a pensar que dois segmentos de comprimentos diferentes contêm um número diferente de pontos e que o tempo é uma sucessão discreta de instantes, um após o outro. Mas a matemática do infinito mostra-nos que uma sucessão ordenada de eventos extrapolados em direção ao infinito leva a uma série de paradoxos. O grande e o pequeno, o passado e o futuro nada mais são do que uma ilusão criada pela tendência da nossa mente de pensar sucessivamente. Como diriam os antigos hindus, nada mais são do que as vestimentas da Deusa Maya, a deusa da ilusão com aparência de realidade.


Notas:

[1] Platão, A República, livro VII, Ed. Alianza.

[2] É a opinião comumente aceite. Mas não é exatamente assim. Um rabino do século XVIII calculou através da gematria ou cábala o valor de π na Bíblia, encontrando 3.1416, que é uma aproximação muito boa. Veja-se o livro La proporción trascendental, págs. 26 e 27, editorial Ariel.

[Ver 1 Reis 7, 23: Fez também o mar de bronze de dez côvados (de diâmetro), duma borda à outra, redondo em toda a volta; a sua profundidade era de cinco côvados, e a sua circunferência media-se com um fio de trinta côvados.]

[3] A Doutrina Secreta, Volume I, pág. 88, ed. Sirio.

[4] A Doutrina Secreta, Volume I, pág. 74.

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