Postagem em destaque

Sobre o blog Summa Mathematicae

Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

Mais vistadas

Elementos de Euclides

Introdução

Os Elementos de Euclides formam um dos mais bonitos e influentes trabalhos da ciência na história da Humanidade. A sua beleza acentua no desenvolvimento lógico da geometria e de outros ramos da Matemática.

Os Elementos são, a seguir à Bíblia, um dos livros mais reproduzidos e estudados na história do mundo ocidental. Foi praticamente o único livro de texto usado no ensino da Matemática durante mais de dois milénios.

Os Elementos são uma compilação de resultados de autoria diversa, alguns já conhecidos desde há muito tempo. Por este fato, não devemos considerar que Euclides foi o descobridor da totalidade, nem sequer da maioria dos teoremas ou das teorias que apresenta nos seus livros.

Os treze volumes que constituem a sua obra, foram ao longo dos tempos estudados por muitos.

Na antiga Grécia, esta obra foi comentada por Herão (10-75), Proclo (410-485) e Simplício (490-560).

Na Idade Média, foi traduzido em latim e árabe, e após a descoberta da imprensa, fizeram-se numerosas edições na maioria das línguas europeias. A primeira foi de Campano (1220-1296), em latim, publicada após a sua morte (1482) e que foi muitas vezes citada por Pedro Nunes (1502-1578). Em Portugal, Angelo Brunelli em 1768, publicou uma tradução em português dos seis primeiros livros, do décimo primeiro e do décimo segundo.

Vários temas são abordados ao longo dos treze volumes.

Os livros I-IV tratam de geometria plana elementar. Partindo das mais elementares propriedades de retas e ângulos que conduzem à congruência de triângulos, à igualdade de áreas, ao teorema de Pitágoras (proposição 47, Livro I) e ao seu recíproco (proposição 48, Livro I), à construção de um quadrado de área igual à de um retângulo dado, à secção de ouro, ao círculo e aos polígonos regulares.

Como a maioria dos treze livros, o livro I começa com uma lista de definições, sem qualquer comentário como, por exemplo, as de ponto, reta, círculo, triângulo, ângulo, paralelismo e perpendicularidade de retas tais como:

"um ponto é o que não tem parte",

"uma reta é um comprimento sem largura"

"uma superfície é o que tem apenas comprimento e largura".

A seguir às definições, aparecem os postulados e os axiomas por esta ordem:

1. Dados dois pontos, há um segmento de reta que os une;

2. Um segmento de reta pode ser prolongado indefinidamente para construir uma reta;

3. Dados um ponto qualquer e uma distância qualquer pode-se construir um círculo de centro naquele ponto e com raio igual à distância dada;

4. Todos os ângulos retos são iguais;

5. Se uma linha reta cortar duas outras retas de modo que a soma dos dois ângulos internos de um mesmo lado seja menor do que dois retos, então essas duas retas, quando suficientemente prolongadas, cruzam-se do mesmo lado em que estão esses dois ângulos (É este o célebre 5º Postulado de Euclides).

Axioma 1

Coisas que são iguais à mesma coisa também são iguais entre si.

Axioma 2

Se iguais forem somados a iguais, então os todos são iguais.

Axioma 3

Se iguais forem subtraídos a iguais, então os restos são iguais.

Axioma 4

Coisas que coincidem umas com outras são iguais entre si.

Axioma 5

O todo é maior que a parte.

Assim, três conceitos fundamentais - o de ponto, o de reta e o de círculo - os cinco postulados e axiomas, a eles referentes, servem de base para toda a geometria euclidiana.

O livro V apresenta a teoria das proporções de Eudoxo (408 - 355 a. C.) na sua forma puramente geométrica.

O livro VI, aplica a teoria das proporções, à semelhança de figuras planas. Aqui voltamos ao teorema de Pitágoras e à secção de ouro (proposições 31 e 30, Livro VI), mas agora como teoremas respeitantes a razões de grandezas. É de particular interesse o teorema (proposição 27, Livro VI) que contém o primeiro problema de maximização que chegou até nós, com a prova de que o quadrado é, de todos os retângulos de um dado perímetro, o que tem área máxima.

Os livros VII-IX, são dedicados a conceitos sobre teoria dos números tais como a divisibilidade de inteiros, a adição de séries geométricas e algumas propriedades dos números primos. Encontramos também, o "algoritmo de Euclides", para determinar o máximo divisor comum entre dois números (proposição 2, Livro VII), o mais antigo registro, de uma prova formal, por recorrência, (proposição 31, Livro VII), e ainda o "Teorema de Euclides", segundo o qual existe uma infinidade de números primos (proposição 20, Livro IX).

O livro X, o mais extenso de todos e muitas vezes considerado o mais difícil, contém a classificação geométrica de irracionais quadráticos e as suas raízes quadráticas. Neste livro surge a prova da irracionalidade de $\sqrt {2}$.

Os livros XI-XIII, são conhecidos pelo nome de livros estereométricos, por neles serem consideradas figuras da geometria tridimensional. O livro XI é dedicado ao paralelismo e à perpendicularidade de retas e planos, e ao estudo de ângulos sólidos e de prismas. No livro XII, Euclides estabelece razões entre áreas de figuras planas e entre volumes de sólidos, por um método que mais tarde passou a ser designado por método de exaustão. Finalmente, o livro XIII, trata do estudo dos cinco poliedros regulares, atualmente conhecidos por sólidos platónicos.

No link abaixo é possível acessar a obra completa em inglês:

http://aleph0.clarku.edu/~djoyce/java/elements/toc.html

Elementos (de Geometria) de Euclides. A tradução dos seis primeiros livros, do décimo primeiro e décimo segundo livro da versão latina de Frederico Commandino pode ser encontrada em domínio público aqui: Link.

Fonte:

ARAÚJO, Helena; GARAPA, Marco; LUÍS, Rafael. Elementos de Euclides - Livros VII e IX. Universidade da Madeira. Funchal, 2005.


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.


Receba novos posts por e-mail:


Definição de Número, por Elon Lages Lima

Elon Lages Lima

Números Naturais

"Deus criou os números naturais. O resto é obra dos homens." Leopold Kronecker

1. Introdução

Enquanto os conjuntos constituem um meio auxiliar, os números são um dos dois objetos principais de que se ocupa a Matemática. (O outro é o espaço, junto com as figuras geométricas nele contidas.)

Números são entes abstratos, desenvolvidos pelo homem como modelos que permitem contar e medir, portanto avaliar as diferentes quantidades de uma grandeza.

Os compêndios tradicionais dizem o seguinte:

"Número é o resultado da comparação entre uma grandeza e a unidade. Se a grandeza é discreta, essa comparação chama-se uma contagem e o resultado é um número inteiro; se a grandeza é contínua, a comparação chama-se uma medição e o resultado é um número real."

Nos padrões atuais de rigor matemático, o trecho acima não pode ser considerado como uma definição matemática, pois faz uso de idéias (como grandeza, unidade, discreta, contínua) e processos (como comparação) de significado não estabelecido. Entretanto, todas as palavras que nela aparecem possuem um sentido bastante claro na linguagem do dia-a-dia. Por isso, embora não sirva para demonstrar teoremas a partir dela, a definição tradicional tem o grande mérito de nos revelar para que servem e por qual motivo foram inventados os números. Isto é muito mais do que se pode dizer sobre a definição que encontramos no nosso dicionário mais conhecido e festejado, conforme reproduzimos a seguir.

Número. [Do lat. numeru.] S.m. 1. Mat. O conjunto de todos os conjuntos equivalentes a um conjunto dado. 

(...)

2.3 O Conjunto dos Números Naturais

Lentamente, à medida em que se civilizava, a humanidade apoderou-se desse modelo abstrato de contagem (um, dois, três, quatro, ...) que são os números naturais. Foi uma evolução demorada. As tribos mais rudimentares contam apenas um, dois, muitos. A língua inglesa ainda guarda um resquício desse estágio na palavra thrice, que tanto pode significar "três vezes" como "muito" ou "extremamente".

Algo parecido ocorre no idioma francês, onde as palavras très (muito) e trop (demasiado) são claramente vocábulos cognatos de trois (três), bem como em italiano, onde troppo (excessivamente) derivada de tre (três). É curioso observar que, em alemão, o fenômeno se dá com viel que significa "muito" enquanto vier quer dizer "quatro". Coincidência, ou os germânicos estavam um passo à frente dos bretões gauleses e romanos?

As necessidades provocadas por um sistema social cada vez mais complexo e as longas reflexões, possíveis graças à disponibilidade de tempo trazida pelo progresso econômico, conduziram, através dos séculos, ao aperfeiçoamento do extraordinário instrumento de avaliação que é o conjunto dos números naturais.

Decorridos muitos milênios, podemos hoje descrever concisa e precisamente o conjunto $\mathbb{N}$ dos números naturais, valendo-nos da notável síntese feita pelo matemático italiano Giuseppe Peano no limiar do século 20.

$\mathbb{N}$ é um conjunto, cujos elementos são chamados números naturais. A essência da caracterização de $\mathbb{N}$ reside na palavra "sucessor". Intuitivamente, quando $ n,\ \ n' \in \mathbb{N}$, dizer que $n'$ é o sucessor de $n$ significa que $n'$ vem logo depois de $n$, não havendo outros números naturais entre $n$ e $n'$. Evidentemente, esta explicação apenas substitui "sucessor" por "logo depois", portanto não é uma definição. O termo primitivo "sucessor" não é definido explicitamente. Seu uso e suas propriedades são regidos por algumas regras, abaixo enumeradas:

a) Todo número natural tem um único sucessor;

b) Números naturais diferentes têm sucessores diferentes;

c) Existe um único número natural, chamado um e representado pelo símbolo $1$, que não é sucessor de nenhum outro;

d) Seja $X$ um conjunto de números naturais (isto é, $X \subset \mathbb{N}$). Se $1\in X$ e se, além disso, o sucessor de todo elemento de $X$ ainda pertence a $X$, então $X =\mathbb{N}$.

As afirmações a), b), c) e d) acima são conhecidas como os axiomas de Peano. Tudo o que se sabe sobre os números naturais pode ser demonstrado como conseqüência desses axiomas.

Um engenhoso processo, chamado sistema de numeração decimal, permite representar todos os números naturais com o auxílio dos símbolos $0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8$ e $9$. Além disso, os primeiros números naturais têm nomes: o sucessor do número um chama se "dois", o sucessor de dois chama-se "três", etc. A partir de um certo ponto, esses nomes tornam-se muito complicados, sendo preferível abrir mão deles e designar os grandes números por sua representação decimal. (Na realidade, os números muito grandes não possuem nomes. Por exemplo, como se chamaria o número $10^{1000}$?).

Deve ficar claro que o conjunto $\mathbb{N} = \{1,2,3, . . . \}$ dos números naturais é uma seqüência de objetos abstratos que, em princípio, são vazios de significado. Cada um desses objetos (um número natural) possui apenas um lugar determinado nesta seqüência. Nenhuma outra propriedade lhe serve de definição. Todo número tem um sucessor (único) e, com exceção de $1$, tem também um único antecessor (número do qual é sucessor).

Vistos desta maneira, podemos dizer que os números naturais são números ordinais: $1$ é o primeiro, $2$ é o segundo, etc.

Um Pequeno Comentário Gramatical

Quando dizemos "o número um", "o número dois" ou "o número três", as palavras "um", "dois" e "três" são substantivos, pois são nomes de objetos. Isto contrasta com o uso destas palavras em frases como "um ano, dois meses e três dias", onde elas aparecem para dar a idéia de número cardinal, isto é, como resultados de contagens. Nesta frase, "um", "dois" e "três" não são substantivos. Pertencem a uma categoria gramatical que, noutras línguas (como francês, inglês e alemão, por exemplo) é chamada adjetivo numeral e que os gramáticos brasileiros e portugueses, há um par de décadas, resolveram chamar de numeral apenas. Este comentário visa salientar a diferença entre os números naturais, olhados como elementos do conjunto $\mathbb{N}$, e o seu emprego como números cardinais. 

(...)

Recomendação

1. Não se deve dar muita importância à eterna questão de saber se $0$ (zero) deve ou não ser incluído entre os números naturais. (Vide "Meu Professor de Matemática", pág. 150.) Praticamente todos os livros de Matemática usados nas escolas brasileiras consideram $0$ como o primeiro número natural (conseqüentemente $1$ é o segundo, $2$ é o terceiro, etc). Como se viu acima, não adotamos esse ponto-de-vista. Trata-se, evidentemente, de uma questão de preferência. Deve-se lembrar que o símbolo $0$ (sob diferentes formas gráficas) foi empregado inicialmente pelos maias, posteriormente pelos hindus, difundido pelos árabes e adotado no ocidente, não como um número e sim como um algarismo, com o utilíssimo objetivo de preencher uma casa decimal vazia. (No caso dos maias, a base do sistema de numeração era $20$, e não $10$.) De resto, a opção do número natural para iniciar a seqüência não se limita a escolher entre $0$ e $1$. Freqüentemente esquecemos que, do mesmo modo que conhecemos e usamos o zero mas começamos os números naturais com $1$, a Matemática grega, segundo apresentada por Euclides, não considerava 1 como um número. Nos "Elementos", encontramos as seguintes definições:

"Unidade é aquilo pelo qual cada objeto é um. Número é uma multitude de unidades".

(...)

A palavra "número" no dicionário

As vezes se diz que os conjuntos $X$ e $Y$ são (numericamente) equivalentes quando é possível estabelecer uma correspondência biunívoca $f: X \rightarrow Y$, ou seja, quando $X$ e $Y$ têm o mesmo número cardinal.

Isto explica (embora não justifique) a definição dada no dicionário mais vendido do país. Em algumas situações, ocorrem em Matemática definições do tipo seguinte: um vetor é o conjunto de todos os segmentos de reta do plano que são equipolentes a um segmento dado. (Definição "por abstração".) Nessa mesma veia, poder-se-ia tentar dizer: "número cardinal de um conjunto é o conjunto de todos os conjuntos equivalentes a esse conjunto." No caso do dicionário, há um conjunto de defeitos naquela definição, com um número cardinal razoavelmente elevado. Os três mais graves são:

1. Um dicionário não é um compêndio de Matemática, e muito menos de Lógica. Deve conter explicações acessíveis ao leigo (de preferência, corretas). As primeiras acepções da palavra "número" num dicionário deveriam ser "quantidade" e "resultado de uma contagem ou de uma medida".

2. A definição em causa só se aplica a números cardinais, mas a idéia de número deveria abranger os racionais e, pelo menos, os reais.

3. O "conjunto de todos os conjuntos equivalentes a um conjunto dado" é um conceito matematicamente incorreto. A noção de conjunto não pode ser usada indiscriminadamente, sem submeter-se a regras determinadas, sob pena de conduzir a paradoxos, ou contradições. Uma dessas regras proíbe que se forme conjuntos a não ser que seus elementos pertençam a, ou sejam subconjuntos de, um determinado conjunto-universo. Um exemplo de paradoxo que resulta da desatenção a essa regra é "o conjunto $X$ de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos." Pergunta-se: $X$ é ou não é um elemento de si mesmo? Qualquer que seja a resposta, chega-se a uma contradição.

(...)

Números Reais

4.1 Segmentos Comensuráveis e Incomensuráveis

Seja $AB$ um segmento de reta. Para medi-lo, é necessário fixar um segmento-padrão $u$, chamado segmento unitário. Por definição, a medida do segmento $u$ é igual a $1$. Estipularemos ainda que segmentos congruentes tenham a mesma medida e que se $n - 1$ pontos interiores decompuserem $AB$ em $n$ segmentos justapostos então a medida de $AB$ será igual à soma das medidas desses $n$ segmentos. Se estes segmentos parciais forem todos congruentes a $u$, diremos que $u$ cabe $n$ vezes em $AB$ e a medida de $AB$ (que representaremos por $\overline {AB}$) será igual a $n$.

Pode ocorrer que o segmento unitário não caiba um número exato de vezes em $AB$. Então a medida de $AB$ não será um número natural. Esta situação conduz à idéia de fração, conforme mostraremos agora.

Procuramos um pequeno segmento de reta $w$, que caiba $n$ vezes no segmento unitário $u$ e $m$ vezes em $AB$. Este segmento $w$ será então uma medida comum de $u$ e $AB$. Encontrado $w$, diremos que $AB$ e $u$ são comensuráveis. A medida de $w$ será a fração $1/n$ e a medida de $AB$, por conseguinte, será $m$ vezes $1/n$, ou seja, igual a $m/n$.

Relutantes em admitir como número qualquer objeto que não pertencesse ao conjunto $\{2, 3, 4, 5, \}$, os matemáticos gregos à época de Euclides não olhavam para a fração $m/n$ como um número e sim como uma razão entre dois números, igual à razão entre os segmentos $AB$ e $u$.

Na realidade, não é muito importante que eles chamassem $m/n$ de número ou não, desde que soubessem, como sabiam, raciocinar com esses símbolos. (Muito pior eram os egípcios que, com exceção de $2/3$, só admitiam frações de numerador $1$. Todas as demais, tinham que ser expressas como somas de frações de numerador $1$ e denominadores diferentes. Por exemplo, $7/10$ no Egito era escrito como $1/3 + 1/5 + 1/6$.)

O problema mais sério é que por muito tempo se pensava que dois segmentos quaisquer eram sempre comensuráveis: sejam quais fossem $AB$ e $CD$, aceitava-se tacitamente que haveria sempre um segmento $EF$ que caberia um número exato n de vezes em $AB$ e um número exato $m$ de vezes em $CD$. Esta crença talvez adviesse da Aritmética, onde dois números naturais quaisquer têm sempre um divisor comum (na pior hipótese, igual a $1$).

A ilusão da comensurabilidade durou até o quarto século antes de Cristo. Naquela época, em Crotona, sul da Itália, havia uma seita filosófico-religiosa, liderada por Pitágoras. Um dos pontos fundamentais de sua doutrina era o lema "Os números governam o mundo". (Lembremos que números para eles eram números naturais, admitindo-se tomar razões entre esses números, formando as frações.) Uma enorme crise, que abalou os alicerces do pitagorismo e, por algum tempo, toda a estrutura da Matemática grega, surgiu quando, entre os próprios discípulos de Pitágoras, alguém observou que o lado e a diagonal de um quadrado são segmentos de reta incomensuráveis.

O argumento é muito simples e bem conhecido.

Figura 4.1

Se houvesse um segmento de reta $u$ que coubesse $n$ vezes no lado $AB$ e $m$ vezes na diagonal $AC$ do quadrado $ABCD$ então, tomando $AB$ como unidade de comprimento, a medida de $AC$ seria igual a $m/n$ enquanto, naturalmente, a medida de $AB$ seria $1$. Pelo Teorema de Pitágoras teríamos $(m/n)^2 = 1^2 + 1^2$, donde $m^2/n^2 = 2$ e $m^2 = 2n^2$. Mas esta última igualdade é absurda, pois na decomposição de $m^2$ em fatores primos o expoente do fator 2 é par enquanto em $2n^2$ é ímpar.

A existência de segmentos incomensuráveis significa que os números naturais mais as frações são insuficientes para medir todos os segmentos de reta.

A solução que se impunha, e que foi finalmente adotada, era a de ampliar o conceito de número, introduzindo os chamados números irracionais, de tal modo que, fixando uma unidade de comprimento arbitrária, qualquer segmento de reta pudesse ter uma medida numérica. Quando o segmento considerado é comensurável com a unidade escolhida, sua medida é um número racional (inteiro ou fracionário). Os números irracionais representam medidas de segmentos que são incomensuráveis com a unidade. 

No exemplo acima, quando o lado do quadrado mede $1$, a medida da diagonal é o número irracional $\sqrt{2}$. (O fato de que esta conclusão não depende do tamanho do quadrado que se considera, deve-se a que dois quadrados quaisquer são figuras semelhantes.)

Recomendação

1. Nos meios de comunicação e entre pessoas com limitado conhecimento matemático, a palavra incomensurável é muitas vezes usada em frases do tipo: havia um número incomensurável de formigas em nosso piquenique. Nunca diga isso. Incomensurabilidade é uma relação entre duas grandezas da mesma espécie; não dá idéia de quantidade muito grande. Uma palavra adequada no caso das formigas seria incontável ou imenso. Noutros casos, como um campo gigantesco, poderia ser imensurável ou imenso. Mas nada é incomensurável, a não ser quando comparado com outro objeto (grandeza) da mesma espécie.

(...)

Recomendação 2

A maioria de nossos livros escolares define número racional como "o número que pode ser expresso como quociente de dois inteiros", número irracional como "o número que não é racional" e $\mathbb{R}$ como o conjunto dos números racionais mais os irracionais. Como seus autores não dizem o que entendem por "número", resulta de suas definições que um número musical ou um número de uma revista são números irracionais. Não se deve adotar esse tipo de atitude. É verdade que a apresentação rigorosa da teoria dos números reais (conforme feita nos cursos de Análise) foge inteiramente ao nível e aos objetivos do ensino médio. Mas isto não deve ser motivo para escamoteações. Pelo contrário, quando se tem que falar sobre números reais para uma audiência matematicamente imatura, tem-se aí uma boa oportunidade para fazer a ligação entre a Matemática e o cotidiano, apresentando-os como resultados de medições, como tentamos explicar aqui.

Retirado do livro A Matemática do Ensino Médio, Volume 1. Autores: Elon Lages Lima, Paulo Cezar Pinto Carvalho, Eduardo Wagner e Augusto César Morgado. 10 ed. - Rio de Janeiro: SBM, 2012.


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.


Receba novos posts por e-mail:


Os Termos da Educação Clássica Católica

Um grupo de discípulos estuda uma lição com
seu mestre, que lê. Iluminura do século XIII
(Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris,
MS 2200, folio 58).

Para uma correta compreensão sobre a educação católica e os princípios da educação clássica, urge esclarecer o significado de alguns termos, tais como Educação, Artes Liberais e Ciências

Educação

É o cultivo da sabedoria e da virtude na alma através da promoção do verdadeiro, do bom e do belo. Deve ser distinguida de treinamento, que embora de necessário e grande valor, serve para formar as habilidades necessárias para uma carreira ou profissão, enquanto a educação vê o homem de uma maneira elevada.

Educação Clássica

É o cultivo da sabedoria e da virtude através da promoção do verdadeiro, do bom e do belo por meio das sete artes liberais e das quatro ciências. Historicamente, a educação clássica seguiu dois fluxos que frequentemente jorraram juntos:

A ênfase Retórica

Em que os professores guiam seus alunos a contemplar os grandes textos e obras de arte, acreditando que esta contemplação os ajudará a crescer em sabedoria e virtude

A ênfase Filosófica

Em que os professores guiam seus alunos através da análise de ideias por meio do diálogo Socrático, acreditando que o discernimento do coração das coisas permitirá aos alunos crescerem em conhecimento e virtude.

Historicamente, essas duas ênfases que embora muitas vezes estiverem em conflito mesmo não sendo mutuamente exclusivas, deram origem a dois modos de instrução: A Instrução Mimética, ou Didática, e a Instrução Socrática, que veremos mais adiante*.

Educação Clássica Católica

É o cultivo da sabedoria e da virtude através da promoção do verdadeiro, do bom e do belo por meio das sete artes liberais e das quatro ciências a fim de que em Cristo os estudantes possam melhor conhecer, glorificar e servir a Deus, como bons cristãos e cidadãos.

Como Santo Tomás de Aquino o expressou, resumindo o ensino dos padres da Igreja, a graça não destrói  a natureza, mas a aperfeiçoa. A Educação Clássica Católica purifica e aperfeiçoa os grandes feitos dos antigos gregos e romanos. Construir algo mais perfeito sobre o que foi bem construído no passado sempre foi a prática da Igreja, podemos ver isso claramente em Santo Agostinho. Foram os progressistas e pragmatistas do século XX que buscaram, contra o passado, minar essas conquistas.

Arte

Arte, no sentido de “Artes Liberais” é o modo de produzir algo além da própria arte. As artes liberais estão ordenadas a produzir conhecimento e por isso são as artes do pensamento.

De fato, a palavra latina artes é a tradução da grega τέχνες, ou techne, de onde originam palavras como tecnologia ou técnica. Quando uma pessoa aprende uma arte, dirige sua atenção para aprender uma habilidade, não apenas o conteúdo ou informação sobre o tema.

As artes liberais não estão, por isso, preocupadas com a familiaridade superficial em um grande leque de assuntos. Ao invés disso, preocupam-se com as habilidades mentais, com as competências fundamentais de pensamento que são necessárias para aprender qualquer assunto.

As sete Artes Liberais

As sete artes liberais são as artes do pensamento. De acordo com a tradição católica, a Razão separa o homem de todos os outros animais.

Em particular, apenas os homens são capazes de pensar usando símbolos, palavras, números, formas e representações musicais ou visuais. Por isso, a habilidade e competência no uso da linguagem são essenciais para o total desenvolvimento da pessoa. As artes dedicadas a refinar nossa habilidade de uso de linguagem são as três artes do Trivium:

Gramática

Arte de inventar e combinar símbolos

Lógica, ou Dialética

Arte de pensar

Retórica

Arte de comunicar-se

Adicionalmente, nenhum outro animal pode usar números e formas como o homem. Mesmo a música advém de nossa habilidade de ouvir com a alma a relação de números em suas razões e proporções. As artes desenvolvidas para refinar nossa habilidade de usar os números, as formas e suas relações são as quatro artes do Quadrivium:

Aritmética

Teoria do número

Música

Aplicação da teoria do número

Geometria

Teoria do espaço

Astronomia

Aplicação da teoria do espaço

Juntos, o Trivium e o Quadrivium são chamados artes liberais porque são as artes que todo homem livre pode dominar e as artes que são necessárias para ser livre. O que não é capaz de dominá-las, não é verdadeiramente livre. Por exemplo, aquele que não domina a arte da lógica será vítima de manipuladores, tanto externos (na sociedade) quanto internos (na alma); do mesmo modo, aquele que não domina a arte da retórica será incapaz de expressar seus pensamentos apropriadamente.

O Trivium

O Trivium consiste nas três artes verbais da gramática, dialética (ou lógica) e retórica.

Gramática

Do grego γραμματικός ou grammatikos, é melhor traduzido por letras, carregando todos os significados que essa palavra tem para nós. A gramática cultiva a habilidade de interpretar símbolos. Primeiro interpretamos letras individuais e fonemas, então interpretamos palavras e, finalmente, interpretamos textos, obras de arte e artefatos;

Lógica ou Dialética

É a arte de pensamento material e formal. A lógica formal pergunta “Como pensamos corretamente?”, isto é, “Qual a forma de um pensamento válido?” enquanto a lógica material pergunta “O que pensamos sobre?”, isto é, “Qual a matéria do pensamento?”;

Retórica

É a arte de expressar-se bem, embora Aristóteles a reduza para a arte da persuasão.

Dorothy Sayers em seu “Lost Tools of Learning”** desenvolveu uma teoria e aplicação do trivium que sugere que cada arte corresponde ao estado de crescimento de uma criança. Muito do movimento atual de renascimento da Educação Clássica se nutre dessa interpretação.

O Quadrivium

O Quadrivium consiste em quatro artes matemáticas. Para raciocinar de forma lógica e estética, o indivíduo deve ser apto a interagir com o que os antigos chamavam magnitude (geometria e astronomia) e multitude (aritmética e música ou harmonia). A mente que não é treinada no quadrivium não é, ainda, verdadeiramente educada.

Aritmética

É a arte de aprender as propriedades dos números, como se comportam, como se operam;

Geometria

É a a arte de aprender as propriedades de formas. É essencial para a lógica dedutiva e raciocínio espacial;

Música

É a arte da proporção. A Álgebra é um maneira muito eficiente e abstrata de expressar propriedades musicais, mas para nos beneficiar da música, não podemos nos reduzir à Álgebra. A música é uma janela ou mesmo uma porta ao espiritual. Quando um estudante ouve a ordenadas composições, a ordem da matemática penetra diretamente na alma pelo ouvido;

Astronomia

É a arte das formas em movimento. Poderíamos dizer que é a porta para a Física e demais ciências naturais.

As Ciências

A Ciência é o modo de investigação ou domínio de saber que surge do modo de investigação da Educação.

A palavra ciência vem do latim scientia que significa conhecimento e não é, absolutamente, limitada aos conhecimentos dados pelas ciências naturais. Posteriormente veremos como entre as ciências estão as ciências naturais, as ciências humanas ou morais, as ciências filosóficas e a ciência teológica, nessa ordem de gradação.

O objetivo da ciência é conhecer as causas das coisas. No século XVII, os cientistas naturais começaram a usar o termo ciência para suas próprias questões, rejeitando tudo o que estivesse fora de suas ferramentas de investigação.

Nós rejeitamos essa falsa asserção e usamos o termo em seu sentido mais correto e clássico.

Ciências Naturais

As Ciências Naturais são ciências de ordem física, tal qual a biologia, a química e a física. Todas as ciências combinam ou refinam essas três. A ciência é o domínio do saber ordenado a um princípio unificador, o logos. O mundo clássico buscou durante séculos este princípio integrador, até que Ele mesmo se fez carne e habitou entre nós. Cristo é o Logos que liga todos os assuntos em uma harmonia universal, faz sentido de todas as coisas e eleva o aprendizado e o conhecimento ao reino do significado eterno.

Biologia

é a ciência ordenada a buscar compreender as causas do ser e da mudança nos seres vivos;

Física

é a ciência ordenada a investigar sobre as forças que provocam mudança no mundo físico;

Química

é a ciência ordenada a investigar sobre os elementos constitutivos das coisas físicas

O modo de investigação das ciências naturais é a investigação das causas materiais e eficientes. A observação e a medida são particularmente aptas a esse domínio. O objetivo das ciências naturais é conhecer as causas da mudança no mundo físico, de modo a agir sabia e virtuosamente em relação ao cosmos

Ciências Humanas

As Ciências Humanas são as ciências de ordem moral; isto é, são as ciências do comportamento e da alma humana, nomeadamente a ética e a política.

Ética

é a ciência que questiona sobre o cumprimento do potencial e sobre o fim do homem. Em uma palavra, pergunta-se como o homem pode se tornar virtuoso. Muitos estudos descendem da ética, como a psicologia.

Política

é a ciência que questiona sobre o conjunto de homens e como ele pode habilitar seus membros e a si mesma para cumprir seu potencial e seu fim. Em uma palavra, pergunta-se como um grupo de homens pode atingir a virtude. Muitos estudos descendem da política, como a economia, história, etc.

As ciências humanas são erguidas sobre, de maneira mais elevada, as artes naturais. O modo de investigação das ciências humanas é o compromisso dialético com obras das artes, investigações históricas e reflexões sérias no movimento da alma humana. O objetivo das ciências humanas é conhecer as causas do comportamento humano, de modo a conseguir a virtude para si mesmo e a cultivar nos outros.

Ciências Filosóficas

As Ciências Filosóficas são as ciências da metafísica e da epistemologia. O objetivo das ciências filosóficas é conhecer as causas e os limites do conhecimento humano e conhecer a causalidade em si. As ferramentas da investigação filosófica são uma forma altamente refinada de dialética e a contemplação.

É na metafísica que a distinção entre educação modernista e educação clássica é mais claramente vista. Para o modernista, especialmente depois de John Dewey, a metafísica é uma perda de tempo porque só podemos saber o que as ciências naturais nos revelam. Assim, a educação moderna é impulsionada pela experimentação e medição. O educador modernista determinou que o conhecimento é a adaptação de um organismo ao seu ambiente.

O educador clássico, por outro lado, é deliberadamente metafísico e não se aproxima da filosofia com desespero. Ele acredita que o mundo em que vivemos é real e é cognoscível. Portanto, para o educador clássico, o conhecimento é adquirido quando aquele que o busca encontra uma ideia incorporada ou encarnada em uma realidade concreta.

Quando o educador modernista ensina, seu objetivo é uma adaptação ao ambiente, ou o que é comumente chamado de aplicação prática. Quando um educador clássico ensina, seu objetivo é sabedoria e virtude. Isso terá muitas aplicações práticas, mas também incluirá a capacidade de saber quando se adaptar ao ambiente – quando resistir e quando ser martirizado por ele.

A grande ironia é que o modernista torna o aluno incapaz de fazer aplicações práticas sólidas porque ele deturpa a realidade e, assim, dificulta a adaptação a ela. Enquanto isso, o educador clássico permite que o estudante pense em termos de circunstâncias sem abandonar a virtude.

Ciências Teológicas

A Ciência Teológica é a ciência do conhecimento da causa primeira, ou do próprio Deus.

Todas as ferramentas das ciências inferiores são usadas para conhecimento teológico, mas o cristão reconhece que a Revelação Divina revela coisas que outras ciências não podem descobrir. O objetivo da teologia é ordenar todo conhecimento para essa primeira causa.

Princípios Curriculares

1. Verdade

2. Bondade

3. Beleza

4. Sabedoria

5. Virtude

6. Personalidade

7. Liberdade

8. Justiça

9. Comunidade

10. O Ser

11. Modo

12. Mudança

13. Glória

14. Honra

15. Imortalidade

Retirado do site: Link

*Postei este texto aqui: Link

** Este livro da Dorothy Leigh Sayers foi publicado em português pelas Edições Kírion com o título "As ferramentas perdidas da aprendizagem" em 2023


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.


Receba novos posts por e-mail:

Uma breve história do livro

Codex Sinaiticus, um manuscrito da
Septuaginta do século IV,
escrito entre 330 e 350.
Trecho retirado do livro História da Educação na Idade Média de Ruy Afonso da Costa Nunes de 1979 e republicado em 2018 pelas Edições Kírion.

10. Convém, em tempo, lembrar com Régine Pernoud que no início da Idade Média -- época de Gregório de Tours e de Radegunda na Gália -- espalhou-se o livro na forma com que ainda hoje se apresenta, o codex, que substituiu o volumen, o rolo antigo de papiro ou pergaminho (13). Foi nas escolas e entre as seitas religiosas, observa Piganiol, que se desenvolveu o uso do livro com folhas, codex, desde livro o século IV, e só as obras literárias antigas transcritas dos volumina de papiro nos códices de pergaminho lograram sobreviver e, por isso, diz ele, saudemos com reconhecimento a aparição do livro (14). De modo mais preciso ensina D. Paulo Evaristo Arns que as valiosas obras cristãs e pagãs foram preservadas, graças aos escritores cristãos do século IV que escreveram no pergaminho, material de escrita feito da pele de animais e cujo nome procede, segundo antiga tradição, de Pérgamo, cidade da Ásia Menor que floresceu cerca de 300 a.C. (15). McMurtrie explica com minúcias o aparecimento dos livros no formato atual, de folhas ligadas e cosidas de um lado, que se generalizaram no século IV da era cristã, quando os juristas do Baixo Império Romano verificaram que o códice era mais conveniente para os seus livros de leis .que o rolo, volumen. "No códice (codex), explica McMurtrie, as folhas de pergaminho, em vez de serem coladas pelas extremidades e depois enroladas, dobravam-se para formar duas, e as coleções ou grupos destas folhas dobradas ligavam-se pelos vincos" (16). O códice, tal como o rolo, era escrito à mão e, por isso, estas duas espécies de livros antigos são conhecidas, segundo a designação latina, por libri ou codices manu scripti, livros ou códices escritos à mão. Esses livros manuscritos passaram por grande aperfeiçoamento na Irlanda nos séculos VI, VII e VIII, graças à arte caligráfica e às maravilhosas iluminuras feitas nos escritórios monásticos. A execução caligráfica dos monges irlandeses, diz McMurtrie, nunca foi ultrapassada em originalidade do desenho e em habilidade de confecção, e o seu mais célebre exemplar é o Livro de Kells que contém os evangelhos em latim e foi classificado por mais de um escritor como "o livro mais belo do mundo" (17). 

Durante a Alta Idade Média, até o século XII, a composição dos livros fazia-se principal ou exclusivamente nos escritórios, scriptoria, dos mosteiros onde essa arte manuscrita atingiu as culminâncias com a preciosidade das iluminuras e com notável habilidade caligráfica. No século XIII, devido à necessidade de livros para o ensino universitário, iniciaram-se a indústria e o comércio livreiro em grande escala, pois o librarius, editor dos códices manuscritos, não só mantém a livraria no quarteirão da escola - o vendedor é o stationarius - como trata de multiplicar os exemplares com o auxílio dos estudantes pobres que faziam cadernos e transcreviam livros a fim de ganhar dinheiro para custearem os estudos. O aparecimento do códice de pergaminho no século IV de nossa era levou ao rápido desaparecimento do papiro que predominara antes como material de escrita e começou a ser substituído pelo papel, de início charta bombycina, depois só bombycina, em 1231 charta papyri e, por fim, papyrus em 1311 (18).

11 . Na mesma época em que aparecia o códice, surgiu também o estilo da escrita "uncial", da palavra uncia, polegada, a duodécima parte de um pé, devido ao tamanho exagerado das letras. O estilo uncial já deixa ver como viriam a ser as minúsculas e predominou até o século VIII ou IX. As antigas letras maiúsculas ficaram reservadas para títulos de relevo, como os dos capítulos, em latim capita, donde o atual nome de "capitais". A partir do século V, a indústria do livro desapareceu e a cópia dos livros refugiou-se nos mosteiros. Daí o compartimento monástico dos escritórios e o cuidado dos grandes mentores culturais da época, como Boécio, Cassiodoro, Santo Isidoro de Sevilha e São Beda, de comporem livros de ortografia. As letras semi-unciais, no estilo das minúsculas, manifestaram a tendência de ligarem certas combinações de letras e foram aperfeiçoadas, por volta do ano 700, pelos monges irlandeses que criaram, diz McMurtrie, uma escrita admirável, uma das mais belas que já existiram. Essa escrita foi adotada pelos escribas carolíngios do mosteiro de Tours onde se desenvolveu a letra minúscula carolina (de Carolus Magnus) e se generalizou o uso do espaço entre as palavras para facilitar a leitura. Apesar do aparecimento das elegantes letras góticas no século XII, os humanistas do Renascimento, no início do século XV, adotaram a minúscula carolina que, fixada nos tipos de metal por Gutenberg, serviu de letra de imprensa, de modo que os nossos livros e impressos de hoje têm uma dívida notável para com os monges da Irlanda, da Inglaterra e da Gália d os séculos VIII e IX. 

A escrita carolina, ensina Dawson no seu livro A Formação da Europa, parece ter surgido na abadia de Corbie, na segunda metade do século VIII, tendo sido aperfeiçoada no famoso scriptorium da abadia de Alcuíno em Tours. A sua difusão, por certo, deveu-se ao emprego que dela fizeram Alcuíno e os seus monges nas transcrições dos livros litúrgicos, executadas por ordem do imperador. Montalembert declara na sua famosa obra Os Monges do Ocidente que a transcrição dos manuscritos era a principal e mais constante ocupação das beneditinas letradas e que não se avaliam os serviços que prestaram à ciência e à história as mãos delicadas das religiosas da Idade Média. "Elas punham, diz ele, nesse trabalho uma habilidade, uma elegância e uma atenção, que os próprios monges não podiam atingir, e nós lhes devemos alguns dos mais belos monumentos da maravilhosa caligrafia dessa época" (19).

12. Os copistas medievais tinham os seus instrumentos de trabalho, e os principais eram as penas e a tinta, pois empregavam, também, facas, raspadoras, etc., para lidarem com o pergaminho e a encadernação. O escriba antigo (antiquarius, librarius, scriptor, scriba, notarius, clericus) usava o estilete de ponta metálica para escrever nas tabuinhas de cera e a pena de cana, calamus, nas "membranas" ou pergaminhos. No império romano popularizara-se a pena de bronze ou de prata, penna, pennula. Desde o século IV, época do códice, o escriba passou a utilizar a pena de ganso. O copista medieval usava no scriptorium a pena de cana, o cálamo, que era conservada num recipiente cilíndrico de madeira ou de metal, theca calamaria, theca canarum ou calamarium. As penas eram guardadas num estojo comprido, de acordo com o seu formato, a theca litteraria ou calamarum. Esses recipientes podiam, ainda, comportar um tinteiro, atramentarium, incausterium ou calamarium. Guardava-se a tinta em chifres de veado (cornu), um para tinta preta e outro para a vermelha, e eles eram pendurados na parede ou colocados no vão de uma janela. O copista experimentava a pena muitas vezes, robationes, antes de iniciar o trabalho. A tinta era chamada atramentum librarium para distingui-la da tinta do sapateiro, atramentum sutorium. Quando era obtida por cozimento chamava-se encaustum, incaustum ou tincta, tingta, tinctura, de tingere, tingir. Desde o século III ou IV, fabricava-se tinta preta com sais metálicos, o sulfato de ferro e o sulfato de cobre. A tinta vermelha era feita de cinabre, minério de mercúrio, e servia para traçar letras ornamentais nos títulos, no começo, incipit, e no fim, explicit, dos textos, assim como para desenhar iluminuras. No período carolíngio começou a ser usada a tinta doirada e a prateada.

Citações:

(13) Nessa mesma época, diz a medievalista, foi elaborada a linguagem musical do canto-chão ou canto gregoriano que será a de todo o Ocidente até o nosso tempo. Régine Pernoud, Pour em funir avec le Moyen Âge, pág. 44.
(14) Piganiol, L'Empire Chrétien, pág. 393.
15 . Arns, E., "Book, the Ancient", em New Catholic Encyclopedia, vol. 2, págs. 680 - 684.
"Jérôme entre dans l'histoire au moment même où se déroule la lutte décisive entre le papyrus et le parchemin. Bien plus, si la victoire est restée à ce dernier, c'est grâce à l'entourage du moine de Bethléem et à celui de ses collegues latins." Arns, La Technique du Livre d'apres Saint Jérôme, pág. 23.
"L'amour du livre sacré et surtout la position officielle de l'Église a précipité l'évolution de la technique du livre em parchemin." Ibid, pág. 26.
(16) Douglas C. McMurtrie, O Livro, pág. 78.
(17) Ibid., pág. 82.
(18) A. Bruckner, "Book, the Medieval", in New Catholic Encyclopedia, vol. 2, págs. 684 - 689.
(19) Montalembert, Les Moines d'Occident, t. VI, pág. 190.

Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.

Receba novos posts por e-mail:

TCC: Uma breve descrição da ideia de infinito

Resumo do trabalho de conclusão de curso da graduação em Matemática de minha esposa Lizandra.

Desde as séries iniciais a ideia de infinito é apresentada na escola formal. É senso comum utilizar a palavra infinito para se referir a simplesmente algo muito grande. O real conceito de infinito foi algo perturbador aos filósofos gregos e durante a história surgiram estudiosos que tentaram compreender o real conceito de infinito, um desses foi o matemático Georg Cantor que desenvolveu a teoria do infinito. Diante disso, o objetivo deste trabalho é conhecer o que seja infinito, mais especificamente o infinito trabalhado na matemática, como alguns matemáticos lidaram com o conceito de infinito ao longo dos séculos, alguns paradoxos que surgiram ao se trabalhar com o infinito e a teoria desenvolvida por Georg Cantor. Foi feita uma pesquisa exploratória de natureza qualitativa se utilizando de um levantamento bibliográfico. Espera-se que esse trabalho possa ser usado como fonte de pesquisa por aqueles que desejem conhecer sobre o tema ou que precisem estudar para alguma disciplina relacionada ao assunto, que professores se utilizem da abordagem histórica aqui contida para executar aulas voltadas ao mesmo tema e que esta pesquisa possa futuramente desencadear outras.

Palavras-chave: Conjuntos infinitos. Infinito. Georg Cantor. Paradoxos. 

O trabalho completo pode ser encontrado aqui:

https://drive.google.com/file/d/1mWXdDgBvqlyEEuEQB51GRioqFgBnqKSk/view?usp=sharing


ATENÇÃO! Para ficar atualizado sobre o blog Summa Mathematicae, assine a newsletters abaixo ou na barra lateral do site. 

Observação: É necessário confirmar a inscrição no próprio e-mail.

Obrigado!


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.


Receba novos posts por e-mail:

As 4 causas da Educação Clássica

Busto de Aristóteles. Cópia romana
de uma escultura de Lísipo

Pensar profundamente sobre o conhecimento é algo particular da Filosofia. Em nossos tempos de pragmatismo e de opiniões, a filosofia pode ser vista com maus olhos pela sociedade, mas é importante fazer perguntas sobre as coisas que mais intimamente afetam nossas ações. Com efeito, uma das mais importantes noções filosóficas é a noção do ser e de suas causas: Como saber que determinada coisa é, verdadeiramente, aquela coisa?

Aristóteles, em seu livro Física, declara que sabemos que uma coisa é quando conhecemos suas causas, que são quatro: Causa material, causa formal, causa eficiente e causa final:

Causa material

Neste sentido se diz que é causa aquele constitutivo interno de que algo é feito, como por exemplo o bronze a respeito da estátua ou a prata a respeito da taça, bem como o gênero dessas coisas.

Causa formal

Em outro sentido, é a forma ou o modelo, isto é, a definição da essência e seus gêneros (…) e as partes da definição.

Causa eficiente

Em outro sentido é o princípio primeiro de onde vem a mudança ou o repouso, como o que quer algo é causa, como é também o pai é causa de seu filho, e de modo geral o que faz algo é causa do que é feito, e o que faz mudar é causa do que é mudado.

Causa final

E em outro sentido, causa é o fim, isto é, aquilo para o qual é algo, por exemplo: o caminhar é a causa da saúde. Pois por que caminhamos? Ao que respondemos: para ficar saudáveis, e ao dizer isso cremos ter indicado a causa. E também qualquer coisa que, sendo movida por outra coisa, chega a ser um meio para obter um fim, como os medicamentos e os instrumentos cirúrgicos são meios para obter a saúde. Todas essas coisas são para um fim, e se diferenciam entre si em que umas são atividades e outras, instrumentos.

Aristóteles, Física, Livro II, Cap. III

Um exemplo clássico para as quatro causas é uma escultura de homem: A causa material é a argila, a causa formal é de um homem, a causa eficiente é o escultor, a causa final é a apreciação visual.

Como adeptos da herança clássica, precisamos ver as quatro causas da educação clássica para clarear o seu real significado e incluir todos os aspectos essenciais.

Causa material da Educação Clássica

Examinemos, primeiramente, a causa material, pois assumimos que é a mais evidente. Do que é feita a educação? Livros? Fatos? Conhecimento? Estudantes? Qualquer uma dessas opções terá efeitos a longo alcance. Se escolhermos livros, todo o processo se torna abstrato e impessoal. Se escolhermos fatos, estaremos simplesmente formando robôs informativos? Embora livros e conhecimento sejam cruciais, são senão meios de moldar o material. A causa material da educação clássica é a própria criança – o estudante – e qualquer resposta diferente reduz a educação a fórmulas estereotipadas ou método.

Causa eficiente da Educação Clássica

Quem ou o que está afetando a mudança no aluno? Poderíamos propor que as informações apresentadas ou os exercícios trabalhados estejam educando a criança, mas a resposta, a causa eficiente da educação, é o professor. Afirmar que o professor é a causa eficiente está de acordo com o que Santo Agostinho diz em sua obra De Catechizandis Rudibus (Sobre a instrução dos ignorantes). Todo o trabalho de Santo Agostinho gira em torno de como o professor deve tornar seu discurso interessante, e como o professor deve conhecer intimamente seus alunos para personalizar a lição para eles.

Causa formal da Educação Clássica

Para cada professor, o objetivo de educar poderia ser diferente. Alguns professores podem querer que seus alunos consigam bons empregos, ou sejam imitadores de escolásticos medievais, homens da Renascença ou oradores dos tempos romanos. Qual destas é a melhor opção? Ou existe uma forma diferente que é melhor para moldar uma criança?

Santo Agostinho via a educação clássica, liberal, como a melhor maneira de preparar alguém para abraçar a fé cristã. A causa formal, então, é o ideal que o professor tem em mente sobre o que ele quer que o aluno se torne. Então podemos dizer que a forma que um professor deve moldar o estudante é a de uma pessoa instruída – uma pessoa qualificada nas artes liberais e mergulhada nos Grandes Livros, que é solo fértil para o Evangelho.

Causa final da Educação Clássica

Finalmente, a causa final: para que fim uma educação clássica é orientada? Por que deveríamos tentar moldar uma criança em uma pessoa educada de forma clássica, liberal? Pela mesma razão pela qual fomos criados: Ser à imagem e semelhança de Deus, Aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida. O paralelo à bondade, verdade e beleza é inconfundível. Que melhor maneira de nos colocar em correspondência com a nossa natureza do que poder reconhecer a verdade (sabedoria)? Que melhor maneira do que andar fielmente no Caminho (virtude)?

Para uma vida bela e plena, sabedoria e virtude são os dois componentes essenciais. Ao dizer que a causa final da educação clássica é sabedoria e virtude, o que estamos realmente afirmando é que queremos que a criança viva plenamente de acordo com a forma como foi criada: à imagem e semelhança de Deus. Reconhecemos que Deus é quem produz o objetivo final (Ele é o principal promotor do professor e trabalha diretamente na criança) e fazemos tudo o que podemos para “preparar o solo”.

Com base em tudo isso, conseguimos chegar a uma definição: A Educação Clássica é a formação da criança pelo professor em alguém habilidoso nas artes liberais e mergulhado nos Grandes Livros a fim de cultivar a sabedoria e a virtude. Examinemos, parte a parte, esta definição.

A Educação Clássica é a formação da criança pelo professor

Existe uma relação de orientador-orientado na educação que é essencial. Negar esta ordem, afirmando igualdade ou que as crianças aprendem com seus colegas é quebrar a corrente da tradição da qual o papel do professor é um elo essencial e indispensável – até quando a educação é feita de maneira autodidata, todo o processo de aprendizado é uma grande “conversa” entre o aluno e o professor, entre o leitor e autor, entre aquele que ensina e aquele que aprende.

em alguém habilidoso nas artes liberais

As artes liberais são habilidades específicas de domínio. Não se aprende gramática no vácuo; aprende-se gramática no contexto de uma língua (preferencialmente latina). Não se aprende habilidades de pensamento crítico fora do contexto; aprende-se as regras da lógica no contexto do argumento real. Não se aprende oratória através da abstração; aprende-se os meios de persuasão e como aplicá-los em um discurso ou artigo real. Não se aprende funções matemáticas sem números; aprende-se a teoria e a aplicação de números discretos e contínuos. Gramática, lógica, retórica, aritmética, geometria, música e astronomia, entendidas no sentido medieval, são a condição sine qua non da educação.

mergulhado nos Grandes Livros

A civilização, desde milhares de anos, foi inspirada por grandes ideais. Esses ideais são transmitidos nos melhores livros, histórias, diálogos, peças teatrais, discursos e ensaios da humanidade. Ser ignorante dessas obras é ignorar esses ideais. E como é que a criança vive numa sociedade que estima esses ideais se ele não os conhece? Destes livros, sem dúvida, o maior são os Santos Evangelhos e as Sagradas Escrituras.

a fim de cultivar a sabedoria e a virtude

Deve-se poder olhar para qualquer pessoa com formação clássica e dizer: “Eis uma pessoa cheia de bom caráter que sabe distinguir o certo do errado, o bem do mal e a verdade da falsidade". Ser virtuoso é ser de bom caráter. Ser sábio é ser capaz de fazer distinções (no jargão moderno, “pensar criticamente”). Todas as escolas clássicas devem ter a aquisição de sabedoria e virtude como seu objetivo.

A Educação Clássica é a formação da criança pelo professor em alguém habilidoso nas artes liberais e mergulhado nos Grandes Livros a fim de cultivar a sabedoria e a virtude. Esta é a nossa definição essencial de educação clássica, obtida por meios clássicos.

Tradução do artigo The Four Causes of Classical Education de Paul Schaeffer, por um Congregado Mariano

Retirado do site: Link

Original em inglês: Link


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.


Receba novos posts por e-mail:

A dura tarefa de escrever livros de Matemática

Johannes Kepler (1620),
autor desconhecido

O texto em latim abaixo reproduzido é parte da introdução do livro "Astronomia Nova", escrito por Johannes Kepler e publicado em Praga em 1609. Segue-se uma tradução feita pelo Professor José Paulo Q. Carneiro, da UFRJ. Esse mesmo trecho serviu de abertura ao livro "Variationsrechung im Grossen", de H. Seifert e W. Threlfall, (Teubner, Berlim, 1938) e provavelmente foi a inspiração para os cuidados que levaram aqueles autores a produzir sua pequenina e maravilhosa obra prima de exposição matemática.

É muito difícil hoje em dia escrever livros de Matemática. Se você não preservar a sutileza original das proposições, das explicações, das demonstrações e das conclusões, o livro não será autenticamente matemático. Se, no entanto, você mantiver tudo isso, a leitura se tornará muito lenta. Por isso muito poucos são hoje os leitores dignos de confiança; os outros só conseguem enfrentar banalidades. Quantos matemáticos agüentam o  esforço de ler as Cônicas de Apolônio de Perga? E note-se que o assunto aí tratado é destes que se coloca em figuras e linhas muito mais facilmente que o presente livro. Eu mesmo, com toda a minha reputação de matemático, quando releio este meu trabalho, sinto um apreciável cansaço cerebral, ao tentar passar do texto para a mente aquele significado mais profundo das demonstrações que eu mesmo antes tinha passado da mente para o texto. E quando tento remediar a obscuridade do assunto inserindo explicações, aí me sinto com o vício contrário, o da loquacidade em Matemática. De fato, a prolixidade tem sua dose de obscuridade, não menor do que a concisão. Esta escapa aos olhos da mente, aquela os confunde; esta carece de luz, aquela sofre de excesso de luminosidade; aqui a visão não se move, lá é ofuscada. Por isso tomei a decisão de ajudar o entendimento do leitor com uma introdução a mais clara possível a esta obra.

Texto original em latim

Durissima est hodie condictio scribendi libros mathematicos. -- Nisi enim servaveris genuinam subtilitatem propositionum, instructionum, demonstrationum, conclusionum, liber non erit mathematicus; sin autem servaveris, lectio efficitur morosissima. Adeo que hodie perquam pauci sunt lectores idonei: ceteri in commune respuunt. Quotusquisque mathematicorum est, qui tolerat laborem perlegendi Apollonii Pergaei Conica? Est tamen illa materia ex eo rerum genere, quod longe facilius exprimitur figuris et lineis quam nostra. -- Ipse ego, qui mathematicus audio, hoc meum opus relegens fatisco viribus cerebri, dum ex figuris ad mentem revoco sensus demonstrationum, quos a mente in figuras et textum ipse ego primitus induxeram. Dum igitur medeor obscuritati materiae insertis circumlocutionibus, jam mihi contrario vitio videor in re mathematica loquax. Et habet ipsa etiam prolixitas phrasium suam obscuritatem non minorem quam concisa brevitas. Haec mentis oculos effugit, illa distrahit: eget haec luce, illa splendoris copia laborat: hic non movetur visus, illic plane excoecatur. -- Ex eo consilium cepi, quadam luculenta intoductione in hoc opus juvare captum lectoris, quoad ejus fieri possit.

Texto extraído da Revista Matemática Universitária (RMU n.2, dezembro de 1985) disponível no link.


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.


Receba novos posts por e-mail:

A verdadeira filosofia da educação

Já tivemos o conceito da ciência da Filosofia neste site*, o qual pode ser reduzido basicamente ao estudo do saber. Estudo que orienta o indivíduo tanto na aquisição da concreta visão da vida, seus valores e significados, seus fins próximos e últimos, quanto sobre a conduta humana, em geral. Trata-se ainda de um conjunto de princípios definidos, orientadores, que regulam a conduta humana e os valores nos vários e especializados campos do conhecimento.


Portanto, sendo a filosofia um elemento chave para formação do conhecimento, não seria de se assustar a observação de que a Ciência da Educação e a própria pedagogia bebam diretamente nesta fonte, ou seja, que dependam necessariamente da filosofia para serem aplicadas. É por isso que alguns estudiosos da filosofia da educação assim expressam:

“A pedagogia é a aplicação de princípios da filosofia” Cônego Antônio Siqueira

“Todo sistema de educação é um produto e uma tentativa para perpetuar determinada filosofia de vida” e “A verdadeira filosofia da vida é a essência íntima e a alma da ciência da educação” John Redden e Francis Ryan


Por isso, por exemplo, que podemos observar que a filosofia da educação católica é (ou deve ser) a filosofia escolástica, que teve seu auge durante a Idade Média e cujo estudo foi exortado por alguns papas nos últimos séculos, a exemplo de Leão XIII (1), tamanha é sua importância e o quanto ela pode influenciar nas salas de aula das escolas e na educação dos filhos.

A filosofia católica filia-se a uma verdade absoluta, eterna e imutável, pois para uma verdadeira filosofia há apenas uma única fonte de todo saber: Deus, que é eterno e não muda.

Alguns do princípios básicos que regem a filosofia católica e por consequência a maneira católica de educar são estes:

1. O universo foi criado por Deus Todo Poderoso e é governado por Sua Providência;

2. O homem, criatura com corpo e alma, foi criado por Deus para servi-lO na terra e alcançar, com Ele, a felicidade no Céu;

3. Dotado de consciência e livre arbítrio, o homem é responsável por sua conduta, cujas normas são preestabelecidas pelos princípios eternos da lei moral, que é imutável e independente do homem;

4. O homem recebeu de Deus o dom de aprender certas verdades de ordem natural e sobrenatural, e Deus revelou-lhe verdades de ordem sobrenatural, verdades que, dado o limite da capacidade humana, não poderia aprender de outro modo;

5. Deus doou ao homem certos meios sobrenaturais de conduta, como, por exemplo, a graça que ultrapassa os poderes naturais do homem;

6. Em conseqüência do pecado original o homem tem um intelecto reduzido para perceber a verdade, e uma vontade também limitada para procurar o bem e sua natureza mais inclinada para o mal. O pecado original não afetou a natureza da inteligência e vontade humanas, mas privou-as de especiais e poderosos recursos;

7. Através do batismo, certos dons sobrenaturais são restituídos ao homem, mas permanecem os efeitos do pecado original no que toca à inteligência, à vontade e à natureza.

8. O homem, pela sua verdadeira natureza, é ser social, tendo obrigações para com a sociedade e sendo, em troca, por ela afetado.

9. A educação, que é, ao mesmo tempo, processo individual e social, deve abranger a formação, o desenvolvimento e a orientação sistemáticos de todas as potencialidades legítimas do homem, de acordo com a sua verdadeira natureza e a hierarquia essencial dessas potencialidades.

Veja que uma educação verdadeiramente católica não deve dissociar-se de sua doutrina, já que é por meio dela que formará as bases necessárias do conhecimento natural e também sobrenatural.

Por outro lado, a educação moderna, buscando afastar-se dos princípios orientadores católicos, baseia-se no conceito amplo do naturalismo, pelo qual o homem é um produto da evolução, explicado em termos da pura natureza física e totalmente conhecido pelo estudo das ciências naturais. Para as filosofias modernas, que necessariamente geraram sistemas educacionais próprios, podemos destacar alguns pontos chave de aplicação:

1. a biologia é a única ciência capaz de explicar o homem, sendo afastado todo elemento de filosofia sobrenatural;

2. as filosofias modernas entre si possuem verdades fragmentárias, contestadas umas pelos outras;

3. são negativas porque não conseguem chegar a uma concepção da realidade;

Tais doutrinas padecem de exclusivismo, porque possuem uma concepção unilateral da realidade, de modo que quando uma nova doutrina moderna surge o faz para combater um exagero de uma anterior, a exemplo do socialismo que nasceu de homens desfavoráveis ao individualismo liberalista/naturalista.

Por isso também que a filosofia católica concentra maior perfeição, pois: a) institui a religião como base da vida e da educação; b) é universal e objetiva em sua aplicação, independente de tempo, lugar ou condições sociais; c) é tradicionalmente sã nos princípios.

Sendo assim, a filosofia católica não adapta-se aos tempos ou circunstâncias e por isso não ocasiona injustiças ou desequilíbrio quando aplicada corretamente à educação. A exemplo disto, o catolicismo sempre considerou o homem um ser ético que reúne, dentro de si mesmo, elementos do mundo vegetal e animal, que participa, com os animais, da sensação, mas que, não obstante, é dotado de alma espiritual, feita à imagem e semelhança de Deus. Não é só um proletário como diz Marx, nem um ser social como diz Dewey, nem um puro indivíduo biológico como é para o naturalismo. Para a filosofia católica, o homem reúne os elementos de corpo e alma que por grau de importância e por meio de relações sociais devem ser desenvolvidos.

Por isso, alguns requisitos da verdade sobrenatural devem ser aplicados à ciência da educação, os quais tem opositores na filosofia moderna, quais sejam:

1. Origem e natureza do homem: criado por Deus, o homem é criatura constituída de corpo e alma, feito à imagem e semelhança de Deus. De modo opositor há teoria evolucionista do homem e a concepção materialista de sua natureza;

2. Condição natural do homem: fruto do pecado original, nasceu o homem dotado de intelecto menos apto a atingir a verdade, com vontade menos apta a procurar o bem e, consequentemente, com natureza sujeita à corrupção corpórea e inclinando as afeições desordenadas. Em oposição a isto há a teoria predominante a partir de Rousseau de que o homem é naturalmente perfeito, pela qual se dá superênfase à autodescoberta e auto-expressão do indivíduo na educação;

3. Fim último do homem: criado para louvar, reverenciar e servir a Deus, fazendo-o atingir a felicidade eterna com Ele, no Céu, tem o homem. Diverso da concepção materialista que limita o fim do homem à sua vida na terra e afirma que a função da educação diz respeito, apenas, a essa vida.


A filosofia católica da educação usa a razão natural como guia, mas nunca ignora ou negligencia as verdades básicas da revelação divina que fundamentam uma verdadeira filosofia da vida.

O fim último da educação cristã não diz respeito a este mundo, mas a uma vida além desta, a ser alcançada pela imitação de Cristo. Com a religião cristã, surgiu o elemento capital na vida e na educação. O verdadeiro cristão, com esses elementos, sempre procurou a salvação de sua alma e a regeneração moral da sociedade. Além disso, devem-se buscar os conhecimentos secundários de cultura, vocação, disciplina, eficiência, sempre subordinados ao fim último do homem.

Fontes:

REDDEN, John D.; RYAN, Francys A. FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO. 1973 – 5ª Ed. tradução de Nair Fortes. Livraia AGIR Editora, Rio de Janeiro.

SIQUEIRA, Cônego Antônio A. de. FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO. 1948 – 2ª Ed. Editora Vozes, Rio de Janeiro.

(*) Site

(1) Encíclica Aeterni Patris

Retirado do site: Link


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.


Receba novos posts por e-mail:

Total de visualizações de página