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Paideia de Werner Jaeger

Por Marcelo Vagner Bruggemann*.

A obra de Werner Jaeger, “Paideia, a formação do homem grego”, em sua 6ª edição de 2013, nos leva até a velha Grécia, já por volta do séc. XII a.C., chegando em Platão e Aristóteles  quando a dupla emergiu racionalmente a existência política e social do homem, a partir do século IV a.C. Posteriormente, essa cultura chegou aos confins geográficos do mundo oriental graças a expansão macedônica liderada por Alexandre o Grande, onde do lado ocidental, os romanos também absorveram a cultura grega, que por sua vez, fez todo mundo helenizado, tornar-se pavimento para o cristianismo.

Para o ocidente, a paideia se converteu em um dos legados imortais da mentalidade grega. Obviamente a palavra em si, “paideia”, não tem nos dias de hoje uma tradução ou um significado literal, tal nome remete a um conceito de entendimento global de “formação integral do ser humano”, como o próprio Jaeger assim diz:

Ao empregar um termo grego para exprimir uma coisa grega, quero dar a entender que essa coisa se contempla não com os olhos do homem moderno, mas sim com os do homem grego.

Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os gregos entendiam por paideia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de emprega-los todos de uma vez. (JAEGER, 2013)  

Refletindo em Jaeger (p.36), entende-se que o único caminho para a compreensão do conceito de “paideia”, é o debruçamento sobre a configuração da sociedade grega e como os gregos entendiam a cultura e a educação nessa sociedade. E a partir daí, como eles realizavam a educação dos seus cidadãos na forma como entendiam o ser humano. Ou seja, alguém que precisava se adaptar a sua estrutura biológica para alastrar-se às mais elevadas esferas espirituais, cujo fim, é a formação integral do homem para servir a cidade, tornando-se um exemplo de cidadão ético, moral, justo e virtuoso na pólis. 

Platão e Aristóteles entendem a pólis, como o lugar onde “se encontra aquilo que abrange todas as esferas da vida espiritual e humana e determina de modo decisivo a sua estrutura” (p.107), nesse sentido, a cidade e o cidadão são inseparáveis, sendo a cidade virtuosa o lugar do ser humano honrado que compreende a educação como um meio para a consolidação de valores sólidos como estruturas de uma polis justa:

É esta a significação do novo Estado na formação do homem. Platão afirma, com razão que cada forma do Estado implica a formação de um tipo de homem definido, e tanto ele como Aristóteles exigem que educação de um Estado perfeito imprima em todos a marca do seu espírito (p.142). 

Chegando até aqui, pode-se ampliar a educação grega, para os sofistas, conhecidos como os tiranos do logos, mas, na “Paideia” de Jaeger, receberam grande destaque, sendo considerados inclusive como “os fundadores da ciência da educação” (p.348), não é por menos que até nos dias de hoje esse debate sofístico é ainda pauta do “ser ou não ser” da pedagogia como uma “ciência ou arte”. De todo modo, foram os sofistas que ofereceram aos indivíduos a retórica, como ferramenta de ação em um mundo complexo, mutável e carregado de conflitos, onde cada cidadão pode, por meio de decisões tomadas individualmente, apontar o caminho da verdadeira educação.

A partir da reflexão política de Aristóteles, nos leva ao questionamento: qual é o papel humano diante da sociedade? A resposta se encontra na vivência para a ação na pólis como aponta Sócrates, tratado dogmaticamente por Platão, como “o educador” (p.511), ou seja, todo o esforço humano deve ser direcionado para a alma como templo da razão, da inteligência. Cuidar da alma, significa concretamente “um cuidado através do conhecimento do valor e da verdade” (p.521). Por este caminho, se pode chegar a uma venturosa “harmonia entre a existência moral do homem e a ordem natural do universo” (p. 535).

A respeito do conhecimento da verdade e da moral expressada por Sócrates, seu principal discípulo, teve todo cuidado artesanal de registrá-las em forma de diálogo na República. É nesta grande obra de Platão, que se encontra os mais elevados exemplos das virtudes dos velhos gregos, um verdadeiro tratado pedagógico em que o próprio Jean-Jacques Rousseau declarou “a República não era uma teoria de Estado, como pensavam que só julgavam os livros pelos títulos, mas sim o mais famoso estudo jamais escrito sobre educação” (p.759).

A República é o centro da obra de Jaeger. Nela, o autor lembra a justiça como um audacioso projeto de reforma da sociedade idealizado por Platão, o qual concebe o Estado perfeito pela imagem aumentada do homem. Formar o Estado para Platão, significa formar o verdadeiro homem, isso porque, esse homem “traz na sua alma o verdadeiro Estado e age e vive em vista dele” (p.982). A paideia grega é um projeto tão ambicioso que o próprio cristianismo, só encontra sentido por meio do ideal de transformação do indivíduo para reformar a sociedade.

Nesse sentido, Platão entende que as três virtudes do corpo – saúde, beleza e força – são as bases para a medicina, contribuindo diretamente para a harmonização com as quatro virtudes da alma – piedade, valentia, moderação e justiça, como tal, essa harmonia constitui a “essência da saúde e de toda perfeição física em geral” (p.1071).  Portanto, a Medicina como Paideia se resume em atitudes educadoras que ultrapassam em muito, os limites do tratamento da doença em si, incluindo as práticas esportivas, musicais, danças e teatros no cotidiano como práticas educativas, tendo no médico apenas um conhecedor da natureza e das ervas medicinais, o qual era chamado apenas para recompor a saúde do doente, eliminando a causa da dor para sarar o homem, afastando o que o fazia sofrer.

A rigor, a harmonia que Jaeger insiste em sua Paideia, remete a união entre a filosofia com a experiência humana e sua concepção com o lugar do indivíduo na polis, no caso grego, a sociedade. A Paideia dos velhos gregos se resume na educação para a formação do homem integral, livre, e apto para o exercício pleno da cidadania. O objetivo de tal educação, consiste em determinar as coisas que constituem a razão do ser e viver. É o horizonte a ser alcançado pela capacidade intelectual somado a liberdade moral e a apreciação estética com o controle das emoções evitando tudo que é nocivo à alma.

***

* Marcelo Vagner Bruggemann é Doutor em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela FIAM-FAAM Centro Universitário. Especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Alvorada Paulista. Especialista em Gestão de Cidades e Planejamento Urbano pela Universidade Candido Mendes. Graduado em História pelo Centro Universitário Assunção. Jornalista profissional com Mtb 52.882. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8099-9410.

Texto do artigo disponível no link.


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Prática x Teórica: Educação Isocrática e Educação Platônica

Busto de Isócrates por
William Jennings Bryan e
Francis Whiting Halsey, 1906

Isócrates (não confundir com Sócrates) nasceu em Atenas, no ano de 436 a.C e  foi, essencialmente, um professor de eloqüência. Contemporâneo de Platão e dos socráticos, a tradição afirma que, além de aluno dos sofistas Górgias e Pródico, também acompanhou as andanças de Sócrates pelos ginásios e praças de sua cidade.*

Isócrates contra Platão

Eis nos já bem distantes da filosofia, e, mormente, da filosofia platônica. A atitude de Isócrates com relação a esta e ao programa de educação que ela preceitua faz-me lembrar o julgamento sumário de Pascal sobre Descartes: "Inútil e incerto!" Para compreendê-la é necessário, sem dúvida, colocar-nos no plano que Isócrates jamais consente em deixar, a saber, o da vida quotidiana e da eficácia prática. Platão pretende impor-nos um imenso ciclo de estudos, tão complexo e difícil que elimina, de princípio, a maioria dos candidatos, e isto com o quimérico objetivo de fazer-nos assomar à ciência perfeita. Mas na vida prática não há ciência possível, a tomar-se a palavra no sentido preciso que assume, em Platão, o termo πιστήμη: conhecimento racional e demonstrado (74). Situamo-nos diante de um problema concreto: trata-se de saber o que fazer e o que dizer. Jamais haverá uma ciência teórica bastante exata para ditar-nos a conduta a seguir. O homem "verdadeiramente culto" (πεπαιδευμένος) é, segundo professa Isócrates, o que tem o dom de "atinar" com a boa solução (πιτυγχάνειν) ou, então, com a menos má, com a mais adequada à conjuntura (καιρός), e isto pelo fato de ter uma "opinião" justa (δόξα) (75). Esta palavra, depreciada por Platão, define, ao contrário, para o modesto Isócrates, o horizonte efetivamente acessível, a única ambição que o homem possa realizar.

Se a ciência é inacessível, de que vale, na perspectiva de um resultado tão incerto, esforçar-se tanto e blasonar tantas pretensões?! Conforme o próprio Platão o declara, a ciência do filósofo é inútil, porquanto este, falto de uma cidade verdadeira e sadia, está condenado a voltar-se para a cidade ideal, para este sonho que ele transporta no bojo de sua alma, por isso que, na cidade real, está, como o vimos, fadado ao ridículo, ao malogro, à perseguição -- à morte!

Já Isócrates resolveu consagrar-se a uma tarefa de eficácia mais certa e cuja urgência é, ademais, imediata: plasma seus discípulos na experiência, na prática da vida política, preferindo ensiná-los a formarem uma opinião razoável sobre as coisas úteis, a fazê-los queimarem as pestanas em busca de certeza sobre questões perfeitamente inúteis (76), como a duplicação do cubo ou a classificação dicotômica do pescador de anzol (77). Não se cogita de ascender ao céu das Idéias nem de brincar com paradoxos: a conduta da vida reclama não idéias admiráveis e novas, mas comprovado bom senso, o bom senso da tradição (78).

"ESPRIT DE FINESSE, ESPRIT GÉOMÉTRIQUE"

Em última análise, a oposição de Isócrates a Platão é a do "esprit de finesse" ao "esprit géométrique". Isócrates procura desenvolver em seu discípulo o espírito de resolução, o sentido da intuição complexa, a percepção destes imponderáveis que dirigem a "opinião" e a tornam justa. A cultura literária, a arte (e não ciência) da palavra constituem o instrumento que pode servir para aguçar o senso de julgamento. O instrumento, por si só, não basta, mas é necessário, ainda, o dom, porque no domínio da realidade moral e humana não pode existir procedimento coercitivo que permita obter, de um espírito qualquer, desde que seja racional, um resultado certo. Nada de mais absurdo, aos olhos de Isócrates, que a pretensão socrática de fazer da "virtude" um conhecimento, uma ciência do gênero das matemáticas, e passível, por conseguinte, de ser ensinada (79).

Cumpre aprofundar a conexão empírica que estabelecemos entre retórica e moral e retomar, em um sentido muito mais sutil, a relação íntima que se estabelece, na arte oratória, entre a forma e o fundo. Estes dois aspectos são, como dizíamos, inseparáveis. Com efeito, o esforço para conseguir a expressão adequada exige e desenvolve uma agudeza de pensamento, um senso dos matizes que o pensamento conceptual não explicitaria sem esforço e que nem sempre é, talvez, capaz de explicitar. A idéia é familiar a todo leitor de Valéry ou de Bremond: há coisas que o poeta sente e faz sentir, e que o sábio, com seu passo lento, busca, em vão, alcançar. Conquanto esta educação oratória, de aparência puramente estética, vise formar apenas "virtuoses da frase", ela é, na realidade, entre todas, a mais eficaz para desenvolver a sutileza de pensamento.

"A palavra adequada é o mais seguro indício do pensamento reto" (80): esta idéia, fundamental em Isócrates, tem uma profundidade e um alcance de que ele próprio, talvez, não haja suspeitado. Teria sido bom fosse ele dotado ainda de mais "esprit de finesse", fosse menos prosaico e mais consciente dos valores propriamente poéticos da prosa de arte: teria, então, podido invocar, contra Platão, o exemplo do próprio Platão, e opor, ao cientificismo renitente de sua teoria, a prática do escritor; vimos tudo aquilo que, na pena de Platão, exprimem, como valores, o mito, a poesia, a arte pura -- a da preparação psicológica, do ritmo dos diálogos, a arte da frase, do vocábulo. Não terá sido aí, muitas vezes, mais que nos passos de dialética ressequida e laboriosa, que Platão alojou a essência mesma de sua mensagem, aquilo que há de mais sutil, de mais fino e de mais verdadeiro em todo pensamento?

AS DUAS COLUNAS DO TEMPLO

Tais são os dois tipos fundamentais de educação, as duas orientações rivais que Platão e Isócrates imprimiram à pedagogia grega, àquilo que se vai tornar a tradição clássica. Para defini-los, fui levado  a esquematizar e a enrijar um pouco a oposição entre um e outro. Com efeito, o ensino platônico e o ensino isocrático, paralelos e contemporâneos, jamais se defrontaram com tal rigor, como rivais e adversários.

Seria extremamente interessante -- mas, creio que, no estrado atual de nossa documentação, isto seja, de fato, impossível -- reconstituir a história, presumivelmente complexa e matizada, de suas relações [14]. Elas passaram por uma evolução. Cada um deles não tinha apenas um adversário único. Isócrates não era toda a retórica: vimo-lo opor-se à pura sofística de um Alcídamas. Platão não era toda a filosofia: os "erísticos" que Isócrates combate talvez sejam também, ou sobretudo, o Megára ou Antístenes. Entre os chefes das duas facções foi possível estabelecerem-se aproximações e alianças, para a luta contra um mesmo inimigo: uma frente comum dos Dogmáticos contra a crítica dissolvente da escola de Mégara, e mesmo uma frente dos "Ideólogos" ou apóstolos da alta cultura contra o espírito estreio dos políticos realistas.

Notar-se-á, sobretudo, que tais aproximações táticas foram acompanhadas, certamente, de troca de influências mútuas. Isócrates parece, realmente, receber influência de Platão ao conceder, às matemáticas e à filosofia, tão honroso lugar em sua cultura propedêutica. Não haverá, por outro lado, uma concessão de Platão a Isócrates, na forma de um reconhecimento de legitimidade da arte literária, neste manifesto em prol de uma retórica filosófica que é o Fedro, e que, no seio mesmo da Academia, precisamente o jovem Aristóteles, "docente-livre" de retórica, será incumbido de aplicar? [15].

Entre Isócrates e Platão há, portanto, não apenas rivalidades, mas emulação, e isso interessa ao desenvolvimento da nossa história: aos olhos da posteridade, a cultura filosófica e a cultura oratória aparecem, realmente, como rivais, mas também como irmãs; elas têm não apenas uma origem comum, mas também ambições paralelas e, por vezes, idênticas; são, como dizíamos, duas variedades de uma mesma espécie; o debate que mantiveram enriqueceu a tradição clássica, sem comprometer-lhe a unidade. À porta do santuário em que vamos entrar postam-se, de um lado e de outro como dois pilares, como dois robustos atlantes, as figuras destes dois grandes mestre, "equilibrando-se como que respondendo-se mutuamente" (ἀντιστρόφους καὶ σύζυγας)(81).


Referências:

(74) Isócrates, Sobre a Troca, 184.
(75) Idem, 271; Panatenaica, 30-32.
(76) Elogio de Helena, 5.
(77) Cf. PLATÃO, O Sofista, 218e s.
(78) ISÓCRATES, A Nícocles, 41.
(79) Contra os Sofistas, 21; Sobre a Troca, 274.
(80) Nícocles, 7; Sobre a Troca, 255.
(81) Cf. ISÓCRATES, Sobre a Troca, 182.

Notas complementares:

[14] As relações entre Isócrates e Platão foram objeto de inúmeros e contraditório estudos: a lista deles pode ser encontrada ap. A. DIÈS, Autour de Platon, II, p. 407, n. 1; MATHIEU, BREMOND, Introduction à sua edição de Isocrate, t. I, p. IX, n. 3 (cf. ps. 155-157); G. MÉRIDIER, em sua edição do Euthydème, ps. 133 segs., p. 137, n. 1; DIÈS, Introduction à La République, ps. LVI segs.; L. ROBIN, em sua edição do Phèdre, p. XXII segs., CLXI segs.; acrescentar: R. FLACELIÈRE, L'Éloge d'Isocrate à la fin du Phèdre, Revue des Études Grecques, XLVI (1933), ps. 224-232; G. MATHIEU, Les Premiers Conflits entre Platon et Isocrate et la date de l'Euthydème, Mélanges G. Glotz, Paris, 1932, II, ps. 555-564; Notice à sua edição de Antídosis, edição "Budé" de Isocrate, III, Paris, 1942, ps. 90-94; e, por último, W. JAEGER, Paideia, III, Londres, 1945, pass. (cf. p. 364, s. v. Isocrates and Plato).
Não ouso considerar incorporadas à ciência as conclusões de nenhum destes eruditos, Notem-se as razões por que tal pesquisa, aventurosa, está, até nova ordem, condenada ao fracasso: 1. Imprecisão da cronologia respectiva das obras dos dois autores; quaisquer que sejam os progresso realizados, particularmente no que tange aos Diálogos platônicos, desde Campell e Lutislawski, muitas incertezas subsistem: o Busiris é anteriores ou posterior a A República? Cf. A. DIÈS, Autour de Platon, II, p. 247.
   2. Imprecisão das alusões de Isócrates: um dos traços característicos de sua estética (e ele será largamente imitado por seus sucessores!) é evitar as designações precisas; ele fala de seus adversários, empregando fórmulas vagas, tais como "aqueles que se dedicam a discussões" ou "à filosofia". Tratar-se-á de Platão? De Antístenes? De ambos simultaneamente? Estão abertas as apostas. Também é possível que Isócrates esboce um retrato compositivo, cujos traços sejam tirados ora a um certo grupo de filósofos, ora a outro, quando não a sofista do tipo de Alcídamas.
    3. Finalmente, incerteza quanto ao valor que se deva atribuir aos juízos de Platão. Assim, no fim de Fedro (278d-279b), ele faz Sócrates pronunciar um elogio de Isócrates: cabe tomá-lo a sério (FLACELIÈRE, e já o próprio Isócrates, Ep., V)? Mas, não se trataria de ironia (ROBIN)? E mesmo a tomá-lo literalmente, que significa ele exatamente? Tratar-se-ia de um elogia ao Isócrates da data em que Platão escreve (WILAMOWITZ, Platon², II, p. 212), ou de uma nostálgica alusão às belas promessas que Isócrates justificativa em sua juventude, no momento em que Sócrates falava (suponhamos que por volta de 410) e que teriam falido (TH. GOMPERZ, Penseurs de la Grèce, II, p. 438)?

[15] Aristóteles e o ensino da retórica no seio da Academia: cf. por último W. Jaeger, Paideia, III, ps. 147, 185-186, que remete ao trabalho de seu discípulo F. SOLMSEN, Die Entwicklung der aristotelischen Logik und Rhetorik, Neue Philologische Untersuchungen, IV, Berlim, 1929.

* http://www.hottopos.com/mirand12/euzeb.htm

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas, 2017).


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O papel das matemáticas na educação, segundo Platão

Platão na Escola de
Atenas por Rapael Sanzio

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion em 2017)

Mas, na μονσική (música) Platão introduz, de modo bastante inesperado (84), uma terceira ordem de estudos, ou, pelo menos, amplia-lhe o papel em tal medida que o edifício inteiro de educação se vê assim renovado: trata-se das matemáticas. Elas não são mais, para ele, como o eram para seus antecessores (Hípias, por exemplo), um campo reservado ao grau superior do ensino: devem encontrar lugar em todos os níveis, começando pelo mais elementar.

Sem dúvida, desde a sua criação, a escola secundária teve de incluir um estudo elementar dos números: contar um, dois, três... (85), aprender a série dos inteiros e, provavelmente, as frações duodecimais empregadas na metrologia grega, isto fazia parte do aprendizado da língua e da vida. Mas Platão vai muito mais longe: ao estudo propriamente dito dos números, que constitui, para os gregos, objeto próprio da aritmética, ele junta a λογιστική (86), isto é, a prática dos exercícios de cálculos (λογισμοί) ligados a problemas concretos, extraídos da vida e dos negócios: algo equivalente, segundo se pode conjecturar [15], aos problemas de "lucro" e de "torneiras", com que afligimos nossas crianças. Paralelamente, ele concede um lugar, na geometria, a aplicações numéricas simples: medidas de comprimento, superfície e volumes (87), e, em relação à astronomia, no mínimo de conhecimento suposto pelo uso do calendário (88).

Eis aí uma inovação de imenso alcance pedagógico. Trata-se, conforme que nos assegura Platão (89), de uma imitação das práticas egípcias (que ele pode ter efetivamente conhecido, se não diretamente ao menos por intermédio do matemático Eudóxio de Cnidos, seu discípulo, que havia feito um estágio de estudos no Egito (90)): com efeito, tais problemas figuravam no programa das escolas de escribas, como a descoberta de papiros matemáticos nos permitiu verificar [16].

Todas as crianças devem, portanto, estudar matemática, pelo menos nesse grau elementar: serão introduzidas nesse estudo desde o início (91), conservando-se em tais exercícios o atrativo de um jogo (92); terão eles, como objetivo imediato, a aplicação à vida prática, à arte militar (93), ao comércio (94), à agricultura ou à navegação (95). Não é permitido, a ninguém, ignorar este mínimo, ao menos se quer fazer-se merecedor do nome de homem (96) e não do de porco de engorda (97).

Mas, e eis aqui o essencial, o papel das matemáticas não se limita a este equipamento técnico: estes primeiros exercícios, por mais práticos que seja, possuem já uma virtude formadora mais profunda (98). Recolhendo e desenvolvendo a herança de Hípias, Platão proclama a eminente virtude educativa das matemáticas: nenhum objeto de estudo, afirma ele (99), a possui em tão alto grau; elas servem para despertar o espírito, fazem-no adquirir desembaraço, memória e vivacidade.

Todos tiram delas proveito: esses exercícios de cálculo aplicado revelam os espíritos bem dotados e desenvolvem lhes a natural disposição para entrarem em qualquer espécie de estudo; mas os espíritos de início inertes, mais lentos, por meio deles despertam, com o tempo, de sua sonolência, aguçam-se e tornaram-se mais aptos a aprenderem do que o eram por natureza (100). Observação original e profunda: à diferença de muitos de seus sucessores (antigos e modernos), para os quais somente as letras tem valor universal e as matemáticas são reservadas aos felizes que, "tendo a bossa", podem "mordê-las", Platão professa que estas ciências se dirigem a todos, porque exercitam apenas a razão, faculdade comum a todos os homens.

Ainda que neste escalão elementar -- pois somente um pequeno número de espíritos de escol poderão levar as matemáticas até o fim (101), pequeno grupo esse que será necessário selecionar com cuidado (102) --, salientemos aqui o aparecimento, na história da pedagogia, desta noção de seleção, que ficou na base do nosso regime de exames e concurso. No pensamento de Platão, são precisamente as matemáticas que servem para por à prova as "melhores naturezas (103)", os espíritos aptos a tornarem-se um dia dignos da filosofia (104): nelas revelarão sua facilidade em aprender, sua penetração, sua memória, sua capacidade de envidar um esforço constante, que não se deixa enfadar pela aridez destes pesados  estudos (105). Ao mesmo tempo que selecionam os futuros trabalhos; assim, o elemento essencial de sua "educação preparatória", (προπαιδεία) é constituído pelas matemáticas (106).

Daí o programa e o espírito bem definido, segundo o qual seu estudo deve ser conduzido: deve-se lembrar que o livro VII da República, consagrado a estas ciências, se abre com o mito da Caverna (107); as matemáticas são o principal instrumento da "conversão" da alma, desta correção interior pela qual ela desperta à plena luz e se torna capaz de contemplar não mais "as sombras dos objetos reais", mas "a própria realidade (108)".

Para obter-se tal benefício, urge orientar o estudo de maneira que elas levem o espírito a libertar-se do sensível, a conceber e a pensar o Inteligível, única realidade verdadeira, única verdade absoluta. Desde cedo, esta orientação filosófica deve penetrar no ensino: Platão (109) não quer que os problemas elementares de cálculo se atenham às aplicações práticas (venda, compra...), mas -- como, a crer nele, os jogos educativos dos egípcios (110) -- considera que se devem encaminhar para um grau superior de abstração: noções de par e ímpar, de proporcionalidade. A "logística" deve ser apenas uma introdução à "aritmética" propriamente dita, que é a ciência teórica do número, e esta, por sua vez, deve culminar numa tomada de consciência da realidade inteligível. Desta pedagogia, dá-nos Platão um notável exemplo: parte ela da consideração de dados elementares (os três primeiros números) e daí se eleva a considerações sobre as noções abstratas de unidade e de grandeza, aptas a "facilitar à alma a passagem do mundo do devir ao da verdade e da essência (111)".

O programa será, como o era em Hípias, aquele mesmo, já tradicional, do Quadrivium pitagórico: aritmética (112), geometria (113), astronomia (114), acústica (115); preocupado em incorporar ao ensino os resultados das mais recentes conquistas da ciência, Platão completa-o simplesmente, juntando, à geometria plana, a geometria no espaço, que acabava de ser criada pelo grande matemático Teeteto e para o progresso da qual a Academia, na pessoa de Eudóxio, contribuirá ativamente. Todavia, importa-lhe bem mais depurar a concepção que cumpre fazer destas ciências: elas devem eliminar todo resíduo de experiência sensível, tornarem-se puramente racionais, direi mesmo apriorísticas.

Seja, por exemplo, o caso da astronomia [17]: deve ser ela uma ciência matemática, não uma ciência de observação. Para Platão, o céu estrelado, no esplendor e na regularidade de seus movimentos ordenados, é ainda, apenas, uma imagem sensível: ele é, para o verdadeiro astrônomo, o mesmo que uma figura geométrica, fosse este desenhado com o maior rigor aparente pelo artista mais hábil, é para o verdadeiro geômetra: é-lhe totalmente inútil, pois ele opera abstratamente, sobre a figura inteligível (116). A astronomia platônica é uma combinação de movimentos circulares e uniformes, que pretende não apenas, como a interpreta de maneira ainda demasiado empírica Simplício (117), "salvar as aparências" (isto é, dar contas dos fenômenos observados), mas, na verdade, reencontrar os próprios cálculos de que se serviu o Demiurgo para organizar o mundo.

Transcendendo as preocupações utilitárias, Platão confia às matemáticas um papel antes de tudo propedêutico: elas deve, não mobiliar a memória com conhecimento úteis, mas formar uma "teste bien faicte", ou seja, um espírito capaz de receber a verdade inteligível, no sentido em que a geometria fala de um arco "capaz" de um ângulo dado. Não se poderia salientar demasiadamente o imenso alcance histórico desta doutrina, que marca uma data capital na história da pedagogia: Platão introduz aqui nada menos que a noção ideal e o programa específico daquilo que propriamente se deve chamar de ensino secundário.

Ele se opõe, bem conscientemente, ao otimismo ingênuo, ou interessado, dos seus predecessores, os Sofistas, os quais, seguros de si, franqueavam o acesso de mais alta cultura "ao primeiro que chega" (ό τυχών) (118), sem levar em conta suas aptidões nem sua formação preliminar: o insucesso de tais tentativas, insucesso que, como o deplora Platão, acabou por refletir-se na filosofia (119), prova suficientemente seu erro. É necessário, ao mesmo tempo, experimentar e preparar os candidatos a filósofos: Platão é o primeiro a estabelecer e justificar esta exigência, que se imporá doravante ao educador. O que permanecerá de peculiar a seu próprio plano de estudos é o lugar eminente que nele cabe às matemáticas; como vimos, ele não negligencia a contribuição propedêutica da educação literária, artística e física: elas tem seu papel, imprimindo à personalidade, no seu todo, certa harmonia, certa eurritmia; não obstante, esse papel nada tem de comparável, em fecundidade, ao das ciências exatas, primeiro gênero acessível de conhecimento verdadeiro, iniciação direta à alta cultura filosófica, a qual se estriba, como o sabemos, na busca da Verdade racional.

Referências:

(84) PLATÃO, A República, VII, 721c s.; As Leis, V, 747b; VII, 809c.
(85) A República, VII, 522c.
(86) Idem, 522e; 525a; As Leis, VII, 809c; 817e.
(87) As Leis, 818e; 819cd.
(88) Idem, 809cd.
(89) Idem, VII, 819bc.
(90) DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas dos Filósofos, VIII, 87.
(91) PLATÃO, A República, VII, 536d.
(92) Idem, 537a; cf. As Leis, VII, 819b.
(93) A República, VII, 522ce; 525b; 526d.
(94) Cf. Idem, 525c.
(95) Idem, 527d.
(96) Idem, 522e.
(97) As Leis, VII, 819d.
(98) Idem, 818c.
(99) Idem, V, 747b.
(100) A República, VII, 526b.
(101) As Leis, VII, 818a.
(102) A República, VII, 503e-504a.
(103) Idem, 526c.
(104) Idem, 503e-504a.
(105) Idem, 535cd.
(106) Idem, 536d.
(107) Idem, 514a s.
(108) Idem, 521c; 532bc.
(109) Idem, 525cd.
(110) As Leis, VII, 181bc.
(111) A República, VII, 525c.
(112) Idem, 521c s.
(113) Idem, 526c s.
(114) Idem, 527c s.
(115) Idem, 530d.
(116) Idem. 529de.
(117) SIMPLÍCIO, Comentário ao "Do Céu" de Aristóteles, II, 12, 488; 493
(118) PLATÃO, A República, VII, 539d.
(119) Idem, 535c; 536b.

Notas complementares:

[15] Os problemas de aritmética elementar: Platão apenas os assinala num palavra: το λογισóν (Rsp., VII, 522c.), λογιστική (525a), λογισμοί (Leg., VII, 809 c, 817 e). De maneira um pouco mais precisa, nas Leg., VII, 819 c, descreve ele os jogos aritméticos que afirma em uso nas escolas egípcias e que dirigindo-se no sentido da aritmética pura, exigem as "aplicações das operações aritméticas indispensáveis", τάς τῶν άναγκαíων άριθμῶν χρήσεις.

Nas Leg., VII, 809 c, associa ele o estudo do cálculo ao conjunto dos conhecimentos cujas aquisição é necessária com vistas à guerra, aos negócios domésticos, à administração da cidade. Este caráter prático e concreto aparece mais nitidamente e contrario nas passagens em que Platão, definindo a orientação abstrata, científica e desinteressada, que convém dar à sua propedêutica matemática, a opõe ao uso exotérico geralmente aceito (em que ele próprio admite no primeiro grau, elementar, para a massa: Leg., VII, 818 a): entre os aprendizes-filósofos, a aritmética pura não servirá, como entre os negociantes e comerciantes, para cálculo de venda e compra (Rsp., VII, 525 c), não introduzirá em seus raciocínios, números representativos dos objetos visíveis ou materiais (525 e), eliminará o que de iliberal e cúpido nestas aplicações (Leg., VII, 147 b).

[16] Papiros matemáticos egípcios: A. REY, La Science dans l'antiquité (I), la Science orientale avant les Grecs, Paris, 1930, ps. 201, 287.

[17] Concepção racional, geométrica, da astronomia platônica: cf. com as páginas clássicas de P. DUHEM, Le Système du monde, Histoire des doctrines cosmologiques de Platon à Copernic, t. I, Paris, 1913, ps. 94-95; t. II, ps. 59 segs. (bibliografia anterior, p. 67, n. 1), A. RIVAUD, Le Système astronomique de Platon, Revue d'Histoire de la Philosophie, II (1928), ps. 1-26. Pode-se aproximar-lhe, utilmente, a concepção, não menos apriorística, da acústica: A. RIVAUD, Platon et la Musique, mesma Revue, III (1929), ps. 1-30.


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Uma breve história do livro

Codex Sinaiticus, um manuscrito da
Septuaginta do século IV,
escrito entre 330 e 350.
Trecho retirado do livro História da Educação na Idade Média de Ruy Afonso da Costa Nunes de 1979 e republicado em 2018 pelas Edições Kírion.

10. Convém, em tempo, lembrar com Régine Pernoud que no início da Idade Média -- época de Gregório de Tours e de Radegunda na Gália -- espalhou-se o livro na forma com que ainda hoje se apresenta, o codex, que substituiu o volumen, o rolo antigo de papiro ou pergaminho (13). Foi nas escolas e entre as seitas religiosas, observa Piganiol, que se desenvolveu o uso do livro com folhas, codex, desde livro o século IV, e só as obras literárias antigas transcritas dos volumina de papiro nos códices de pergaminho lograram sobreviver e, por isso, diz ele, saudemos com reconhecimento a aparição do livro (14). De modo mais preciso ensina D. Paulo Evaristo Arns que as valiosas obras cristãs e pagãs foram preservadas, graças aos escritores cristãos do século IV que escreveram no pergaminho, material de escrita feito da pele de animais e cujo nome procede, segundo antiga tradição, de Pérgamo, cidade da Ásia Menor que floresceu cerca de 300 a.C. (15). McMurtrie explica com minúcias o aparecimento dos livros no formato atual, de folhas ligadas e cosidas de um lado, que se generalizaram no século IV da era cristã, quando os juristas do Baixo Império Romano verificaram que o códice era mais conveniente para os seus livros de leis .que o rolo, volumen. "No códice (codex), explica McMurtrie, as folhas de pergaminho, em vez de serem coladas pelas extremidades e depois enroladas, dobravam-se para formar duas, e as coleções ou grupos destas folhas dobradas ligavam-se pelos vincos" (16). O códice, tal como o rolo, era escrito à mão e, por isso, estas duas espécies de livros antigos são conhecidas, segundo a designação latina, por libri ou codices manu scripti, livros ou códices escritos à mão. Esses livros manuscritos passaram por grande aperfeiçoamento na Irlanda nos séculos VI, VII e VIII, graças à arte caligráfica e às maravilhosas iluminuras feitas nos escritórios monásticos. A execução caligráfica dos monges irlandeses, diz McMurtrie, nunca foi ultrapassada em originalidade do desenho e em habilidade de confecção, e o seu mais célebre exemplar é o Livro de Kells que contém os evangelhos em latim e foi classificado por mais de um escritor como "o livro mais belo do mundo" (17). 

Durante a Alta Idade Média, até o século XII, a composição dos livros fazia-se principal ou exclusivamente nos escritórios, scriptoria, dos mosteiros onde essa arte manuscrita atingiu as culminâncias com a preciosidade das iluminuras e com notável habilidade caligráfica. No século XIII, devido à necessidade de livros para o ensino universitário, iniciaram-se a indústria e o comércio livreiro em grande escala, pois o librarius, editor dos códices manuscritos, não só mantém a livraria no quarteirão da escola - o vendedor é o stationarius - como trata de multiplicar os exemplares com o auxílio dos estudantes pobres que faziam cadernos e transcreviam livros a fim de ganhar dinheiro para custearem os estudos. O aparecimento do códice de pergaminho no século IV de nossa era levou ao rápido desaparecimento do papiro que predominara antes como material de escrita e começou a ser substituído pelo papel, de início charta bombycina, depois só bombycina, em 1231 charta papyri e, por fim, papyrus em 1311 (18).

11 . Na mesma época em que aparecia o códice, surgiu também o estilo da escrita "uncial", da palavra uncia, polegada, a duodécima parte de um pé, devido ao tamanho exagerado das letras. O estilo uncial já deixa ver como viriam a ser as minúsculas e predominou até o século VIII ou IX. As antigas letras maiúsculas ficaram reservadas para títulos de relevo, como os dos capítulos, em latim capita, donde o atual nome de "capitais". A partir do século V, a indústria do livro desapareceu e a cópia dos livros refugiou-se nos mosteiros. Daí o compartimento monástico dos escritórios e o cuidado dos grandes mentores culturais da época, como Boécio, Cassiodoro, Santo Isidoro de Sevilha e São Beda, de comporem livros de ortografia. As letras semi-unciais, no estilo das minúsculas, manifestaram a tendência de ligarem certas combinações de letras e foram aperfeiçoadas, por volta do ano 700, pelos monges irlandeses que criaram, diz McMurtrie, uma escrita admirável, uma das mais belas que já existiram. Essa escrita foi adotada pelos escribas carolíngios do mosteiro de Tours onde se desenvolveu a letra minúscula carolina (de Carolus Magnus) e se generalizou o uso do espaço entre as palavras para facilitar a leitura. Apesar do aparecimento das elegantes letras góticas no século XII, os humanistas do Renascimento, no início do século XV, adotaram a minúscula carolina que, fixada nos tipos de metal por Gutenberg, serviu de letra de imprensa, de modo que os nossos livros e impressos de hoje têm uma dívida notável para com os monges da Irlanda, da Inglaterra e da Gália d os séculos VIII e IX. 

A escrita carolina, ensina Dawson no seu livro A Formação da Europa, parece ter surgido na abadia de Corbie, na segunda metade do século VIII, tendo sido aperfeiçoada no famoso scriptorium da abadia de Alcuíno em Tours. A sua difusão, por certo, deveu-se ao emprego que dela fizeram Alcuíno e os seus monges nas transcrições dos livros litúrgicos, executadas por ordem do imperador. Montalembert declara na sua famosa obra Os Monges do Ocidente que a transcrição dos manuscritos era a principal e mais constante ocupação das beneditinas letradas e que não se avaliam os serviços que prestaram à ciência e à história as mãos delicadas das religiosas da Idade Média. "Elas punham, diz ele, nesse trabalho uma habilidade, uma elegância e uma atenção, que os próprios monges não podiam atingir, e nós lhes devemos alguns dos mais belos monumentos da maravilhosa caligrafia dessa época" (19).

12. Os copistas medievais tinham os seus instrumentos de trabalho, e os principais eram as penas e a tinta, pois empregavam, também, facas, raspadoras, etc., para lidarem com o pergaminho e a encadernação. O escriba antigo (antiquarius, librarius, scriptor, scriba, notarius, clericus) usava o estilete de ponta metálica para escrever nas tabuinhas de cera e a pena de cana, calamus, nas "membranas" ou pergaminhos. No império romano popularizara-se a pena de bronze ou de prata, penna, pennula. Desde o século IV, época do códice, o escriba passou a utilizar a pena de ganso. O copista medieval usava no scriptorium a pena de cana, o cálamo, que era conservada num recipiente cilíndrico de madeira ou de metal, theca calamaria, theca canarum ou calamarium. As penas eram guardadas num estojo comprido, de acordo com o seu formato, a theca litteraria ou calamarum. Esses recipientes podiam, ainda, comportar um tinteiro, atramentarium, incausterium ou calamarium. Guardava-se a tinta em chifres de veado (cornu), um para tinta preta e outro para a vermelha, e eles eram pendurados na parede ou colocados no vão de uma janela. O copista experimentava a pena muitas vezes, robationes, antes de iniciar o trabalho. A tinta era chamada atramentum librarium para distingui-la da tinta do sapateiro, atramentum sutorium. Quando era obtida por cozimento chamava-se encaustum, incaustum ou tincta, tingta, tinctura, de tingere, tingir. Desde o século III ou IV, fabricava-se tinta preta com sais metálicos, o sulfato de ferro e o sulfato de cobre. A tinta vermelha era feita de cinabre, minério de mercúrio, e servia para traçar letras ornamentais nos títulos, no começo, incipit, e no fim, explicit, dos textos, assim como para desenhar iluminuras. No período carolíngio começou a ser usada a tinta doirada e a prateada.

Citações:

(13) Nessa mesma época, diz a medievalista, foi elaborada a linguagem musical do canto-chão ou canto gregoriano que será a de todo o Ocidente até o nosso tempo. Régine Pernoud, Pour em funir avec le Moyen Âge, pág. 44.
(14) Piganiol, L'Empire Chrétien, pág. 393.
15 . Arns, E., "Book, the Ancient", em New Catholic Encyclopedia, vol. 2, págs. 680 - 684.
"Jérôme entre dans l'histoire au moment même où se déroule la lutte décisive entre le papyrus et le parchemin. Bien plus, si la victoire est restée à ce dernier, c'est grâce à l'entourage du moine de Bethléem et à celui de ses collegues latins." Arns, La Technique du Livre d'apres Saint Jérôme, pág. 23.
"L'amour du livre sacré et surtout la position officielle de l'Église a précipité l'évolution de la technique du livre em parchemin." Ibid, pág. 26.
(16) Douglas C. McMurtrie, O Livro, pág. 78.
(17) Ibid., pág. 82.
(18) A. Bruckner, "Book, the Medieval", in New Catholic Encyclopedia, vol. 2, págs. 684 - 689.
(19) Montalembert, Les Moines d'Occident, t. VI, pág. 190.

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