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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Matemática segundo a Filosofia Perene

S. Tomás de Aquino por
Gentile da Fabriano (1370-1427)

Introdução.

Há duas passagens nos Comentários aos livros de Aristóteles onde se especificam os requisitos pedagógicos imediatos da contemplação. No VII da Política aparece, nesta perspectiva, ao lado do cultivo da virtude, o cultivo da própria inteligência; e no Comentário ao VI da Ética, ao lado da ciência moral, à qual cabe o aprimoramento da virtude, fala-se também no estudo da lógica, da matemática e das ciências naturais, após o que deve-se proceder ao estudo da metafísica, um conhecimento cujo objeto é também o objeto da contemplação da sabedoria.

O estudo da metafísica não é ainda a contemplação, a qual supõe primeiro a perfeita aquisição da ciência metafísica, assim como a Metafísica supõe a perfeita aquisição das ciências que lhe são anteriores, mas é a estas ciências, isto é, à lógica, à matemática, ás ciências da natureza e à metafísica, nesta ordem, que cabe o aprimoramento da inteligência que precede a contemplação.

Lógica, Matemática e Ciências Naturais.

Assim, ao lado da ciência moral, o Comentário ao VI da Ética prescreve o estudo da lógica, da matemática e das ciências da natureza como requisito para o estudo da metafísica, de cuja perfeição se produz a contemplação.

O educador moderno estranhará neste currículo, apesar de totalmente dirigido para a atividade da inteligência como objetivo final, a importância incomum atribuída à ciência moral, mas a este respeito já nos explicamos suficientemente no capítulo precedente. Estranhará também a ausência de outras disciplinas comuns nas escolas modernas, que historicamente começaram a ganhar importância na pedagogia durante o Renascimento, como o estudo das línguas, da literatura, da história, da geografia, das artes em geral; em suma, a ausência do currículo humanista, introduzido pelo Renascimento na pedagogia, embora este já tivesse suas origens nas escolas de oradores da antiguidade clássica. O educador de hoje estranhará esta ausência e talvez, num primeiro momento, poderá atribuí-la a uma época em que a educação ainda estava em seus estágios mais primitivos de desenvolvimento.

Tal ausência, entretanto, melhor examinada, não se deve a nenhum primitivismo. Na época de Aristóteles, o autor do livro sobre o qual Tomás de Aquino escreve o Comentário, já havia obras clássicas de história, como as de Heródoto e de Tucídides, e de literatura, como os poemas de Homero e muitas obras de dramaturgia, e as artes em geral haviam já alcançado um grande estágio de desenvolvimento entre os gregos. A geografia parece não ter feito grandes progressos, mas mesmo assim os filósofos disto não se queixaram, sendo que o poderiam ter feito, pois na República Platão se queixou de que no campo da matemática a geometria plana estava bem desenvolvida, mas nada se tinha feito ainda na investigação da geometria no espaço, e isto, segundo ele, fazia muita falta para a formação do sábio:

"(Até o momento) não há nenhuma cidade
que estime devidamente os conhecimentos
(de geometria no espaço),
os quais, já por si difíceis,
são objeto de investigação pouco intensa.
Ademais, os que os investigam
necessitam de um diretor,
sem o qual não serão capazes de descobrir nada;
este diretor, porém, em primeiro lugar,
é difícil que exista e,
ainda supondo que existisse,
nas condições atuais
os que têm capacidade para investigar
(as questões de geometria no espaço)
não obedeceriam ao diretor,
movidos por sua presunção.
Mas se uma cidade inteira honrasse estas questões
e auxiliasse o diretor em sua tarefa,
os investigadores o obedeceriam e,
ao serem investigadas
de maneira constante e enérgica,
as questões (de geometria no espaço)
seriam elucidadas em sua natureza,
ao contrário do que acontece agora,
quando são desprezadas pelo vulgo
e até mesmo pelos que as investigam,
sem que se dêem conta
de sua (verdadeira) utilidade" (1).

Segundo a interpretação que se deve dar à doutrina destes filósofos, a ausência do estudo das línguas e da literatura e demais disciplinas conhecidas como humanísticas entre os requisitos imediatos para a contemplação não significa que tais disciplinas não possam ou não devam ser aprendidas pelo aluno ou fazer parte do sistema educacional. O que a ausência de menção a elas significa é que elas não são requisitos imediatos para a contemplação; como preparação remota ou por motivos outros, poderiam ser incluídas no currículo, mas não poderão ter a influência que, ao lado da ciência moral, a lógica, a matemática e as ciências da natureza terão na preparação do aluno para a contemplação.

A importância que tais disciplinas têm como preparação próxima à sabedoria provém do fato de que a sabedoria diz respeito a coisas maximamente universais e abstratas e estas disciplinas, ao contrário das outras, tem em comum os graus de abstração mais elevados com que elas tratam a realidade. Todas elas, de fato, fazem abstração, pelo menos, da individualidade do objeto que consideram.

A lógica é uma preparação para o estudo de qualquer ciência. No dizer de Tomás de Aquino, é

"uma arte que dirige o próprio ato da razão,
com a qual o homem pode proceder neste ato
com ordem, facilidade e sem erro;
ela se relaciona ao próprio ato da razão
como à sua matéria própria" (2).

As ciências da natureza, na qual, segundo a concepção dos Comentários, estão compreendidas a Biologia e a Psicologia, se ocupam com os seres naturais naquilo que eles têm de necessário, abstração feita de suas individualidades. Na matemática, além da individualidade, abstrai-se também da matéria sensível dos entes naturais todos os acidentes, com exceção da quantidade. Estes diversos graus de abstração são uma preparação para as considerações da metafísica, em cujo objeto de estudo já não há mais nenhuma característica material, os entes sendo considerados apenas enquanto seres. Nada disso ocorre com as demais disciplinas do currículo humanista, que não foram mencionadas no Comentário ao VI da Ética justamente por possuírem um grau de abstração mínimo; a História e a Geografia, por exemplo, consideram seus objetos de estudo ainda envoltos em suas individualidades.

Ademais, o ser se converte com o verdadeiro, pois o verdadeiro, diz Tomás de Aquino, é uma conveniência do ser ao intelecto (3); à metafísica, portanto, tendo por objeto o ser enquanto ser e sua causa primeira, cabe uma síntese de todo o inteligível. A matemática e as ciências da natureza, na medida em que conduzem a uma síntese do cosmos sensível, são também sob este outro aspecto uma preparação para a metafísica.

Pela ordem crescente de abstração as ciências da natureza deveriam vir antes da matemática; entretanto, o Comentário à Ética propõe que a matemática venha antes das ciências da natureza. A razão está em que a matemática, ainda que mais abstrata do que as ciências da natureza, não requer experiência por parte do jovem, enquanto que as ciências naturais sim; por causa disso a matemática deve ser aprendida em primeiro lugar. Pelo mesma razão a ciência moral vem depois das ciências naturais, pois ela necessita ainda de maior experiência do que a necessária para as ciências naturais (4).

Referências

(1) Platão: A República, L. VII, 528 b-c.
(2) In libros Posteriorum Analiticorum Expositio, Proêmio, 1.
(3) Quaestiones Disputatae de Veritate, Q. I a.1.
(4) In libros Ethicorum Expositio, L. VI, l. 7, 1211.

Trecho retirado do livro Educação segundo a Filosofia Perene disponível no link.

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A distinção mais básica na Matemática - por Instituto Hugo de São Vítor

Há dois tipos de quantidade: discreta e contínua. Entender isso é de suma importância no estudo da matemática. É por não começar daí que muitos estudos escolares acabam, no longo prazo, confundindo a cabeça de muita gente.

No estudo atual, se começa falando de número puros e, no máximo, se dá o exemplo das maçãs ou das peras para se apoiar este estudo em algo concreto. Só que, em dado momento, o professor entrará a falar de tamanhos, das áreas dos planos e sólidos geométricos. E aí poderá se insinuar um pequeno erro.

Só que, como ensinava Aristóteles, um pequeno erro no começo se transforma, passado algum tempo, num problema monstruoso.

O erro inicial é não distinguir bem os dois tipos de quantidade. Pois há dois, e não um só. Vamos lá. Quando falamos que há duas maçãs, estamos falando na verdade de quantidade discreta, isto é, de quantidades separadas; no fim, de duas coisas diferentes que foram contadas.

Porém, ao falarmos que um corpo tem um metro e noventa, passamos a falar de outro tipo de quantidade, totalmente diferente. Estamos falando de quantidade contínua. Se confundirmos, por mau aprendizado, os dois tipos, viveremos para sempre confusos em relação à matemática.

A quantidade contínua se refere à medição de uma coisa. Para medir, precisamos de um padrão de medida, como uma régua, que parte de uma unidade de medida, no caso, 1 cm.

Assim, contamos a quantidade discreta; e medimos a quantidade contínua. São coisas diferentes, que os próprios olhos enxergam como diferentes.

São lições básicas, mas muitas vezes malfeitas. E elas são passíveis de infinito aprofundamento e refinamento. Na realidade, o aprofundamento a respeito da quantidade discreta denomina-se aritmética; o aprofundamento a respeito da quantidade contínua, geometria. As duas artes básicas do Quadrivium.

Nos dois campos, muita coisa se descobriu ao longo dos milênios. Porém, resta que o óbvio permanece sempre o óbvio, e não deve ser desrespeitado. Se partirmos de modo seguro dessas distinções iniciais, poderemos avançar no estudo da matemática, sempre com calma e consistência.

Retirado de Link


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Desse modo, o Mundo é regido pelo Número - por Instituto Hugo de São Vitor

Anônimo, “Deus, o Arquiteto do
Universo” (1220-1230), Bíblia
Moralisée, iluminação em pergaminho,
 34,4 × 26 cm, Österreichische
Nationalbibliothek, Viena, Áustria

O cálculo nos ensina como combinar, das mais diversas formas, os números. Mas não o porquê do número, a sua causa. As raízes dessa questão são profundas.

Por isso, quando ouvimos dizer que Pitágoras de Samos, o grande matemático grego, dizia que o mundo era regido pelo número, podemos estranhar. Alguns até debocham dessa assertiva.

Pitágoras tinha uma razão para pensar assim. E quando os antigos sábios tinham uma razão, isso em geral significa que eles tinham uma boa razão.

A boa razão de Pitágoras era que os números são obtidos por uma abstração maior do que a abstração que retira a forma da matéria. Assim sendo, para ele isso demonstrava que os números são algo mais universal que as formas. E, de fato, as formas, nas coisas da natureza, se deterioram, mas o número, de algum modo, permanece sempre. Dessa ótica, o número parece realmente ser mais perene que a forma, e, por isso, parece regê-la.

 Você até pode rejeitar essa visão pitagórica com outros argumentos. Porém, não pode alegar que ela seja irracional.

O que é inegável é a importância do número. Sem ele, cairíamos na total desordem, no caos mais completo, de tal modo que qualquer vida seria inimaginável. Pois mesmo a imaginação, muitas vezes alcunhada de fantástica, precisa respeitar o número.

Daí que o livro da sabedoria afirme que Deus criou o mundo com número, peso e medida. Daí que sem a compreensão do universo dos números, não se caminhe em direção à sabedoria.

Daí que os antigos tenham estabelecido um currículo básico para o estudo dos números. Seu nome era Quadrivium. A Aritmética era o estudo da quantidade discreta; a Geometria, o estudo da quantidade contínua; a Música, o estudo aplicado da quantidade discreta; a Astronomia, o estudo aplicado da quantidade contínua. Sem dúvida era um currículo completo e acabado, como não vemos mais, por ser um estudo ordenado e coeso.

Estudando-o, aprenderemos certamente muito melhor a natureza do número do que pelo currículo atual, em que se misturam graus básicos com graus avançados de matemática, de modo a confundir mais do que elucidar a mente do aluno.

Texto retirado de Link


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VOCÊ PRECISA DISTO PARA ENTENDER MATEMÁTICA! - por Instituto Hugo de São Vitor

Você só não entende a matemática pelo fato de que não lhe dão nada que entender. E poucos têm coragem de dizer isso.

Pessoas há que são muito hábeis em fazer cálculos; por isso tiram boas notas na escola. Porém, isso de modo algum quer dizer que elas entendam a matemática. Só quer dizer que calculam bem; e calcular é somente uma técnica da matemática.

Assim, a matemática tem-se reduzido ao cálculo. Porém, para os antigos, a matemática era muito mais.

Para entender o quê, precisamos saber que os números são uma abstração de segundo grau. Quantos professores lhe ensinaram isso?

Infelizmente, eles não lhe ensinaram nem mesmo sobre as abstrações de primeiro grau. Então, vamos ter que recuperar também essa lição.

A abstração de primeiro grau abstrai, retira a matéria das coisas. Nunca percebeu que você faz isso? Bem, você faz. Quando usa a palavra “cadeira”, você não está falando de uma cadeira individual. Nunca. Você está falando do conceito de cadeira, que abrange todas as cadeiras que já existiram, existem e virão a existir. E o seu intelecto faz isso naturalmente, dadas certas condições.

Assim, ao ver uma cadeira, seu intelecto abstraiu o conceito de cadeira; mas, uma segunda abstração tira de uma cadeira não só o conceito de cadeira, mas o número um, pois você viu uma cadeira, afinal de contas. Assim, excluindo a matéria da cadeira primeiro, e depois a forma da cadeira, resta algo ainda: o número.

Com esse número, que é o número um, você pode ir em duas direções. A direção que se vai na escola é a do cálculo e da medição.

O Intelecto nota que há a multiplicidade no mundo. E na multiplicidade pode haver cálculo. 1 mais 1 é 2. 375 mais 813 é 1188. E este é apenas um tipo de cálculo possível. E todos eles, ou quase todos, são lógicos. São, em essência, raciocínios.

Mas os antigos viam outras vias, que foram abandonadas por soarem “místicas” demais. Porque há mais abstrações por fazer, que os modernos não ousam.

Hugo de São Vítor falava de passar dos inteligíveis (as formas e os números) para os intelectíveis (a mais alta causa do Ser). Para isso, precisamos meditar na natureza dos números, e para isso servem as quatro artes do Quadrivium.

Retirado do link


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μάθημα: Pensar matematicamente

No afresco de Rafael Sanzio, a Escola de
Atenas, Pitágoras é mostrado escrevendo
em um livro quando um jovem o apresenta
com uma tabuleta mostrando uma
representação esquemática de uma lira
 acima de um desenho do tetráctis sagrado
Para pensar matematicamente, é bom compreender que a Matemática em sua origem tinha um significado muito profundo. Infelizmente até mesmo entre matemáticos esse significado se perdeu, pelo desconhecimento do próprio caráter filosófico da Matemática. Quando consideramos a construção dos números inteiros, isso tem uma ligação com profundas questões ontológicas.

A palavra “Matemática” deriva de μάθημα (máthēma), que, numa acepção superficial, significa lição, ensinamento, mas que, numa acepção mais profunda, comum entre os pitagóricos, significava o ensinamento divino, a sabedoria divina que se desvelava aos nossos olhos. Não é à toa que os pitagóricos usaram o termo θεώρημα (theṓrēma), ou seja, teorema, para designar uma proposição matemática demonstrável. Na transliteração theṓrēma, a barrinha em cima, chamada mácron, diz que a vogal embaixo é longa, deve ser pronunciada por um tempo duas vezes maior do que uma vogal breve, seria algo como theóoreema. θεώρημα (theṓrēma) é aquilo que é contemplado, no sentido de visão das coisas divinas, a contemplação mesma das verdades superiores.

Antigamente, “teorema” em Português era escrito “theorema” e “teatro” era escrito “theatro”. Não é coincidência, a raiz é a mesma. A ideia essencial também é: a contemplação. Uma verdade matemática, portanto, enunciada como teorema, era uma verdade divina a ser contemplada. Assim compreendiam os pitagóricos a Matemática e tudo o que a ela se relacionasse, em particular a Geometria, porquanto descrevesse as formas divinas ou ideias das quais as coisas do mundo participavam, isto é, das quais eram mera projeção mimética.

A Matemática era, portanto, considerada a linguagem pela qual a Divindade nos mostrava as verdades eternas que deveríamos contemplar. Por essa razão, ao pensarmos matematicamente, devemos manter o espírito e a mente em um nível que abarque não somente o raciocínio e a lógica, mas também a intuição, como defendia Poincaré, e, em vez de “ler” as proposições matemáticas como quem lê uma asserção lógica com quantificadores existenciais e universais, dever-se-ia “contemplá-las” enquanto descritoras das belezas do universo. Essa postura expande radicalmente a capacidade de pensar como um matemático.

Por Rodrigo Peñaloza

Texto retirado do link


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O papel das matemáticas na educação, segundo Platão

Platão na Escola de
Atenas por Rapael Sanzio

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion em 2017)

Mas, na μονσική (música) Platão introduz, de modo bastante inesperado (84), uma terceira ordem de estudos, ou, pelo menos, amplia-lhe o papel em tal medida que o edifício inteiro de educação se vê assim renovado: trata-se das matemáticas. Elas não são mais, para ele, como o eram para seus antecessores (Hípias, por exemplo), um campo reservado ao grau superior do ensino: devem encontrar lugar em todos os níveis, começando pelo mais elementar.

Sem dúvida, desde a sua criação, a escola secundária teve de incluir um estudo elementar dos números: contar um, dois, três... (85), aprender a série dos inteiros e, provavelmente, as frações duodecimais empregadas na metrologia grega, isto fazia parte do aprendizado da língua e da vida. Mas Platão vai muito mais longe: ao estudo propriamente dito dos números, que constitui, para os gregos, objeto próprio da aritmética, ele junta a λογιστική (86), isto é, a prática dos exercícios de cálculos (λογισμοί) ligados a problemas concretos, extraídos da vida e dos negócios: algo equivalente, segundo se pode conjecturar [15], aos problemas de "lucro" e de "torneiras", com que afligimos nossas crianças. Paralelamente, ele concede um lugar, na geometria, a aplicações numéricas simples: medidas de comprimento, superfície e volumes (87), e, em relação à astronomia, no mínimo de conhecimento suposto pelo uso do calendário (88).

Eis aí uma inovação de imenso alcance pedagógico. Trata-se, conforme que nos assegura Platão (89), de uma imitação das práticas egípcias (que ele pode ter efetivamente conhecido, se não diretamente ao menos por intermédio do matemático Eudóxio de Cnidos, seu discípulo, que havia feito um estágio de estudos no Egito (90)): com efeito, tais problemas figuravam no programa das escolas de escribas, como a descoberta de papiros matemáticos nos permitiu verificar [16].

Todas as crianças devem, portanto, estudar matemática, pelo menos nesse grau elementar: serão introduzidas nesse estudo desde o início (91), conservando-se em tais exercícios o atrativo de um jogo (92); terão eles, como objetivo imediato, a aplicação à vida prática, à arte militar (93), ao comércio (94), à agricultura ou à navegação (95). Não é permitido, a ninguém, ignorar este mínimo, ao menos se quer fazer-se merecedor do nome de homem (96) e não do de porco de engorda (97).

Mas, e eis aqui o essencial, o papel das matemáticas não se limita a este equipamento técnico: estes primeiros exercícios, por mais práticos que seja, possuem já uma virtude formadora mais profunda (98). Recolhendo e desenvolvendo a herança de Hípias, Platão proclama a eminente virtude educativa das matemáticas: nenhum objeto de estudo, afirma ele (99), a possui em tão alto grau; elas servem para despertar o espírito, fazem-no adquirir desembaraço, memória e vivacidade.

Todos tiram delas proveito: esses exercícios de cálculo aplicado revelam os espíritos bem dotados e desenvolvem lhes a natural disposição para entrarem em qualquer espécie de estudo; mas os espíritos de início inertes, mais lentos, por meio deles despertam, com o tempo, de sua sonolência, aguçam-se e tornaram-se mais aptos a aprenderem do que o eram por natureza (100). Observação original e profunda: à diferença de muitos de seus sucessores (antigos e modernos), para os quais somente as letras tem valor universal e as matemáticas são reservadas aos felizes que, "tendo a bossa", podem "mordê-las", Platão professa que estas ciências se dirigem a todos, porque exercitam apenas a razão, faculdade comum a todos os homens.

Ainda que neste escalão elementar -- pois somente um pequeno número de espíritos de escol poderão levar as matemáticas até o fim (101), pequeno grupo esse que será necessário selecionar com cuidado (102) --, salientemos aqui o aparecimento, na história da pedagogia, desta noção de seleção, que ficou na base do nosso regime de exames e concurso. No pensamento de Platão, são precisamente as matemáticas que servem para por à prova as "melhores naturezas (103)", os espíritos aptos a tornarem-se um dia dignos da filosofia (104): nelas revelarão sua facilidade em aprender, sua penetração, sua memória, sua capacidade de envidar um esforço constante, que não se deixa enfadar pela aridez destes pesados  estudos (105). Ao mesmo tempo que selecionam os futuros trabalhos; assim, o elemento essencial de sua "educação preparatória", (προπαιδεία) é constituído pelas matemáticas (106).

Daí o programa e o espírito bem definido, segundo o qual seu estudo deve ser conduzido: deve-se lembrar que o livro VII da República, consagrado a estas ciências, se abre com o mito da Caverna (107); as matemáticas são o principal instrumento da "conversão" da alma, desta correção interior pela qual ela desperta à plena luz e se torna capaz de contemplar não mais "as sombras dos objetos reais", mas "a própria realidade (108)".

Para obter-se tal benefício, urge orientar o estudo de maneira que elas levem o espírito a libertar-se do sensível, a conceber e a pensar o Inteligível, única realidade verdadeira, única verdade absoluta. Desde cedo, esta orientação filosófica deve penetrar no ensino: Platão (109) não quer que os problemas elementares de cálculo se atenham às aplicações práticas (venda, compra...), mas -- como, a crer nele, os jogos educativos dos egípcios (110) -- considera que se devem encaminhar para um grau superior de abstração: noções de par e ímpar, de proporcionalidade. A "logística" deve ser apenas uma introdução à "aritmética" propriamente dita, que é a ciência teórica do número, e esta, por sua vez, deve culminar numa tomada de consciência da realidade inteligível. Desta pedagogia, dá-nos Platão um notável exemplo: parte ela da consideração de dados elementares (os três primeiros números) e daí se eleva a considerações sobre as noções abstratas de unidade e de grandeza, aptas a "facilitar à alma a passagem do mundo do devir ao da verdade e da essência (111)".

O programa será, como o era em Hípias, aquele mesmo, já tradicional, do Quadrivium pitagórico: aritmética (112), geometria (113), astronomia (114), acústica (115); preocupado em incorporar ao ensino os resultados das mais recentes conquistas da ciência, Platão completa-o simplesmente, juntando, à geometria plana, a geometria no espaço, que acabava de ser criada pelo grande matemático Teeteto e para o progresso da qual a Academia, na pessoa de Eudóxio, contribuirá ativamente. Todavia, importa-lhe bem mais depurar a concepção que cumpre fazer destas ciências: elas devem eliminar todo resíduo de experiência sensível, tornarem-se puramente racionais, direi mesmo apriorísticas.

Seja, por exemplo, o caso da astronomia [17]: deve ser ela uma ciência matemática, não uma ciência de observação. Para Platão, o céu estrelado, no esplendor e na regularidade de seus movimentos ordenados, é ainda, apenas, uma imagem sensível: ele é, para o verdadeiro astrônomo, o mesmo que uma figura geométrica, fosse este desenhado com o maior rigor aparente pelo artista mais hábil, é para o verdadeiro geômetra: é-lhe totalmente inútil, pois ele opera abstratamente, sobre a figura inteligível (116). A astronomia platônica é uma combinação de movimentos circulares e uniformes, que pretende não apenas, como a interpreta de maneira ainda demasiado empírica Simplício (117), "salvar as aparências" (isto é, dar contas dos fenômenos observados), mas, na verdade, reencontrar os próprios cálculos de que se serviu o Demiurgo para organizar o mundo.

Transcendendo as preocupações utilitárias, Platão confia às matemáticas um papel antes de tudo propedêutico: elas deve, não mobiliar a memória com conhecimento úteis, mas formar uma "teste bien faicte", ou seja, um espírito capaz de receber a verdade inteligível, no sentido em que a geometria fala de um arco "capaz" de um ângulo dado. Não se poderia salientar demasiadamente o imenso alcance histórico desta doutrina, que marca uma data capital na história da pedagogia: Platão introduz aqui nada menos que a noção ideal e o programa específico daquilo que propriamente se deve chamar de ensino secundário.

Ele se opõe, bem conscientemente, ao otimismo ingênuo, ou interessado, dos seus predecessores, os Sofistas, os quais, seguros de si, franqueavam o acesso de mais alta cultura "ao primeiro que chega" (ό τυχών) (118), sem levar em conta suas aptidões nem sua formação preliminar: o insucesso de tais tentativas, insucesso que, como o deplora Platão, acabou por refletir-se na filosofia (119), prova suficientemente seu erro. É necessário, ao mesmo tempo, experimentar e preparar os candidatos a filósofos: Platão é o primeiro a estabelecer e justificar esta exigência, que se imporá doravante ao educador. O que permanecerá de peculiar a seu próprio plano de estudos é o lugar eminente que nele cabe às matemáticas; como vimos, ele não negligencia a contribuição propedêutica da educação literária, artística e física: elas tem seu papel, imprimindo à personalidade, no seu todo, certa harmonia, certa eurritmia; não obstante, esse papel nada tem de comparável, em fecundidade, ao das ciências exatas, primeiro gênero acessível de conhecimento verdadeiro, iniciação direta à alta cultura filosófica, a qual se estriba, como o sabemos, na busca da Verdade racional.

Referências:

(84) PLATÃO, A República, VII, 721c s.; As Leis, V, 747b; VII, 809c.
(85) A República, VII, 522c.
(86) Idem, 522e; 525a; As Leis, VII, 809c; 817e.
(87) As Leis, 818e; 819cd.
(88) Idem, 809cd.
(89) Idem, VII, 819bc.
(90) DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas dos Filósofos, VIII, 87.
(91) PLATÃO, A República, VII, 536d.
(92) Idem, 537a; cf. As Leis, VII, 819b.
(93) A República, VII, 522ce; 525b; 526d.
(94) Cf. Idem, 525c.
(95) Idem, 527d.
(96) Idem, 522e.
(97) As Leis, VII, 819d.
(98) Idem, 818c.
(99) Idem, V, 747b.
(100) A República, VII, 526b.
(101) As Leis, VII, 818a.
(102) A República, VII, 503e-504a.
(103) Idem, 526c.
(104) Idem, 503e-504a.
(105) Idem, 535cd.
(106) Idem, 536d.
(107) Idem, 514a s.
(108) Idem, 521c; 532bc.
(109) Idem, 525cd.
(110) As Leis, VII, 181bc.
(111) A República, VII, 525c.
(112) Idem, 521c s.
(113) Idem, 526c s.
(114) Idem, 527c s.
(115) Idem, 530d.
(116) Idem. 529de.
(117) SIMPLÍCIO, Comentário ao "Do Céu" de Aristóteles, II, 12, 488; 493
(118) PLATÃO, A República, VII, 539d.
(119) Idem, 535c; 536b.

Notas complementares:

[15] Os problemas de aritmética elementar: Platão apenas os assinala num palavra: το λογισóν (Rsp., VII, 522c.), λογιστική (525a), λογισμοί (Leg., VII, 809 c, 817 e). De maneira um pouco mais precisa, nas Leg., VII, 819 c, descreve ele os jogos aritméticos que afirma em uso nas escolas egípcias e que dirigindo-se no sentido da aritmética pura, exigem as "aplicações das operações aritméticas indispensáveis", τάς τῶν άναγκαíων άριθμῶν χρήσεις.

Nas Leg., VII, 809 c, associa ele o estudo do cálculo ao conjunto dos conhecimentos cujas aquisição é necessária com vistas à guerra, aos negócios domésticos, à administração da cidade. Este caráter prático e concreto aparece mais nitidamente e contrario nas passagens em que Platão, definindo a orientação abstrata, científica e desinteressada, que convém dar à sua propedêutica matemática, a opõe ao uso exotérico geralmente aceito (em que ele próprio admite no primeiro grau, elementar, para a massa: Leg., VII, 818 a): entre os aprendizes-filósofos, a aritmética pura não servirá, como entre os negociantes e comerciantes, para cálculo de venda e compra (Rsp., VII, 525 c), não introduzirá em seus raciocínios, números representativos dos objetos visíveis ou materiais (525 e), eliminará o que de iliberal e cúpido nestas aplicações (Leg., VII, 147 b).

[16] Papiros matemáticos egípcios: A. REY, La Science dans l'antiquité (I), la Science orientale avant les Grecs, Paris, 1930, ps. 201, 287.

[17] Concepção racional, geométrica, da astronomia platônica: cf. com as páginas clássicas de P. DUHEM, Le Système du monde, Histoire des doctrines cosmologiques de Platon à Copernic, t. I, Paris, 1913, ps. 94-95; t. II, ps. 59 segs. (bibliografia anterior, p. 67, n. 1), A. RIVAUD, Le Système astronomique de Platon, Revue d'Histoire de la Philosophie, II (1928), ps. 1-26. Pode-se aproximar-lhe, utilmente, a concepção, não menos apriorística, da acústica: A. RIVAUD, Platon et la Musique, mesma Revue, III (1929), ps. 1-30.


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Elementos de Euclides

Introdução

Os Elementos de Euclides formam um dos mais bonitos e influentes trabalhos da ciência na história da Humanidade. A sua beleza acentua no desenvolvimento lógico da geometria e de outros ramos da Matemática.

Os Elementos são, a seguir à Bíblia, um dos livros mais reproduzidos e estudados na história do mundo ocidental. Foi praticamente o único livro de texto usado no ensino da Matemática durante mais de dois milénios.

Os Elementos são uma compilação de resultados de autoria diversa, alguns já conhecidos desde há muito tempo. Por este fato, não devemos considerar que Euclides foi o descobridor da totalidade, nem sequer da maioria dos teoremas ou das teorias que apresenta nos seus livros.

Os treze volumes que constituem a sua obra, foram ao longo dos tempos estudados por muitos.

Na antiga Grécia, esta obra foi comentada por Herão (10-75), Proclo (410-485) e Simplício (490-560).

Na Idade Média, foi traduzido em latim e árabe, e após a descoberta da imprensa, fizeram-se numerosas edições na maioria das línguas europeias. A primeira foi de Campano (1220-1296), em latim, publicada após a sua morte (1482) e que foi muitas vezes citada por Pedro Nunes (1502-1578). Em Portugal, Angelo Brunelli em 1768, publicou uma tradução em português dos seis primeiros livros, do décimo primeiro e do décimo segundo.

Vários temas são abordados ao longo dos treze volumes.

Os livros I-IV tratam de geometria plana elementar. Partindo das mais elementares propriedades de retas e ângulos que conduzem à congruência de triângulos, à igualdade de áreas, ao teorema de Pitágoras (proposição 47, Livro I) e ao seu recíproco (proposição 48, Livro I), à construção de um quadrado de área igual à de um retângulo dado, à secção de ouro, ao círculo e aos polígonos regulares.

Como a maioria dos treze livros, o livro I começa com uma lista de definições, sem qualquer comentário como, por exemplo, as de ponto, reta, círculo, triângulo, ângulo, paralelismo e perpendicularidade de retas tais como:

"um ponto é o que não tem parte",

"uma reta é um comprimento sem largura"

"uma superfície é o que tem apenas comprimento e largura".

A seguir às definições, aparecem os postulados e os axiomas por esta ordem:

1. Dados dois pontos, há um segmento de reta que os une;

2. Um segmento de reta pode ser prolongado indefinidamente para construir uma reta;

3. Dados um ponto qualquer e uma distância qualquer pode-se construir um círculo de centro naquele ponto e com raio igual à distância dada;

4. Todos os ângulos retos são iguais;

5. Se uma linha reta cortar duas outras retas de modo que a soma dos dois ângulos internos de um mesmo lado seja menor do que dois retos, então essas duas retas, quando suficientemente prolongadas, cruzam-se do mesmo lado em que estão esses dois ângulos (É este o célebre 5º Postulado de Euclides).

Axioma 1

Coisas que são iguais à mesma coisa também são iguais entre si.

Axioma 2

Se iguais forem somados a iguais, então os todos são iguais.

Axioma 3

Se iguais forem subtraídos a iguais, então os restos são iguais.

Axioma 4

Coisas que coincidem umas com outras são iguais entre si.

Axioma 5

O todo é maior que a parte.

Assim, três conceitos fundamentais - o de ponto, o de reta e o de círculo - os cinco postulados e axiomas, a eles referentes, servem de base para toda a geometria euclidiana.

O livro V apresenta a teoria das proporções de Eudoxo (408 - 355 a. C.) na sua forma puramente geométrica.

O livro VI, aplica a teoria das proporções, à semelhança de figuras planas. Aqui voltamos ao teorema de Pitágoras e à secção de ouro (proposições 31 e 30, Livro VI), mas agora como teoremas respeitantes a razões de grandezas. É de particular interesse o teorema (proposição 27, Livro VI) que contém o primeiro problema de maximização que chegou até nós, com a prova de que o quadrado é, de todos os retângulos de um dado perímetro, o que tem área máxima.

Os livros VII-IX, são dedicados a conceitos sobre teoria dos números tais como a divisibilidade de inteiros, a adição de séries geométricas e algumas propriedades dos números primos. Encontramos também, o "algoritmo de Euclides", para determinar o máximo divisor comum entre dois números (proposição 2, Livro VII), o mais antigo registro, de uma prova formal, por recorrência, (proposição 31, Livro VII), e ainda o "Teorema de Euclides", segundo o qual existe uma infinidade de números primos (proposição 20, Livro IX).

O livro X, o mais extenso de todos e muitas vezes considerado o mais difícil, contém a classificação geométrica de irracionais quadráticos e as suas raízes quadráticas. Neste livro surge a prova da irracionalidade de $\sqrt {2}$.

Os livros XI-XIII, são conhecidos pelo nome de livros estereométricos, por neles serem consideradas figuras da geometria tridimensional. O livro XI é dedicado ao paralelismo e à perpendicularidade de retas e planos, e ao estudo de ângulos sólidos e de prismas. No livro XII, Euclides estabelece razões entre áreas de figuras planas e entre volumes de sólidos, por um método que mais tarde passou a ser designado por método de exaustão. Finalmente, o livro XIII, trata do estudo dos cinco poliedros regulares, atualmente conhecidos por sólidos platónicos.

No link abaixo é possível acessar a obra completa em inglês:

http://aleph0.clarku.edu/~djoyce/java/elements/toc.html

Elementos (de Geometria) de Euclides. A tradução dos seis primeiros livros, do décimo primeiro e décimo segundo livro da versão latina de Frederico Commandino pode ser encontrada em domínio público aqui: Link.

Fonte:

ARAÚJO, Helena; GARAPA, Marco; LUÍS, Rafael. Elementos de Euclides - Livros VII e IX. Universidade da Madeira. Funchal, 2005.


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A Matemática de S. Isidoro de Sevilha e a Educação Medieval

por Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

Isidoro, o livro das Etimologias e a Matemática

Apresentamos ao leitor uma tradução do original latino [1] da Aritmética (capítulos 1 a 7 do Livro III) e da Geometria (capítulos 8 a 13 do Livro III) do Livro III: De Mathematica, do Etymologiarum libri XX de Isidoro de Sevilha. Santo Isidoro (c. 560-636), nascido em Sevilha na época visigoda, foi bispo nesta cidade de 600 a 636. Ele representa um dos grandes elos de transmissão da cultura clássica para a Idade Média. Sua obra Etimologias é uma espécie de enciclopédia, muitíssimo utilizada como tal ao longo de toda a Idade Média: mesmo em autores muito posteriores, como Tomás de Aquino, encontram-se inúmeras referências a esta obra. Ao examinar uma questão qualquer, o autor medieval costumava analisar a etimologia das palavras envolvidas na discussão. Não o fazia para ostentar erudição, mas por basear-se na convicção de que a origem da palavra podia conter em si informações sobre a própria realidade referida.

Etimologias é mais do que um livro sobre a linguagem: expressa todo um panorama da época e sua visão-de-mundo. Compõe-se de vinte livros, cada um elucidando palavras de um determinado campo do saber:

I. Gramática;

II. Retórica e Dialética;

III. Matemática (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia);

IV. Medicina;

V. As leis e os tempos;

VI. Os livros e os ofícios eclesiásticos;

VII. Deus, os anjos e os santos;

VIII. A Igreja e outras religiões;

IX. Línguas, povos, reinos, milícia, cidades e parentesco;

X. Etimologia de palavras diversas;

XI. O homem e os seres prodigiosos;

XII. Animais;

XIII. O mundo e suas partes (elementos, mares, ventos etc.);

XIV. A terra e suas partes (Geografia);

XV. Cidades, edifícios e o campo;

XVI. Pedras e metais;

XVII. Agricultura;

XVIII. Guerra, espetáculos e jogos;

XIX. Naves, edifícios e vestimentas;

XX. Comida, bebida e utensílios.

Nesses vinte livros (e internamente em cada livro) aparece uma original e surpreendente organização dos dados para consulta e esta é a razão pela qual Isidoro foi "candidato" a Padroeiro da Informática e da Internet.

O gosto que os autores medievais tinham pela etimologia [2] derivava de uma atitude com relação à linguagem bastante diferente da que, geralmente, temos nós hoje.

Na Idade Média, ansiava-se por saborear a transparência de cada palavra; para nós, pelo contrário, a linguagem é opaca e costuma ser considerada como mera convenção (e nem reparamos, por exemplo, em que: "coleira", "colar", "colarinho", "torcicolo" e "tiracolo" se relacionam com "colo", pescoço). Naturalmente, ao tratar da aritmética as análises etimológicas (sugestivas, embora tantas vezes falsas ou forçadas em Isidoro e nos autores medievais) não são tão importantes; mais decisivo é o conhecimento dessa disciplina, que terá na enciclopédia de Isidoro um dos principais referenciais de ensino para a Idade Média.

Referencial pobre (nem poderia ser diferente naqueles atribulados tempos), sobretudo no que se refere ao livro III, dedicado ao quadrivium, às quatro artes matemáticas: Aritmética, Geometria, Música e Astronomia. Em todo caso, mais do que aspectos "técnicos" da aritmética das Etimologias, interessa-nos aqui o uso pedagógico que o legado isidoriano propiciará à Idade Média. Isidoro não apresenta (nem pretende fazê-lo) inovações científicas; tudo o que quer é iluminar, na medida do possível, a época de trevas em que está instalado. Nessa "cultura de resumos" que é a transição do mundo antigo para o medieval, Isidoro apresenta os elementos que considera essenciais para sua "enciclopédia". Neste estudo introdutório, destacaremos alguns aspectos - sobretudo referentes à Aritmética - desse trabalho de ponte entre a cultura da Antigüidade e a da Idade Média, feita pela enciclopédia Etymologiarum.

Isidoro começa designando as matemáticas "doctrinalis scientia" ("Latine dicitur doctrinalis scientia"). Em II, 10 e ss., ele explica que há quem divida a Filosofia em duas partes: inspectiva e actualis. A inspectiva compreende três tipos: filosofia natural, filosofia doutrinal (é a Matemática, que considera abstratamente [3] a quantidade) e filosofia divina. A doutrinal por sua vez, se divide em quatro: Aritmética, Música, Geometria e Astronomia.

Aos fundadores da Matemática, está dedicado o capítulo 2 [4] .

No capítulo 3, apresenta a tradicional concepção de número como "multitude" (multitudo [5] ) e, assim, o um não é número, mas a origem do número, concepção euclidiana e aristotélica (p. ex. Metaph. 1088 a 6).

Nesta mesma linha, Tomás de Aquino, em seu tratado De Deo Uno, assim discute a unidade: "O um, que é princípio dos números, opõe-se à multitude, que é o número, como medida em relação ao medido. Pois o um tem o caráter de primeira medida, e o número é multitude medida pelo um, como fica claro pela Metafísica de Aristóteles". (Summa Theologica I, 11, 2).

Nos tópicos seguintes deste estudo destacaremos alguns aspectos pedagógicos (referentes ao cap. 4 de Isidoro) e aritméticos (dos cap. 4, 5 e 7) e comentários à Geometria em geral.

No capítulo 6, após estabelecer a divisão entre a consideração do número em si mesmo e em relação a outro, Isidoro - para tratar, de algum modo, de "frações" - define os números: superparticulares, superpartientes, múltiplos superparticulares, múltiplos superpartientes, subsuperparticulares, subsuperpartientes etc., que são muito utilizados no tratado de música de Boécio.

Ilustração da edição de Friedlein do De Musica de Boécio

Números superficiais

Diversos conceitos apresentados na Aritmética de Isidoro são recolhidos dos gregos (valendo-se de autores como Boécio [6] e Cassiodoro), como é o caso de:

Números triangulares (no arranjo tradicional pitagórico), como o 3, 6, 9 e 16:..




Números quadrados, como o 4, 9, 16, 25...



Números pentagonais, como o 5, 12, 22... 





Etc.

Menciona também os números piramidais.

O primeiro número piramidal (de tetrágono) é 1. O segundo número piramidal é 5, soma do vértice, 1, ao plano do número quadrado, 4. O terceiro é 14: 1 +5 +9. O quarto é 30. Etc.

o                 vértice

------

o o

o o              plano de 22





o o o

o o o           plano de 32     

o o o         

-----

o o o o

o o o o        plano de 42                     

o o o o

o o o o

Certamente, o uso desses conceitos na primeira Idade Média será muito restrito: faltam as articulações teórico-demonstrativas dos gregos: durante séculos os teoremas estarão praticamente ausentes. No caso dos números associados a figuras faltam em Isidoro até mesmo os resultados mais interessantes e fáceis, como o de que a soma dos n primeiros números ímpares é o número quadrado de lado n (a que é dedicado o capítulo II, 12 da Aritmética de Boécio):




1 + 3 + 5 + (2n-1) = n2

A aritmética como base da alegoria na pedagogia de Isidoro

A importância da aritmética para a educação é indicada pelo próprio Isidoro no capítulo 4: "A importância dos números" (III, 4). Como não podia deixar de ser, a aritmética serve também aos estudos de religião, o grande "tema transversal" na pedagogia medieval.

Na leitura profundamente alegórica que a Idade Média faz da Bíblia, a interpretação do "significado" dos números é de capital importância. O próprio Isidoro explicita: "Em muitas passagens da Sagrada Escritura se mostra quão profundo é o mistério que (os números) encerram. Não em vão, em louvor de Deus, diz a Escritura: 'Tudo fizeste com medida, número e peso' (Sab 11, 21)".

Esse princípio é - desde o fim da Antigüidade e ao longo da Idade Média - levado muito a sério. Se para um cristão de hoje os números na Bíblia têm, quando muito, uma importância genérica, a interpretação da Bíblia, na época, requer um conhecimento da Aritmética e do significado místico dos números.

Por exemplo, é necessário saber o que significa o número 153, quando o Evangelho diz que os apóstolos, na pesca milagrosa após a ressurreição de Cristo, apanharam 153 peixes. E vemos um S. Agostinho, repetidas vezes em seus sermões explicar esse 153, pois considera o simbolismo numérico um elemento importante para a compreensão da Revelação:

"Estes 153 são 17. 10 por quê? 7 por quê? 10 por causa da lei, 7 por causa do Espírito. A forma septenária é por causa da perfeição que se celebra nos dons do Espírito Santo. Descansará -diz o santo profeta Isaías- sobre ele, o Espírito Santo (Is 11,23) ... (com seus 7 dons) ...

Já a lei tem 10 mandamentos (...) Se ao 10 ajuntarmos o 7 temos 17. E este é o número em que está toda a multidão dos bem-aventurados. Como se chega, porém, aos 153? Como já vos expliquei outras vezes, já muitos me tomam a dianteira. Mas não posso deixar de vos expor cada ano este ponto. Muitos já o esqueceram, alguns nunca o ouviram. Os que já o ouviram e não o esqueceram tenham paciência para que os outros ou reavivem a memória ou recebam o ensino. Quando dois são companheiros no mesmo caminho, e um anda mais depressa e o outro mais devagar, está no poder do mais rápido não deixar o companheiro para trás. (...) Conta 17, começando por 1 até 17, de modo que faças a soma de todos os números, e chegarás ao 153. Por que estais à espera que o faça eu? Fazei vós a conta" [7]

Assim, não é de estranhar que num Rábano Mauro, discípulo de Alcuíno, encontremos todo um Tratado sobre o significado místico dos números [8] , discutindo, caso a caso, o significado dos números na Bíblia. O cristão de hoje sorri ao ler o autor medieval, munido de calçadeira, explicar que o número 120 é soma da progressão aritmética: 1+2+3...+14+15, e que isto representa misticamente aquelas passagens de Atos em que se descreve a vinda do Espírito Santo (At 2, 1) quando estava reunida a assembléia de 120 pessoas (At 1,15) "todos num mesmo lugar" (a soma simboliza essa reunião).

Precisamente nessas diferenças é que se capta a mentalidade da época. O homem medieval está seriamente convencido de que não há palavra ociosa na Sagrada Escritura e que tudo o que está revelado "é inspirado por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça" (II Tim 3, 16)."

Se a dimensão religiosa é essencial para a pedagogia de Isidoro, ele não descura os aspectos práticos (entre os quais se incluem a organização da vida pelas horas, introduzida por São Bento):

"Em alguma medida, nossa vida dá-se sob a ciência dos números: por ela sabemos as horas, acompanhamos o curso dos meses, sabemos quando retorna cada época do ano. Pelo número aprendemos a evitar enganos. Suprimido o número de todas as coisas, tudo perece. Se se tira o cômputo dos tempos, tudo ficará envolto na cega ignorância e o homem não se pode diferenciar dos animais, que ignoram os procedimentos de cálculo".

 

Um conceito: número perfeito

Na linha da aplicação dos estudos de aritmética à leitura da Bíblia, analisemos mais de perto um conceito: o de número perfeito. Isidoro exemplifica com o número 6, que evidencia a perfeição (dos seis dias) da criação do mundo. Recolhendo o critério antigo, Isidoro define como perfeito o número cuja soma de seus divisores o perfaz. Assim, um número perfeito - é um número n, tal que a soma de seus divisores (a menos do próprio n) dá n. Se essa soma for maior do que n, o número diz-se abundante; se menor, deficiente.

Isidoro sabe que 6, 28, 496 e 8128 são perfeitos. E conhece o critério para a geração de números perfeitos:

p = (2n - 1). 2n-1 será perfeito, se (2n - 1) for primo.

Assim,

6 = (22 - 1). 2(2-1) é perfeito, pois (22 - 1) = 3 é primo.

28 = (23 - 1). 2(3-1) é perfeito, pois (23 - 1) = 7 é primo.

496 = (25 - 1). 2(5-1) é perfeito, pois (25 - 1) = 31 é primo.

8128 = (27 - 1). 2(7-1) é perfeito, pois (27 - 1) = 127 é primo.

Essa equação recebe uma formulação equivalente em Boécio. Boécio começa o capítulo sobre a geração dos números perfeitos (Aritmética I, 20) da maneira mais medieval possível: observando a grande semelhança entre os números perfeitos (raros e bem ordenados) e as virtudes, e a dos números imperfeitos e os vícios, etc. A seguir, explica como se dá a "geração e procriação" dos números perfeitos: a partir da seqüência dos números parmente pares (isto é, as potências de 2):

1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128 ...

Somam-se os n primeiros. Se essa soma der um número primo, multiplica-se pelo maior somando, 2n-1, e obtém-se um número perfeito.

De fato, os 2 processos são equivalentes, pois:

1 + 2 + 4 + + 2n  = 2n - 1.

E, assim, a fórmula boeciana fica:  (2n - 1) . 2n-1, que é a fórmula que tínhamos enunciado originalmente.

Esses conceitos matemáticos, que Isidoro repassa - em formulação sumária - para a Idade Média, reaparecem, por exemplo, em torno do ano 1000, em outro importante momento pedagógico medieval: a peça Sabedoria, que marca a re-invenção - por Rosvita de Gandersheim [9] - da composição teatral no Ocidente.

Na peça, a autora, com claros propósitos didáticos, brinda-nos com uma aula de Matemática (em III, 31 e ss). Trata-se da cena em que Adriano, o imperador pagão, em meio ao interrogatório para demover de sua fé a nobre senhora cristã Sabedoria - e suas três filhinhas Fé, Esperança e Caridade (sempre, a alegoria) -, pergunta a idade das meninas. Sabedoria aproveita "a deixa" para desenvolver conceitos aritméticos expostos por Isidoro, como:

número parmente par - são as nossas potências de 2.

parmente ímpar - o dobro de um número ímpar.

imparmente par - produto de um ímpar por um parmente par.

número perfeito, número abundante, número deficiente. Etc.

SABEDORIA: Ó Imperador, se tu perguntas a idade das meninas: Caridade tem por idade um número deficiente que é parmente par; Esperança, também um número deficiente, mas parmente ímpar; e Fé, um número abundante mas imparmente par.

ADRIANO: Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números são!

SAB.: Não me admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos números e não há uma única resposta.

ADR.: Explica de modo mais claro, senão não entendo.

SAB.: Caridade já completou 2 olimpíadas; Esperança; 2 lustros; Fé, 3 olimpíadas.

ADR.: E por que o número 8, que é 2 olimpíadas, e o 10, que é 2 lustros, são números deficientes? E por que o 12, que perfaz 3 olimpíadas, se diz número abundante?

SAB.: Porque todo número, cuja soma de suas partes (isto é, seus divisores) dá menor do que esse número, chama-se deficiente, como é o caso de 8. Pois os divisores de 8 são: sua metade - 4, sua quarta parte - 2 e sua oitava parte - 1, que, somados, dão 7. Assim também o 10, cuja metade é 5, sua quinta parte é 2 e sua décima parte, 1. A soma das partes do 10 é portanto, 8, que é menor do que 10. Já, no caso contrário, o número diz-se abundante, como é o caso do 12. Pois sua metade é 6, sua terça parte, 4, sua quarta parte, 3, sua sexta parte, 2 e sua duodécima parte, 1. Somadas as partes, temos 16. Quando, porém, o número não é excedido nem inferado pela soma de suas diversas partes, então esse número é chamado número perfeito. É o caso do 6, cujas partes - 3, 2, e 1 - somadas, dão o próprio 6. Do mesmo modo, o 28, 496 e 8128 também são chamados números perfeitos.

ADR.: E quanto aos outros números?

SAB.: São todos abundantes ou deficientes.

ADR.: E o que é um número parmente par?

SAB.: É o que se pode dividir em duas partes iguais e essas partes em duas iguais, e assim por diante, até que não se possa mais dividir por 2, porque se atingiu o 1 indivisível. Por exemplo, 8 e 16 e todos que se obtenham a partir da multiplicação por 2, são parmente pares.

ADR.: E o que é parmente ímpar?

SAB.: É o que se pode dividir em partes iguais, mas essas partes já não admitem divisão (por 2). É o caso do 10 e de todos os que se obtêm, multiplicando um número ímpar por 2. Difere, pois, do tipo de número anterior, porque naquele caso, o termo menor da divisão é também divisível; neste, só o termo maior é apto para a divisão.

(...)

ADR.: E o que é imparmente par?

SAB.: É o que - tal como o parmente par - pode ser dividido não só uma vez, mas duas e, por vezes, até mais. No entanto, atinge a indivisibilidade (por 2) sem chegar ao 1.

ADR.: Oh! que minuciosa e complicada questão surgiu a partir da idade destas menininhas!

SAB.: Nisto deve-se louvar a supereminente sabedoria do Criador e a Ciência admirável do Artífice do mundo: pois, não só no princípio criou o mundo do nada, dispondo tudo com número, peso e medida, como também nos deu a capacidade de poder dispor de admirável conhecimento das artes liberais, até mesmo sobre o suceder do tempo e das idades dos homens.

Até um autor como Tomás de Aquino ainda discute "números perfeitos" e diversos critérios de perfeição numérica para a interpretação da Bíblia (pelos quais o 7, o 12 ou o 100 podem ser perfeitos). Note-se a elasticidade desses critérios em diversas passagens.

a) No Comentário às Sentenças, (d 15, q 3, a 1), Tomás lança a objeção de que Deus não pode ter consumado sua obra no sétimo dia, porque o número perfeito é 6. E responde considerando que o 6 é perfeito por causa de "suas partes", que somadas o perfazem. E trata-se de uma perfeição especial pois, no caso do 6, as partes - 1, 2 e 3 - sucedem-se de modo ordenado e contínuo (ordinatim et continue) e é essa perfeição que condiz com a dos 6 primeiros dias da criação.

b) Já em Comentário às Sentenças, (d 47, q 1, a 2), discutindo o número dos apóstolos, 12, diz: "o sete é o número da perfeição". Ora o 7 se compõe de 3 mais 4 e se multiplicarmos o 3 pelo 14, obteremos o 12, que é duas vezes o 6, que é número perfeito. Além do mais, na Catena Aurea in Matthaeum (cp 10 lc 1), a perfeição do 12 é atribuída à do 6 multiplicado por 2 (que representa os dois preceitos da caridade...).

c) Na Summa (II-II, 87, 1), o 10 aparece "de certo modo" (quodammodo) como número perfeito, pois é uma espécie de primeiro limite dos números, a partir do qual, ele retomam a ordem do um, dois etc.

d) Na Catena Aurea in Matthaeum (cp 8 lc 2), comentando a passagem do Evangelho do centurião, considera o 100 um número perfeito.

Como se vê, a importância de Isidoro projeta-se pelos séculos medievais e é abrangente e profunda.

A Geometria de Isidoro.

Particularmente a Geometria de Isidoro está recheada de passagens obscuras, de erros e imprecisões, que comentaremos em notas ao longo da tradução. O capítulo 8, apresenta as médias aritmética, geométrica e "musical" (harmônica). A partir do capítulo 10, começa propriamente a Geometria.


Sobre a Matemática - Aritmética e Geometria

Santo Isidoro de Sevilha

(trad. Jean Lauand)

Prefácio

Em latim, chama-se "ciência "doutrinal" à ciência que trata da quantidade abstrata. A quantidade é abstrata quando no intelecto a separamos da matéria ou de outros acidentes, como é o caso de "par" e "ímpar", que só são considerados pelo raciocínio.

Há quatro dessas disciplinas: aritmética, música, geometria e astronomia.

A aritmética é a disciplina da quantidade numerável em si mesma considerada.

A música é a disciplina que trata dos números que se encontram nos sons.

A geometria é a disciplina que trata da magnitude [10] e das formas.

A astronomia é a disciplina que trata do movimento [11] dos astros do céu e contempla as características das estrelas.

A seguir, exporemos um pouco mais amplamente essas disciplinas para que possamos adequadamente mostrar seus princípios.

1. Sobre a denominação da disciplina aritmética [12]

1. A aritmética é a disciplina dos números e os gregos chamam o número arithmós. Alguns autores profanos pretendem que ela seja a primeira entre as disciplinas matemáticas, pois não depende de nenhuma outra.

2. Já a música, a geometria e a astronomia seguem-se à aritmética: só com seu auxílio podem surgir e subsistir [13] .

2. Sobre seus autores

Afirma-se que, entre os gregos, Pitágoras foi o primeiro a escrever [14] sobre a disciplina do número e que, depois, Nicômaco ampliou esse trabalho, que, entre os latinos, foi traduzido primeiro por Apuleio [15] e depois por Boécio.

3. O que é o número

1. Número é uma multitude [16] constituída a partir de unidades, pois o um não é número, mas a origem do número. A palavra "número" procede de nummus (dinheiro), por seu uso freqüente. Um derivou seu nome do grego, pois o grego chama o um héna, tal como o dois e o três que eles chamam duo e tría.

2. O quatro tomou esse nome da figura quadrada. Já o cinco recebeu seu nome não segundo a natureza, mas pelo arbítrio da vontade de quem impôs nome aos números. O seis e o sete também procedem do grego.

3. Em muitas palavras que em grego começam por aspiração, nós a substituímos por um S. Assim, em vez de hex dizemos sex (seis) e septem (sete) em lugar de hepta, do mesmo modo que chamamos serpillum (serpilho) à erva herpillus. O oito foi trazido sem modificações; e o que é para eles ennéa, para nós é nove; e déka, dez.

4. Na etimologia grega, o dez é assim chamado porque ajunta e reúne os números que o antecedem: desmós significa em grego ajuntar ou reunir. Já viginti (vinte) é um dez duas vezes gerado (bis geniti), se trocarmos o B pelo V. Trinta (triginta) é um dez três vezes gerado e assim por diante, até o noventa.

5. O cem procede de cantho, círculo. Duzentos de dois centos e assim até mil. Mil deriva de multitude e daí também milícia, que é como "multitia"; e milhar, que os gregos, mudando uma letra, chamam de myriada.

4. A importância dos números

1. Não se deve desprezar a razão [17] que se encontra nos números. Em muitas passagens da Sagrada Escritura se mostra quão profundo é o mistério que encerram. Não em vão, em louvor de Deus, diz a Escritura: "Tudo fizeste com medida, número e peso" (Sab 11, 21).

2. Assim, o seis, que é um número perfeito - a soma de suas partes [18] o perfaz - evidencia a perfeição (dos seis dias) da criação do mundo. Assim também, sem o conhecimento dos números não se entende porque foram quarenta os dias em que Moisés, Elias e o próprio Senhor jejuaram.

3. E assim outros números aparecem também nas santas Escrituras cujo sentido figurado não se pode entender a não ser pelos que conhecem esta matéria. Em alguma medida, nossa vida dá-se sob a ciência dos números: por ela sabemos as horas, acompanhamos o curso dos meses, sabemos quando retorna cada época do ano.

4. Pelo número aprendemos a evitar enganos. Suprimido o número de todas as coisas, tudo perece. Se se tira o cômputo dos tempos, tudo ficará envolto na cega ignorância e o homem não se pode diferenciar dos animais, que ignoram os procedimentos de cálculo (rationem calculi).

5. Uma primeira divisão: números pares e ímpares

1. Os números se dividem em pares e ímpares. Os pares, por sua vez, se dividem em parmente pares, parmente impares e imparmente pares. Os números ímpares se dividem em: primos ou simples, segundos ou compostos e terceiros ou intermédios, que, de certo modo, são primos e não compostos e, de certo modo, são segundos e compostos.

2. Número par é o que se pode dividir em duas partes iguais, como o 2, o 4 e o 8. Já o ímpar não se deixa dividir em duas partes iguais, faltando ou sobrando 1 em uma delas. É o caso do 3, 5, 7, 9 etc.

3. Número parmente par é aquele que se pode dividir em partes iguais pares, sucessivamente, até atingir a indivisível unidade. Por exemplo, o 64, cuja metade é 32; a deste é 16; a deste é 8; a deste é 4; a deste é 2; a deste é 1, que é singular indivisível.

4. Número parmente ímpar é o que se deixa dividir em suas partes iguais, mas estas já não são divisíveis. É o caso do 6, do 10, do 38 e do 50. Assim que divides um desses números, obténs um número que não podes dividir.

5. Imparmente par é o número cujas partes podem ainda sofrer divisão, mas não a ponto de atingir a unidade. É o caso do 24, cuja metade é 12, que, por sua vez, tem por metade 6, cuja metade é 3, que não admite mais divisões e, assim, antes de atingir a unidade, chegamos a um termo que não se pode dividir.

6. Imparmente ímpar é um número que pode ser medido imparmente por número ímpar, como o 25 e o 49, ímpares que se dividem em partes ímpares: 49 é sete vezes sete e 25 é cinco vezes cinco.

Dos números ímpares, alguns são simples, outros compostos e outros médios.

7. São simples [19] os que não têm partes [20] exceto a unidade. Como o 3, o 5 e o 7. Estes só admitem uma parte [21] .

Os números compostos são os que não são medidos [22] só pela unidade, mas são obtidos também por outros números. É o caso do 9, do 15 e do 21, que são três vezes três, cinco vezes três e sete vezes três.

8. Números intermédios são os que, de certo modo, parecem primos e não compostos e, de outro modo, compostos. Como por exemplo o 9 em relação ao 25, é primo e não composto, pois não têm número [23] em comum, mas só a unidade (monadicum). Se comparamos, porém o 9 ao 15, ele é segundo e composto, porque têm número em comum além da unidade, o número 3 que mede o 9 em três vezes três e mede o 15 em três vezes cinco.

9. Dentre os números pares, por sua vez, há os que são abundantes, há os deficientes e há os perfeitos.

Os abundantes são os que, somando suas partes, excedem a sua própria plenitude. É o caso do 12, que tem cinco partes: a duodécima, que é 1; a sexta, 2; a quarta, 3; a terça, que é 4; e a metade, 6. Somando 1, 2 , 3, 4 e 6 obtém-se 16, que excede, em muito, o 12. E assim também muitos outros números como o 18 etc.

10. Números deficientes são aqueles que a soma de suas partes resulta menor do que esse número. Por exemplo, o dez, que tem três partes: a décima, 1; a quinta, 2; e a metade, 5. A soma de 1, 2 e 5 é 8 que, de longe, e menor do que 10. E o mesmo se dá com o 8 e com diversos outros números, cuja soma das partes é inferior ao próprio número.  

11. Número perfeito é o que se perfaz com suas partes, como o 6. O 6 tem três partes: a sexta, 1; a terça, 2; e a metade, 3. Essas partes - 1, 2 e 3 - somadas consumam e perfazem o 6. São números perfeitos: na primeira dezena, o 6; na primeira centena, o 28; no primeiro milhar, o 496.

6. Sobre a segunda divisão dos números em geral

1. Todo número pode ser considerado em si mesmo ou em relação a outro. No primeiro caso, eles podem ser: iguais ou desiguais; no segundo, maiores ou menores. Os maiores se classificam em: múltiplos, superparticulares, superpartientes, múltiplos superparticulares, múltiplos superpartientes. Os menores se classificam em: submúlti-plos, subsuperparticulares, subsuperpartientes, submúltiplos subsuperparticulares, submúltiplos subsuperpartientes.

2. O número considerado em si mesmo é considerado independentemente de relações com outro, como o 3, ou o 4, 5, 6 etc. O número considerado em relação a outro é examinado em comparação com outro. Como o 4 comparado ao 2 é dobro e múltiplo; e o mesmo se dá com o 6 em relação ao 3, o 8 em relação ao 4, o 10 em relação ao 5. Assim também o 3 é o triplo do 1; o 9 é triplo do 3 etc.

3. Dizem-se iguais os números que segundo a quantidade são iguais, como o 2 e o 2, o 3 e o 3, o 10 e o 10 e o 100 e o 100. São desiguais os números que, comparados, apontam para quantidades desiguais, como o 3 e o 2, o 5 e o 4, o 10 e o 6 e sempre um maior comparado a um menor ou um menor comparado a um maior dizem-se desiguais.

4. O número maior contém em si o menor ao qual é confrontado e algo mais; como por exemplo o 5 é mais que o 3, porque contém o três e outras duas partes mais. E assim também nos casos semelhantes.

5. O número menor está contido no maior ao qual é comparado, como o 3 em relação ao 5; que o contém e a duas partes. Múltiplo é um número que contém em si um menor duas, três, quatro ou mais vezes, como o 2 que é o dobro do 1, o três que é seu triplo, 4 seu quádruplo etc. 

6. Já o contrário é o numero submúltiplo, que está contido duas, três, quatro ou mais vezes no múltiplo como, por exemplo, o 1 no 2 duas vezes; no 3, três; no 4, quatro; no 5, cinco; etc.

7. Superparticular é o número que contém em si o número inferior ao qual é comparado e além disso uma parte mais, como o 3 e o 2, que, quando comparados, o 3 contém o 2 e também o 1, que é meia parte do 2; o 4 e o 3, o 4 contém o 3 e o 1, que é a terça parte do 3; o 5 e o 4, o 5 contém o 4 e o 1 sua quarta parte; etc.

8. Número superpartiente é o que contém em si a todo número inferior e, além disso, duas, três, quatro, cinco ou mais partes dele, como, por exemplo, o 5 comparado ao 3, contém o 3 e duas partes dele; o 9 comparado ao 5 contém o 5 e quatro partes dele.

9. O número subsuperpartiente é o que se contém no superpartiente com algumas - duas, três ou mais -  de suas partes, como, por exemplo, o 3 -com duas de suas partes- se contém no 5; e o 5 - com quatro de suas partes - se contem no 9. 

10. O número subsuperparticular é o número menor que, junto com alguma de suas partes - meia, terça, quarta, quinta... - se contém no maior. Por exemplo, o 2 em relação ao 3; o 3 em relação ao 4; o 4 em relação ao 5; etc.

11. Múltiplo superparticular é o número que comparado com outro menor, contém em si múltiplas vezes esse número inferior e mais alguma parte dele, como por exemplo, o 5 em relação ao 2, contém o 2 duas vezes - isto é, 4 - e mais uma parte; o 9 comparado ao 4, contém duas vezes o 4 - isto é, 8 - e mais uma parte dele. 

12. [Número submúltiplo [sub] subparticular é aquele que comparado a um maior, está contido nele múltiplas vezes e com uma parte sua. É o caso do 2 em relação ao 5: está duas vezes contido nele e mais uma parte sua]. O múltiplo superpartional é o número que, comparado com outro menor o contém múltiplas vezes e com outras partes dele. Por exemplo, o 8 em relação ao 3: o 8 contém o 3 duas vezes e mais duas partes dele. Eo 14 contém o 6 duas vezes e mais duas partes dele [ou o 16 contém o 7 duas vezes e mais duas partes dele e o 21 contém o 6 três vezes e mais três partes dele].

13. O número submúltiplo superpartional é aquele que comparado a um maior, está contido nele múltiplas vezes e com algumas partes suas. É o caso do 3 em relação ao 8: está duas vezes contido nele junto com duas parte suas. E o 4 está contido no 11 duas vezes junto com três partes suas.

7. Sobre a terceira divisão dos números em geral

1. Os números são discretos ou continentes. Neste caso, temos números lineares, superficiais e sólidos. Número discreto é o que está constituído por unidades discretas, como o 3, 4, 5, 6 etc.

2. Número continente é aquele que é constituído por unidades conexas, como por exemplo o 3 quando considerado em extensão, isto é, em linha, superfície ou corpo sólido. E o mesmo vale para o 4 ou o 5.

3. Número linear é aquele que começando com a unidade e seguindo uma linha vai até o infinito. Daí que seja designado por alfa, porque esta letra designa o 1 entre os gregos.

1--- 2 --- 3 --- 4 --- ...

4. O número superficial está contido não só por longitude mas também por latitude, como os números triangulares, quadrados, pentagonais ou circulares, assim como os que estão contidos no plano, isto é na superfície. E assim há números triangulares, quadrados e pentagonais (figuras abaixo).











5. É circular [24] o número que multiplicado por si mesmo começa em si e volta a si, como 5 vezes 5, que é 25. Número sólido é o que está contido por longitude, latitude e altura, como ocorre com as pirâmides que se elevam a modo de chama.





6. O cubo é como os dados.






A esfera possui uma redondez uniforme.






Número esférico é aquele que, multiplicado pelo circular, começa em si e volta a si. 5 vezes 5 é 25. Este círculo multiplicado por 5 de novo dá uma esfera, isto é 5 vezes 25 é 125.

8. Sobre a diferença entre aritmética, geometria e música

1. Entre aritmética, geometria e música há esta diferença: a determinação da média. Para obteres a média aritmética, soma os extremos, divida [por 2] e obterás o termo médio. Como, por exemplo, se os extremos são 6 e 12, a soma dá 18. Partindo-se ao meio o 18 dá 9, que é a proporção aritmética [25] , pois a média supera o primeiro termo nas mesmas unidades em que é superada pelo outro termo: 9 supera 6 em 3 unidades, tal como é superada por 12.

2. Para obter a média geométrica. A multiplicação dos extremos dá o mesmo que a dos termos médios; por exemplo: o produto de 6 por 12 é o mesmo que o de 8 por 9 [26] . Já a média musical supera o termo menor na mesma parte ["fração" deste] em que é superada pelo termo maior ["fração" deste] [27] . Por exemplo 6 e 8: o 8 supera o 6 em 2, que é um terço de 6 [ao mesmo tempo 8 é superado por 12 em 4, que é também um terço de 12] [28] .

9. São infinitos os números

1. É certíssimo que há infinitos números, pois a própria razão e a ciência dos números atestam que para qualquer número que considerasses ser o último, é possível, por grande, por avultado que seja - nem vou falar de somar-lhe uma unidade - pode não só ser duplicado, mas multiplicado.

2. Cada número está tão determinado por suas propriedades que nenhum deles pode ser identificado a outro. São, portanto, distintos e diferentes entre si; e sendo cada um deles finito, considerados em conjunto são infinitos.

10. Sobre os inventores da Geometria e do nome Geometria

1. Diz-se que a disciplina da Geometria começou com os egípcios, pois com as inundações do Nilo, apagavam-se com o lodo as demarcações das propriedades e deu-se início a esta arte - e daí o nome Geometria [29] - de delimitar as terras que deviam ser divididas, por linhas e medidas. Mais tarde, foi levada pelos sábios a uma altura tal que se mediam os espaços do mar, do céu e do ar.

2. Pois, atraídos pelo estudo, depois das dimensões da terra começaram a pesquisar os espaços do céu: quanto dista da terra a lua; quanto a lua do sol; e a medida da distância até o vértice do céu. E também calcularam, de modo provável, o número de estádios das distâncias do céu e o contorno do orbe.

3. Mas como essa disciplina surgiu com medição de terras, conservou o nome que teve em sua origem. Pois "Geometria" procede de "terra" e "medida", já que "terra", em grego, é ge e medida é metra. E a arte desta disciplina compreende linhas, distâncias, medidas e figuras; e nas figuras considera as dimensões e os números.  

11. Sobre a divisão da Geometria em quatro partes

1. A Geometria se divide em quatro partes: o plano, a magnitude numerável, a magnitude racional e as figuras sólidas.

2. As figuras planas são as que se configuram por longitude e latitude; segundo Platão são cinco. A magnitude numerável é a que pode ser dividida em números da Aritmética.

3. As magnitudes racionais são aquelas cujas medidas podemos conhecer; já das irracionais, não se dá medida conhecida.

12. Sobre as figuras da Geometria

1. As figuras sólidas são as que se configuram por comprimento, largura e altura, como é o caso do cubo. As figuras planas são de cinco tipos: a primeira é o círculo, que se chama circunduta [30] , no meio da qual está um ponto para o qual tudo converge, e em Geometria se chama centro; já os latinos o denominam "ponto do círculo" (ver figura).

2. O quadrilátero é uma figura quadrada no plano e é compreendida sob quatro linhas retas (ver figura). O dianatheton grammon é uma figura plana (ver figura). O orthogonium, que significa ângulo reto, é uma figura plana: é o triângulo que tem um ângulo reto (ver figura). O isopleuros é uma figura plana e reta (ver figura).

3. A esfera é uma figura de forma redonda, igual em todas suas partes (ver figura). O cubo é figura própria sólida que tem comprimento, largura e altura (ver figura).

4. O cilindro é uma figura quadrada, com um semicírculo acima (ver figura) [31] .

5. O cone é uma figura que vai do largo até terminar em estreito, tal como o triângulo retângulo (ver figura).

6. A pirâmide é figura, que tal como o fogo, vai do largo até um vértice. Fogo em grego é pyr (ver figura). 

7. Assim como todos os números estão abaixo do 10, assim também o círculo pode encerrar cada figura [32] (ver figura). A primeira figura da arte geométrica é o ponto, que não tem partes. A segunda é a linha, que tem comprimento além de largura. A linha reta jaz igualmente em seus pontos. Já a superfície, tem só comprimento e largura. As linhas são os limites das superfícies; não foram postas suas formas nas dez figuras anteriores, porque se encontram entre elas. 














13. Sobre os números da Geometria

Se queres os números de acordo com a Geometria, faze assim: a multiplicação dos extremos dá o mesmo que a dos meios; como por exemplo 6 multiplicado por 12 dá 72, que é o mesmo que 8 multiplicado por 9.


















[1] Seguimos o texto apresentado na edição de José OROZ RETA  San Isidoro de Sevilla - Etimologías, Madrid, BAC, 1982.

[2] Examino com mais detalhe a importância da etimologia para Isidoro e para os autores medievais em J. LAUAND (org.) Cultura e Educação Medievais, São Paulo, Martins Fontes, 1999.

[3]   Abstrato, para Isidoro, é o que foi separado, saído. Assim, por exemplo, falando dos dragões, Isidoro diz que eles freqüentemente provocam ciclones quando saem (abstractus) de suas cavernas: "Qui saepe ab speluncis abstractus fertur in aerem, concitaturque propter eum aer"(12, 4, 4).

[4] . Sobre o cap. 2, recolho a seguinte nota do Dr. Sérgio Nobre "Isidoro escreve que Pitágoras foi o primeiro grego a escrever sobre a ciência dos números e que posteriormente fora completado por Nicomachus, cuja obra foi traduzida para o latim primeiramente por Apuleio e em seguida por Boécio. As informações históricas contidas neste verbete são importantes contribuições para aqueles que posteriormente viriam a escrever sobre a história das origens das teorias numéricas. Isidoro ressalta a figura do personagem de nome Pitágoras (c.580-500) ligado à Ciência dos Números. Embora Isidoro não mencione a existência de documentos que comprovam a existência de Pitágoras, pois certamente ele também se apóia em outros autores que o citam, este é mais um documento histórico que confirma a ligação deste com a matemática e especificamente com temas ligados a teoria de números. Outra informação histórica importante que aparece neste pequeno verbete é a existência de um outro grego que continuou os estudos iniciados por Pitágoras, ou por membros da Escola Pitagórica. Isidoro cita Nicômaco de Gerasa (~100 A.D.), pitagórico que, além de escritos matemáticos, também teve uma grande produção em textos sobre teoria musical. Sobre a obra matemática de Nicômaco, Isidoro não menciona o título, certamente deve ser o seu texto mais conhecido Introdução à aritmética, mas explicita que esta obteve duas traduções para o latim. Com relação às traduções para o latim, Isidoro menciona que a obra de Nicômaco foi primeiramente traduzida por Apuleio e em seguida por Boécio. São duas informações importantes para a compreensão do desenvolvimento histórico relativo às traduções de textos gregos para o latim. Primeiramente é citado Apuleio de Madaura (c.125-171), um sofista e platônico provavelmente do século II da Era Cristã, do qual muito pouco se sabe, e muito menos sobre suas atividades relacionadas à matemática. Cabe ressaltar que dentre as poucas informações que se tem atualmente sobre Apuleio, algumas são originárias das menções feitas a ele por Cassiodoro e Isidoro. Caso fosse encontrada, certamente esta tradução da obra de Nicômaco feita por Apuleio teria sua dose de contribuição para a compreensão do pensamento romano-europeu no início da era Cristã. Um segundo autor citado por Isidoro como tradutor da obra de Nicômaco foi o erudito Anicius Boethius". S. NOBRE, "Isidoro de Sevilha", in Elementos historiográficos da Matemática presentes em enciclopédias universais. Dissertação de Livre-Docência em História da Matemática. Unesp - campus de Rio Claro, 2001.

[5] Numerus autem est multitudo. Preferimos a forma nova  multitude, pois multidão está demasiadamente associado a pessoas.

[6] Anicii Manlii Torquati Severini BOETII De Institutione Arithmetica libri duo. De Institutione Musica libri quinque. Edidit Godofredus Friedlein, Lipsiae, Teubner, 1867. Há ed. eletrônica em: http://cdl.library.cornell.edu/Hunter/hunter.pl?handle=cornell.library.math/cdl274&id=1

[7] . Sermão 250 in AGOSTINHO Sermões para a Páscoa, trad. de António Fazenda, Lisboa, Verbo, 1974.

[8] PL CXI, livro XVIII, cap. III do De Universo. Há tradução brasileira em J. LAUAND  O significado místico dos números, Curitiba-S. Paulo, PUC-PR - GRD, 1992.

[9] . PL 137, 1035 - 1042. Há tradução brasileira em J. LAUAND  Educação, Teatro e Matemática Medievais, São Paulo, Perspectiva, 2a. ed., 1990.

[10]   Em 3, 10, Isidoro lembrará que geo-metria tem que ver com medida.

[11] Se a Astronomia trata do movimento, a Geometria é "disciplina magnitudinis inmobilis" (II, 24, 15).

[12] Este parágrafo, como boa parte do que Isidoro diz sobre Aritmética, foi tomado (por vezes, literalmente de Cassiodoro "Sobre a Matemática" em Institutiones, que, por sua vez, apóia-se em Boécio.

mesmo modo, comenta Boécio, que só se pode falar em homem se antes se dispõe do conceito de animal, assim também a Geometria só pode falar em triângulo ou quadrado, pressupondo a Aritmética (op. cit. I, 1, 20 e ss.).

[13] Do mesmo modo, comenta Boécio, que só se pode falar em homem se antes se dispõe do conceito de animal, assim também a Geometria só pode falar em triângulo ou quadrado, pressupondo a Aritmética (op. cit. I, 1, 20 e ss.).

[14] Já Agostinho lembra que Pitágoras nunca escreveu nada: "Nam Pythagoras(...) non tantum de se, sed nec de ulla re aliquid scripsisse perhibetur". De consensu euangelistarum,1,7,12.

[15] Sabemos muito pouco sobre Nicômaco de Gerasa (entre 55 e 166 D.C.). Autor de várias obras que se perderam. A Introdução à Aritmética foi traduzida ao latim por Apuleio, segundo Cassiodoro (PL 70, 1208 B). Também essa tradução não chegou até nós, mas somente o De institutione arithmetica de Boécio, que é uma adaptação dessa obra (Nota da ed. de José Oroz).

[16] Numerus autem est multitudo. Preferimos a forma nova  multitude, pois multidão está demasiadamente associado a pessoas.

[17] ratio, isto é, as leis e princípios racionais que neles se encerram.

[18] As partes, isto é, os divisores distintos do proprio número.

[19] Primos.

[20] Divisores.

[21] Um divisor: o um. Por vezes, quando Isidoro fala de "parte" sem mais, refere-se ao um.

[22] Não são divisíveis.

[23] Divisor.

[24] Números circulares e esféricos coincidem, respectivamente, com os números quadrados e cúbicos.

[25] No orig.: quod est analogicum arithmeticae. Isidoro chama a média de analógico, pois como ele mesmo diz no livro I, 28, 1 "analogia" é a palavra grega que tem em latim correspondentes "conparatio" ou "proportio".

[26] Na verdade, Isidoro lida num sentido muito amplo com o conceito de média geométrica, que, a rigor, se aplicaria no exemplo: 4 é a média geométrica de 2 e 8, pois 2 x 8 = 4 x 4.

[27] Isidoro retoma obscuramente o conceito clássico de média harmônica: 8 é a média harmônica entre 6 e 12, porque supera 6 em 2 (que é 1/3 de 6) e é superado por 12 em 4 (que é 1/3 de 12). Em notação moderna, b é a média harmônica entre a e c, se (a-b) / (b-c) = a/c; ou o que é o mesmo: b = 2ac / (a +c).

[28] O original confusamente fala aqui em superatur ab ultima nona. Em III, 23, com mais propriedade, Isidoro retomará o tema.

[29] Geo-metria, significa, medição de terras.

[30] Sempre a preocupação etimológica de Isidoro: circumducta, conduzida circularmente.

[31] Entre tantas passagens obscuras, tantos erros e imprecisões, este chama a atenção especialmente. Talvez Isidoro tenha confundido a figura com sua representação plana.

[32] Talvez Isidoro queira dizer que toda figura pode ser inscrita num círculo...

Fonte: http://www.hottopos.com/videtur30/jean-isid.htm


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