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INTRODUÇÃO À ASTRONOMIA CLÁSSICA

Astrônomo Copérnico, ou conversa com Deus -
 Jan Alojzy Matejko - 1872

Texto retirado da Introdução do livro Os Lusíadas - vol. I Comentários de Francisco de Sales Lencastre, edição de Renan Santos. Editora Concreta, 2018.

IV. COSMOGRAFIA

Para complemento da interpretação dos Lusíadas, é indispensável proporcionar aos indoutos algumas breves noções do sistema cosmográfico exposto pelo poeta, as quais não poderiam caber em notas de cada estância. Às vezes exprime-se Camões na linguagem mitológica e até na linguagem da humanidade primitiva, cujas idéias sobre a forma do universo eram as duma criança ignorante. [8]

“O céu parece uma abóbada azul posta em cima da Terra chata e circular. Vemo-nos no meio deste disco da Terra. Assim supõem os povos antes de terem viajado. Cada um deles se julga no centro do mundo. A que distância chega o céu ao horizonte? A resposta é vaga, porque, para qualquer lado que se caminhe, não se chega a esse limite aparente. E a própria Terra onde pousa? É o que não se sabe, e ninguém ousa perguntá-lo; supõe-se primeiramente que ela é infinita em profundidade.

“Depois, vendo-se que o Sol, a Lua e as estrelas se levantam no horizonte, passam por cima das nossas cabeças, vão mergulhar no lado oposto e tornam a aparecer no dia seguinte outra vez no Oriente, sente-se que esses astros têm necessariamente uma passagem por baixo da Terra. Supõe-se então que esta não tem raízes infinitas, mas que é sustentada sobre montanhas ou colunas, entre as quais passam os astros.” [9]

Homero (séc. IX a.C.) afirmava que a Terra era um disco rodeado pelo Oceano e coberto por uma abóbada, debaixo da qual os astros do dia e da noite giravam sobre carros. A escola de Pitágoras, na antiga Grécia (séc. VI a.C.), foi a primeira que professou a idéia da esfericidade do globo terrestre.

No Canto X finge o poeta que a deusa Tétis, na Ilha dos Amores, está mostrando a Vasco da Gama um globo translúcido, que se sustenta no ar e que representa a estrutura do universo conforme a astronomia do tempo de Ptolomeu (séc. II d.C.).

Vinte nove anos antes da publicação dos Lusíadas, já fora impressa (1543) a obra de Copérnico – astrônomo polaco, fundador da astronomia moderna; mas adiante se dirá o motivo provável do ter adotado o poeta, na sua descrição cosmográfica, as antigas teorias.

Agora expliquemos, para inteligência do texto, qual era o sistema chamado de ptolomaico, e como se fundou.

Formada a idéia de que a abóbada celeste girava em volta de nós em 24 horas e de que as estrelas estavam aderentes a essa abóbada – que se supunha sólida –, admitia-se que a Terra era um globo – o qual, sem apoio algum, pairava no meio do universo – e que a esfera celeste o envolvia completamente.

Este sistema de aparências era consolidado pelas observações dos navios no mar, as quais confirmam ser esférica a Terra, visto que as montanhas vão desaparecendo pela parte inferior à proporção do afastamento.

“A observação das estrelas que descem para baixo do horizonte ao norte, aparecendo outras diferentes ao sul à proporção que o viajante vai caminhando das nossas latitudes para o equador; e a observação da sombra da Terra – que se desenha em círculo negro sobre a Lua eclipsada – acrescentam novas confirmações à idéia de que habitamos um globo colocado no meio da esfera estrelada.

“Nota-se mais tarde que alguns astros se deslocam entre as estrelas. O primeiro em que se notou o deslocamento foi Vênus – a radiante estrela da tarde e da manhã –, cuja mudança de sítio é sensível de dia para dia, pois umas vezes aparece depois do Sol posto, outras vezes precede o nascer do Sol.

“O segundo astro errante que se notou foi o brilhante Júpiter, que faz lentamente a volta do céu em doze anos.

“Observou-se depois um terceiro astro errante, com menos brilho do que os dois precedentes, mas às vezes muito rutilante: Marte, de irradiação avermelhada, que faz o giro do céu em dois anos.

“Depois um quarto: Saturno, que se move através da esfera celeste com tal lentidão, que emprega não menos de 30 anos em percorrer a sua órbita.

“Mais tarde notou-se ainda um quinto astro móvel: Mercúrio, que ora aparece de tarde a Oeste, ora de manhã a Leste, da mesma maneira que Vênus – mas menos brilhante –, e que se afasta menos do Sol; por isso mais difícil de se distinguir e reconhecer.

“Estes astros foram denominados planetas, vocábulo que significa ‘errantes’ – por oposição às outras estrelas (denominadas fixas, por se conservarem sempre no mesmo lugar respectivo da abóbada celeste).

“Em conseqüência de aparecer o Sol todas as manhãs mais tardiamente do que as estrelas e de não voltar ao mesmo ponto do céu senão depois de 365 dias e 6 horas, supunha-se que ele estava adstrito a um círculo distinto da esfera estrelada, e dentro desta se movia de leste para oeste em um ano.

“A Lua – executando uma revolução análoga em 27 dias e quase 8 horas – supuseram-na adstrita a um círculo colocado mais próximo da Terra e girando nesse círculo.

“A combinação deste movimento com o do Sol dava conta da série de fases lunares, que se realizam em 29 dias e meio. A mais destes dois círculos (do Sol e Lua) acrescentavam-se cinco para os cinco planetas que ficam nomeados, o que perfazia ao todo sete círculos (sete céus) sucessivos a partir da Terra para o céu, por esta ordem:

1º, da Lua (com um movimento de 27 dias);
2º, de Mercúrio;
3º, de Vênus, que tem freqüentemente mudado de posição;
4º, do Sol (365 dias);
5º, de Marte (2 anos);
6º, de Júpiter (12 anos);
7º, de Saturno (30 anos).

Superior a estes sete céus estava o 8º – o das estrelas fixas.

“Esta representação do universo, esta constituição do mundo físico (a etimologia grega da palavra sistema quer dizer “constituição”) representava a natureza terrestre e celeste, tal como parece à vista, e correspondia completamente ao testemunho dos olhos. Facilmente se concebe que diferentes povos – em separado – tivessem chegado a formar do mundo a mesma imagem geral e que a ciência astronômica – baseada sobre o estudo de observação de muitos séculos – tivesse erigido este conjunto em sistema absoluto, transmitindo-se, de geração para geração, duns povos para outros povos. Deste modo foi comunicado da Ásia oriental – berço da história humana – à China para leste; e da Caldéia ao Egito para sudoeste. Na seqüência dos séculos, a Grécia inteligente e artística, tendo chegado a elevado grau de esplendor, adotou do Egito os mesmos princípios, desenvolvendo-os e completando-os com as próprias observações. Dessa nação – ilustrada pelos monumentos gigantescos e pelas altas pirâmides – recebeu a Judéia também o mesmo sistema astronômico, do qual Moisés e Jó nos guardaram fragmentos – do mesmo modo que Hesíodo e Homero entre os gregos.

“O astrônomo cujos estudos mais contribuíram para estabelecer em sólida base o sistema das aparências foi Hiparco (séc. I a.C.). As suas observações ainda hoje prestam grande auxílio, o que não é para se admirar, quando se reflete que uma observação bem feita serve à astronomia moderna fundada na realidade, da mesma sorte que à astronomia antiga fundada sobre as aparências. A esse astrônomo se deve o ter verificado que o Sol não está, em cada ano, sobre o mesmo ponto do céu no momento do equinócio da primavera, mas que recua sucessivamente sob as estrelas: as que se vêem ao Sul, por exemplo, em determinado instante, não se vêem exatamente sobre o mesmo lugar no ano seguinte em igual instante; do mesmo modo vemos também as do Norte deslocarem-se, de sorte que o céu estrelado executa uma revolução completa calculada em 25.870 anos.

“Ao movimento da Terra é hoje atribuída esta grande revolução do céu – chamada ‘precessão dos equinócios’ –, que se supunha ser efetuada pela própria abóbada estrelada; e esse movimento secular é devido à atração do mar e do Sol sobre a protuberância equatorial do nosso globo. Deste modo as observações, sobre as quais se tinha estabelecido o sistema da imobilidade da Terra e do movimento dos céus, servem hoje para a teoria do movimento da Terra.

“Aristóteles (séc. IV a.C.) expusera e tentara demonstrar solidamente o sistema das aparências. O ilustre preceptor de Alexandre consagrou a vida a escrever uma enciclopédia dos conhecimentos humanos, na qual a astronomia ocupava o primeiro lugar.

“Até o século XVI, a Europa – ou para melhor dizer, as corporações de ensino –, reconhecendo em Aristóteles [10] o grande mestre, não quiseram admitir senão o que estava escrito nas suas obras; e ele tinha sustentado:

1º Que a Terra se conservava imóvel no centro do Universo;

2º Que o movimento de todas as esferas celestes procedia de origem inesgotável, inerente à própria essência do céu mais alto, designado pelo nome de Primeiro móbil;

3º Que, para além das estrelas fixas e do Primeiro móbil, estava a última e mais vasta esfera, que encerrava todas as outras, chamada Empíreo;

4º Que o Universo tinha portanto um limite: era verdadeiramente fechado pela última esfera imensa, além da qual não existia mais nada.

“Esta representação do Universo fez objeto de livro especial – o mais venerado dos tratados de astronomia –, intitulado Almagesto (vocábulo que quer dizer “o grande”) devido a Cláudio Ptolomeu. Este geógrafo-astrônomo coligiu toda a astronomia antiga (completada pelos trabalhos de Hiparco) e depois da sua obra – escrita no século II da nossa era – designou-se sob o seu próprio nome o antigo sistema do mundo, sob a denominação de Sistema de Ptolomeu.

“Os sucessores de Ptolomeu tiveram, como artigo de fé, a crença – aliás tão natural, aparentemente – da imobilidade da Terra no meio do universo. Tudo estava classificado no seu lugar e regrado para toda a duração do mundo. Dois elementos, a terra e a água, eram distinguidos cá em baixo: a terra, mais pesada, formava a base; a água do oceano e dos rios flutuava à superfície. Um terceiro elemento, mais leve do que os dois primeiros, envolvia o globo: era o ar ou a atmosfera. Por cima do ar, um quarto elemento, o fogo ou éter, mais leve do que os quatro, formava uma zona superior à atmosfera, e nele se acendiam os meteoros. Por cima vinham ainda os círculos ou orbes celestes, as órbitas dos planetas – na ordem já indicada. Para além desses sete círculos, estava colocada a esfera das estrelas fixas, que formava o oitavo céu. O décimo era o Empíreo, habitação da Divindade. Todo este edifício se supunha ser construído duma substância transparente, comparável a gelo ou cristal de rocha. Alguns espíritos superiores (Platão [11], por exemplo) não admitiam a solidez dos céus; mas a maior parte dos astrônomos declarava que era impossível conceber o maquinismo e o movimento dos astros, se os céus não fossem formados duma substância dura, sólida e eterna. Segundo conta Plutarco [12], pensavam os físicos antigos que os aerólitos eram pedaços destacados da abóbada celeste e que, subtraídos à força centrífuga, caíam sobre a Terra em conseqüência do próprio peso.”

Pelo sistema exposto – considerando a Terra como centro do universo –, Tétis explica a Vasco da Gama a estrutura do mundo (Canto X), apontando-lhe primeiro o Empíreo (est. 79), o céu imóvel onde residem as almas dos bem-aventurados. E do mesmo modo descreve o zodíaco com as suas doze constelações figuradas por animais – que se imaginou serem as doze estâncias do Sol, cujo caminho aparente sobre o céu estrelado é percorrido durante o chamado “ano sideral” (isto é: 365 dias, 6 horas, 9 minutos e 9 segundos), voltando à posição anterior, com referência às estrelas, no fim desse intervalo.

Deu-se o nome de zodíaco a uma faixa de 9 graus de largura, por cima e por baixo desse caminho aparente, dividida em doze signos de 30 graus cada um. Estes signos têm os mesmos nomes das constelações que ocupam essa faixa do céu, posto que não muito exatamente.

Foi cerca de 14 séculos antes da nossa era que os gregos dividiram o céu em constelações, cujos nomes latinos se contêm nos seguintes versos:

Sunt Aries, Taurus, Gemini, Cancer, Leo, Virgo,
Libraque, Scorpius, Arcitenens, Caper, Amphora, Pisces.

Estes nomes em português são: Áries, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, Virgem, Libra, Escorpião, Sagitário, Capricórnio, Aquário e Peixes. O poeta não só menciona as doze constelações do zodíaco, mas ainda outras muitas das mais notáveis, enumerando os planetas pela ordem em que se julgavam dispostos no céu estrelado – segundo o sistema de Ptolomeu, tendo-se referido também aos chamados excêntricos e epiciclos [13] – inventados pelos astrônomos para explicar o movimento das esferas. Estes excêntricos e epiciclos explica-os hoje [início do séc. XX] a ciência deste modo:

“Os movimentos aparentes dos planetas que observamos são resultantes da combinação da translação da Terra em volta do Sol com a translação dos planetas em volta do mesmo astro.

“Tomemos Júpiter para exemplo: este planeta circula em volta do Sol a uma distância cinco vezes maior do que a distância da Terra ao Sol. A sua órbita envolve portanto a nossa com um diâmetro cinco vezes maior, e leva doze anos esse mesmo planeta a efetuar a sua translação.

“Durante os doze anos que Júpiter emprega em fazer a sua revolução em torno do Sol, a Terra faz doze revoluções em torno do grande astro. Por conseqüência o movimento de Júpiter – visto daqui – não é um simples círculo seguido lentamente durante doze anos, mas uma combinação deste movimento com o da Terra. Dê-se o leitor ao incômodo de traçar a seguinte figura: um ponto representando o Sol – um pequeno círculo em volta a dois centímetros de distância representando a órbita da Terra – e um segundo círculo – a dez centímetros – representando a órbita de Júpiter; facilmente reconhecerá que, girando em volta do Sol, produzimos um deslocamento aparente de Júpiter sobre a esfera estrelada em que ele se projeta. Este deslocamento dá-se, à metade do ano, em um sentido, e, à metade do ano, em outro. É como se a órbita de Júpiter fosse composta de doze anéis. Para dar conta do movimento aparente de Júpiter, os astrônomos antigos não tinham podido conservar por muito tempo o simples círculo: viam-se obrigados a fazer rodar sobre ele – no decurso de doze anos – o centro dum outro pequeno círculo, em cuja circunferência supunham o planeta encaixilhado. Deste modo, Júpiter não seguia diretamente o seu grande círculo: percorria o círculo pequeno que fazia doze giros no mesmo plano, rodando ao longo do círculo primitivo em um período de doze anos.

“Saturno em 30 anos faz o seu giro à volta do Sol. Para explicar as marchas e contramarchas aparentes vistas da Terra, tinha-se semelhantemente ajuntado à sua órbita um segundo círculo, cujo centro seguia esta órbita e cuja circunferência, levando encrostado o planeta, girava 30 vezes sobre si própria durante a revolução inteira.

“Estes segundos círculos receberam o nome de epiciclos.

“O de Marte era menor que os precedentes; os de Vênus e Mercúrio eram muito maiores.

“Eis uma primeira complicação do sistema circular primitivo. Mas não era só esta.

“Os planetas, visto que geralmente seguem elipses, estão em uns pontos do seu percurso mais perto do Sol do que em outros pontos. E, visto que todos os planetas – compreendendo a Terra – se movem em períodos diferentes à volta do Sol, o resultado é cada planeta estar ora mais próximo, ora mais afastado da própria Terra. Em certos pontos da sua órbita, Marte, por exemplo, chega a estar afastado de nós mais quatro vezes do que noutros pontos.

“Para dar conta destas variações de distância, os astrônomos modificaram os círculos primitivos. Como se pretendia conservar a figura circular, supôs-se que os círculos percorridos por cada planeta tinham por centro não precisamente o próprio globo terrestre, mas um ponto situado fora da Terra. Por este estratagema, Marte, por exemplo, descrevendo uma circunferência à roda dum centro situado ao lado da Terra, encontrava-se ora mais afastado, ora mais próximo dela. O centro real de cada órbita celeste não coincidia com o centro da Terra, senão por meio do subterfúgio do segundo centro móvel em torno do qual se efetuava essa órbita.

“Esta nova acomodação mecânica foi designada com o nome de ‘sistema dos excêntricos’.

“Estes epiciclos e estes excêntricos foram sucessivamente inventados, modificados e multiplicados conforme as necessidades do caso. À medida que as observações se tornavam mais exatas, era necessário acrescentar novos círculos para representar mais precisamente os movimentos celestes. Cada século acrescentava novo círculo e nova engrenagem ao mecanismo do universo, de modo que, no tempo de Copérnico – isto é, no começo do século XVI –, havia já deles número imenso, inextricáveis, emaranhados uns nos outros.

“Os astrônomos e os sábios oficiais da época dificilmente permitiam que se tocasse nesse edifício secular. Segundo Aristóteles e a sua escola, havia uma linha de demarcação natural que da Terra separava o Céu. A Terra, cercada pelos seus quatro elementos, era a sede das mudanças; o Céu, a partir do círculo da Lua, era incorruptível e imutável. Os movimentos celestes, guiados por leis que lhes eram próprias, não tinham relação alguma com as que governam a Terra. Traçada, deste modo, uma linha de demarcação entre a mecânica celeste e a mecânica terrestre, a filosofia colocava uma delas fora do campo das indagações experimentais e punha obstáculos a qualquer progresso da outra, estabelecendo princípios fundados sobre observações incompletas. Continuou por isso a astronomia, durante séculos, a ser uma ciência pura de tradições, em que a teoria não entrava senão no intento de conciliar as desigualdades dos movimentos celestes e uma pretendida lei de revolução circular e uniforme, que se considerava compatível com a perfeição do mecanismo celeste.

“Daí procedia o acervo (informe e contraditório) de movimentos hipotéticos do Sol, da Lua e dos planetas em círculos, que eram sucessivamente centros doutros círculos, até que finalmente – tornando-se mais exata a observação e multiplicando-se constantemente os epiciclos – tornou-se palpável o absurdo de sistema tão confuso.”

Expostas como ficam, sumariamente, as velhas teorias que serviram de base à descrição do universo feita pelo poeta no Canto X, é conveniente que também aqui se dê breve notícia das teorias modernas para as quais concorreu Copérnico [14], transformando o sistema de Ptolomeu, mudando a posição da Terra e demonstrando que o centro do universo é o Sol.

“Copérnico ainda manteve a esfericidade das órbitas celestes, a confusa engrenagem dos epiciclos e excêntricos e outras teorias que os sucessores do grande astrônomo foram modificando – ao ponto de engrandecerem e idealizarem o mundo pela maneira hoje conhecida. Quando se lêem os filósofos gregos – cujos conhecimentos científicos se podem apreciar, ainda que por maneira muito restrita –, causam notável impressão a sutileza que desenvolviam nas discussões, o êxito prodigioso dos raciocínios abstratos, a admirável sagacidade nos assuntos puramente intelectuais – todas estas qualidades formando contraste com a negligência e os poucos cuidados que prestavam ao estudo da natureza externa. Em certos casos, tiravam conclusões ilógicas de princípios de generalização fundados sobre fatos pouco numerosos e mal observados. Alguns desses filósofos prevaleciam-se com inconcebível leveza de princípios abstratos que não se referiam à natureza e dos quais, todavia, deduziam, como supostos axiomas matemáticos, todos os fenômenos e leis que os regem. Estavam, por exemplo, convencidos de que o círculo devia ser a figura mais perfeita, e daí concluíam naturalmente que as revoluções dos corpos celestes deviam fazer-se em círculos exatos e movimentos uniformes; se a observação estabelecia o contrário, não levantavam dúvidas sobre o princípio ou fundamento que haviam estabelecido. Longe disso: não cuidavam senão de salvar a sua perfeição ideal; e, para o conseguir, não havia espécie de combinações de movimentos circulares que eles não imaginassem.

“Nesta guerra de palavras, era desprezado o estudo da natureza, e considerava-se indigna dum sábio a paciente e modesta investigação dos fatos. O radical erro da filosofia grega foi imaginar que era aplicável à física o método que tão bons resultados dera nas matemáticas e que, partindo de noções simples quase evidentes, ou de axiomas, se podia resolver tudo. Por isso todos esses sábios que cultivavam a física andavam sempre ocupados em raciocinar ou desarrazoar sobre pretendidos princípios. Um considera o fogo como sendo a matéria essencial e a origem do Universo; outro adota o ar; um terceiro encontra a solução e a explicação de todos os fenômenos no “infinito”; um quarto vê-os no “ser” e “não ser”. Enfim, um filósofo, que havia de estabelecer opinião durante dois mil anos, decidia que a matéria, a forma e a privação deviam ser consideradas princípios de todas as causas.

“Esta maneira de perder o tempo em argumentos metafísicos, sob o pretexto de fazer ciência, durou nas escolas desde a Antiguidade até Copérnico, e retardou por muito tempo a supremacia das ciências exatas. A astronomia de observação progredia entre os árabes e na escola de Alexandria, mas o seu estudo tornava-se estéril, e sem a teoria era quase impossível atingir o alvo da ciência, o qual consiste em tornar conhecida a natureza. Reconhecemos contudo, para não sermos acusados de ingratidão com a Antiguidade e a Idade Média, que, se não houvesse os trabalhos antigos, não existiria a ciência moderna. Chega-se a grande, depois de se ser pequeno. Graças às observações e explicações antigas é que se pôde verificar a insuficiência das hipóteses e imaginar outras melhores.

“Foi nos séculos XV e XVI que se estabeleceu o método experimental, aparecendo sábios independentes, que se podem chamar precursores de Copérnico: George Peurbach (1423–1461), Jean Muller (1436–1476), Fracastori (1483–1553).

“Enquanto os astrônomos faziam os últimos esforços para explicar do melhor modo possível os movimentos celestes – sem se afastarem da velha hipótese da imobilidade da Terra –, o célebre Colombo descobria o Novo Mundo; e o globo terrestre desvendava-se por todos os lados às vistas da ciência aventurosa; o espírito humano, conhecendo, daí por diante, diretamente e por experiência, a esfericidade do globo e o seu isolamento no espaço, adquiria o elemento mais essencial para conceber o seu movimento.

“No ano imediato à morte do grande navegador, estava Copérnico tratando de destruir as idéias antigas sobre astronomia; e em 1543 publicava em Nuremberg a obra imortal, que mudou a face da astronomia, e cujo título era: Nicolai Copernici Torinensis, de Revolutionibus orbium celestium, libri VI.

“O sistema das aparências, a opinião da imobilidade do globo terrestre e do movimento do Céu, era ainda no século XVI – e ainda hoje é – a idéia simples e vaga que reina no espírito do povo ignorante.

“Refletindo nas condições mecânicas do sistema das aparências, Copérnico pensou que esse sistema, tão complicado e tão grosseiro, não podia ser divino nem natural, porque tudo na natureza é extremamente simples; e, depois de 30 anos de estudos, convenceu-se de que, atribuído à Terra duplo movimento – um, de rotação sobre si própria em 24 horas, e outro, de translação à volta do sol em 365 dias e um quarto –, se explicavam todos os movimentos celestes, para os quais se tinham inventado esses numerosos círculos de cristal.

“O sistema existente parecia estar de harmonia com a observação, mas era aparente essa harmonia. Para que o universo fosse constituído de tal maneira, seriam indispensáveis condições mecânicas que não existem: seria preciso, por exemplo, que a Terra fosse mais pesada que o Sol; que ela fosse o astro mais importante do sistema solar; que as estrelas não estivessem separadas de nós por tão prodigiosas distâncias. Reconheceu-se, pois, que os planetas não circulam em volta do globo terrestre, mas sim em companhia da própria Terra em volta do Sol (relativamente imóvel) – seguindo, no seu movimento, elipses e não círculos.”

Eis alguns dos pontos fundamentais do método de Copérnico e das suas demonstrações – em que todavia aparecem restos das antigas teorias:

“A Terra é esférica [15], porque a esfera é de todas as figuras a mais perfeita, e a que sob a mesma superfície circunscreve maior espaço em todos os sentidos.

“O Sol e a Lua são de forma esférica. É a forma que tomam naturalmente os corpos, como se vê nas gotas de água. Todos os corpos celestes têm forma esférica. Demonstra-se a esfericidade da Terra: um objeto visível ao longe na ponta do mastro dum navio que, visto da praia, parece descer à medida que o navio se afasta: prova-se também pelos eclipses da Lua, na qual se vê a sombra redonda da Terra.

“Qual é a posição da Terra no Universo? Quase todos os autores estão de acordo em supor que a Terra é imóvel; parece-lhes até ridícula a opinião contrária. Examine-se atentamente o caso. Qualquer deslocação observada procede, ou do movimento do objeto observado, ou do observador, ou do movimento simultâneo de ambos; porque, se os dois movimentos forem iguais, não haverá meio de os perceber. Ora, é da parte de cima da Terra que observamos o Céu. Se a Terra se move, parecer-nos-á que o Céu se move em sentido contrário, transportado de Oriente para Ocidente em cerca de 24 horas. Deixai o Céu em repouso e dai movimento à Terra, mas do Ocidente para Oriente: tereis as mesmas aparências exatamente.

“Sendo imensa a esfera celeste, como se pode conceber que ela gire em 24 horas? Não é mais natural atribuir este movimento à Terra, e só à Terra? Quando a Terra gira, tudo que está no Céu nos parece girar; mas as nuvens e tudo que está no ar participam do movimento dela.

“Se todos os astros girassem em volta da Terra, o que sucederia?

“O astro mais próximo de nós (a Lua) está a 96.000 léguas da Terra. Ser-lhe-ia, portanto, necessário percorrer em 24 horas uma circunferência de 192.000 léguas de diâmetro, isto é, 603.000 léguas de extensão; teria, por isso, de correr com uma velocidade de 25.125 léguas por hora, ou 400 léguas por minuto, ou 7 léguas por segundo… Mas isto é o de menos.

“O Sol – a 37 milhões de léguas de nós – teria de percorrer no mesmo intervalo de 24 horas uma circunferência de 232 milhões de léguas em volta da Terra; ser-lhe-ia preciso voar com uma velocidade de 9.680.000 léguas por hora e 161.300 léguas por minuto, ou 2.690 léguas por segundo!

“Os planetas Marte, Júpiter e Saturno, mais longe da Terra do que o Sol – que participam igualmente do movimento diurno –, seriam levados no espaço com uma rapidez ainda mais inconcebível. O último planeta conhecido dos antigos – Saturno –, nove vezes e meia mais afastado de nós do que o Sol, seria obrigado, para em 24 horas dar a volta em roda da Terra, a descrever uma circunferência de dois bilhões de léguas de extensão e a queimar o espaço com uma rapidez de mais de 20 mil léguas por segundo.

“E as estrelas? A imaginação assusta-se com a rapidez que seria necessário supor a esse movimento se elas dessem a volta da Terra em 24 horas. Saturno está distante de nós 218.431 semidiâmetros do globo terrestre. Ora, as estrelas estão para lá do orbe de Saturno. Sabe-se que a estrela mais próxima de nós está à distância de 275.000 vezes a distância da Terra ao Sol, isto é, dez trilhões de léguas. Essa estrela – o alfa de Centauro – deveria percorrer, no intervalo de 24 horas, uma circunferência de 63 trilhões de léguas em extensão, e a sua velocidade seria de 2.666 bilhões de léguas por hora, 44.400 milhões por minuto – em suma, 740 milhões de léguas por segundo.

“Havendo vários centros, não é crível que o centro do mundo seja o da Terra e da gravidade terrestre. A gravidade não é mais do que a tendência natural dada pelo Criador a todas as partes do mundo, e que as leva a reunirem-se e a formarem globos. Esta força deu ao Sol, à Lua e aos outros planetas a forma esférica, o que não obsta a que executem revoluções diversas. Se a Terra, portanto, tem movimento em volta dum centro, esse movimento será semelhante àquele que percebemos nos outros corpos – teremos um circuito anual. O movimento do Sol será substituído pelo movimento da Terra. Tornado imóvel o Sol, realizar-se-ão do mesmo modo o nascimento e o ocaso dos astros; as estações e as retrogradações serão resultado do movimento da Terra; o Sol será o centro do mundo. É a ordem natural de tudo que sucede, é o que ensina a harmonia do mundo – e que é forçoso admitir.

“A esfera superior a todas é a das estrelas fixas – esfera imóvel que abraça o conjunto do Universo. Seguem-se entre os planetas errantes primeiramente Saturno, que precisa de 30 anos para fazer a sua revolução; depois Júpiter, que faz o caminho em doze anos; segue-se Marte, que precisa de dois anos. Na quarta linha encontram-se a Terra e a Lua, que – no espaço de um ano – chegam ao seu ponto de partida. O quinto lugar é ocupado por Vênus, que precisa de nove meses para o seu caminho; Mercúrio ocupa o sexto lugar, e precisa apenas de 24 dias para descrever a sua órbita. No meio de todos, reside o Sol. Qual é o homem que, em templo tão majestoso, poderia escolher outro e melhor lugar para o brilhante astro que ilumina todos os planetas e os seus satélites? Não é sem razão que o Sol se chama a luz do mundo, a alma e o pensamento do universo. Colocando-o no centro dos planetas, como sobre um trono real, entregamos-lhe o governo da grande família dos corpos celestes.”

Em seguida se encontra a figura deste sistema, copiada de um fac-símile da mão de Copérnico:

Breve notícia dos sábios astrônomos que sucederam a Copérnico, confirmando constantemente o seu sistema e concorrendo para os progressos da astronomia moderna, constitui completa explicação dos motivos que induziram Camões a explicar a contextura do Universo segundo o sistema de Ptolomeu. Se doutro modo procedesse, a censura inquisitorial não permitiria a publicação do poema, e levaria talvez a severidade ao ponto de encarcerar o poeta.

A teoria de Copérnico – a do movimento da Terra em volta do Sol, sendo este astro o centro do Universo – continuou a ser tida por absurda, ridícula e inadmissível. Dois anos depois da morte do venerável renovador do mundo, celebrava-se o Concílio ecumênico de Trento (1545), que estabeleceu como fundamental artigo de fé a imobilidade da Terra no centro do mundo. Tycho Brahe (1546–1601), notável astrônomo, tinha exaltada admiração pelo talento de Copérnico, mas deixou-se arrastar naturalmente por escrúpulos religiosos, não admitindo o novo sistema senão corrigido.

Kepler (alemão) e Galileu (italiano), professor de astronomia em Pisa, dois sábios eminentes da sua época (fins do século XVI e princípios do século XVII), defendendo a doutrina de Copérnico, foram dela os primeiros propagandistas. Galileu, escrevendo a Kepler, dizia-lhe: “Copérnico era digno duma glória imortal, e foi tido por insensato!” Kepler respondia-lhe que lhe comunicasse os seus escritos, pois talvez pudesse publicá-los na Alemanha, visto a Itália pôr obstáculo às suas publicações.

Galileu (1610), dirigindo para a Lua as lunetas astronômicas pouco antes inventadas, descobriu que o vizinho astro era uma terra como a nossa, coberta de montanhas e vales; dirigindo-as para o Sol, verificou a existência de manchas na sua superfície e a rotação dele de Oeste para Leste. Esta rotação do astro do dia apresentava um testemunho de alta presunção em favor de movimento de translação dos planetas e da Terra em volta do Sol no mesmo sentido. Voltando a luneta para Júpiter, o ilustre astrônomo descobriu que esse imenso planeta é acompanhado de quatro luas ou satélites, que o seguem no seu curso do mesmo modo que a Lua acompanha a Terra: este pequeno sistema representava em miniatura o sistema planetário todo inteiro. Assim se acumulavam, como por encanto, os testemunhos favoráveis a Copérnico. O mais palpável e mais significativo de todos foi ver-se que se realizava no campo do óculo a profecia que 60 anos antes tinha feito Copérnico perante os seus detratores. Diziam-lhe estes:

— Se o Sol estivesse realmente no centro do sistema planetário, e se Mercúrio e Vênus girassem em torno dele numa órbita interior à da Terra, esses dois planetas deviam ter fases; Vênus, quando estivesse do lado de cá do Sol, devia estar em crescente como se fosse a Lua; e, quando formasse ângulo reto com o Sol e a Terra, devia apresentar-se com o aspecto de quarto crescente. Ora, isso é que nunca se viu.

— Essa é a realidade, respondeu Copérnico, e é o que os homens hão de ver um dia, se acharem meio de aperfeiçoar a vista.

Por isso Galileu [16] exclamou, entusiasmado, quando com a lente descobriu as fases de Vênus:

— Ó, Nicolau Copérnico! Que felicidade seria a tua, se tivesses podido gozar estas novas observações, que tão plenamente confirmam as tuas idéias.

Até então, a nova doutrina não tinha sido objeto de perseguição direta. Mas quando tomou corpo, e pareceu impor-se para substituir os princípios ensinados desde séculos, ligaram-se os sábios oficiais de comum acordo – alguns de boa-fé, outros por interesse ou ciúme – para impedir que triunfasse a novidade. Os teólogos decidiram unanimemente que era contrária às Escrituras. A Congregação do Index, estabelecida para manter a fé católica, foi incumbida pelo Papa de estudar a questão sob o ponto de vista dogmático. Em 1616, publicou essa Congregação um decreto declarando que a nova teoria do movimento da Terra era contrária às Escrituras, e que seria considerado herege quem a sustentasse, proibindo que ela fosse ensinada em qualquer país cristão, e interditando a obra de Copérnico até ser corrigida.

Quatro anos depois, a mesma Congregação indicou as alterações que se deviam fazer na obra de Copérnico: as mais importantes eram intercalar a palavra hipótese em todos os lugares em que o autor expunha a teoria do movimento da Terra e apagar a palavra astro em todos os lugares onde estivesse aplicada à Terra.

Todos sabem que Galileu foi condenado à prisão perpétua por não ter obedecido às proibições da autoridade eclesiástica e que morreu em 1642, depois de ter confirmado com provas indestrutíveis a teoria de Copérnico.

As sentenças eclesiásticas contra a crença do movimento da Terra, no século XVII, foram revogadas pelo Papa Bento XI [17], e hoje a Igreja Católica admite o verdadeiro sistema do mundo.

Kepler (1571–1630) declarou-se, ao mesmo tempo que Galileu, em favor de Copérnico, e na Alemanha publicou – com mais liberdade do que o seu êmulo em Itália – trabalhos profundos que concorreram para radicar, em bases inabaláveis, a teoria discutida do movimento da Terra e imobilidade relativa do Sol no centro das órbitas planetárias. Dos trabalhos de Kepler, resultou saber-se que os astros, no seu curso, não descrevem círculos mas elipses; e foi ele que estabeleceu, além de outras, duas leis imortais, que completaram a obra de Copérnico: 1) que os planetas se movem seguindo elipses, das quais o Sol ocupa um dos focos; 2) que os quadrados dos tempos das revoluções planetárias são proporcionais aos cubos dos eixos maiores das órbitas (os cubos das distâncias) – leis cuja aplicação se resolve por meio de problemas de geometria.

Estas descobertas expurgaram do sistema de Copérnico os círculos excêntricos e os epiciclos, que o embaraçavam ainda, e que tinham ficado como herança orgânica do antigo sistema.

Copérnico foi o fundador, o pai espiritual da astronomia moderna; e esta foi sendo aperfeiçoada por Tycho Brahe (1546–1601), Francis Bacon (1561–1626), Newton (1642–1727), Kepler (1571–1630), Galileu (1564–1642), Herschel (1732–1822), Halley (1656–1742), e muitos outros de todas as nações.

“A obra capital de Newton foi demonstrar que a causa da suspensão da Terra e de todos os astros, no espaço, é uma força determinada – calculável –, cuja intensidade diminui na razão inversa do quadrado da distância; e que em virtude da qual os corpos celestes se atraem reciprocamente; e que se movem e se sustentam no equilíbrio duma rede invisível. A atração universal, a gravitação – demonstrou-o esse sábio – rege os mais ínfimos movimentos que se operam tanto à superfície do solo, como nas mais longínquas regiões acessíveis ao telescópio, sustentando os nossos passos e as nossas habitações, regendo a gota de chuva, o grão de pó levantado pelo vento, dirigindo a Lua em volta da Terra, esta em volta do Sol, e organizando os movimentos das estrelas.”

Em notas ao Canto X, acrescentam-se mais algumas breves noções de astronomia popular, para auxiliar a interpretação das estrofes 77 a 90, onde se descreve o sistema cosmográfico consagrado no tempo do poeta.

Notas:

[8] V. Prefácio do Editor, p. 14. [Nota do Editor]
[9] Estas citações e transcrições ou extratos e os que se seguem são principalmente da obra de Camille Flammarion, L’Astronomie et ses Fondateurs – Copernic et le Sistème du Monde.
[10] Todavia Aristóteles já conhecia opiniões opostas às que sustentava (Do Céu, II, 13, 1): “Os partidários chamados pitagóricos eram de parecer contrário. Pretendiam eles que o fogo estava no centro do mundo, que a Terra era um dos astros que fazem revolução em torno desse centro, a qual produzia o dia e a noite”.
[11] Séc. IV a.C.
[12] Séc. I d.C.
[13] “Em todos estes orbes, diferente curso verás” (X, 90).
[14] Nicolau Copérnico, ilustre fundador da astronomia moderna, nasceu em Thorm (Polônia) a 10 de fevereiro de 1473; era eslavo por parte dos ascendentes e pelo nascimento.
[15] Demonstrou-se mais tarde que é um esferóide, achatado nos pólos.
[16] Nasceu 21 anos depois da morte de Copérnico, mas foi o primeiro astrônomo que se declarou aberta e calorosamente em favor do novo sistema, por escrito – daí procede a sua glória.
[17] Na verdade, o Papa Bento XIV.


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Dos sintomas às causas da Crise na Educação

Análises das condições atuais

Uma vez mais necessitamos partir do significado das palavras, e desta vez de ‘sintoma’ e ‘causa’, para tentar entender o que se passa com a educação em nossos dias [1].

É claro que estas palavras tomamos emprestadas do contexto da medicina ou da ciência biológica. Mas elas muito servirão, a modo de analogia, para fazermos esta análise.

A palavra ‘sintoma’ refere-se a sinal, indício, traço. É geralmente a descrição que o próprio paciente faz da própria situação, como por exemplo uma dor ou mal-estar, e de onde o médico procurará traçar o diagnóstico. A palavra ‘causa’ – que encontra maiormente no contexto filosófico seu significado – refere-se a origem, ao motivo e a razão; ou, em outras palavras, é o que faz com que algo exista ou aconteça; é o princípio pelo qual uma coisa é ou se torna aquilo que é [2].

Não vamos adentrar na discussão filosófica propriamente dita, mas apenas utilizar uma analogia ao contexto da medicina ou da ciência.

Ao traçar o diagnóstico, ainda que interaja com os sintomas, o médico deve estar certo da causa e agir a partir desta de modo a sanar o paciente daquilo que o torna enfermo. Interagir apenas com os sintomas não é suficiente, é preciso conhecer a causa. Por exemplo, uma dor de cabeça é um sintoma ou um sinal, porém a causa pode ser desde uma enxaqueca até uma sinusite ou problema na coluna, entre outros.

Entendido isto, podemos perceber que determinadas situações, como a degradação intelectual e moral da juventude e a incapacidade de mudar esta situação, inclusive da parte de profissionais de muito boa intenção, tratam-se de sintomas – a causa deve ser procurada. Inclusive a expropriação da educação daquilo que lhe é próprio, ao ponto de escolas de todo tipo serem transformadas em campo de doutrinação ideológica, ao invés de lugares onde se forma o homem sábio e virtuoso, eleva o intelecto e assim a moral e a sociedade, é sintomático e não causal [3].

Nosso tempo vive as consequências de alguns eventos históricos tanto a nível social quanto de pensamento [4]. E aqui não é nossa intenção seguir a ideologia do “politicamente correto”, como que querendo equilibrar os pratos na balança dizendo: “mas tem sempre o lado bom!”. Se pensarmos assim nunca chegaremos a causa e se não o fizermos, não haverá resposta suficiente, mas apenas e sempre medidas paliativas que longe de intervir na causa do mal, apenas protelarão e quando não agravarão ainda mais a crise.

Ao contrário do que muito se diz, o auge do pensamento humano e a ascensão do direito natural deu se na Idade Média [5]. Citemos por exemplo, a custódia, o aprimoramento e elevação da filosofia grega e do direito romano; e a defesa da civilização de heranças do paganismo grego e romano, da ameaça bárbara e muçulmana, inclusive mediante a educação; a salvaguarda dos direitos da criança e da mulher; a produção de enorme quantidade de obras filosóficas, literárias, científicas e culturais, não obstante as condições rudimentares da época, entre outros. A educação teve o seu valor nesta construção lenta, mas consistente e robusta aos longo dos séculos.

A concepção da educação para o medieval é levar o homem a contemplação, que é nada mais nada menos que meditar na busca da verdade através do reto pensar [6]. A Igreja por disposição da própria História e é claro de sua missão foi a guardiã a mantenedora da educação enquanto busca da sabedoria pela contemplação da verdade [7].

Do século XVI em diante houveram sucessivas convulsões sociais de larga difusão e que vieram a abalar esta ordem constituída em séculos de história e inclusive a concepção da própria educação. Cada revolução trouxe consigo uma negação [8], que interferindo no modo de pensar interferiu na própria organização social. Por isso devemos ver nestas revoluções uma verdadeira crise espiritual e não somente social. Elas derivam de algo que não funcionou bem no pensamento humano e assim desencadeou uma série de erros, que não puderam ser contidos – antes de tudo a nível intelectual e moral.

A primeira convulsão trata-se da Revolução Protestante (1517), oriunda não só da cessão às heresias que já pululavam pela Europa, mas também de interesses e alianças políticas e, assim a larga difusão de tais ideias. Com essa revolução veio a primeira negação: Cristo sim, Igreja não!

Seguidamente, e fomentada sobretudo pelo Iluminismo – cujo próprio nome já denota oposição ao período histórico anterior, isto é, à Idade Média, definida ainda mais pejorativamente e intencionalmente como “idade das trevas” – acontece a Revolução Francesa (1789). Desta convulsão emergirá não só revolução contrária a ordem social constituída, mas sim e uma vez mais ao pensamento humano, e com isso também uma tentativa de impor sua própria “religião”, a razão ou a ciência, sempre segundo as formulações do próprio Iluminismo. O pensamento emancipado e a sociedade também, já não podia-se aceitar a possibilidade da Encarnação de Cristo e igualmente a autoridade absoluta da Divina Revelação da qual a Igreja é guardiã. Segunda negação: Deus sim, Cristo não!

A convulsão sucessiva, a Revolução Comunista (1917), sempre fomentada por ideologias de tipo filosóficas, trará a negação seguinte: O homem sim, Deus não! Apoiada principalmente no materialismo marxista nega tudo que possa denotar-se espiritual, não só enquanto fato religioso, mas enquanto capacidade de conhecimento mediante a busca da verdade – aqui nega-se a metafísica e, consequentemente, tudo que nela se apoia como, por exemplo, os fundamentos da moral. Uma vez que o homem é produto do aperfeiçoamento da matéria a este cabe a interação ou a transformação; partindo desse princípio tudo torna-se relativo ou produto da cultura, inclusive instituições fundamentais como a família. O que acontece a partir daqui ainda mais é a degradação do intelecto humano muito mais propenso a ideologias que ao reto pensar na busca da verdade.

E, por fim, a última convulsão antes de nossos dias, a Revolução Sexual (1968) ou da Sourbone, Paris. Filha não só do progresso industrial e científico, mas do declínio cada vez mais acentuado do intelecto humano no que tem de mais nobre: a busca pela verdade. E diga-se que quanto mais subjugado aos instintos primários, menos o homem terá condições de alçar-se em direção a verdade, de cuja contemplação emana a sabedoria. As consequências são as piores possíveis. Reduzido ao patamar dos instintos o homem assemelha-se aos seres irracionais e perde seu valor, sua dignidade e sua nobreza.

Estágio atual da negação: o homem não! [9]

Não sejamos ingênuos em pensar que estas revoluções foram o curso da História, ou seja, inevitáveis, ou ainda, que foram frutos do acaso, em outras palavras, elas tinham de acontecer. Precisamos recordar que a mesma História nos dá exemplos claríssimos de que o mal pode e deve ser evitado. Lembremos apenas dois momentos [10]: a invasão dos bárbaros durante a decadência do Império Romano combatida e contornada pela ação da Igreja; do mesmo modo que a expansão e a ameaça muçulmana da Europa em diferentes pontos, desde a Península Ibérica, passando pelo Mediterrâneo até a Áustria, igualmente combatida pela Igreja. Do contrário nosso cenário hoje seria todo outro.

É preciso perceber que cada convulsão antes do seu auge foi alimentada e se ganhou força o ganhou em razão de uma fraqueza da parte do que se lhe poderia conter e evitar.

Há quem situe o início da decadência do pensamento humano no momento em que surgem as grandes universidades, que não são um mal em si, mas pelo modo como as coisas passariam a desenrolar-se dali por diante: a intenção ao entrar para uma daquelas universidades não seria mais a busca e a contemplação da verdade, mas com fins no diploma, ou seja, a autorização para se exercer um determinado ofício, e inclusive aquele de ensinar. O fim não seria mais a busca da sabedoria, mas o diploma.

Daí em diante haveria que dissociar-se cada vez mais o compromisso com a busca e a contemplação da verdade – e se diga, com todo rigor filosófico que havia até então – e a obtenção a todo custo de um pergaminho que, de certo, trazia consigo um status e uma série de oportunidades e privilégios. A preocupação com a formação do homem sábio fica cada vez mais à deriva e, evidentemente, as ideologias, isto é, ideias produzidas por erro de cognição ou intencionais, ficariam cada vez mais propensas de serem aceitas sem maiores questionamentos e reflexões como uma vez se fazia tendo por bandeira sempre a honra da verdade.

Com isso é possível entrever que por detrás daquelas convulsões estão pensamentos cada vez mais declinados à ideologia que a retidão da verdade. É o que acontecerá principalmente a partir de Immanuel Kant, se tratando da educação moderna, com a esquizofrenia que ele criará a respeito da constituição interior humana: no plano racional ele situa o homem no nível dos animais (Crítica da Razão Pura) pois este é incapaz de contemplar e definir as coisas tais e quais elas são; e já no plano moral, eleva o homem – segundo a filosofia tomista – ao nível dos anjos (Crítica da Razão Prática), pois aí sim o homem consegue ver as coisas como realmente são e isto a medida em que interage com elas. Por aí se vê que não é difícil formular a educação não mais como busca da sabedoria, mas como formação do homem para o agir moral, uma vez que no plano racional não é possível que este conheça ou abstraia.

O parágrafo anterior, longe de iniciar um debate ou aprofundamento filosófico apenas acena que por detrás de cada convulsão social como as que elencamos está uma série de erros de cognição que não foram combatidos e contidos, mas inclusive lançados ao seu modo para as massas ao ponto de influenciar uma inteira época e sucessivamente. E como o engenheiro da educação não é o pedagogo, mas o filósofo, não é difícil perceber que a educação começou a ser usada como instrumento potente na difusão de ideologias e não mais na formação do homem sábio. Assim sendo a decadência do ensino se deu quando o próprio pensamento humano degradou-se produzindo não mais homens sábios, mas, por erros de cognição ou falta de retidão lógica, começou a produzir e disseminar ideologias.

Percorrendo este caminho é possível diferenciar os sintomas das causas na crise educacional hodierna. Os sintomas os observamos não sem perplexidade. Mas é preciso procurar pelas causas. E assim nos damos conta de que os sintomas são oriundos de um longo caminho de convulsões sociais, isto é, de revoluções cuja intencionalidade foi principalmente a subversão da ordem constituída [11]. E que por detrás encontramos ideias, manipuladas ou não, mas que fogem ou erram o caminho na busca da verdade, ou nem mesmo tem interesse pela verdade.

Assim entendemos que a crise do educação, mas também aquela moral e religiosa, é uma crise de alma. Por isso o “combate”, ou seja, o seu enfrentamento, não se dará eximindo-se desta realidade. Trata-se de um verdadeiro combate espiritual a medida em que as faculdades inteligíveis deverão ser soerguidas não enquanto fato meramente racional, mas enquanto capacidade de buscar a verdade pela contemplação [12]. Aqui o trunfo da educação será o que o educador medieval conhecia muito bem e cujo ideal educativo era formar antes de tudo homens sábios. E aí entendemos porque a filosofia e a teologia eram altamente apreciadas. Justamente pelo fato de elevarem o homem a contemplação, a natural e a infusa, uma pela razão outra pela fé. E jamais uma separada da outra [13].


Referências

[1] Podemos dizer sem medo de errar que as problemáticas educacionais, mas também em outras instancias são em boa parte afetadas pela dificuldade em relação aos conceitos. E não se trata de questão meramente etimológica, mas metafísica e depois de que lógica. Com o declínio da capacidade de abstração, justamente aquela que define o ser, declina também o processo que conduz a tal definição. De um lado está o baixo grau de abstração e de outro os erros de cognição.

[2] N. ABBAGNANO. Dizionario di Filosofia. Roma, 2016.

[3] Em relação ao aparelhamento das escolas e do sistema educativo para doutrinação ideológica, subtraindo da educação a sua finalidade, citamos o site www.escolasempartido.org que traz inúmeras denúncias a este respeito, como também o livro online Escola sem mordaça – Um guia para doutrinação de alunos, de Paulo FREIRE. Disponível em https://www.jr.blog.br/2016/10/escola-sem-mordaca.html?m=1.

[4] Nos próximos parágrafos faremos uso de P. C. DE OLIVEIRA. Revolução e Contra Revolução. São Paulo, 2009. E evidentemente vamos entrelaçar a análise deste livro com outros eventos oriundos ou sucessivos as revoluções.

[5] Existem inúmeras obras de historiadores e intelectuais idôneos que fazem justiça a este período da história tão deturpado e tratado na maior parte das vezes de modo pejorativo e desprezível. Eles trazem à tona a verdade a respeito da Idade Média. Citamos alguns. Jacques HEERS. A Idade Média, uma impostura. Porto, 1994. Régine PERNOUD. Idade Média, o que não nos ensinaram. Rio de Janeiro, 1979. Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental. São Paulo, 2011.

[6] “(…) a expressão educação era entendida estando associada à sua raiz etimológica latina: educe, “fazer sair”. Como o conhecimento já existia inato no indivíduo, restava responder à seguinte pergunta: de que modo o estudante era conduzido da ignorância ao saber? Como o aluno aprendia? Essa era a questão básica dos educadores medievais. Preocupados com a forma da aquisição, os pedagogos de então tiveram uma importante consciência: cabia ao professor “acender uma centelha” no estudante e usar seu ofício para formar e não asfixiar o espírito de seus alunos. Na Espanha medieval, por exemplo, usava-se a palavra nutrir (nodrir) para definir o ato de educar: o professor era o nutritor, aquele que deveria alimentar intelectualmente o estudante; o aluno, o nutritur, o que era alimentado. Os medievais, seguindo a etimologia das palavras como se disse há pouco, recuperavam a plenitude do conceito de saber. Saber, sabor; a aquisição do conhecimento deveria ser saborosa, pois a meta do filósofo era não só alcançar a sabedoria, mas transmiti-la como uma representação teatral, algo cênico, enfim, um alimento saboroso para o intelecto. Muito moderna a educação medieval”. In.: https://www.ricardocosta.com/artigo/reordenando-o-conhecimento-educacao-na-idade-media-e-o-conceito-de-ciencia-expresso-na-obra. Acesso em: 28/02/2017. Citamos ainda: B. MONDIN. Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso D’Aquino. Bologna, 2000. vb.: Educazione.

[7] Quanto ao sistema pedagógico, indicamos: F. CAMBI. História da Pedagogia. São Paulo, 1999. pp. 121-192.

[8] Sugiro a leitura do artigo “Do Protestantismo ao Ateísmo Moderno e Relativismo Contemporâneo: Uma leitura dos acontecimentos históricos” de Daniel MARQUES. In.: www.zenit.org de 28/06/2012. Acesso em 10/03/2017. (Obs.: O site zenit.org não está mais disponível: outro link para acesso do artigo: https://cleofas.com.br/do-protestantismo-ao-ateismo-moderno-e-relativismo-contemporaneo-uma-leitura-dos-acontecimentos-historicos/)

[9] A “filha predileta” desta última revolução e “neta” do marxismo cultural é a ideologia de gênero, cujo golpe mortal é deferido contra a natureza humana na sua dimensão mais fundamental que é a sexualidade, masculino e feminino. Ideologia esta que tenta a todo custo entrar porta adentro das famílias e das sociedades principalmente utilizando-se do sistema educativo. Sobre a gênese marxista da Ideologia do Gênero recomendo a leitura do livro de Dale O’LEARY, A Agenda de Gênero, Redefinindo a Igualdad. Disponível em espanhol em https://s3.amazonaws.com/padrepauloricardo-files/uploads/2z3wlfcfgx1x1wxzr644/la-agenda-de-genero-redefiniendo-la-igualdad.pdf. Acesso em 10/03/2017. (Obs.: o link citado não está mais disponível. Novo link para acesso https://cnp-files.s3.amazonaws.com/uploads/2z3wlfcfgx1x1wxzr644/la-agenda-de-genero-redefiniendo-la-igualdad.pdf)

[10] Amplamente tratados por D. ROPS em A História da Igreja de Cristo, volumes II e III.

[11] Esta tentativa de implementar uma nova ordem mundial, contemplando diversos instrumentos para alcançar tal objetivo, principalmente através da educação, já tem sido denunciada. E quanto mais degradado estiver o sistema educacional e assim a menta humana, mais tal engenharia correrá a passos largos. Referente a este tema citamos: J.C. SANAHUJA. Poder Global e Religião Universal. Campinas, 2012. P. BERNARDIN. Maquiavel Pedagogo ou Ministério da Reforma Psicológica. Campinas, 2013.

[12] Sobre este assunto é importante ler o Opúsculo de Hugo de São Vítor, Sobre o modo de aprender e de meditar. Disponível em https://cristianismo.org.br/h-opusc.htm. Acesso em 10/03/2017.

[13] A obra Didascalikón, de Hugo de São Vítor, nos dá um exemplo brilhante desta afirmação. Mas elas não excluem as outras ciências, pelo contrário, ajudam a entender a verdade de cada uma. Vejamos numa fonte da época: “A Teologia existe para que o homem fale de Deus (…) a Filosofia existe, filho, pela intenção de conhecer Deus, e tal conhecimento é demonstrado pela obra natural; (…) e Deus também colocou uma intenção nas outras ciências existentes, pois nenhuma ciência foi criada sem alguma intenção”. RAMON LLULL. O Livro da Intenção, V.19, 1. Apud.: https://www.ricardocosta.com/artigo/reordenando-o-conhecimento-educacao-na-idade-media-e-o-conceito-de-ciencia-expresso-na-obra. Acesso em: 28/02/2017.

***

Texto de autoria do Padre Alexandre Alessio e retirado do link. Sobre o autor: Pe. Alexandre Alessio, CR - Religioso da Congregação da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo (CR). Concluiu os estudos de Filosofia no Instituto São Basílio Magno, Curitiba - PR, sua formação teológica ocorreu em Roma pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente é pároco da Paróquia Imaculada Conceição em Franco da Rocha, Diocese de Bragança Paulista - SP, local onde iniciou o Projeto de Evangelização Jesus ao Centro, sustentado pela Associação Bento XVI, da qual é o fundador.


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Os paradoxos de Zenão e a solução de Aristóteles

Retrato de Zenão de Eleia
por Jan de Bisschop
(1628 - 1671)
Trecho retirado de BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. Tradução de Elza F. Gomide. 2ª ed. São Paulo, Edgard Blücher, 1996, 496 p., p. 51-53.

Paradoxo de Zeno*
* Zeno ou Zenão são traduções do nome da mesma pessoa.
        A doutrina pitagórica de que "Número formam o céu todo" enfrentava agora um problema realmente sério: mas não era o único, pois a escola enfrentava também os argumentos dos vizinhos eleático, um movimento filosófico rival. Os filósofos jônios da Ásia Menor tinham procurado identificar um primeiro princípios para todas as coisas. Tales julgara achá-lo na água, outros preferiam pensar no ar ou fogo como elemento básico. Os pitagóricos tinham tomado direção mais abstrata, postulando que o número em toda a sua pluralidade era a matéria básica dos fenômenos; esse atomismo numérico, lindamente ilustrado na geometria dos números figurativos, tinha sido atacado pelos seguidos de Parmênides de Eléia (vivem por volta de 450 a.C.). O artigo de fé básico dos eleáticos era a unidade e permanência do ser, visão que contrastava com as idéias pitagóricas de multiplicidade e mudança. Dentre os discípulos de Parmênides o mais conhecido Zeno Eleático (viveu por volta de 450 a.C) que enuncio argumentos para provar a inconsistência dos conceito de multiplicidade e divisibilidade. O método adotado por Zeno era dialético, antecipando Sócrates nesse modo indireto de argumento: partindo das premissas de seus oponentes, ele as reduzia ao absurdo.
        Os pitagóricos tinham assumido que o espaço e o tempo podem ser pensados como consistindo de pontos e instantes; mas o espaço e o tempo têm também uma propriedade, mais fácil de intuir do que de definir, conhecida como "continuidade". Supunha-se que os elementos terminais, que constituíam uma pluralidade, de um lado possuíam as características de unidade geométrica --- o ponto --- e por outro possuíam certas características de unidades numéricas, Aristóteles descrevia um ponto pitagórico como uma "unidade tendo posição" ou "unidade considerada no espaço". Sugeriu-se {1} que foi contra tal visão que Zeno propôs seus paradoxos, dos quais aqueles sobre o movimento são citados mais freqüentemente. Na forma em que chegaram a nós, através de Aristóteles e outros, quatro parecem ter causado maior perturbação: (1) a Dicotomia (2) o Aquiles (3) a Flecha (4) o Estádio. O primeiro diz que antes que um objeto possa percorrer uma distância dada, deve percorrer a primeira metade dessa distância; mas antes disto, deve percorrer o primeiro quarto; e antes disso, o o primeiro oitavo e assim por diante, através de uma infinidade de subdivisões. O corredor que que pôr-se em movimento precisa fazer infinitos contatos num tempo finito; mas é impossível exaurir uma coleção infinita, logo é impossível iniciar o movimento. O segundo paradoxo é semelhante ao primeiro, apenas a subdivisão infinita é progressiva em vez de regressiva. Aqui Aquiles aposta corrida com uma tartaruga que sai com vantagem e é argumentado que Aquiles por mais depressa que corra, não pode alcançar a tartaruga, ela já terá alcançado um pouco mais. E o processo continua indefinidamente, com o resultado que Aquiles nunca pode alcançar a lenta tartaruga.
    A Dicotomia e o Aquiles argumentam que o movimento é impossível sob a hipótese de subdivisibilidade indefinida do espaço e do tempo; a Flecha e o Estádio, de outro lado, argumentam que também é impossível, sob a hipótese contrária --- de que a subdivisibilidade do tempo e do espaço termina em indivisíveis. Na Fecha, Zeno argumenta que um objeto em vôo sempre ocupa espaço igual a si mesmo; mas aquilo que sempre ocupa um espaço igual a si mesmo não está em movimento. Logo a flecha que voa está sempre parada, portanto seu movimento é uma ilusão.
        O mais discutido dos paradoxos sobre o movimento e o mais complicado de descrever é o Estádio (ou Stadium), mas o argumento pode ser descrito como segue. Sejam $A_1, A_2, A_3, A_4$ corpos de igual tamanho, estacionários; sejam $B_1, B_2, B_3, B_4$ corpos de mesmo tamanho que os $A$, que se movem para a direita de modo que cada $B$ por um $A$ num instante --- o menor intervalo de tempo possível. Seja $C_1, C_2, C_3, C_4$ também do mesmo tamanho que os $A$ e os $B$, e movendo-se uniformemente para a esquerda com relação aos $A$, de modo que cada $C$ passa por um $A$ num instante do tempo. Suponhamos que num dado momento os corpos ocupem as seguintes posições relativas:


      Então, passado um único instante, isto é, após uma subdivisão indivisível do tempos, as posições serão:


        É claro então que $C_1$ terá passado por dois dos $B$; logo o instante não pode ser o intervalo de tempo mínimo, pois podemos tomar como uma unidade nova e menor o tempo que $C_1$ leva para passar por $B$.
       Os argumentos de Zeno parecem ter influenciado profundamente o desenvolvimento da matemática grega, influência comparável à descoberta dos incomensuráveis, com a qual talvez se relacione. Originalmente, nos círculos pitagóricos, as grandezas eram representadas por pedrinhas ou cálculos, de onde vem a nossa palavras calcular, mas na época de Euclides surge completa mudança de ponto de vista. As grandezas não são associadas a números ou pedras, mas segmentos de reta. Em Os elementos os próprios inteiros são representados por segmentos. O reino dos números continuava a ser discreto, mas o mundo das contínuas (e esse continha a maior parte da matemática pré-helênica e pitagórica) era algo à parte dos números e devia ser tratado por métodos geométricos. Essa foi talvez a conclusão de maior alcance da Idade Heróica e não é provável que se deveu em grade parte a Zeno de Eléia e Hipasus de Metaponto.


Notas:

{1} Veja Raul Tannery, La géometrie grecque (Paris, 1887) pp. 217-261. Para uma opinião diferente, ver B.L. van der Waerden, "Zenon und die Grundlagenkrise der griechischen Mathematik", Mathematische Annale, 117 (1940), 141-161.


* * *

COMENTÁRIO SOBRE OS PARADOXOS DE ZENÃO POR ARISTÓTELES DE ESTAGIRA (384 - 322 a.C.) 

Trecho extraído da Física (significando O Estudo da Natureza), de Aristóteles, [disponível no link]. Escrito em torno de 350 a.C., sendo que o livro VIII foi escrito em separado. Zenão de Eléia viveu c. 490-430 a.C. Baseado na tradução inglesa de R. Waterfield, Oxford U. Press, 1996, pp. 142-6, 161-2, 219-20. Há traduções para o inglês disponíveis na internet. Seleção de trechos, títulos das seções e tradução do inglês feitos para o curso de Filosofia da Física (FLF0472), USP, por Osvaldo Pessoa Jr., 2o semestre de 2009.

Distância e tempo são contínuos (VI. 2, 232 b 20 - b 27, 233 a 13 - a 20) 

Dado que toda mudança ocorre no tempo, e não há tempo em que uma mudança não possa ocorrer, e dado que qualquer objeto mutante pode mudar mais rapidamente ou mais lentamente, então não há tempo em que não possa ocorrer uma mudança mais rápida ou mais lenta. Segue-se necessariamente destes fatos que também o tempo [além da distância] deve ser contínuo. Por “continuidade” refiro-me àquilo que é divisível em partes que, por sua vez, são sempre divisíveis. Se aceitarmos essa definição de continuidade, segue-se necessariamente que o tempo é contínuo. Pois, conforme já demonstramos, um objeto mais rápido leva menos tempo para cobrir uma mesma distância. [...] 

Podemos também mostrar que a continuidade da distância segue-se da continuidade do tempo, considerando as coisas que normalmente falamos sobre eles, já que leva metade do tempo para cobrir metade da distância, e geralmente menos tempo para cobrir uma distância menor; tanto o tempo quanto a distância estão sujeitos às mesmas divisões. E se qualquer um deles for infinito, o outro também o será. E a maneira em que um deles é infinito será também a maneira em que o outro o será. Por exemplo [considerando um corpo em movimento retilíneo uniforme], se o tempo tem extensão infinita, a distância também o terá; se o tempo é infinitamente divisível, a distância também o será; e se o tempo é infinito nesses dois aspectos, a distância também o será. 

Zenão errou, pois há infinitos instantes em uma duração finita (VI. 2, 233 a 21 - 31) 

É por isso que o argumento de Zenão [a Dicotomia] parte de uma suposição falsa, de que é impossível cobrir o que é infinito ou entrar em contato com um número infinito de coisas, uma a uma, em um tempo finito. O ponto é que há duas maneiras pelas quais a distância e o tempo, e em geral qualquer contínuo, são descritos como infinitos: eles podem ser infinitamente divisíveis ou infinito em extensão. Assim, mesmo sendo impossível num tempo finito entrar em contato com coisas que são infinitas em quantidade, é possível fazer isso com coisas que são infinitamente divisíveis, já que o tempo também é infinito dessa maneira. Portanto, a conclusão é que leva tempo infinito, e não finito, para cobrir uma distância infinita, e leva um número infinito de agoras, e não um número finito, para se entrar em contato com um número infinito de coisas. 

É assim impossível cobrir uma distância infinita em um tempo finito, e é também impossível cobrir uma extensão finita em um tempo infinito. 

O “agora” é indivisível, portanto nada se move no agora (VI. 2, 233 b 31 - 2; VI. 3, 233 b 33 - 234 a 4, 234 a 24 - 33, 234 b 8 - 9) 

Está claro, então, que não há algo como um contínuo que não seja divisível em partes. 

[No entanto,] o agora, em seu sentido primário, deve ser indivisível. Este é o tipo de agora que ocorre em qualquer e toda duração de tempo, que é o limite do passado, pois não há nada do futuro deste lado, e também o limite do futuro, pois não há nada do passado deste outro lado. Dizemos então que é um mesmo limite de ambos. E a demonstração de que há tal limite, de que o limite do passado é o mesmo que o limite do futuro, seria simultaneamente a demonstração de sua indivisibilidade. [...] 

As seguintes considerações mostrarão que nada se move no agora. Se fosse possível para algo se mover no agora, poderia haver nele tanto movimento mais rápido quanto mais lento. Seja N o agora, e seja AB a distância que o objeto mais rápido percorreu. No mesmo agora, então, o objeto mais lento terá coberto uma distância menor do que AB, que chamamos AC. Mas dado que o movimento do objeto mais lento dura todo o agora para percorrer AC, o objeto mais rápido levaria menos tempo para cobrir AC, e conseqüentemente o agora seria dividido. Mas vimos que o agora é indivisível. Portanto, é impossível haver movimento no agora. 

Também é impossível haver repouso no agora. Pois falamos de repouso somente no caso de algo cuja natureza seja mover, mas que não está se movendo. Assim, dado que não há nada cuja natureza seja mover no agora, obviamente também não há nada cuja natureza seja estar em repouso no agora. [...] 

Segue-se necessariamente, portanto, que qualquer coisa em movimento e qualquer coisa em repouso estão em movimento e em repouso no tempo [e não no agora]. 

Os quatro argumentos de Zenão sobre o movimento (VI. 9, 239 b 5 - 240 a 18) 

O raciocínio de Zenão é inválido. Ele afirma que se é sempre verdadeiro que algo está em repouso quando está em oposição a algo igual a si mesmo [ou seja, quando ocupa uma distância que é igual ao seu comprimento], e se um objeto movente está sempre no agora, então uma flecha movente está em repouso. Mas isso é falso, porque o tempo não é composto de agora indivisíveis, e nem qualquer outra grandeza. 

Zenão elaborou quatro argumentos sobre o movimento, que têm trazido dificuldades para as pessoas. O primeiro [a Dicotomia] é sobre um objeto movente que não se moveria, porque precisaria alcançar metade do caminho antes de chegar ao fim. Isso foi discutido anteriormente [em VI. 2, 233 a 21 - 31]. 

O segundo é chamado “Aquiles”, e afirma que um corredor mais lento nunca será alcançado pelo corredor mais veloz, porque o que está atrás tem que primeiro alcançar o ponto no qual o que está na frente começou, de maneira que o mais lento sempre ficaria na frente. Este argumento, de fato, é igual à Dicotomia, com a diferença que a distância restante não é dividida por dois. Vimos que o argumento leva à conclusão de que o corredor mais lento não é alcançado, mas isso depende do mesmo ponto que a Dicotomia: em ambos os casos, a conclusão de que é impossível alcançar um limite é resultado de se dividir a distância de certa maneira. No entanto, o último argumento inclui, em seu relato, a característica adicional de que nem aquilo que é a coisa mais veloz do mundo pode sobrepujar a coisa mais lenta do mundo. A solução, portanto, deve ser a mesma em ambos os casos. É falsa a afirmação de que quem está na frente não pode ser alcançado. Ele não é alcançado enquanto continua na frente, mas ele é alcançado se Zenão admitir que o objeto movente pode percorrer uma distância finita.

Isso resolve dois dos seus argumentos. O terceiro é o que mencionei acima [a Flecha, em 239 b 5 - 9], que afirma que uma flecha movente está parada. Essa conclusão depende da suposição de que o tempo é composto de “agoras”, mas se essa suposição não é aceita, o argumento fracassa. 

Seu quarto argumento é o que trata de corpos iguais em um Estádio [uma pista de corrida], corpos que se movem em sentidos opostos e passam um pelo outro. Um conjunto sai do fim do estádio, e o outro do meio, com a mesma rapidez. O resultado, de acordo com Zenão, é que metade de um certo tempo é igual ao dobro deste tempo. O erro em seu raciocínio está em supor que leva o mesmo tempo para um corpo movente passar por outro em movimento, com mesma rapidez e sentido oposto, quanto leva para o corpo movente passar por um corpo em repouso, onde todos os corpos têm o mesmo tamanho. Isso é falso. [Aristóteles parece ter entendido errado o argumento de Zenão.] 

Por exemplo, sejam AA... os corpos estacionários, cada um do mesmo tamanho que o outro; sejam BB... os corpos, iguais em número e tamanho a AA..., que se movem a partir da metade do estádio; e sejam CC... os corpos, iguais em número e tamanho aos outros, que partem do fim do estádio e se movem com a mesma rapidez que BB... Segue-se que o primeiro B e o primeiro C, à medida que as duas fileiras passam uma em relação à outra, alcançarão o final da outra fileira no mesmo tempo. Apesar de o primeiro C passar todos os Bs, segue-se que o primeiro B passou metade do número dos As; e assim, afirma Zenão, o tempo transcorrido para o primeiro B é metade do tempo transcorrido para o primeiro C, considerando-se que em ambos os casos temos corpos iguais passando por corpos iguais, [...] e o primeiro C permanece o mesmo tempo ao lado de cada B quanto permanece ao lado de cada A, já que tanto os Cs quanto os Bs permanecem o mesmo tempo passando pelos As. De qualquer maneira, esse é o argumento de Zenão, mas suas conclusões dependem da falácia que mencionei. 


Duas respostas a se é possível passar por infinitos pontos (VIII. 8, 263 a 4  - b 8) 

Devemos dar a mesma resposta para qualquer um que use o argumento de Zenão para perguntar se é sempre necessário primeiro cobrir metade da distância, apontando que há um número infinito de meia distâncias e que é impossível cobrir um número infinito de distâncias. Há também aqueles que apresentam o argumento de outra maneira, e afirmam que quando se está atravessando uma meia distância, é preciso contá-la antes de completá-la, e que é preciso fazer isso para cada meia distância sendo coberta, de maneira que cobrir a distância inteira envolveria ter que contar um número infinito, o que considerado impossível. 

Pois bem, ao discutirmos [em VI. 2, 233 a 21 - 31] o movimento e a mudança, resolvemos essas dificuldades levando em conta o fato de que o tempo contém em si um número infinito de partes. Afinal, não há nada de estranho em que alguém atravesse um número infinito de distâncias em um tempo infinito, e a infinitude é uma propriedade do tempo da mesma maneira que é uma propriedade da distância. Apesar de esta solução ser adequada como resposta à pergunta original, qual seja, se é possível atravessar ou contar infinitas coisas em um tempo finito, ela não serve de resposta para a questão relativa ao que de fato acontece. Pois se o nosso inquiridor fosse ignorar a distância, e ignorar a questão de se um número infinito de distâncias pode ser coberto em um tempo finito, e fizesse a pergunta apenas com respeito ao tempo, dado que o tempo é infinitamente divisível, a solução anterior não seria adequada. Teríamos, pelo contrário, de utilizar o relato verdadeiro que acabamos de apresentar, e dizer que qualquer um que divida uma linha contínua em duas metades está tratando o ponto único em que se dá a divisão como dois pontos, pois está tratando-o tanto como um ponto inicial quanto como um ponto final, e a contagem de metades não é diferente da divisão em metades. Mas fazer essas divisões equivale a destruir a continuidade do movimento, e também a linha, pois o movimento contínuo é um movimento sobre o contínuo, e apesar de haver infinitas metades em um contínuo, eles são potenciais, não atuais. Qualquer divisão atual põe um fim ao movimento contínuo e cria uma parada. É claramente isso o que acontece quando alguém conta metades sucessivas, pois ele inevitavelmente conta um mesmo ponto como sendo dois, dado que a consequência de se contar duas metades ao invés de uma linha contínua é que um único ponto passa a constituir o fim de uma metade e o começo da outra. Assim, a resposta que temos que dar para a questão de se é possível atravessar um número infinito de partes, sejam elas partes do tempo ou da distância, é que em um certo sentido isso é possível e em certo sentido não. Se elas existirem de maneira atual, isso é impossível, mas se elas existirem de maneira potencial, então é possível. Em outras palavras, qualquer um que esteja em movimento contínuo atravessa coincidentemente um número infinito de distâncias, mas isso não é feito sem qualificação; trata-se de uma propriedade coincidente [acidental] de uma linha que ela possui um número infinito de metades, mas isso não faz parte da essência de linha.

* * *

Apresentamos abaixo um artigo da Revista Professor de Matemática (RPM) 39 de 1999, que apresenta a matemática dos paradoxos de Zenão

OS PARADOXOS DE ZENÃO - Geraldo Ávila

Introdução

Vez por outra encontro um artigo tentando explicar os paradoxos de Zenão (descritos adiante). Mas as “explicações” que eles apresentam não passam, a meu ver, de tentativas frustadas, que apenas transferem a dificuldade para outro domínio do conhecimento, sem resolver o problema. O presente artigo tem por objetivo lançar alguma luz sobre esses paradoxos e outras questões a eles relacionadas.

 Zenão e o paradoxo de Aquiles

Os paradoxos de Zenão estão relatados em muitos livros: por exemplo, nas págs. 55 e 56 de [1], uma referência conhecida e de fácil acesso. São quatro paradoxos, mas vamos nos restringir apenas a dois deles.

O primeiro, conhecido como paradoxo da dicotomia, procura interpretar o movimento de um ponto  $A$ a um ponto  $B$  como uma seqüência infinita de movimentos: antes de se chegar ao ponto  $B$  é preciso chegar ao ponto  $C$  tal que $AC = CB$ (figura 1); mas, antes de se chegar a  $C$,  é preciso chegar ao ponto  $D$  tal que $AD = DC$;  e assim por diante, indefinidamente.

A conclusão de Zenão é que o movimento é impossível, pois sequer se iniciará.

O paradoxo de Aquiles (1)  refere-se a uma corrida entre o rápido Aquiles e a morosa tartaruga, esta se posicionando na frente (digamos, no ponto $A_1$ da figura 2, enquanto Aquiles se posiciona em $A$).

O paradoxo está na conclusão de que Aquiles nunca alcançará a tartaruga. De fato, segundo o raciocínio de Zenão, quando Aquiles chegar ao ponto $A_1$, a tartaruga já estará em $A_2$; e quando Aquiles chegar ao ponto $A_2$, a tartaruga já estará em $A_3$; e assim por diante, indefinidamente, um processo que não termina.

Zenão e sua época

Zenão viveu no século V a.C., era discípulo de Parmênides, que ensinava que só o ser imutável é real, portanto, é na imutabilidade do ser que se encontra a realidade e se fundamenta o conhecimento. Essas idéias estavam em direta oposição às de Heráclito, para quem a realidade fundamental está no movimento. Heráclito ensinava que tudo no universo está em permanente mudança, toda a realidade é um “vir-a-ser” contínuo. Ao que parece, Zenão quis evidenciar, com seus paradoxos, a fragilidade dessa idéia de Heráclito, apontando para as contradições a que leva a própria noção de movimento.

Até hoje não se sabe ao certo se é isso mesmo que tencionava Zenão, ou se ele tinha outros objetivos em vista, pois não dispomos de nenhum escrito seu, nem sabemos se ele deixou alguma coisa escrita. Seus paradoxos são relatados por Aristóteles, cujo objetivo era refutar Zenão.

Portanto, Aristóteles pode não ter contado toda a história, ou, pelo menos, não ter retratado todas as intenções de Zenão. O que Aristóteles diz –– e que costuma ser repetido desde então –– é que Zenão queria, com seus paradoxos, demonstrar a impossibilidade do movimento. Mas seria ingênuo acreditar que ele duvidasse de uma realidade tão evidente como o movimento. Mais provável, portanto, é que Zenão quisesse, como dissemos, mostrar a fragilidade das idéias de Heráclito; ou apontar as deficiências dos conceitos formulados e do próprio raciocínio, isto é, as deficiências das bases racionais do conhecimento.

Os paradoxos

Os dois paradoxos descritos anteriormente são essencialmente iguais: o primeiro deles decompõe o movimento numa seqüência infinita de percursos cada vez menores “para trás”, nos trechos $CB,  DC$, etc.; ao passo que o segundo decompõe o movimento numa seqüência infinita de percursos cada vez menores “para a frente”, nos trechos $AA_1, A_1A_2$, etc. Assim, a dificuldade é a mesma nos dois casos.

Suponhamos que, partindo de um ponto $A$, Aquiles alcance a tartaruga ao final de duas horas num ponto $B$.  Assim contemplado, o movimento se apresenta como realizado por inteiro, como fenômeno completo e acabado. Outro modo é contemplar o movimento realizado por etapas, assim: durante a primeira hora Aquiles percorre o trecho $AA_1$, sendo $A_1$ o ponto médio entre $A$ e $B$ (figura 3); durante a meia hora seguinte ele percorre o trecho $A_1A_2$, sendo $A_2$ o ponto médio entre $A_1$ e $B$; durante mais 15 minutos ele percorre o trecho $A_2A_3$, sendo $A_3$ o ponto médio entre $A_2$ e $B$; e assim por diante. Em todos esses percursos ele estará sempre atrás da tartaruga. Poderá Aquiles alcançar a tartaruga no ponto $B$?

Há outras maneiras de interpretar o movimento de Aquiles até alcançar a tartaruga, mediante uma infinidade de movimentos sucessivos; mas basta essa última interpretação para a análise que faremos em seguida.

O paradoxo e a soma infinita

Em geral, as muitas tentativas que têm sido feitas ao longo dos séculos no sentido de resolver o paradoxo consistem simplesmente em aceitar a soma infinita dos percursos como resultando no percurso total, que dura duas horas. Ora, isso não alcança o âmago da questão, apenas transfere a dificuldade para o domínio das séries infinitas, pois se reduz a afirmar que

$$1 + \dfrac{1}{2} + \dfrac{1}{4} + \dfrac{1}{8} + \dfrac{1}{16} + \cdots = 2$$

Mas, somar números, uns após outros, sucessivamente, é uma idéia concebida para uma quantidade finita de números. Não se adapta ao caso de uma infinidade de parcelas, pois, por mais que somemos, sempre haverá parcelas a somar, e o processo de somas sucessivas não termina. E parece ser precisamente essa a dificuldade que Zenão queria apontar.

Os matemáticos têm consciência das dificuldades com as séries infinitas há mais de dois milênios. A primeira soma infinita que aparece na Matemática ocorre num trabalho de Arquimedes, onde ele calcula a área de um segmento de parábola; e faz isso através de um processo finito, justamente para evitar envolvimento com uma soma infinita, como no paradoxo de Aquiles (ver [2]).

A soma infinita é o limite de uma soma finita $S_n$, quando fazemos $n$ tender a infinito. Mas o que significa isso precisamente? A definição de limite, adotada no início do século XIX para fundamentar a Análise Matemática, é feita de maneira a evitar um envolvimento direto com a soma de uma infinidade de parcelas. Assim, dada uma série infinita.

$$a_1 + a_2 + a_3 + \cdots + a_n + \cdots ,$$

formamos a soma finita

$$S_n = a_1 + a_2 + a_3 + \cdots + a_n,$$

e dizemos que o número  S  é a soma da série, isto é, dizemos que

$$ S = a_1 + a_2 + a_3 + \cdots + a_n + \cdots ,$$

se a diferença $|S - S_n|$ puder ser feita menor do que qualquer número positivo, desde que se faça $n$ suficientemente grande. Em linguagem mais precisa, isso quer dizer o seguinte: dado qualquer número $\varepsilon > 0$, existe um índice $N$ tal que, para $n > N$, é verdade que $|S - S_n| < \varepsilon$.

Observe bem: atribuímos significado à “soma infinita” $a_1 + a_2 + a_3 + \cdots$ através de uma definição que “evita o infinito”. $S$ não é a soma de todos os termos da série infinita; ele é o número do qual as somas parciais finitas $S_n$ vão-se aproximando mais e mais quanto for maior for o índice  $n$.

Em vista dessas considerações, para comparar o movimento da figura 3 a uma soma infinita, temos de decompô-lo na seqüência $AA_1, A_1A_2, A_2A_3, \cdots, A_{n-1} A_n$ e $A_n B$, pois é essa seqüência, à execução do último trecho $A_n B$,  que corresponde à soma parcial $S_n$. Aí a dificuldade desaparece por completo, não importa quão grande tomemos  n,  pois estaremos evitando o infinito, exatamente como se faz no tratamento das somas infinitas. Mas esse expediente, como se vê, desfigura completamente o paradoxo, e é justamente por isso que não há como resolvê-lo em termos de séries infinitas.

Hilbert e o infinito

Vale lembrar aqui um artigo sobre o infinito, de um dos mais eminentes matemáticos do século XX, David Hilbert (1962–1943). A partir de 1917, ele se dedicou a investigar os fundamentos da Matemática e em 1925 pronunciou uma conferência que deixou escrita e ficou famosa, na qual aborda a natureza do infinito. Para nós aqui interessa lembrar que nessa conferência Hilbert insiste, de maneira bastante convincente, que o infinito não existe na explicação matemática de fenômenos físicos, certamente estamos procedendo a uma idealização, que necessariamente, passa a ser um modelo que não mais corresponde exatamente à realidade física.

É precisamente isso o que acontece quando construímos modelos matemáticos para movimentos físicos. Por exemplo, quando dizemos que uma bola de bilhar está animada de um movimento com velocidade uniforme de 3 m/s e escrevemos a equação horária do movimento $s=3t$ ($s$ representando o espaço percorrido em metros e $t$ o tempo em segundos), estamos, tacitamente, representando a bola por um de seus pontos, digamos, o centro de massa. A partir desse momento, passamos a contemplar o modelo matemático, deixando para trás o fenômeno físico! O movimento “matemático”, regido pela equação $s=3t$, é contínuo, isto é,  nele o ponto se desloca ao longo de uma reta, passando por todos os (infinitos) pontos que se situam entre a posição inicial do móvel e a posição final.

Completamente outra é a situação do movimento físico. Primeiro que um corpo físico qualquer –– seja uma bola de bilhar, uma bola de gude, um grão de areia, ou mesmo Aquiles ou um tartaruga –– é sempre uma coleção finita de partículas. Quando esse corpo está em movimento, cada uma de suas partículas executa um movimento particular. Mesmo quando procuramos simplificar, falando em corpo rígido, centro de massa, partícula ou elemento material, já estamos idealizando, portanto, saindo do domínio estritamente físico...

Na verdade, estamos tão acostumados a descrever o movimento por meios matemáticos, que acabamos identificando o fenômeno físico “movimento” com seu “retrato matemático”. As coisas que se movem no mundo físico são partículas, não pontos matemáticos. E não há como, rigorosamente, identificar a trajetória de um próton ou um elétron, por exemplo, com uma reta ou curva contínua. É um equívoco imaginar que o móvel físico possa passar por uma infinidade de posições mesmo porque, como nos ensina Hilbert, o infinito não existe no mundo físico.

A racionalização do conhecimento

A fundamentação racional do conhecimento se originou com Tales, no século VI a.C.; e adquiriu grande impulso com Pitágoras, que teve a genial idéia de que todos os fenômenos se fundamentam no número e podem ser explicadas em termos puramente numéricos. No fundo, o que Pitágoras propõe é a possibilidade da matematização do universo, coisa que só vem se tornando realidade –– e com muito sucesso, diga-se de passagem – nos últimos 400 anos, desde os tempos de Galileu, Kepler e Newton.

Com o surgimento da fundamentação racional do conhecimento na Grécia antiga, vários sábios passam a se ocupar do exercício da racionalidade na análise das idéias então em voga. São eles os sofistas, que eram verdadeiros “disseminadores do conhecimento”, que até então houvera sido cultivado em sociedades mais ou menos fechadas, como a dos pitagóricos. Dentre os sofistas havia os menos escrupulosos –– e até charlatães, como acontece mesmo nos dias de hoje, em todas as profissões –– e aqueles que usavam de suas habilidades até mesmo para exibição e divertimento, como bem retrata a história seguinte:

Dois personagens, Protágoras e Euatlus, chegaram a um acordo, segundo o qual Protágoras concordava em ensinar Euatlus a prática do Direito por um certo preço, que deveria ser pago em duas vezes, a metade durante o curso e a outra metade quando Euatlus começasse a praticar a profissão e ganhasse seu primeiro caso num tribunal.

Acontece que Euatlus, após terminar o curso, nunca iniciava sua prática. Protágoras foi ficando impaciente, cobrava e recebia sempre a mesma resposta de Euatlus: “pelo nosso trato, não tenho de lhe pagar ainda, pois não ganhei meu primeiro caso perante um tribunal”. Com sua paciência esgotada, Protágoras decidiu processar Euatlus para conseguir receber o que ele lhe devia.

Mas antes mesma da formalização do processo, numa última tentativa, Protágoras procurou Euatlus e o alertou: “em qualquer hipótese você vai ter de me pagar, pois, se o tribunal decidir a meu favor, você terá de obedecer a essa decisão e me pagar; e, se o tribunal decidir a seu favor, aí você terá ganho seu primeiro caso como advogado e, de acordo com nosso trato, terá de me pagar. Portanto, melhor me pagar antes que eu recorra à justiça”.

“Você está enganado”, respondeu Euatlus a Protágoras, “pois, se o tribunal decidir a meu favor, obedecerei a tal decisão e não lhe pagarei; e, se decidir a seu favor, aí ainda não terei ganho meu primeiro caso, portanto, de acordo com nosso trato, não terei de lhe pagar!”

Zenão, ao que parece, era filósofo sofista (dos sofistas sérios, é claro!), um crítico dos instrumentos que então se criavam para o estudo racional dos fenômenos. Assim, já naquela época se questionavam as bases do conhecimento, pondo em evidência as próprias limitações da racionalidade. Decerto que já se faziam perguntas mais ou menos deste tipo: o intelecto humano é realmente capaz de “penetrar” os fenômenos, de desvendar os segredos da Natureza? Até que ponto o homem realmente adquire o conhecimento? Será esse conhecimento uma revelação completa dos fenômenos? Ou tem apenas um caráter relativo e limitado? Ou será mesmo totalmente ilusório?

Questões como essas são tão atuais nos dias de hoje como teriam sido há mais de dois milênios, nos tempos de Sócrates, Platão, Aristóteles, e mesmo de seus predecessores.

É interessante notar que, com o progresso científico, principalmente a partir do século XVIII, sobretudo no terreno da Física e da Matemática neste nosso século XX, as bases do conhecimento nunca se revelaram tão frágeis. Os físicos têm hoje plena consciência de que suas teorias –– que vivem numa permanente busca de conciliação e consistência –– nada mais são do que instrumentos frágeis de interpretação da realidade, nunca um desvendamento completo dessa realidade.

Dissemos que é provável que Zenão estivesse procurando, com seus paradoxos, evidenciar as deficiências das bases racionais do conhecimento. A ser isso verdade, poderíamos então dizer que Zenão seria muito atual em nossos dias!

Os matemáticos, por seu turno, depois de perseguirem, por séculos, a fundamentação última de suas teorias, sabem hoje que isso é impossível. E um dos elementos centrais das dificuldades de se atingir tal objetivo e o infinito, do mesmo modo que o infinito é a pedra de tropeço dos paradoxos de Zenão.


Notas:

(1) Aquiles é um herói mitológico. Filho de deuses, foi por sua mãe mergulhado de cabeça para baixo nas águas de um rio encantado, tornando-se invulnerável na guerra, exceto pelo calcanhar, por onde sua mãe o segurou; daí a expressão “calcanhar-de-Aquiles”. Ele se notabilizou como o maior guerreiro nas batalhas contra Tróia e o mais rápido dos corredores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Boyer, C. B. História da Matemática. São Paulo: Edgard Blücher, 1974.
[2] Ávila, G. Ainda as séries infinitas. RPM 31, págs. 9 e 1wa0.


Para saber mais sobre o infinito e os paradoxos de Zenão, veja esse link.


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