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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Notas sobre a Filosofia da Natureza em Aristóteles

Aristóteles em sua escrivaninha
- 1457 - Autor Desconhecido

Baseadas no Comentário de S. Tomás de Aquino à Física de Aristóteles


LIVRO PRIMEIRO DA FÍSICA

1. A determinação dos princípios da natureza segundo os antigos filósofos.

Aristóteles inicia o Livro I da Física fazendo um apanhado das principais colocações que os antigos filósofos fizeram sobre os princípios da natureza. Alguns disseram que estes princípios seriam o ar, a água, o fogo, um princípio indeterminado, os átomos ou ainda outros. Em todos estes casos, Aristóteles afirma que a consideração destes filósofos não ultrapassou a abordagem da causa material.

Houve ainda outros filósofos que falaram da natureza de um modo não natural, como Parmênides, que negou a multiplicidade dos entes e a existência das mutações na natureza, afirmando que tratavam-se de ilusões e que só havia na realidade um único ser imóvel e eterno. Quem fala assim, diz Aristóteles, na verdade nega a natureza pois ela é, conforme afirma mais adiante o Filósofo, um princípio intrínseco de movimento.

2. Determinação dos primeiros princípios da natureza, segundo Aristóteles.

Em seguida Aristóteles passa à consideração dos princípios da natureza, entendidos estes em sua abordagem mais fundamental possível. Sejam quais forem os primeiros princípios da natureza, os quais terão que ser também os primeiros princípios do movimento, terão que possuir as seguintes características:

1. Que não sejam a partir de outros;

2. que não sejam a partir um do outro;

3. que todas as coisas sejam a partir deles.

Ora, qualquer coisa que se torna a partir de outra coisa o faz a partir da negação desta coisa. Neste sentido, dizemos que o branco se torna branco a partir do não branco. Todas as coisas da natureza, portanto, ou são contrários ou se tornam a partir de contrários. Temos assim dois princípios necessários em qualquer mutação: o término para o qual tende o movimento e o oposto deste término a partir do qual se iniciou o movimento. A natureza, pois, supondo o movimento, pressupõe também, como princípios, a existência de dois contrários entre os quais se realiza o movimento.

Não basta, porém, a existência de dois contrários para explicar o movimento. É necessário também tomar como um terceiro princípio o sujeito destes contrários, pois não é o próprio branco que se torna negro, mas alguma coisa branca que deixa de ser branca e se torna negra. Os contrários transformam um terceiro, que é o sujeito de ambos, e este sujeito é, assim, o terceiro princípio que deve ser postulado para explicar o movimento.

Desta maneira, todas as gerações das coisas naturais podem ser explicadas colocando-se a existência de um princípio material e de dois princípios formais. Estes princípios podem ser chamados de

Princípio material:

  • o sujeito

Princípios formais:

  • o término
  • o oposto do término.

Ou, ainda melhor,

Princípio material:

  • o sujeito

Princípios formais:

  • a forma
  • a privação da forma

3. A matéria, a forma e a privação da forma como princípios da natureza.

Deve-se considerar, porém, a hipótese que em algumas transformações da natureza pode ocorrer não apenas uma passagem de uma forma para a privação desta forma ou vice-versa, conservando-se o sujeito, mas também que o próprio sujeito mude e se torne outro sujeito.

Isto, porém, só poderá ser explicado se se admitir que haja uma composição de sujeito e forma naquele sujeito, e que haja um sujeito absolutamente primeiro na natureza. Este sujeito absolutamente primeiro é chamado de matéria primeira. Ele é pura indeterminação, mera potência ao ser em ato, que não pode existir por si só, necessitando ser determinado por uma forma para poder existir efetivamente. Ele deve entrar, porém, necessariamente na composição de todos os entes naturais. Desta maneira, os princípios últimos da natureza são os seguintes:

  • a matéria primeira,
  • a forma,
  • a privação da forma.

A matéria primeira, não existindo separadamente sem estar em composição com a forma, não pode ser conhecida em si mesma. Apenas podemos inferir a sua natureza indiretamente por analogia.

4. Substância e acidente.

Chama-se com o nome de substância ao ente que em primeiro lugar entra efetivamente na existência, que por primeiro e por si mesmo existe em ato, e não apenas em potência como a matéria primeira.

Por este motivo chama-se também de forma substancial à primeira forma que entra em composição diretamente com a matéria primeira para dar a existência em ato ao sujeito.

Já existindo um sujeito em ato composto de matéria primeira e forma substancial, outras formas podem advir ao sujeito já existente, chamadas de formas acidentais, as quais constituem aquelas realidades às quais chamamos de acidentes. São acidentes atributos tais como a cor, a temperatura, as diversas qualidades sensíveis de que está dotado o sujeito, suas dimensões geométricas, e outras. Estas diversas qualidades e atributos chamam-se de acidentes por contraposição à substância, pois os acidentes não subsistem por si mesmos, mas necessitam de um sujeito, que neste caso é uma substância já existente em ato, para poderem subsistir nela.

5. O cuidado que devemos ter em não interpretar a forma substancial como algo identificável pelos sentidos ou por experimentação laboratorial.

Segundo a doutrina de Aristóteles, a matéria primeira não pode ser conhecida senão indiretamente por analogia, a forma substancial só pode ser conhecida pela atividade da inteligência, e o que vemos ou captamos dos diversos entes pelos cinco sentidos, ou, por extensão, por instrumentos de laboratório, são apenas as formas acidentais dos entes.

A matéria é, em si mesma considerada, puro ente em potência.

A forma é aquilo que faz o ente em potência tornar-se ente em ato.

O terceiro princípio necessário para explicar as mutações encontradas na natureza, que é a privação, não entra na essência da coisa feita, sendo um princípio dos entes apenas por acidente.


LIVRO SEGUNDO DA FÍSICA

1. A natureza é um princípio de movimento.

Segundo o Filósofo, as coisas são ditas serem pela natureza quando parecem ter em si mesmas um princípio de movimento.

Temos desta sentença um exemplo se considerarmos o caso de uma mesa. Na medida em que uma mesa é um produto da arte humana, ela é imóvel. A mesa se corrompe com o tempo não por ser mesa, mas por ser feita de madeira ou de ferro, apodrecendo ou enferrujando na medida em que pertence às coisas da natureza e que possuir, pela natureza, um princípio intrínseco de mutação.

2. A natureza não é um princípio exterior de movimento.

O princípio de movimento que afirmamos ser a natureza não é um agente exterior, se bem que sempre seja necessário haver um agente exterior para haver movimento.

Assim, para a água aquecer-se, é necessário haver um agente exterior que a aqueça. Este agente exterior é, inegavelmente, um princípio de movimento, mas a natureza não é este agente exterior. A natureza é um princípio interno, não externo de movimento. O aquecimento da água é um movimento natural, mas o princípio de movimento que afirmamos ser a natureza é uma potência natural que ordena o ente que a possui à forma que será o término do movimento e que faz com que o movimento possa ser dito natural.

3. Todo movimento necessita de um agente exterior, e os movimentos observados nos corpos leves e pesados não são uma exceção a esta regra.

Acabamos de afirmar que para haver um movimento deve sempre existir um agente exterior. Que afirmar, porém, dos corpos leves ou pesados? Pois aparentemente, na época de Aristóteles, em que não se postulava a existência de uma possível força de gravidade que poderia ser um agente externo, deveria parecer aos gregos que estes corpos caíssem ou subissem sem a existência de um motor externo, pelo simples fato de serem pesados ou leves, isto é, por um princípio intrínseco que seria a sua forma natural.

Encontramos em Aristóteles, a este respeito, a explicação segundo a qual não é a forma natural pela qual são pesados ou leves que é o motor de seus movimentos; o fato de serem pesados ou leves não lhes é um princípio para se moverem, mas para serem movidos.

4. A natureza é um princípio interno de movimento. A natureza é também princípio interno de movimento e de repouso.

A natureza, conforme vimos, é um princípio de movimento. Não é, porém, o princípio externo do movimento, não obstante este deva sempre existir, mas um princípio interno. Pode-se dizer também que a natureza é princípio não só de movimento como também de repouso, porque é pela natureza que os corpos repousam ao alcançarem o término de seus movimentos naturais.

5. A natureza pode ser dita da matéria e da forma, mas não do composto.

Sendo a natureza princípio interno de movimento, e sendo os princípios internos de movimento a matéria, a forma e a privação da forma, a natureza pode ser dita tanto da matéria como da forma, e pode ser dita mais da forma do que da matéria, na medida em que aquilo pelo qual algo é em ato é mais ente do que aquilo pelo qual este algo é em potência.

Mas a natureza não pode ser dita do composto, porque o composto de matéria e forma não é princípio, mas algo que provém dos princípios.

6. A mesma Filosofia da Natureza que se ocupa da matéria se ocupa também da forma, pois a matéria se ordena à forma assim como a um fim.

Neste sentido, pode-se dizer também que a Física, a Ciência Natural ou a Filosofia da Natureza, sendo o estudo dos princípios do movimento, é o estudo da matéria e da forma. Não são porém duas ciências diferentes, uma que trata da matéria e outra que trata da forma, mas uma só ciência tendo a ambos estes princípios como objetos, porque compete à mesma ciência o estudo do fim e o estudo das coisas que se ordenam a este fim. Ora, a matéria se ordena à forma como a um seu fim. Portanto, haverá uma só ciência natural que trate de ambas.

7. Demonstração de que a matéria se ordena à forma. Fundamento da demonstração.

Pode-se demonstrar que a matéria se ordena à forma por comparação com a arte, a qual imita a natureza. Ora, na arte vemos claramente que a matéria se ordena à forma. Portanto, na natureza também a matéria se ordenará à forma.

8. Demonstra-se que nas artes a matéria se ordena à forma.

Vemos que na arte a matéria se ordena à forma porque nas artes encontramos artes do uso e artes da construção. A arte do uso é aquela, por exemplo, pela qual usa-se um navio para navegar. Aqueles que possuem esta arte são aqueles que julgam e ditam as normas sobre qual a forma que deve possuir o navio para poder bem navegar. Estes julgamentos sobre o uso passam para aqueles que possuem a arte da construção, que julgam então sobre qual a matéria de que deve ser construído o navio para poder adquirir aquela forma. Ora, todos percebem que a arte da construção se ordena à arte do uso, e, portanto, pelo menos nas artes, a matéria se ordena à forma.

9. Demonstra-se, por comparação à arte, que na natureza a matéria também se ordena à forma.

O que demonstramos acima para as artes também vale para a natureza, porque a arte, ao proceder conforme descrevemos, nada mais faz do que imitar a natureza.

Isto ocorre basicamente porque o princípio da arte é o conhecimento.

Vemos porém que a natureza, na medida em que os diversos entes que nela existem se ordenam uns aos outros, como ocorre quando as diversas partes de um todo se ordenam cada qual ao seu próprio fim, tem a mesma estrutura das obras cujo princípio é o conhecimento, que é o caso das artes.

De onde que deve-se concluir que também na natureza a matéria se ordena à forma, e por este motivo, a ciência que terá como objeto o estudo da matéria e da forma como de dois princípios da natureza será uma só e a mesma ciência.

10. Até que ponto se estendem as considerações da Física sobre a forma. Onde começa a Metafísica.

As considerações da ciência da natureza se estendem à forma apenas até o ponto em que estas formas estiverem unidas à matéria. A partir daí não se pode mais dizer que elas são princípios dos movimentos da natureza. As formas que existem independentemente da matéria são objeto de consideração da Metafísica.

11. O movimento não pode ser explicado apenas por causas intrínsecas. A explicação total de sua causalidade envolve o pressuposto da existência de quatro gêneros de causas.

Os princípios intrínsecos do movimento são a matéria e a forma, as quais, neste sentido, constituem a natureza, a qual é princípio intrínseco de movimento. Mas para explicar inteiramente o movimento é necessário a postulação de outras causas extrínsecas. O movimento só é inteiramente explicável mediante um total de quatro gêneros de causas. Estas são as seguintes:

  • A matéria, ou causa material;
  • a forma, ou causa formal;
  • a causa eficiente;
  • a causa final.

12. O que são a causa material e formal.

Sobre a causa material e formal, ou a matéria e a forma, já falamos o bastante. Elas explicam suficientemente o movimento do ponto de vista dos princípios intrínsecos. São os princípios passivos do movimento.

13. O que é a causa eficiente.

A causa eficiente é o princípio ativo do movimento e do repouso. É aquilo que efetivamente faz com que o ente se mova, atuando como agente externo que provoca o movimento. Quando alguém empurrar uma mesa está sendo a causa eficiente do movimento da mesa; quando o fogo aquece a água, o fogo é a causa eficiente do aquecimento da água.

14. O que é a causa final.

Uma causa é dita final na medida em que algo é um fim para um determinado movimento. Quando vamos a algum lugar para tratar de algum assunto, dizemos que este assunto se torna a causa final do movimento, porque todo o movimento é realizado tendo em vista a este fim. Este exemplo é tirado da psicologia humana, e é exato, porque o assunto a ser tratado foi verdadeiramente o fim em função do qual se deu o movimento e pelo qual este movimento se explica como em uma de suas causas. No entanto, o exemplo tem uma extensão muito mais geral, porque não são apenas os atos humanos que se realizam tendo em vista a algum fim, mas também todos os movimentos da natureza tendem a um fim, ainda que as causas eficientes neles envolvidos não sejam inteligentes, e, por isto mesmo, conscientes do fim ao qual se dirigem como ocorre no caso dos homens. No caso dos movimentos inconscientes da natureza a causalidade final também existe porque a ação do agente externo que age como causa eficiente provém de uma determinada forma que ele possui e, por este motivo, ela está determinada, por algo que já reconhecemos anteriormente como sendo um dos princípios da natureza, para um determinado fim. Neste sentido, a ação da forma de que é dotado o fogo é orientada por sua própria natureza para o aquecimento, que é a causa final do movimento de que ele é causa eficiente.

15. A causalidade final é a causa que move todos os gêneros de causa.

A causa final é a causa de todas as outras causas. Ela é, simplesmente, a causa das causas. Sempre existe causalidade final nos movimentos porque nada é movido da potência ao ato a não ser por um agente externo que esteja em ato. A causalidade material e formal, portanto, para resultarem num movimento, necessitam do agente externo ou da causa eficiente. A causa eficiente, porém, agindo na medida em que está em ato através de sua própria forma, tende necessariamente para algo determinado, e esta é a causa final do movimento. No caso dos seres inteligentes a explicação é essencialmente a mesma, sendo que a forma que é a causa eficiente do movimento é a própria forma apreendida pela inteligência daquele que, através de sua vontade, causa o movimento; a diferença reside apenas no fato de que, enquanto esta forma nos seres inanimados é única e sempre predeterminada a um fim único, nos seres inteligentes dotados de vontade ela não é necessariamente predeterminada.

Desta maneira, vemos que em Aristóteles temos uma concepção de natureza essencialmente teleológica, um termo que vem da palavra grega teles, que significa fim. A concepção das ciências experimentais modernas a respeito da natureza, ao contrário desta, é fundamentalmente centrada na causalidade eficiente.

Pode-se consultar ainda com proveito, sobre a teoria da causalidade, o Apêndice ao segundo capítulo da Educação segundo a Filosofia Perene.


LIVRO TERCEIRO DA FÍSICA

1. Concepção ampla de movimento na Física de Aristóteles.

Chamamos de movimento não apenas ao movimento local, isto é, aquele movimento pelo qual um móvel muda de lugar, mas a todo e qualquer tipo de mutação, como seria o caso, por exemplo, de uma mudança de cor ou de uma mudança de temperatura.

2. Os consequentes intrínsecos e extrínsecos do movimento: o infinito, o lugar, o vazio e o tempo.

Entendido neste sentido mais amplo, pode-se dizer que o movimento possui um consequente intrínseco e três extrínsecos.

O consequente intrínseco do movimento é

  • o infinito.

O infinito é consequente intrínseco do movimento porque todo movimento é algo contínuo, e o contínuo é algo infinitamente divisível. Todo movimento, portanto, contém intrinsecamente o infinito.

Os consequentes extrínsecos do movimento são os seguintes:

  • o lugar,
  • o vácuo
  • o tempo.

O tempo é uma medida externa do próprio movimento.

Já o lugar e o vácuo são uma medida externa não do movimento, mas do móvel. Embora nem todo movimento seja movimento local ou segundo o lugar, todo móvel, entretanto, tem que estar necessariamente em algum lugar, e, por este motivo, o lugar será sempre uma medida do móvel.

3. Objetivo principal do Livro III da Física: obter uma definição rigorosa do movimento.

Um dos principais objetivos do Livro III da Física é a obtenção de uma definição rigorosa do movimento.

Para isto, deve-se considerar, em primeiro lugar, que o ser pode ser convenientemente dividido tanto pela potência e pelo ato como pelas 10 categorias, de tal maneira que, porém, as categorias, sendo os gêneros supremos do ser, também possam ser divididas pela potência e pelo ato.

4. Quais são as 10 Categorias.

As categorias ou gêneros supremos do ser, são as seguintes, agrupadas em substância e nove acidentes:

  • Substância

  • Quantidade ou magnitude
  • Qualidade
  • Relação
  • Lugar
  • Tempo
  • Posição
  • Hábito
  • Ação
  • Paixão

As nove últimas categorias são entes que não podem subsistir por si mesmas; só podem existir como acidentes de uma substância. Daí serem chamadas de acidentes, por contraposição à primeira categoria, que é chamada de substância, a qual é o ente que está sob os acidentes. Daqui vem o próprio nome de substância, que significa sub stare.

São substâncias uma árvore, uma pedra. São quantidades o tamanho desta árvore, o tamanho desta pedra. São qualidades suas cores, suas durezas. As qualidades e as quantidades, assim como todos os demais acidentes, não subsistem por si mesmas, só podendo existir acrescentadas à substância que elas supõem.

5. O movimento existe apenas em quatro das 10 categorias.

O que se chama de movimento é algo possível de ser dividido segundo as categorias. Ele existe apenas nas seguintes categorias:

  • Substância
  • quantidade
  • qualidade
  • lugar.

6. Uma definição de movimento, aparentemente correta, efetivamente errônea.

Segundo Aristóteles, houve quem tivesse definido o movimento como sendo

"A passagem da potência ao ato
de uma maneira não súbita".

Esta definição, porém, não é correta, porque só podemos definir alguma coisa corretamente através de outras noções que lhe são anteriores. Ora, ao dizer passagem já estamos falando em movimento, pois uma passagem é um movimento. Ao dizer não súbita estamos incluindo o tempo na definição de movimento, sendo que porém, na verdade, é o tempo que se define pelo movimento e não vice-versa.

7. Define-se o movimento segundo a única maneira corretamente possível.

A dificuldade frequentemente não percebida para se alcançar uma definição correta de movimento é que o movimento é dividido pelas categorias, que são os gêneros supremos do ser. De onde que não pode ser definido a não ser por noções anteriores à categorias. Ora, só o ser, que pode ser dividido tanto pelas categorias como pela potência e pelo ato, é anterior às categorias. Do que se deduz que o movimento só poderá ser definido pela potência e pelo ato, noções que dividem cada uma das categorias, assim como dividem ao ser.

O único modo possível de definir o movimento, desta maneira, é o modo como o faz Aristóteles, utilizando-se apenas das noções de potência e ato:

"O movimento é o ato
do existente em potência
enquanto tal".

8. O movimento é ato do móvel.

O movimento é, assim, ato. É o ato do "existente em potência enquanto tal". Quem é, porém, o "existente em potência enquanto tal" da definição do movimento?

É, em primeiro lugar, o móvel, por contraposição ao movente, móvel que, durante o movimento, está em potência ao ato ao qual tende o movimento. Neste sentido, o movimento é ato do móvel.

9. O movimento também é ato do movente.

Mas deve-se dizer também que o movimento é igualmente ato do movente, e não apenas do móvel.

Para entender isto, deve-se explicar que tudo o que é movido tem que ser movido por uma causa eficiente que lhe é externa, porque todo movimento pressupõe uma passagem da potência ao ato e a pura potência não pode passar sozinha ao ato. Se o contrário fosse verdade, isto suporia na potência uma determinação já existente pela qual já não seria pura potência, mas ato. Esta determinação, necessária para desencadear o movimento, que pelo fato de já ser uma determinação por isso mesmo teria natureza de ato, é necessária ao movimento e, não podendo vir da própria potência, supõe um agente externo em ato que cause o movimento. Assim se demonstra, portanto, que tudo o que é movido tem que ser movido por um agente externo e o movimento, entendido neste sentido, é tanto ato do móvel como do movente.

10. O movimento é ato do móvel e do movente, mas situa-se no móvel.

Embora o movimento seja tanto ato do móvel como do movente, ele situa-se apenas no móvel, pois trata-se de apenas um só movimento, e não de dois, o qual provém do movente e situa-se no móvel.

11. O ente movido pode mover, por sua vez, o movente que o moveu. Isto não significa uma contradição com o princípio segundo o qual o movimento está situado no móvel e não no movente.

Circunstancialmente um movimento pode implicar em dois movimentos, na medida em que o móvel, sendo tocado pelo movido ao movê-lo, é, por sua vez, movido por este.

Na Física Clássica Newtoniana, o movente ao mover o móvel sempre será, por sua vez, movido também pelo móvel, porque na Física de Newton a cada ação corresponde uma reação igual e contrária, esta última exercida, porém, não no mesmo corpo que sofreu a ação, mas sobre o corpo que produziu a ação. Assim, se a Terra atrai pela gravidade a Lua mediante uma força atrativa exercida sobre a Lua, a Lua por sua vez terá que atrair a Terra com uma força igual e contrária exercida sobre a Terra. Do mesmo modo, se um homem empurra um barco com uma força exercida sobre o barco, o barco terá que empurrar o homem com uma reação exercida do barco sobre o homem. Na Física de Aristóteles este princípio é reconhecido, mas, ao contrário do que ocorre com a Física de Newton, não se trata de um princípio universal. Ele só ocorre, nas palavras de Aristóteles, se o movente, ao tocar o móvel, "também for tocado por este". Deixará, pois, de ocorrer, se o movente, ao mover o móvel, não for "tocado, por sua vez, pelo móvel".

No caso em que existam tanto a ação como a reação, ou que, na terminologia aristotélica, o movente também seja movido pelo móvel, não se configura aqui uma violação do princípio de que o movimento está situado apenas no móvel, porque estão ocorrendo na realidade dois movimentos distintos, e cada um dos dois movimentos situa-se apenas no respectivo móvel e não no movente, embora cada um deles seja ato dos dois.

12. Por que não existe movimento nas categorias da ação e paixão.

O movimento, na medida em que é ato do móvel, chama-se paixão e é a própria décima categoria. Não existe movimento na categoria da paixão porque a paixão é o próprio movimento, na medida em que é ato do móvel.

O movimento, na medida em que é ato do movente, chama- se ação e é a própria nona categoria. Não existe, também pelo mesmo motivo, movimento na categoria da ação porque a ação é o próprio movimento, na medida em que é ato do movente.


LIVRO TERCEIRO DA FÍSICA

- Teoria do Infinito -

1. Razões pelas quais o infinito existiria.

A opinião corrente dos homens admite a existência do infinito. Esta suposição usualmente baseia-se nas seguintes considerações:

  1. Porque os homens costumam supor que o tempo seja infinito, demonstrando com isto, pela existência do tempo, a possibilidade da existência do infinito. Supõem também que qualquer magnitude possa ser infinitamente dividida com o que demonstra-se por outro exemplo a existência do infinito.
  2. Supõem, ademais, que todo corpo finito tem que estar incluído em algo, e este sucessivamente em outro, afirmação que parece não ser possível de ser feita se o infinito não pudesse existir.

2. Razões pelas quais o infinito não existiria.

Por outro lado, pode-se refutar estes argumentos dialeticamente dizendo, em primeiro, lugar que não pode existir um corpo infinito porque todo corpo é algo confinado por uma superfície. Ora, nenhum corpo confinado por uma superfície pode ser infinito. Portanto, não existe corpo infinito. Se, porém, um corpo infinito não pode existir, parece também que não pode existir o infinito, absolutamente falando.

Ademais, se houvesse um número infinito de coisas, cada uma delas teria sua individualidade e, portanto, poderia ser numerada. Se cada uma delas fosse numerada, porém, o número correspondente a cada uma seria certamente um número finito. Ora, se o número correspondente a cada uma de todas elas fosse finito, não poderia existir o infinito.

3. A verdade sobre o infinito.

Devemos, pois, dizer que a verdade em relação a esta questão é que o infinito é algo que não existe em ato, mas apenas em potência.

O infinito se encontra nos números apenas no sentido em que, a cada número dado, sempre é possível achar um número maior do que este. O mesmo ocorre no infinito pela divisão: a cada divisão feita de uma magnitude contínua, o infinito existe apenas em potência, no sentido em que sempre poderá ser feita uma divisão seguinte.

Mas o infinito não existe em ato, no sentido em que jamais surgiu alguém que tivesse mostrado uma magnitude já infinitamente dividida ou um número já infinitamente numerado.


LIVRO QUARTO DA FÍSICA

- Teoria do Lugar e do Vazio -

1. Razões pelas quais o lugar existiria.

Problemas semelhantes ao do infinito surgem ao se determinar o que seja ou se existe o lugar e o vazio.

Os homens costumam admitir que o lugar seja algo existente porque, embora somente vemos os corpos e não os lugares, o lugar poderia ser conhecido por analogia assim como conhecemos a matéria primeira por analogia, isto é, examinando a mudança das formas e deduzindo a existência de um sujeito primeiro destas transformações. Neste sentido, quando de um recipiente sai a água e entra o ar mostrar-se-ia, com isto, a existência de um lugar.

2. Razões pelas quais o lugar não existiria.

Muitas coisas, porém, poderiam ser objetadas a estes argumentos.

Primeiramente, poderia dizer-se que, se o lugar existe e é algo, deveria ser um corpo, porque a ele se atribuem três dimensões. Mas neste caso, haveria dois corpos coexistindo juntos, o corpo que está no lugar e o próprio lugar. Porém, se este lugar fosse um corpo, deveria estar em um lugar assim como o primeiro corpo, e, deste modo, deveria haver infinitos lugares coexistindo no mesmo lugar.

Ademais, tudo o que existe tem que ser feito de algo. Se o lugar existe, e é feito de algo, teríamos que explicar então como duas coisas poderiam ocupar o mesmo lugar no espaço, e por qual motivo isto seria uma exceção a uma regra que só ocorre se uma destas duas coisas for o próprio lugar. Se dissermos, por outro lado, que o lugar não é feito de nada, não se entenderia como uma coisa que fosse feita de nada poderia existir.

Ademais, o lugar não é causa de nada. Ora, se tudo pode ser explicado pelas demais causas sem necessidade de recorrer à existência real do lugar, o lugar e os diversos lugares constituiriam um cosmos paralelo ao próprio cosmos visível. Vemos, porém, que na natureza tudo possui razão de ser. Teríamos, com isto, que desenvolver uma teoria que explicasse qual a razão de existir deste outro cosmos paralelo, imerso dentro do primeiro, que nenhuma relação de causalidade tem com este primeiro, ou então explicar por que este é o único caso conhecido em que existe algo sem razão de ser.

Ademais, se o lugar existe, supõe-se que tudo o que existe deva estar em um lugar. Se o lugar existe, portanto, ele também terá que estar por sua vez em um lugar. Para cada corpo haveria infinitos lugares, e o universo dos lugares seria muitíssimo maior do que o que efetivamente vemos.

3. A verdade sobre o lugar.

A verdade que explica estes paradoxos é que o lugar é apenas

"a extremidade imóvel
do continente primário".

Neste sentido, um corpo só está em um lugar quando for adjacente a outro corpo que o contém pelo lado externo.

4. Consequências cosmológicas. Inexistência do espaço vazio.

A esfera última do Universo, por estes motivos, ou a totalidade do cosmos, não podendo ser infinita, por já termos visto que não existe infinito em ato, não pode estar contida dentro de outro corpo que lhe seja adjacente e portanto, não pode estar em lugar nenhum.

Pelos mesmos motivos já apontados, não existe o espaço vazio como uma realidade independente.

5. Considerações de Física Moderna.

A partir do fim do Renascimento e do início do Iluminismo estas notáveis conclusões passaram a ser vistas como simples como ingenuidades provindas de povos primitivos, desprovidos de sofisticados equipamentos de laboratório.

Elas foram definitivamente descartadas pela Física de Newton, o qual, nos seus Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, postulou de partida a existência de um espaço vazio infinito como uma entidade real na qual estariam contidos os astros e todos os demais corpos do Universo.

6. Textos de Isaac Newton, tirados dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural.

No prólogo dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural de Isaac Newton encontramos afirmações como as seguintes:

"Resta-nos definir,
como conhecidíssimos de todos,
o tempo, o espaço, o lugar e o movimento.

Temos que dizer, porém,
que o vulgo não concebe estas quantidades
senão pelas relações com as coisas sensíveis.

É daí que nascem certos prejuízos,
para cuja remoção convém distinguir
as mesmas entre absolutas e relativas.

O tempo absoluto,
verdadeiro e matemático,
flui sempre igual por si mesmo
e por sua natureza,
sem relação com qualquer coisa externa.

O espaço absoluto,
por sua natureza,
sem nenhuma relação com algo externo,
permanece sempre semelhante e imóvel.

O lugar é uma parte do espaço
que um corpo ocupa.

O movimento absoluto
é a translação de um corpo
de um lugar absoluto
a outro lugar absoluto.

Assim como a ordem das partes do tempo
é imutável,
assim também é a ordem
das partes do espaço.

Pertence à essência deles serem lugar,
e é absurdo que os lugares se movam,
embora estas partes do espaço
não possam ser vistas pelos sentidos
e distinguidas umas das outras
por nossos sentidos.

Na Filosofia Natural, porém,
devemos fazer abstração dos nossos sentidos.

Os lugares imóveis são aqueles que,
por toda a infinidade,
conservam as posições mútuas,
pelo que sempre permanecem imóveis,
constituindo o espaço que chamo imóvel.

É dificílimo, porém,
conhecer os verdadeiros movimentos
de cada um dos corpos,
dado que as partes do espaço imóvel
em que os corpos se movem de verdade
não caem sob os sentidos".

7. Reviravolta do pensamento científico no fim do século dezenove e no início do vinte.

Somente no fim do século dezenove os homens voltaram a tecer dúvidas sobre tais afirmações, quando um astrônomo amador perguntou porque o céu não brilhava de noite.

O seu raciocínio foi o seguinte.

Supondo que houvesse estrelas preenchendo todo o espaço infinito do cosmos, haveria um valor que mediria a densidade média das estrelas no Universo. Independentemente de se conhecer de fato o valor desta densidade, sabe-se que, qualquer que seja este valor, a intensidade da luz de uma estrela que é recebida na Terra diminui com o quadrado da distância desta estrela à Terra. Isto acontece porque a luz da estrela, à medida em que se afasta de sua fonte, se espalha sobre a superfície de uma esfera imaginária, superfície esta que aumenta com o quadrado de seu raio. A fórmula que fornece a área da superfície de uma esfera, é, de fato, quatro vezes o número $\pi$ PI (3,14) vezes o quadrado do raio da esfera.

Por outro lado, porém, à medida em que nos afastamos da Terra, o número de estrelas existente no espaço que circunda a Terra a uma dada distância aumenta de acordo com o aumento do volume de espaço que circunda a Terra a esta mesma distância. Ora, o volume do espaço que circunda a Terra a cada determinada distância em que nos situamos dela aumenta à medida que nos afastamos da Terra, pois este é o volume das camadas mais externas da esfera de espaço que circunda a Terra, camadas que se tornam cada vez maiores à medida em que aumenta o raio desta esfera. O volume de uma esfera, porém, diferentemente da área de sua superfície externa, aumenta proporcionalmente ao cubo de seu raio. A geometria nos diz, de fato, que o volume de uma esfera é igual a $4/3$ vezes o número $\pi$ (pi) vezes o cubo raio desta esfera.

À medida, pois, em que nos afastamos da Terra, embora a intensidade da luz que nos chegue de cada estrela, individualmente considerada, diminua com o quadrado de sua distância, o número total destas estrelas aumenta com o cubo desta mesma distância. Deste raciocínio deveria concluir-se que, à medida em que nos afastamos da Terra, o aumento do número total de estrelas deveria produzir um efeito mais do que compensatório sobre a diminuição da intensidade da luz que nos chega individualmente de cada uma. À noite, portanto, deveria haver mais luz do que durante o dia, supondo que, conforme se observa, seja verdade que a luz com que o dia é iluminado seja essencialmente apenas aquela que nos chega do Sol.

Nada disso, porém, acontece, e o astrônomo que levantou esta questão pedia insistentemente aos seus colegas que lhe explicassem o motivo.

A única, ou uma das poucas, explicações possíveis para este paradoxo, se quisermos preservar as suposições contidas na Física de Newton, seria que só uma pequena parte do espaço vazio do Universo estaria efetivamente preenchida de estrelas, e esta parte seria justamente o espaço próximo à Terra. Mas o paradoxo que esta e que as outras poucas soluções possíveis restantes criam, por sua vez, não são menores do que o paradoxo original. Pois, por maior que fosse esta região nas vizinhanças da Terra que estivesse efetivamente preenchida de estrelas, ela seria um nada em comparação com a vastidão do Universo infinito. Se postulamos que o espaço é verdadeiramente infinito, qualquer que fossem as dimensões desta vizinhança estelar, esta, diante do infinito, seria precisamente idêntica a nada. De onde que o Universo infinito consistiria essencialmente de um espaço vazio, essencialmente do nada.

Ora, que sentido de realidade se poderia atribuir a uma entidade deste gênero? Se o Universo jamais tivesse existido, em que ele diferiria do existir segundo este modo?

Os físicos não conseguiram dar nenhum tipo de resposta a estes paradoxos até o surgimento da Teoria da Relatividade Generalizada de Einstein, com a qual se retornou a uma concepção do Universo muito semelhante, senão mesmo idêntica, nestes pontos, às da Filosofia Aristotélica.


LIVRO QUARTO DA FÍSICA

- Teoria do Tempo -

1. Razões a favor e contra a existência do tempo.

Há quem afirme que o tempo não existe, porque é composto de coisas que não existem, que são o passado e o futuro.

Há outros que dizem que só existe efetivamente uma pequena parcela indivisível do tempo, chamado o agora. Porém, mesmo isto não pode ser dito sem dificuldades, pois o agora que passou então deveria ter-se corrompido e, neste sentido, deveríamos ser capazes de determinarmos em que momento ele teria-se corrompido. Não é possível que o agora se tivesse corrompido no mesmo agora em que ele havia existido, porque neste caso ele teria existido e não existido ao mesmo tempo. Se ele se corrompeu, porém, em um agora posterior, então aquele agora não era indivisível. Portanto, deveríamos ser forçados a dizer que o agora não se corrompe; é sempre o mesmo agora que existe todo o tempo. Mas se o agora é sempre o mesmo, por outro lado, não há sentido em se falar de tempo, porque o tempo implica em uma sucessão.

2. A verdade sobre a realidade do tempo.

Devemos dizer que o tempo não é uma realidade conhecida em si. Ele é conhecido como consequência de se conhecer o movimento. Nós conhecemos o tempo quando distinguimos no movimento um antes e um depois, quando tomamos duas partes no movimento com algo no meio. Neste sentido,

"O tempo é o número do movimento
em relação ao antes e ao depois".

O tempo, deste modo, não é o movimento, mas consequência do movimento, na medida em que o movimento é numerado.

O tempo é o número do movimento.

3. A verdade sobre a realidade do agora.

A realidade do agora em relação ao tempo é a mesma que a do objeto móvel em relação ao movimento. Em um movimento, o objeto móvel é o mesmo no sujeito, mas difere pela razão. Assim também é a realidade do agora dentro do tempo.


CONCLUSÃO DESTA RESENHA

Fizemos uma pequena resenha contendo algumas considerações importantes sobre tópicos abordados nos quatro primeiros livros da Física de Aristóteles, apoiando-nos no texto do Comentário que Santo Tomás de Aquino escreveu a este tratado.

O Tratado de Física de Aristóteles contém ao todo oito livros, o último dos quais consiste em uma demonstração pela qual se evidencia que o movimento na natureza não pode ser suficientemente explicado se não se admitir a existência de um ente, situado além da natureza, dotado, conforme vai deduzindo o Filósofo, de incorruptibilidade, eternidade, imutabilidade, impossível de ser movido per se ou per accidens, dotado de potência infinita, não dotado de magnitude geométrica, não podendo ser corpo nem uma potência situada em um corpo, indivisível e não dotado de composição de partes.

Mais adiante, na Metafísica, Aristóteles volta a demonstrar de outro modo a existência deste ente notável situado além da natureza. Seu ponto de partida não será mais o movimento observado nas coisas da natureza, mas o próprio ser delas. Ele irá mostrar que, independentemente do movimento, o ser de todas as coisas que são dadas à observação dos homens não pode também ser suficientemente explicado senão admitindo a existência daquele mesmo ente que havia sido deduzida no término do tratado de Física. Devido, porém, ao novo ponto de partida desta outra demonstração, as conclusões a que chega Aristóteles apontam para mais longe. O Filósofo conseguirá entrever, no final da Metafísica, outros atributos da causa primeira do ser de todas as coisas a que ele não havia podido chegar na Física. Entre elas, que a causa primeira é necessariamente um ente dotado de vida e inteligência.

Não é de se admirar, em vista disso, a alegria com que Santo Tomás de Aquino, no fim de seu Comentário à Física, encerra o seu livro oitavo e último:

"E assim",

conclui Tomás de Aquino,

"Aristóteles termina a sua discussão geral
das coisas naturais com o primeiro princípio
de toda a natureza,
que é,
sobre todas as coisas,
Deus,
bendito seja para sempre.
Amém. "


Texto retirado do link.


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Elementos de crise na educação

Um sinal dos tempos para o apostolado educacional

É sem dúvida uma tarefa difícil abordar em poucos parágrafos o tema da crise da educação. Não é difícil, todavia sinalizar alguns dos principais elementos ou oriundos desta crise ou que contribuem para seu desenvolvimento. Antes, porém é necessário definir o que se entende por crise e por educação.

A palavra ‘crise’ tem sua origem na medicina hipocrática, e “indicava a transformação decisiva que

ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta seu curso em sentido favorável ou não”. (...) “Em época recente esse termo foi estendido, passando a significar transformações decisivas em qualquer aspecto da vida social” [1]. A evolução semântica do termo assumiu um caráter prevalentemente negativo: de decadência, depressão, desanimo, situação problemática, desorientação [2].

Já por educação, entendemos tudo que se refere a formação integral do ser humano [3]. Assim sendo, a escola, que é o lugar formal da ação educativa [4], não encerra em si a plenitude da responsabilidade e da missão educativa: a ela devem estar unidas outras instancias da sociedade civil, iniciando pela ‘célula mãe’ desta mesma sociedade civil que é a família [5], mas também a inteira sociedade e de modo particular o Estado e a Igreja que devem, cada qual dentro do que lhe cabe, apoiar a família e a escola nesta missão [6]. O aluno ou educando, por sua vez, como destinatário tem também de acordo com a situação, sua responsabilidade neste processo. E o professor é, de certo modo, um continuador e aperfeiçoador daquilo que faz primeiramente a família, além de transmitir o que lhe é próprio transmitir ao educando [7]. Tudo isto falamos no plano ideal, pois se começamos a olhar a realidade as coisas não são bem assim [8]. E é aí que nos damos conta de que a educação encontra-se em crise, naquele sentido negativo que expúnhamos ali atrás.

Poderíamos começar pela constatação de jovens em idade hábil que não gostam de ler, mas não só, não possuem domínio na leitura e por consequência na escrita – as redes sociais dão testemunho disso o tempo todo, tanto em razão da comunicação escrita quanto aquela oral, nas duas erros em quesitos básicos da gramática [9], na última, inclusive a incapacidade de manter seja uma conversa que uma explanação de modo maduro e livre de ideologia e estereótipos.

Diante disso poderíamos puxar um fio que nos conduziria a um sistema que não facilita a autêntica educação, tanto como formação intelectual quanto para os valores humanos e morais – essencial em qualquer civilização – seja pela enormidade deste sistema, sua burocratização e mesmo o seu aparelhamento por parte de ideologias filosóficas e políticas [10], além de uma espécie de esquizofrenia entre investimento e qualidade da educação: o investimento, equiparado proporcionalmente a outros países é alto, porém a qualidade é baixíssima em relação as reais necessidades e possibilidades do país [11]. E aqui podemos também contemplar a desvalorização do profissional da educação, de modo especial o professor, tanto em relação ao salário quanto a formação para o magistério.

Mas não só! Como dizíamos a escola não é a única responsável pela formação das jovens gerações. A família ocupa lugar prioritário e insubstituível. Sim, os pais são os primeiros responsáveis pela educação dos filhos. Aliás, as duas grandes responsabilidades do Matrimônio, das quais se derivam todas as outras, são a união indissolúvel e a geração da vida – onde se insere o cuidado pela mesma vida, inclusive através da educação [12].

Em nossos dias, infelizmente, vemos o esfacelamento da instituição familiar, por diversas razões, que não vem ao caso elencá-las, mas citar pelo menos uma: a banalização do sexo, visto apenas como elemento biológico e dissociado da sua finalidade que é o amor entre um homem e uma mulher e deste amor a abertura para geração da vida. Não é raro, em razão da banalização do sexo entre as jovens gerações, ver crianças inteiramente sem referencial paterno e materno. E quando existe em termos de presença e sustentamento, às vezes carece seja de estabilidade seja de maturidade necessária para contribuir no processo de formação das novas gerações.

Há ainda a interferência maciça dos meios de comunicação, principalmente através da internet [13] e redes sociais, que podem se tornar um verdadeiro inimigo da família e da escola, tanto na produção e forte disseminação de contra valores, como também na dificuldade que acabam criando a concentração, reflexão, leitura, etc. [14].

Vale a pena notar ainda o tipo de figura do ‘herói’, ou seja, de referencial que a todo tempo é proposto por tais meios. Muitas das vezes modelos estereotipados, fáceis, mas efêmeros e por isso perigosos para o futuro destes jovens, pois estudo denota ascese, dedicação, esforço [15]. Enquanto que estes ditos “modelos” desprezam tudo que não é prazer.

Assim sendo, constatamos o quão deficitário de uma educação para as virtudes é o atual cenário educativo. Muitas das vezes constatamos a presença de uma escala de valores desorientada, não obstante a degradação da dignidade humana com a ampla banalização do sexo, escondida sob a bandeira da educação sexual, de desagregada da verdade da sexualidade e da formação do homem virtuoso, se torna nada mais que o escancaramento para todo e qualquer tipo de vícios. E esta é a receita para degradação de qualquer sistema educativo, porque é inevitável, onde aumentam os vícios decresce o aprimoramento do intelecto e das virtudes.

Por aí não é difícil entrever outras consequências como o despreparo para assumir responsabilidades inerentes a vida humana (família, profissão, etc.). A própria formação de professores, por vezes, é deficitária – note-se o aparelhamento de disciplinas humanas, como a História, a Geografia, a Sociologia, etc. por parte de ideologias, tirando do ensino destas disciplinas (e quaisquer outras que fossem) a retidão que lhes cabe: em outras palavras ao invés de produzir conhecimentos acaba-se por servir de instrumento de doutrinação [16]. E, por fim, mas não menos importante, o assistencialismo social presente no sistema educativo que não leva em conta o aproveitamento da aprendizagem (quanto mais a pessoa) mas as estatísticas para fins políticos [17].

Assim retornamos a elementos como o analfabetismo funcional [18] tanto na jovem idade quanto pela vida adulta afora; inclusive de estudantes universitários, mas deficitários, se levada em conta a exigência estrita da graduação acadêmica. E assim sucessivamente.

Assim sendo, diante da preocupação com a educação, sobretudo das crianças e dos jovens, ao refletir sobre os elementos de crise e na tentativa de procurar a partir destes um “lugar e sujeito” de intervenção em favor da educação, nos damos conta de que agregados aos sujeitos formais que são o aluno, o professor e a escola, devem ser levados em conta outros “lugares e sujeitos” como a família, a sociedade civil nas suas instancias representativas, o Estado, a Igreja e os meios de comunicação. A situação, portanto, é complexa e demanda resposta à altura.

E somente daqui podemos entrever uma possibilidade de acepção positiva da crise: a direção na qual segue o processo de transformação oriundo da mesma. E ainda sim aqui não há nada de positivo relacionado à crise em si, porque os elementos que elencamos, podemos perceber, são agravados, enquanto oriundo de outros, mas também agravantes, enquanto engendram outros. O que só pode conduzir a um colapso do sistema educativo e consequentemente o caos da civilização humana – elementos chaves para a tomada de qualquer poder através de um golpe, dada vulnerabilidade tanto da educação quanto das pessoas.

A Igreja sempre teve de lidar com situações de degradação humana, moral e institucional interna e externa. Ao se dar conta de tal realidade qual foi a resposta no decorrer dos séculos? Olhar para tudo através das “lentes da fé”: para o homem, para a educação, para a sociedade. A fé dá condições para enxergar para além das névoas e da escuridão.

Foi assim com a atividade dos monges diante do Império Romano decadente e ameaçado pelos bárbaros; foi assim com o sistema educativo implantado pelos jesuítas a fim de conter a revolução protestante em curso por toda Europa; foi assim com a implantação de escola católicas nas terras de missão. Só que não estamos falando de um processo automático, mas de um processo desencadeado por uma força motriz, e aqui enxergamos o grande trunfo da Igreja: todo tempo de crise é também o tempo de grandes santos e nobilíssimas iniciativas. De almas verdadeiramente abrasadas de fé, esperança e caridade, que lutam antes de tudo pela causa de Deus e assim alicerçadas, podem lutar ardorosamente pelo homem arriscado de degradar-se e sucumbir diante da própria miséria. A educação cristã é um instrumento poderoso e eficaz [19].


Referências

[1] HIPÓCRATES, Pognosticon, 6, 23-24; Epidemias, I, 8, 22. Apud. N. ABAGNANO. Dicionário de Filosofia. p. 222.

[2] VIDAL, M. Dicionário de Moral. Aparecida: Santuário, 1991. p. 132.

[3] “Devendo a verdadeira educação ter por objetivo a formação integral da pessoa humana, orientada para o seu fim último e simultaneamente para o bem comum das sociedades, as crianças e os jovens sejam de tal modo formados que possam desenvolver harmonicamente os seus dotes físicos, morais e intelectuais, adquiram um sentido mais perfeito da responsabilidade e o reto uso da liberdade, e sejam preparados para participar ativamente na vida social” (Código de Direito Canônico, cân 795).

[4] “A escola exerce uma função social insubstituível. Hoje ainda ela se revela como a resposta institucional mais importante da sociedade ao direito de cada indivíduo à educação e, portanto, à própria realização e como um dos fatores decisivos para a estruturação e a vida da própria sociedade” (SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA EDUCAÇÃO CATÓLICA. O leigo católico testemunha da fé na escola, 13).

[5] “São os pais os primeiros educadores dos filhos” (VATICANO II. Gravissimum Educationis, 3). “Os pais, e os que fazem as suas vezes, têm a obrigação e gozam do direito de educar os filhos; os pais católicos, além disso, têm o dever e o direito de escolher os meios e as instituições com que, segundo as circunstâncias dos lugares, possam providenciar melhor à educação católica dos filhos” (Código de Direito Canônico, cân 793, parág. 1).

[6] “Os pais têm ainda o direito de desfrutar dos auxílios que a sociedade civil lhes deve prestar, e são necessários para a educação católica dos filhos” (Código de Direito Canônico, cân 793, parág. 2). “A Igreja tem o direito de fundar e dirigir escolas de qualquer disciplina, género e grau. Os fiéis fomentem as escolas católicas, cooperando na medida das suas forças para a fundação e manutenção das mesmas” (Código de Direito Canônico, cân 793, parágs. 1 e 2).

[7] “(...) a profissão do educador possui uma característica específica: a transmissão da verdade” (SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA EDUCAÇÃO CATÓLICA. O leigo católico testemunha da fé na escola, 16). Entre os direitos humanos elencados pelos Magistério está “o direito a maturar a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade” (PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja (DSI), 155). E neste quesito a Igreja já avisava décadas atrás algo sintomático quanto a transmissão da verdade: “Através de todos os canais possíveis, entre os quais a escola, [os alunos] são colocados em contato com informações muito divergentes sem terem capacidade para as ordenar e para realizar a síntese. Não têm ainda ou nem sempre têm, com efeito, a capacidade crítica para distinguir o que é verdadeiro e bom daquilo que o não é, nem sempre dispõem de pontos de referência religiosa e moral, para assumir uma posição independente e justa, perante as mentalidades e os costumes dominantes. O perfil do verdadeiro, do bem e do belo é apresentado dum modo tão vago que os jovens não sabem para que direção voltar-se; e se ainda acreditam em alguns valores, são todavia incapazes de lhes dar uma sistematização e muitas vezes são inclinados a seguir a própria filosofia segundo o gosto dominante” (SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Dimensão religiosa da educação na escola católica, 9).

[8] Cf. SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA EDUCAÇÃO CATÓLICA. O leigo católico, 26; Dimensão religiosa, 7-23.

[9] Os resultados do ENEM (Exame Nacional para o Ensino Médio) não nos desmentem. Deixando de lado debate quando ao apelo fortemente ideológico relacionado ao tema da redação para 2016 e os critérios de ordem subjetiva presentes na avaliação (como “fuga do tema” e “fere os direitos humanos”), dos mais de 5 milhões e meios de inscritos que fizeram a prova de redação, apenas 77 alcançaram nota máxima. A média geral, numa escala de 0-1000, foi igualmente desastrosa: “Considerada a média total, os participantes obtiveram as maiores médias em ciências humanas e suas tecnologias (533,5), em linguagens e códigos e suas tecnologias (520,5), matemática e suas tecnologias (489,5) e ciências da natureza e suas tecnologias (477,1)”. In.: (acesso 20/01/2017).

[10] E o aparelhamento ideológico há que dificultar tanto o desenvolvimento intelectual quanto a formação para os valores humanos e morais e, diga-se a formação do homem sábio, que busca a verdade, finalidade última da educação. “O nosso tempo exige uma intensa atividade educativa e um correspondente empenho por parte de todos, para que a investigação da verdade, não redutível ao conjunto ou a alguma das diversas opiniões, seja promovida em todos os âmbitos, e prevaleça sobre toda tentativa de relativizar-lhe as exigências ou de causar-lhe qualquer tipo de ofensa”. [Grifo do próprio documento] PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja (DSI), 198.

[11] Cf. https://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/211-218175739/32241-brasil-esta-entre-paises-com-maior-investimento-em-educacao (acesso 24/01/2017). https://www.brasil.gov.br/educacao/2015/11/brasil-e-pais-que-mais-investe-em-educacao-diz-ocde (acesso 24/01/2017). https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38205956 (acesso 24/01/2017). https://www.businessinsider.com/pisa-worldwide-ranking-of-math-science-reading-skills-2016-12 (acesso 24/01/2017).

[12] Catecismo da Igreja Católica, 1653; 2221; 2223. Sobre o direito e o dever dos pais de educar os filhos.

[13] ABREU, Cristiano Nabuco de; EISENSTEIN, Evelyn; ESTEFENON, Susana Graciela Bruno. (Coords.). Vivendo Esse Mundo Digital: impactos na saúde, na educação e nos comportamentos sociais. Porto Alegre: Artmed, 2013.

[14] O site http://www.essemundodigital.com.br/ aborda temáticas a esse respeito, inclusive apresentando pesquisas científicas e artigos escritos por profissionais da área. Aborda elementos negativos, mas também positivos sobre a internet e a educação.

[15] “(...) O estudo exige certamente ascese e abnegação constantes. Mas precisamente por este caminho a pessoa forma-se para o sacrifício e para o sentido do dever. De facto, o que hoje aprendeis é o que amanhã comunicareis, quando vos for confiado (...) cargos em benefício da comunidade. Aquilo que em qualquer circunstância poderá ser motivo de alegria para o vosso coração será a consciência de ter sempre cultivado a retidão de intenções, graças à qual se tem a certeza de ter procurado e feito unicamente a vontade de Deus. Sem dúvida, tudo isto exige purificação do coração e discernimento” (BENTO XVI. Discurso durante a visita a Pontifícia Universidade Gregoriana. 3.XI.2006).

[16] O site https://www.escolasempartido.org/ aborda a questão da doutrinação ideológica nas escolas.

[17] Longe de questionar a real necessidade das famílias com baixa renda, etc. queremos apenas mencionar o modo como as coisas são tratadas: as “condicionalidades” do programa contemplam matrícula e frequência, mas não um mecanismo para avaliar o rendimento escolar – como se este não se agregasse a real intervenção na situação de miséria.

[18] “O percentual da população alfabetizada funcionalmente foi de 61% em 2001 para 73% em 2011, mas apenas um em cada 4 brasileiros domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática”. Dados do INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional). In.: [Conferir: https://www.ecodebate.com.br/2012/07/19/apenas-um-em-cada-4-brasileiros-domina-plenamente-as-habilidades-de-leitura-escrita-e-matematica/  e https://alfabetismofuncional.org.br/alfabetismo-no-brasil/]

[19] “Para a reforma da sociedade “a tarefa prioritária, que condiciona o êxito de todas as demais, é a ordem educativa”. CONGREGAÇÃO PARA DOUTRINA DA FÉ. Instrução Libertatis conscientia, 99. Apud. PCJP.DSI, nota 433.

***

Texto de autoria do Padre Alexandre Alessio e retirado do link. Sobre o autor: Pe. Alexandre Alessio, CR - Religioso da Congregação da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo (CR). Concluiu os estudos de Filosofia no Instituto São Basílio Magno, Curitiba - PR, sua formação teológica ocorreu em Roma pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente é pároco da Paróquia Imaculada Conceição em Franco da Rocha, Diocese de Bragança Paulista - SP, local onde iniciou o Projeto de Evangelização Jesus ao Centro, sustentado pela Associação Bento XVI, da qual é o fundador.


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Princípios Fundamentais de Pedagogia - parte 1

Hugo de São Vítor. Teólogo
 e filósofo francês. Século XII.
Gravura do século XVII.

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DE PEDAGOGIA

Parte 1

Introdução Geral

1. Princípios fundamentais de pedagogia

O objetivo deste livro é o de apresentar uma concepção de pedagogia bastante diversa do que a maioria dos mais arrojados educadores modernos ousaria conceber.

E, não obstante isso, não se trata de uma utopia, como tantas que foram registradas nos anais da história da educação, nem apenas um projeto, mas algo que foi realidade durante gerações, não em alguma civilização distante, mas na Europa do século XII. E, no entanto, ainda apesar disso, a pedagogia aqui descrita transcende a época em que se realizou como fato histórico; ela pertence, pensamos também nós, ao número daquelas coisas que não passam mais. Foi por isto que demos a este livro o título simplesmente de Princípios Fundamentais da Pedagogia.

Procuramos descrever esta pedagogia através dos textos de um dos educadores daquela época, responsável que foi pela escola anexa ao mosteiro de São Vítor. Limitando-nos aos seus textos, porém, e à sua escola, não apresentamos apenas as idéias educacionais de um só homem, pois ele próprio é o primeiro que se esforça por apresentar em seus textos, nas suas linhas gerais, não as suas idéias pessoais, mas as da tradição em que vive e em que desenvolve o seu trabalho de educador.

A escola de São Vítor, de que foi responsável, tem sua origem em Paris, no fim do século XI, anexa à abadia de São Vítor. Desempenhou no século seguinte papel de elevada importância nos acontecimentos culturais e espirituais da Europa. Fundada por Guilherme de Champeaux, depois de alguns anos teve o nome de Hugo de São Vítor ligado a si própria de uma forma muito semelhante àquela pela qual no século seguinte o de S. Tomás de Aquino se ligaria aos inícios da história da ordem dominicana.

Hugo de São Vítor, o autor dos trabalhos traduzidos neste livro, nasceu provavelmente no ano de 1096 na Saxônia, atual território da Alemanha, onde recebeu sua primeira educação em uma escola monástica. De lá transferiu-se para Paris, o maior centro de estudos da Europa de seu tempo, ingressando no mosteiro de São Vítor, ainda há pouco tempo fundado por Guilherme de Champeaux.

Em 1125 tornou-se professor no mosteiro; em 1133, diretor da escola anexa; logo depois, também prior. Faleceu em São Vítor aos 11 de fevereiro de 1141.

Foi provavelmente o maior dos teólogos do século XII; assim como S. Tomás de Aquino, S. Boaventura, Pedro Lombardo, foi também professor de teologia. Pode parecer redundante hoje em dia acrescentar que um teólogo tenha sido professor de teologia; mas o fato é que os maiores teólogos antes da idade média não o foram.

Ao contrário, porém, de seus demais colegas medievais, Hugo de São Vítor, além de professor, foi também diretor de uma escola, de um dos principais centros de ensino superior do mundo de seu tempo e que, não obstante esta importância, mal acabava de ter sido fundada. Ambas estas características, a direção de uma escola deste porte juntamente com a sua recente fundação, iriam conferir à obra de Hugo de São Vítor contornos inexistentes nas de seus colegas.

Sua obra ocupa três volumes da Patrologia Latina de Migne, respectivamente, os volumes 175, 176 e 177. Para os que não conhecem a coleção, cada um destes livros tem aproximadamente o mesmo tamanho dos volumes da Enciclopédia Britânica; o que temos traduzido neste trabalho é, assim, bem menos do que um por cento da obra de Hugo.

Os trabalhos de Hugo de São Vítor, em uma primeira aproximação, podem ser divididos em quatro grupos: os exegéticos, os ascéticos, os dogmáticos e os pedagógicos. Para os fins deste trabalho, nos interessarão os dois últimos, e mais especialmente os pedagógicos.

Entre os trabalhos dogmáticos os principais são um breve tratado intitulado Summa Sententiarum e outro bem maior, considerado a obra prima de Hugo, o De Sacramentis Fidei Christianae. Nesta última, o autor se propõe a expor o conteúdo teológico das Sagradas Escrituras, nela demonstrando uma capacidade de síntese e sistematização desconhecidas até então, comparáveis, em sua novidade, à especulação metafísico teológica contida nos trabalhos de Santo Anselmo. Ambas estas características seriam posteriormente assimiladas, aprofundadas e fundidas em um mesmo todo por São Tomás de Aquino na sua Summa Teologiae.

De maior interesse, porém, para o presente trabalho, são as obras pedagógicas de Hugo de São Vítor, únicas, talvez, em seu feitio, não só na idade antiga e média, como talvez mesmo em toda a história da pedagogia. Esta singularidade deve sua causa ao fato de que poucas vezes na história pode ter-se reunido, em uma só pessoa, uma inteligência notavelmente brilhante, uma vida de manifesta santidade, a vocação e a atividade docente e a direção de uma das mais importantes escolas do mundo que, não obstante a importância que já desfrutava, ainda estava em fase de formação. Por causa desta confluência de fatores, Hugo se viu obrigado não só a ensinar, mas também a explicar aos alunos como se deveria aprender, aos professores orientar como se deveria ensinar, e à escola como se deveria organizar.

O resultado desta conjunção de fatores foi o surgimento de alguma coisa que merece estar com pleno merecimento tanto na história da pedagogia como na história da espiritualidade: parece ser uma forma de ascese cujo lugar próprio é uma escola.

É um caso particularmente notável de uma pedagogia em que não há interferência destrutiva entre vida intelectual e vida espiritual, nem separação entre estas atividades como coisas independentes uma da outra. Ao contrário, cria-se propositalmente uma situação em que ambas agem entre si no sentido de se amplificarem mutuamente. Que estas duas coisas sejam mutuamente possíveis temos diversos exemplos históricos, entre os quais figuram, de um lado, o exemplo de São Tomás de Aquino, e de outro, o de Santo Antônio de Pádua.

Mas destes dois talvez o que fale mais alto seja o de Santo Antônio de Pádua. Quem conhece um pouco melhor a sua vida não pode deixar de ter a viva impressão de assistir a uma representação literal das palavras de Hugo de São Vítor escritas no fim de sua principal obra pedagógica:

"Olhai, vos peço,
o que seja a luz,
senão o dia,
e o que sejam as trevas,
senão a noite.

E assim como os olhos do corpo
tem o seu dia e a sua noite,
assim também os olhos do coração
tem o seu dia e a sua noite.

Três são os dias da luz invisível,
pelos quais se distingue o curso interior
da vida espiritual.

O primeiro é o temor,
o segundo é a verdade,
o terceiro é o amor".

2. Influência da escola de São Vítor.

Uma lista de quem passou ou esteve em contato com a escola de São Vítor pode dar uma idéia do papel que esta desempenhou no contexto do século XII.

Pedro Abelardo já era aluno de Guilherme de Champeaux quando este ensinava na escola anexa à catedral de Notre Dame. Após Guilherme ter abandonado a escola catedralícia para fundar o mosteiro de São Vítor, consta Pedro Abelardo ainda ter continuado a ser seu aluno.

Após a fundação de São Vítor, São Bernardo de Claraval fez questão de ser ordenado sacerdote por Guilherme de Champeaux, já bispo. Conserva-se até hoje na Patrologia Latina de Migne uma troca de correspondência entre São Bernardo e Hugo de São Vítor acerca de matéria teológica.

Em 1134 São Bernardo escreveu uma carta ao superior de São Vítor pedindo que o mosteiro recebesse como hóspede o jovem Pedro Lombardo até o dia da festa da natividade de Maria. O jovem, porém, não voltou mais. Ficou em Paris até morrer, quase trinta anos depois, em 1160, ocupando o cargo de bispo daquela cidade. Ao que tudo indica, Pedro Lombardo foi aluno de Hugo de São Vítor; antes de ter sido nomeado bispo de Paris, ensinou teologia na escola anexa à catedral de Notre Dame onde já antes havia ensinado Guilherme de Champeaux. Enquanto professor em Notre Dame, redigiu os célebres Quatro Livros das Sentenças, que no século seguinte se tornaria livro a ser obrigatoriamente comentado por todos os candidatos ao doutoramento em teologia. Os primeiros trabalhos teológicos de São Boaventura e São Tomás de Aquino foram comentários aos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo, texto tornado básico para o ensino e aprendizado da teologia no século XIII.

A influência de Hugo de São Vítor na teologia posterior exerceu-se também através de sua obra mais extensa, o De Sacramentis Fidei Christianae, aproximadamente traduzível por Os Mistérios da Fé Cristã, uma obra de síntese como até então não havia surgido no cristianismo. Esta obra foi o primeiro exemplo e o precursor de todas as Summas Teológicas que iriam aparecer logo em seguida. Tomás de Aquino e Boaventura testemunham, conforme veremos, terem estudado e muito se aproveitado das obras de Hugo.

Discípulo de Hugo de São Vítor e seu sucessor na escola São Vítor foi também Ricardo de São Vítor, contado, juntamente com ele, entre os grandes teólogos do século XII.

Consta que na época em que Ricardo de São Vítor era prior de São Vítor, foi ali que S. Thomas Beckett, o arcebispo da Cantuária expulso da Inglaterra pelo Rei Henrique VII, foi buscar seu primeiro refúgio.

Em relação aos futuros povos de língua portuguesa, nos séculos XII e XIII o principal centro lusitano de estudos era o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, dos Cônegos Agostinianos, onde por mais de uma década estudou Santo Antônio de Pádua antes de transferir-se à ordem franciscana. Os principais professores de Santa Cruz de Coimbra haviam estudado em São Vítor no século XII e organizado os estudos de Coimbra segundo o modelo da escola de São Vítor. Apesar de não ter estado nunca em Paris, pode-se dizer que a formação de Antônio de Pádua foi, não só do ponto de vista da doutrina teológica, como também do ponto de vista ascético e pedagógico, baseado no modelo de São Vítor, cuja doutrina, ascese e pedagogia haviam sido moldados por Hugo.

No ano de 1190 o rei de Portugal Dom Sancho I fundou uma bolsa permanente de manutenção para os clérigos de Coimbra que iam estudar em Paris. Durante o século XIII, quando já havia sido fundada a Universidade, consta que os clérigos portugueses que se aproveitavam desta bolsa para estudarem na Universidade de Paris hospedavam-se no mosteiro de São Vítor durante sua permanência em território francês.

3. Obras pedagógicas de Hugo de São Vítor.

Hugo de São Vítor escreveu três obras que a nosso ver podem ser classificadas como estando entre as obras de caráter mais nitidamente pedagógico.

A primeira delas é o opúsculo intitulado Sobre o Modo de Aprender e de Meditar*; a segunda é o opúsculo Sobre a Arte de Meditar; e a terceira e mais conhecida é um verdadeiro tratado sobre a pedagogia da época, conhecido como Didascalicon.

O Didascalicon é dividido em seis ou sete livros, de acordo com a edição. Alguns editores, como foi o caso na Patrologia Latina de Migne, apresentam todos os sete livros como sendo uma só obra. Outros editores julgam que o Didascalicon termina no livro sexto; e que o sétimo é na verdade um tratado à parte, denominado De Tribus Diebus, o Tratado dos Três Dias. Seja como for, ambas as obras são de Hugo, e uma é a continuação natural da outra.

4. Uma pedagogia centrada no aluno.

A primeira impressão que temos ao analisar as obras pedagógicas de Hugo de São Vítor é o fato de todas elas se dirigirem, na íntegra, ao aluno; não ao professor, para quem nada têm a dizer sobre organização escolar; não a mais ninguém, senão unicamente ao aluno, não obstante a tarefa de Hugo fosse a de organizar a escola em todos os seus aspectos.

Esta aparente enorme lacuna se explica pelo fato de que a pedagogia no século XII era manifestamente centrada no aluno e não no professor.

Em dois textos do século XIII, geralmente mais conhecidos entre os estudiosos modernos do que as obras de Hugo de S. Vítor, São Tomás de Aquino (1) afirma que no ensino o professor não pode, por necessidade ontológica, ser a causa principal do conhecimento. Esta causa é a atividade do aluno; o papel do mestre não é o de infundir a ciência, mas a de auxiliar o discípulo. "Assim como o médico é dito causar a saúde no enfermo através das operações da natureza, assim também o mestre", diz Tomás de Aquino, "é dito causar a ciência no discípulo através da operação da razão natural do discípulo, e isto é ensinar" (2) . Se o mestre tentar seguir uma conduta diversa, diz ainda Tomás, o resultado será que ele "não produzirá no discípulo a ciência, mas apenas a opinião ou a fé" (3).

Nos textos de São Tomás de Aquino estas conclusões são deduzidas a partir de princípios da filosofia aristotélica; como, porém, quando muito, dificilmente se conhece atualmente da pedagogia desta época, alguma coisa além destes dois textos, torna-se difícil ao homem de hoje imaginar ao que S. Tomás de Aquino estava se referindo na prática.

Os textos de Hugo de S. Vítor fornecem em parte uma ilustração para tais princípios. Ao redigir uma série de textos para organizar os métodos educacionais que seriam usados em sua escola, Hugo não dirigiu quase uma única palavra aos professores, e sim aos alunos. É exatamente o contrário do que vemos na literatura pedagógica do século XX: toda a literatura sobre metodologia é escrita para a leitura do professor, não do aluno. Aquele era um ensino centrado no aluno; este, embora às vezes se diga o contrário, é um ensino centrado no mestre.

Os resultados destes modos diversos de encarar a pedagogia são também diversos. O primeiro, encontrado no mestre, tende a tornar-se uma transferência mecânica de conhecimento do professor para o aluno; o segundo, centrado no aluno, tende a tornar-se uma aventura do espírito. A escola centrada no mestre só irá produzir um discípulo melhor do que o mestre por acaso, quando o discípulo, apesar do método utilizado, puder fugir espontaneamente às regras desta pedagogia; a escola centrada no aluno tende a produzir por sua natureza um certo número de alunos melhores do que o mestre. Consequência destes fatos é que os professores da escola centrada no mestre são, no que depende da escola, a cada geração possuidores de um nível cada vez mais baixo, enquanto que na escola centrada no aluno a tendência é a oposta.

É um fato conhecido na história da educação que desde a renascença, quando o centro de gravidade do ensino passou a deslocar-se, todas as gerações sempre têm reclamado que o nível do ensino estava caindo, e que o ensino na geração anterior era melhor do que o então ministrado. Tal constatação pode parecer à primeira vista paradoxal, porque, pensamos nós, se isto fosse realmente verdade, após tanto tempo, há muito que o ensino teria sido totalmente pulverizado. A explicação para este fenômeno é que realmente houve muitos momentos históricos desde então em que o ensino não só não decaiu, como inclusive subiu de nível, e às vezes acentuadamente. Mas, se isto aconteceu, não se deveu a fatores internos à pedagogia, e sim a contingências externas ao método educacional: a fundação, por exemplo, de uma nova ordem religiosa; uma reforma educacional; os decretos de algum príncipe. Nestes momentos dava-se uma melhora da qualidade de ensino para, a partir daí, entregue às suas forças intrínsecas, cair gradualmente sem perspectiva aparente de reversão, senão por uma nova interferência externa.

5. Um princípio básico da educação vitorina.

Uma das idéias fundamentais em torno da qual construiu-se a pedagogia vitorina está contida no opúsculo sobre o modo de aprender e de meditar.

Nele, Hugo afirma que há três operações básicas da alma racional, as quais constituem entre si uma hierarquia, e que devem, portanto, ser desenvolvidas uma em sequência à outra.

A primeira ele a denomina de pensamento. A segunda, de meditação. A terceira, de contemplação.

O pensamento ocorre, diz Hugo, "quando a mente é tocada transitoriamente pela noção das coisas, ao se apresentar a própria coisa, pela sua imagem, subitamente à alma, seja entrando pelo sentido, seja surgindo da memória".

Entre os ensinamentos de Hugo de São Vítor entra aqui o papel que a leitura adquire na pedagogia. A importância da leitura reside em que ela pode ser utilizada para estimular a primeira operação da inteligência que é o pensamento. Mas ao mesmo tempo a limitação da leitura está em que ela não pode estimular as operações seguintes da inteligência, a meditação e a contemplação, a não ser indiretamente, na medida em que a leitura estimula o primeiro estágio do pensamento que é pressuposto dos demais. Isto significa que requer-se uma teoria da leitura em que o mestre saiba utilizar-se dela para produzir o pensamento, e ao mesmo tempo compreenda que há outros processos mentais mais elevados que devem também ser desenvolvidos mas que podem vir a ser impedidos por uma concepção errônea por parte do mestre que não conseguisse compreender que estes não dependem mais diretamente da leitura. A importância do assunto é tão grande que os seis primeiros livros do Didascalicon serão dedicados à teoria da leitura.

A segunda operação da inteligência, continua Hugo, é a meditação. A meditação baseia-se no pensamento, e é "um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento, esforçando-se para explicar algo obscuro, ou procurando penetrar no que ainda nos é oculto".

O exercício da meditação, assim entendido, exercita o engenho. Como a meditação, porém, se baseia por sua vez no pensamento e o pensamento é estimulado pela leitura, temos na realidade duas coisas que exercitam o engenho: a leitura e a meditação.

Segundo as palavras de Hugo, "na leitura, mediante regras e preceitos, somos instruídos a partir das coisas que estão escritas. A leitura também é uma investigação do sentido por uma alma disciplinada. A meditação toma, depois, por sua vez, seu princípio da leitura, embora não se realizando por nenhuma das regras ou dos preceitos da leitura. A meditação é uma cogitação frequente com conselho, que investiga prudentemente a causa e a origem, o modo e a utilidade de cada coisa".

Mas acima da meditação e baseando-se nela, existe ainda o que Hugo chama de contemplação. Ele explica o que é a contemplação e no que difere da meditação do seguinte modo:

"A contemplação é uma visão
livre e perspicaz da alma
de coisas que existem em si
de modo amplamente disperso.

Entre a meditação e a contemplação
o que parece ser relevante
é que a meditação é sempre de coisas ocultas
à nossa inteligência;
a contemplação, porém, é de coisas que,
segundo a sua natureza,
ou segundo a nossa capacidade,
são manifestas;
e que a meditação sempre se ocupa
em buscar alguma coisa única,
enquanto que a contemplação se extende
à compreensão de muitas,
ou também de todas as coisas.

A meditação é, portanto,
um certo vagar curioso da mente,
um investigar sagaz do obscuro,
um desatar o que é intrincado.

A contemplação é aquela vivacidade da inteligência,
a qual, já possuindo todas as coisas,
as abarca em uma visão plenamente manifesta,
e isto de tal maneira que aquilo que a meditação busca,
a contemplação possui".

Estas passagens do Opúsculo sobre o Modo de Aprender mostram um dos pontos básicos da pedagogia de Hugo, o de levar o discípulo do pensamento à contemplação. Em outras partes de sua obra ele abordará o modo como isto pode ser feito.

Mas antes que tratemos deste outro aspecto da questão, cumpre fazer a seguinte pergunta, importantíssima para os educadores de hoje. Um dos maiores pensadores educacionais brasileiros de nosso século, Anísio Teixeira, escreveu em um famoso livro intitulado Educação para a Democracia exatamente as seguintes palavras:

"A vida já não é governada
pelos velhos índices de intelectualidade
herdados da idade média.

Hoje todos têm que produzir.

Técnicas científicas e industriais
sobrepuseram-se aos encantamentos da vida do espírito.

Precisamos sentir o problema da educação
conforme ele é,
um processo pelo qual a população se distribui
pelos diferentes ramos do trabalho diversificado
da sociedade moderna" (4).


Ora, Hugo de S. Vítor desenvolve uma pedagogia que desemboca em uma atividade chamada contemplação que se ocupa, conforme ele próprio diz, de coisas que já nos são manifestas. Mas se nos são já manifestas, por que se ocupar ainda nelas? Poderá uma educação assim ter ainda alguma justificativa na sociedade moderna?

Hugo provavelmente responderia a esta pergunta com três argumentos.

Em primeiro lugar, a contemplação se ocupa, é verdade, de coisas já manifestas, e o homem moderno, ocupado em seu utilitarismo imediato, geralmente não percebe as vantagens de se cultivar uma qualidade destas. Pelo fato de se ocupar com coisas manifestas, a contemplação, conforme disse Hugo, não se ocupa em buscar "alguma coisa única, mas se estende à compreensão simultânea de muitas ou também de todas as coisas". Ora, é evidente que esta é a atividade fundamental que está por trás de todas as grandes sínteses filosóficas da história, como as obras de Aristóteles, de Tomás de Aquino, e outras. É evidente que é também esta a atividade fundamental que está por trás das grandes sínteses científicas, como a física Newtoniana e a Teoria da Relatividade. É evidente que esta é a operação intelectual fundamental que deveria estar por trás também de outras atividades tão vivamente exigidas nos dias de hoje como a correta orientação política de uma nação e até mesmo o ordenamento plenamente consciente de um sistema educacional. Em suma, é a contemplação, e não a análise, a atividade básica das mais fundamentais conquistas do pensamento humano em todos os tempos. Foi também, evidentemente, a atividade fundamental que estava por trás do monumento do pensamento que foi em sua época o tratado De Sacramentis Fidei Christianae, uma obra de síntese e sistematização em teologia como até aquela época, conforme já mencionamos, ainda não havia aparecido igual.

Obras filosóficas e sínteses deste porte ainda surgem hoje em dia; mas a diferença é que hoje em dia elas aparecem apesar das escolas, enquanto que na época da escola de São Vítor e na época em que Aristóteles estudou com Platão elas surgiam por causa das escolas. O tipo de gênio que havia em Newton e em Einstein foi desenvolvido por eles próprios sem que, entretanto, o soubessem desenvolver em seus alunos. Na escola de Platão, o gênio do mestre soube reproduzir-se em Aristóteles, e na de São Vítor o gênio de Hugo soube reproduzir-se em Ricardo, e, menos diretamente, em diversos contemporâneos que reproduziram seu sistema de ensino.

Mas, ademais, em segundo lugar, não é necessário produzir obra alguma para que a contemplação seja alguma coisa de enorme importância para o homem. A contemplação sempre foi colocada em todas as épocas da história, com exceção, talvez, da idade moderna, como o mais significativo elemento de enobrecimento da mente humana, algo que não precisava de nenhuma justificativa além de si mesma para ser cultivada. Esta foi a posição de todos os principais filósofos gregos. No cristianismo, também, a experiência religiosa dos primeiros Santos Padres apontou esta capacidade como sendo elemento fundamental para a compreensão profunda das grandes verdades do cristianismo, apesar de, e isto é significativo, em nenhuma parte das Sagradas Escrituras esta capacidade ser descrita nos termos empregados por Hugo de São Vítor. Esta afirmação dos Santos Padres tem sua similar nos antigos filósofos gregos quando estes também colocaram que nenhum dos problemas existenciais básicos do ser humano pode ser convenientemente abordado sem ser por este meio.

Estes dois motivos talvez já bastassem, mas existe ainda um terceiro para Hugo de S. Vítor que talvez seja o mais importante. É que, ao contrário do que parece dar a entender o opúsculo sobre o modo de aprender, a contemplação não é ainda a meta final da pedagogia. Assim como a meditação se fundamenta no pensamento, e a contemplação se baseia na meditação, outras operações se baseiam, por sua vez, na contemplação. Estas, porém, são tratadas em outros trabalhos de Hugo.

6. A presente tradução.

Na presente tradução encontramos, primeiramente, o opúsculo Sobre o Modo de Aprender e de Meditar. Nele encontramos expostos a sequência das fases do aprendizado do pensamento, intimamente relacionado com a leitura, à meditação e desta à contemplação. Nele encontramos também vários conselhos relativamente à leitura.

Em outras obras de Hugo encontramos uma explicação mais pormenorizada sobre cada uma destas fases.

A teoria da meditação é encontrada num opúsculo intitulado Sobre a Arte de Meditar, cuja tradução vem em seguida à do modo de aprender e de meditar.

A contemplação é exposta no livro sétimo do Didascalicon, cuja tradução vem em seguida à da arte de meditar.

Os seis primeiros livros do Didascalicon, não traduzidos neste trabalho senão em parte, se ocupam mais extensamente com o problema da leitura. Os três primeiros tratam da leitura e do estudo dos temas que hoje chamaríamos de profanos; os três últimos tratam da leitura e do estudo das Sagradas Escrituras.

Em ambas estas partes aborda-se o problema da leitura tanto do ponto de vista sobre o que ler, como sobre de que modo ler.

Nos três primeiros livros, em relação a o que ler, Hugo expõe o conteúdo das artes liberais, isto é, as dos ciclos de estudos denominados na idade média de trivium e quadrivium. O trivium, introdução ao quadrivium, constituía-se de gramática, retórica e lógica. O quadrivium, introdução aos estudos superiores, constituía-se de matemática, geometria, astronomia e música. Hugo também expõe o conteúdo de outras artes além destas. Quanto ao problema de como ler, o conteúdo dos três primeiros livros do Didascalicon parece-se muito com o Opúsculo sobre o Modo de Aprender. Os três livros restantes do Didascalicon ocupam-se com a leitura e o estudo das Sagradas Escrituras.

Neste trabalho traduzimos integralmente o livro sétimo do Didascalicon que versa sobre a contemplação. Precedemos a tradução deste sétimo livro de passagens tiradas dos livros primeiro e segundo, sobre o caráter da filosofia, e do livro quinto e sexto, passagens todas que pudessem servir para introduzir o assunto contido no sétimo, reproduzindo-lhe algo do contexto relevante dos livros anteriores.

A omissão quanto ao conteúdo de cada arte e das Escrituras Sagradas, consideravelmente extensa, foi proposital. Já existem traduções em línguas modernas dos seis primeiros livros do Didascalicon, tal como a em língua inglesa de 1961 devida a Jeromy Taylor e publicada pela Columbia University Press; quanto aos três textos aqui traduzidos, entretanto, não nos consta existir tradução alguma.

Por outro lado, estes três textos formam uma sequência muito bem concatenada: interrompê-la, traduzindo os seis primeiros livros do Didascalicon na íntegra e introduzindo assim uma enorme massa de material sobre um aspecto bastante diverso, embora da mesma questão que temos em pauta, seria dificultar ainda mais o acesso a uma concepção de pedagogia que é, já sem isto, bastante difícil para a compreensão do homem moderno.

Precedendo os três trabalhos de Hugo, intitulados, pois, Sobre o modo de Aprender e de Meditar, Sobre a Arte de Meditar, e o último, que neste trabalho pode ser encontrado sob o nome de Tratado dos Três Dias, temos ainda uma tradução condensada da introdução de Monsenhor Hugonin sobre a Fundação da Escola de São Vítor que precede as obras de Hugo no volume 175 da Patrologia Latina de Migne.


Referências

(1) São Tomás de Aquino: Summa Theologiae, Prima Pars, Q. 117, a. l. São Tomás de Aquino: Quaestiones Disputatae de Veritate, Quaestio 11, a. 1.
(2) São Tomás de Aquino: Quaestiones Disputatae de Veritate, Q. 11 a. 1.
(3) São Tomás de Aquino: idem.
(4) Anísio Teixeira: Educação para a Democracia. Anísio Teixeira: Bases para uma programação da Educação Primária no Brasil, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.

Texto retirado do Link.

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