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A Educação Doméstica no século XIX


A educação doméstica no Brasil de oitocentos

Maria Celi Chaves Vasconcelos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Universidade Católica de Petrópolis

Resumo

O presente artigo é uma reflexão a partir do livro A Casa e os seus Mestres: a educação no Brasil de Oitocentos (VASCONCELOS, 2005), no qual é apresentada a trajetória da educação doméstica, sistema utilizado pelas elites para a educação de seus filhos no século XIX. Este artigo pretende demonstrar como a educação realizada em casa foi uma modalidade reconhecida de educação durante o Oitocentos e, de que forma, nesse mesmo período a escola estatal vai adquirindo sua oficialidade e se tornando obrigatória, destituindo a educação doméstica do seu lugar reconhecido de formação e instrução. São abordados ainda, aspectos da prática da educação nas casas, como as características de seus agentes, a configuração dos espaços utilizados e os métodos de ensino adotados.

Palavras-chave: Educação doméstica. Escola estatal. Mestres. Professores particulares. Preceptores. Elites. Brasil oitocentista.

The home education at home in Brazil of the 19th century

Abstract

This article is a reflection about the book The House and its Masters: the education in Brazil of the Eighteen (VASCONCELOS, 2005), in which is presented the trajectory of the education at home, system used by the elites to educate their children in the 19th century. The text intends to demonstrate how the education held at home was a recognized meaning of education during the 18th century and, in which way, in this same period the state school goes acquiring its official task and become obligatory, dismissing the education at home of its recognized place of children’s formation and instruction. The article also addresses to aspects of the educational practice in the houses, as the characteristics of its agents, the configuration of the used spaces and the adopted methods of education are still approached.

Keywords: Education at home. State school. Masters. Teachers and tutors private. Elites. Brazil of the 18th century.


Introdução

A partir do século XVIII, na Europa Ocidental, a educação doméstica realizada nas camadas abastadas da população vai deixando de ser privilégio apenas das crianças nobres para se tornar uma prática recorrente entre ricos comerciantes, altos funcionários e famílias de elite que se espelhavam nos hábitos da aristocracia. Esse movimento pela educação das crianças — a fim de que se preparassem melhor para a vida adulta ou, no caso dos meninos, para a ocupação das funções prioritárias na sociedade — converte-se em estatuto de progresso e ascensão social, ultrapassando os desígnios apenas das elites e surgindo como aspiração de outros extratos da população.

No Brasil, tais práticas vão se afirmar durante o Oitocentos, fazendo com que as classes mais favorecidas, que podiam prover a educação de seus filhos, utilizassem a educação doméstica não só para a educação elementar, ou seja, para o ensino da leitura, escrita e contas mas também para a continuidade da formação dos jovens, com conhecimentos específicos. Dessa forma, a educação era dirigida pelo poder privado e estava sob sua estrita responsabilidade.

Tendo em vista a importância que a educação assume no Brasil, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, o Estado Imperial, diante das perspectivas de ampliação da educação formal advindas da influência dos modelos europeus, inicia a sistematização da escolarização, há muito praticada pelas ordens religiosas que, porém, atuavam num universo reduzido, direcionando seus colégios para um público definido.

Sob a tutela do Estado Imperial, a educação escolar se dá na esfera pública em contraponto à educação doméstica que, aplicada à esfera privada, permanece nas elites como forma de resistência à inferência do Estado na educação e como diferencial ao projeto de escolarização das classes populares, evidenciando a divergência entre as expectativas de educação desses segmentos. Se a educação popular estava sob a tutela estatal, a das elites iria se diferenciar na medida em que se conserva distante desta intervenção.

No entanto, essa forma pacífica e generalista, organizada por classes, que o texto parece sugerir, estava marcada pelas especificidades de cada lugar, e na realidade, no Brasil, encontrava-se como um movimento efervescente que suscitava inúmeras discussões.

Os rígidos padrões morais da população, as dificuldades de acesso às poucas escolas existentes — por vezes, colocadas pelo próprio Estado — aliadas às limitadas expectativas da população e às necessidades de sobrevivência no Brasil Oitocentista, essencialmente rural, cujas terras eram divididas entre grandes proprietários, faziam com que grande parte da população desconhecesse a escola, não alimentando qualquer perspectiva quanto a ela ou qualquer interesse pelo seu “saber”. A realidade vivida pelas classes menos favorecidas era extremamente rude e precária, constituindo-se em uma luta diária pela sobrevivência, impedindo que se empreendessem meios de freqüência à escola.

Além disso, havia muitas restrições às idéias de democratização do ensino e elas confrontavam os limites políticos e culturais típicos de uma sociedade escravista, autoritária e baseada nas desigualdades sociais. O Estado Imperial tinha presença muito pequena no que tange à instrução, até porque a própria escola não havia se firmado detentora de um lugar social legítimo. Eram contestáveis a sua existência e necessidade.

Algumas províncias, já na primeira metade do século XIX, estabeleceram leis que tornavam obrigatória a freqüência da população livre à escola. Porém, eram muitos os limites enfrentados para a concretização de tais ordenamentos legais. Aos obstáculos culturais, políticos e sociais relacionados à sociedade escravista e desigual se somavam a falta de orçamento nas províncias para um investimento que demandava amplos recursos para a concretização da universalização da instrução e que, ainda, teria de acarretar profundas mudanças nos hábitos na população.

Nesse contexto, favoreceu-se a educação doméstica, para a qual se voltaram os pais desejosos de garantir a instrução de seus filhos. Tratavam de aplicá-la eles mesmos, ou se socorriam dos préstimos de algum parente ou do capelão da paróquia local. As famílias mais abastadas podiam contratar mestres para lhes ensinar, especialmente as primeiras letras. Villalta sinaliza que:

A instrução na Colônia processava-se, assim, em grande parte, no âmbito do privado, preenchendo o vazio da escola pública e semipública inexistente ou escassa; quando se ultrapassavam os domínios da informalidade, estabelecendo-se vínculos formais entre professor e aprendizes, criava-se um ambiente se não tipicamente escolar, ao menos muito próximo de sê-lo. (VILLALTA, 1997, p. 357).

Para Faria Filho (2000, p. 138), há indícios de que a rede de escolarização doméstica atendia a um número de pessoas bem superior ao da rede pública: “Essas escolas, às vezes chamadas de particulares, outras vezes de domésticas, ao que tudo indica, superavam em número, até bem avançado o século XIX, aquelas cujos professores mantinham um vínculo direto com o Estado.”

Apesar da fragilidade e precariedade dos dados estatísticos, que, de forma muito precária, quase sempre se referem à instrução primária mantida pelo Estado, deixando de lado um significativo número de escolas sem nenhuma ligação com o mesmo, tais dados, bem como a crescente instituição de estruturas administrativas, dão-nos mostras de que em várias províncias do Império existiam significativas redes de escolas públicas, privadas ou domésticas. (FARIA FILHO, 2000, p. 138).

O autor acrescenta que “[...] a instituição escolar não surge no vazio deixado por outras instituições [...]” mas enfrentando outras formas tradicionais de educação que eram praticadas. (FARIA FILHO, 2000, p. 136).

Nesse sentido, constata-se — desde a Colônia, avançando por todo o século XIX — a importância da educação doméstica, pela quais crianças e jovens, filhos, parentes e agregados de famílias abastadas, como os cafeicultores do Vale do Paraíba fluminense recebiam educação nas suas próprias casas, com a contratação de mestres, professores particulares, preceptores ou até mesmo por parentes que habitavam na mesma casa.

Tais práticas podem-se afirmar com base em inúmeras fontes relativas ao período indicado, foram majoritárias na educação de crianças e jovens das elites durante a primeira metade do século XIX e permaneceram como uma forma reconhecida de educação até o limiar da República. Mesmo à medida que a escola se instituía e se afirmava em sua legitimidade, a educação doméstica continuava como um diferencial das classes mais favorecidas.

Os agentes da educação doméstica

Segundo Vasconcelos (2005), não havendo um estatuto formal e não podendo ser tratada como uma prática uniforme, a educação doméstica, como modalidade de educação, pode ser caracterizada conforme a atuação de seus agentes, levando em conta que suas práticas ora se mesclavam, ora se encontravam casos isolados que não se situam em nenhuma das formas descritas, ou até aproximam-se de todas.

Os professores particulares, também chamados de mestres particulares ou mestres que davam lições “por casas”, eram mestres específicos de primeiras letras, gramática, línguas, música, piano, artes e outros conhecimentos, que visitavam as casas ou fazendas sistematicamente, ministrando aulas a alunos membros da família, ou agregados, individualmente. Não habitavam nas casas, mas compareciam, para ministrar as aulas, em dias e horários pré-estabelecidos. Eram pagos pela família pelos cursos que ministravam.

Os preceptores eram mestres ou mestras que moravam na residência da família, às vezes, estrangeiros, contratados para a educação das crianças e jovens da casa (filhos, sobrinhos, irmãos menores). Os mestres preceptores caracterizavam-se pelo fato de viverem na mesma casa de seus alunos, constituindo-se, assim, dentro da realidade da educação doméstica, naqueles que parecem ter tido o maior custo para as famílias, sendo encontrados nas classes mais abastadas.

Havia, ainda, encarregados da educação doméstica, membros da própria família, mãe, pai, tios, tias, avós, ou até mesmo o padre capelão, que ministravam aulas no espaço da própria casa, não tendo custo algum e atendendo apenas às crianças daquela família ou parentela.

Apesar da nomenclatura e das circunstâncias diferenciadas de educação, todos eram tratados por “mestres”.

Homens e mulheres podem ser encontrados tanto como professores particulares como preceptores, entretanto, a preceptoria, por sua característica de moradia na casa dos alunos, era comumente exercida por mulheres, especialmente estrangeiras, que, por vezes, já vinham para o Brasil com a finalidade de exercer tais funções.

Nas Casas da aristocracia brasileira, a posição de mestres de meninos e meninas, durante a primeira metade do século XIX, gozava de uma relativa importância social, que se referia, na maioria das vezes, à condição da família em que atuavam e as habilidades que podiam ensinar.

Essa importância atribuída ao lugar de professores particulares ou de preceptores pode ser demonstrada, entre outros, pelo hábito observado em muitos anúncios dos jornais da época, especialmente até o final da década de 1860, nos quais os indivíduos que ofereciam seus préstimos, tanto homens como mulheres, indicavam o seu nome e a sua morada, tornando pública a sua ocupação.

A posição vantajosa ocupada pelos mestres das Casas, aumentava, assim como o seu reconhecimento e privilégios eram maiores, conforme a posição social e a fortuna que seus patrões possuíssem. Portanto, era contada como uma excelente referência do professor particular ou preceptor, a posição dos patrões para os quais já haviam trabalhado. Dessa forma, era um diferencial dentro das funções de mestres das Casas, trabalhar como professor particular ou preceptor em uma família nobre ou ainda ter educado filhos de personalidades destacadas no cenário político e econômico do Império.

As funções de professores particulares e preceptores também estavam submetidas a determinados critérios, sendo que nem todos os candidatos que se ofereciam, poderiam ser considerados aptos a educar os filhos das famílias abastadas. Nesse sentido, muitas vezes, eram solicitadas aos candidatos inúmeras referências pessoais, que iam desde a aparência física até a condição social em que se encontravam.

Empregando-se para “educar” meninas e meninos, dominando os diversificados conhecimentos exigidos para tal e ocupando um cargo ambicionado por estrangeiros que vinham para o Brasil, os professores particulares e os preceptores não poderiam ser desprovidos de um lugar representado como privilegiado nas estruturas sociais existentes. Entretanto, havia um limiar muito tênue entre o respeito e reconhecimento a sua posição social e à condição de empregados das elites, tratados como tal.

Nesse sentido, podem ser observadas preocupações por parte dos agentes da educação doméstica, principalmente as preceptoras, pois eram aquelas que mais ficavam submetidas à casa e aos patrões, levando-as a certificar-se do lugar que ocupariam e do tratamento que receberiam dos seus senhores.

À elite, a educação doméstica parece ter sido uma prática imprescindível, considerando-se, nesse período, um diferencial social, a educação passar pela casa. Dessa forma, mesmo aqueles cujos filhos freqüentavam algum colégio, ou aqueles que educavam, eles próprios, os filhos, em determinado momento, necessitavam dos serviços de professores particulares ou preceptores, seja para completar a educação recebida ou para a aprendizagem de alguma atividade específica.

Os agentes da educação doméstica também funcionavam como solução para aqueles que, por escolha ou por custos, tendo optado pelo colégio, não haviam conseguido dele os resultados esperados, vendo-se obrigados a recorrer aos serviços dos mestres das casas.

Tornando-se populares na Corte, ao longo do século XIX, os professores particulares, por vezes, eram bastante conhecidos, principalmente considerando-se que mesmo a cidade do Rio de Janeiro, durante o Oitocentos, tinha ares provinciais e conservava traços característicos dos vilarejos e aldeias do interior, com tipos caricatos, bem ilustrados na literatura, entre os quais, provavelmente, figurava o mestre ou professor.

O tempo na função de mestre das Casas parece ter sido, ainda, um atrativo que se constituía como uma distinção entre os sujeitos que atuavam na educação doméstica. Desse modo, a idade era um diferencial para a escolha dos pretendentes ao cargo de professores particulares ou preceptores das famílias, pois considerava-se que, quanto mais idosos, mais adequados os sujeitos a essa função. Cabe observar que a faixa etária a partir dos 30 anos, já era vista como de “meia-idade.” (ANÚNCIOS, 1869).

A partir do final da década de 1870, observa-se um princípio de concorrência explícita entre os anúncios de professores particulares e preceptores, provavelmente, causada pelo grande número existente de pessoas dedicadas à educação doméstica. Assim o preço dos serviços prestados de educação nas casas, passam a ser informados, como também os aspectos valorizados anteriormente.

Além das vantagens da educação doméstica ser praticada nas casas a um número reduzido de alunos, sem intermediações relativas ao pagamento, os serviços eram melhor remunerados se analisados na proporção das possibilidades de ganho, já que, na educação doméstica, os professores particulares, poderiam, por exemplo, ensinar em várias casas. Quanto aos preceptores, além de receberem um valor maior anual, podiam residir na casa de seus alunos, reduzindo as suas despesas pessoais.

Na educação doméstica, quanto mais diversificadas as matérias ensinadas pelo professor, maiores eram as chances de ser contratado pelas famílias, principalmente aquelas que utilizavam preceptores, bem como mais vantajosa a remuneração pelos serviços.

Em relação aos conhecimentos ensinados na educação doméstica, algumas vezes, eram encarregados diferentes professores particulares, atendendo aos desejos da família que os contratava, pois eram os pais que escolhiam, entre as matérias consideradas importantes, aquelas mais adequadas aos seus interesses, para que fossem ministradas aos seus filhos e, a partir daí, procediam à colocação de anúncios solicitando professores habilitados para tal, ou então, selecionavam, entre os anúncios existentes, aqueles que lhes pareciam mais apropriados a seus filhos, tratando da contratação dos mestres.

Assim, são oferecidos para a educação doméstica, além de “primeiras letras” e “instrução primária” —, caracterizadas como o ensino da escrita, leitura e contas —, ensinamentos de português e francês prioritariamente, seguidos de latim, inglês, alemão, italiano, espanhol, caligrafia, literatura, composição, religião, música, piano, solfejo, canto, rabeca, gramática portuguesa, latina, francesa e inglesa, lógica, matemática, geometria, aritmética, álgebra, contabilidade, escrituração mercantil, física, botânica, história universal, história do Brasil, geografia, desenho, pintura e aquarela.

Para as meninas, havia conhecimentos específicos a serem aprendidos como bordar, coser, marcar, cortar, dançar, trabalhos de agulha, caia a ouro, prata, matiz e escama de peixe, tricot, filot, flores, obras de fantasia, recortar estofos, veludos e outros trabalhos manuais, que eram oferecidos para serem ministrados por professores particulares e preceptores, juntamente com algumas das demais matérias citadas.

Espaços utilizados: a arquitetura da educação doméstica

No modelo de religiosidade que imperava no Brasil, atribuía-se um santo protetor a todos os ofícios, o que sugere que a análise dos padroeiros pode ser indicativa das atividades comumente exercidas nesse período.

Assim, encontramos em Villalta (1997, p. 358) referência a Sant’Ana como “[...] modelo inspirador das mães-mestras, particularmente comuns numa colônia em que escasseavam os professores de primeiras letras.”

Dessa forma, nas salas, onde ocorriam as lições, era comum que houvesse uma imagem de Sant’Ana, que, além do simbolismo da educação virtuosa dada a Maria, ainda demonstrava uma constante vigilância das atitudes de alunos e mestres.

Como a educação se dava na casa, principalmente em se tratando de fazendas distantes, as salas de lições, muitas vezes, possuíam a organização e decoração de um espaço físico doméstico para a leitura, ensinamentos e o armazenamento de livros e manuscritos.

Ao descrever as bibliotecas privadas, seus ambientes específicos e volumes armazenados, Villalta (1997) aponta a existência desses espaços, desde o Período Colonial, nas casas das elites econômicas e intelectuais, cujas salas de leitura e guarda de livros, possivelmente, eram também utilizadas para ensinamentos. Além de espaços de leitura e escrita, que vão tomando forma e mobília, algumas casas contavam com objetos para esse fim, como lupas, cavaletes, estantes, tinteiros, penas, papeleiros, escrivaninhas, com as paredes, por vezes, decoradas com mapas ou outros desenhos para estudos ou ilustração.

As casas possuíam ainda seus próprios instrumentos de castigos, que eram oferecidos ao professor ou preceptor, para quando sua utilização fosse necessária, ficando expostos nas salas onde se davam as lições, para depois serem guardados numa pequena dispensa junto aos aparelhos de tortura dos escravos, formando o arsenal com que a Casa impunha o seu poder aos seus habitantes. Entre esses eram bastante utilizados a “[...] ‘palmatória de pão’, a ‘palmatória de balêa’, o ‘azorrague’, as ‘corrêas’, as ‘cordas’, ‘a vara de marmeleiro’.” (VASCONCELOS, 2005, p. 87).

Os métodos de ensino

A educação doméstica, bem como a escola estatal emergente, utilizavam o método de ensino individual, que consistia no atendimento específico a cada aluno, mesmo quando o professor tinha vários alunos na classe.

O método individual foi, sem dúvida, o mais usado na educação de Oitocentos, e como não poderia deixar de ser, o mais adequado à educação doméstica. Nele cada aluno era atendido individualmente pelo professor, não só no que tange a conhecimentos ensinados, mas também na observação de seus progressos e recuos, bem como, na aplicação das “sabatinas” e “tomadas de lição ou ponto.” (VASCONCELOS, 2005, p. 91).

Em dezembro de 1855, o jornal A Semana publicava, em sua parte literária, uma exposição dos métodos de ensino mais conhecidos no Brasil para o Ensino Primário, fazendo uma análise da aplicação do método individual:

O método individual tem muitas vantagens preciosas. Por via dele o preceptor, ou professor contrai um íntimo conhecimento das disposições, do gênio, do caráter, das inclinações e da vocação do aluno; e por conseqüência acha-se habilitado para formar-lhe o coração, e dirigir-lhe a inteligência. Mas tem este método dois grandes inconvenientes. Carecia, que houvesse, como no Emilio de Rousseau um professor para cada discípulo; e este discípulo assim isolado, seria de um caráter insociável; e o seu saber seria como o ouro do usurário, que só aproveita à grosseira cobiça de quem o aferrolha. (METHODO MENEMONICO. LER, ESCREVER E CONTAR. EXPOSIÇÃO DE METHODOS, 1855, p. 4).

Faria Filho (2000) também descreve essa prática utilizada durante muito tempo, mesmo depois da instituição da escola formal:

Na verdade, era o método por excelência da instrução doméstica, aquela que ocorria em casa, onde a mãe ensinava aos filhos e às filhas, ou os irmãos que sabiam alguma coisa ensinavam àqueles que nada sabiam. O método individual caracterizava-se, pois, pelo fato de os alunos ficarem muito tempo sem o contato direto com o professor, fazendo com que a perda de tempo fosse grande e a indisciplina um problema sempre presente. Certa ocasião, um professor fez as contas e chegou à conclusão de que com uma jornada de 4 horas diárias de aula, mesmo [...] supondo uma multidão de circunstâncias favoráveis, que nunca jamais se podem encontrar, temos que, no sistema individual, cada aluno tem por dia 4 ½ minutos de lição de leitura, 3 de escrita e ½ de cálculo. (FARIA FILHO, 2000, p. 140).

No entanto, quando se trata de educação doméstica, podemos afirmar que não havia homogeneidade nos métodos de ensino, pois cada professor, cada preceptor tinha a sua escolha particular, o seu próprio método, o qual, por vezes, era criado pelo mesmo e anunciado para ser avaliado pelos pais.

Além da não uniformidade nos métodos utilizados, também, os compêndios e manuais utilizados eram de livre escolha dos mestres e das famílias, especialmente, porque durante muito tempo não havia compêndios brasileiros, pois “[...] são todos os compêndios em língua estrangeira [...]” (INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1861, p. 2), o que fazia com que os alunos precisassem inicialmente dominar a língua em que liam, para depois compreender as lições e regras escritas.

Os estrangeiros também traziam de seus países de origem os métodos utilizados. Entretanto, algumas vezes, tais métodos não produziam o efeito desejado, especialmente pelas diferenças culturais existentes entre mestres e discípulos. É o que relata a preceptora Ina Von Binzer (1980), em uma de suas cartas:

Não consigo habituar-me a este ensino superficial; mas, quando começo a profundar-me ainda é pior: fico completamente desanimada. A respeito da disciplina então! Só essa palavra já me faz subir o sangue à cabeça. Imagine isto: outro dia, ao entrar na classe, achei-a muito irrequieta e barulhenta e na minha confusão recorri ao Bormann. Quando obtive silêncio para poder ser ouvida, ordenei: ‘Levantar, sentar’, cinco vezes seguidas, o que no nosso país nunca deixa de ser considerado vergonhoso para uma classe. Mas, aqui — oh! Santa Simplicitas! —, quando cheguei a fazer-lhes compreender o que delas esperava, as crianças estavam tão longe de imaginar que aquilo representasse um castigo, que julgaram tratar-se de uma boa brincadeira e pulavam perpendicularmente como um prumo, para cima e para baixo, feito autômatos, divertindo-se regiamente. Grete, desde então o Borman está definitivamente descartado, para mim, aqui no Brasil. Reconheço ser indispensável adotar-se uma pedagogia aqui, mas ela deve ser brasileira e não alemã, calcada sobre moldes brasileiros e adaptada ao caráter do povo e às condições de sua vida doméstica. As crianças brasileiras, em absoluto, não devem ser educadas por alemães; é trabalho perdido, pois o enxerto de planta estrangeira que se faz à juventude daqui não pegará. (BINZER, 1980, p. 87).

Independente do método utilizado, as lições dadas aos alunos seguiam um ritual que pode ser resumido da seguinte forma:

[o professor] indica ao menino as páginas de um livro para objeto da lição quer seja de gramática ou leitura, quer seja de aritmética ou catecismo. Os mais zelosos mestres interrogam os alunos no fim do tempo da aula, e usando da fórmula — adiante! adiante! adiante! nos casos de hesitação nas respostas chegam ao termo da argumentação ou sabatina ou interrogação ou que melhor nome tenha com a consciência tranqüila de haverem cumprido um dever regulamentar. (O ENSINO PRIMÁRIO, 1872, p. 34).

A educação nas casas, quando se tratava do ensino elementar, tinha como objetivos gerais ensinar “de cór” todas as regras de gramática, encaminhar a leitura de textos clássicos, conhecer as quatro espécies de operações de aritmética e ensinar todas as orações do catecismo.

Baseados no ensino pela memória, grande parte dos métodos utilizados no Brasil em Oitocentos tinha como subsídio principal a memorização do que estava sendo ensinado. Assim, durante até 8 horas por dia, as crianças e jovens fixavam os olhos sobre as páginas dos livros, realizavam inúmeros exercícios semelhantes, cópias, declamações, respondiam a sabatinas, argüições e eram corrigidos naqueles que eram considerados os “defeitos principais dos meninos”: “[...] distração, orgulho, sensualidade, preguiça, ambição, perversidade e egoísmo [...]”, assim como eram estimulados naquelas que eram consideradas as “principais qualidades a criar-se”: “[...] franqueza, ordem, pudor, atividade, civilidade, obediência e exatidão.” (PRELECÇÕES PEDAGOGICAS, 1887, p. 422 e 424).

Uma vez que eram os pais que decidiam mandar ensinar a seus filhos certos conhecimentos em detrimento de outros, baseados em preconceitos, em um gosto, ou, simplesmente, tendo como guia a “rotina”, também eles participavam na escolha dos métodos de ensino, considerando, na maioria das vezes, aqueles mais apreciados à época, ou simplesmente entregando ao mestre a decisão do que era melhor para o ensinamento de seus filhos.

Sujeitos a professores particulares e preceptores, essas crianças e jovens encontravam no contexto em que viviam fora das aulas ou lições um dia-a-dia repleto de adultos, de outras crianças, espaços e “muleques” filhos de escravos que não tendo que se submeter à educação, como era entendida e trabalhada, guardadas as devidas proporções, eram mais livres que os próprios pequenos senhores e juntos aprendiam, no cotidiano doméstico, aquilo que os mestres, mesmo das casas, desconsideravam: a infância.

A educação doméstica e a escola estatal

Com o fortalecimento do Estado Imperial e com as discussões cada vez mais acirradas acerca da importância da instrução escolar, uma das preocupações iniciais é a de construção de espaços específicos para a escola estatal, a fim de comprovar sua ação mais eficaz junto às crianças, para êxito daqueles que defendiam sua superioridade frente às demais formas de educação.

O processo de apropriação pelo Estado da instrução pública e a própria concepção dos aspectos que englobariam o projeto centralizador têm como primeira tarefa, então, o distanciamento da educação dos sujeitos das práticas exercidas até esse momento nas casas, sob a exclusiva escolha e vigilância dos familiares e voltadas para aprendizagens e compromissos bem mais restritos do que aqueles aos que o Estado aspirava.

Romper com esse monopólio e isolamento das famílias em relação à formação de seus filhos é uma tarefa que vai exigir do Estado Imperial fundamentação e demonstração de legitimidade na condução de tal pleito.

Inicialmente, é na afirmação da instrução pública como empreendimento hercúleo e unicamente capaz de colocar a nação em condição de igualdade aos países tomados como referência que o projeto do Estado ganha adeptos, por vezes, convictos de que o ideal da instrução pública se destinava, de fato, a uma perspectiva de progresso e de distribuição do conhecimento a toda a população.

Apesar de a idéia de instrução pública parecer carregada de tais pretensões, a realidade de sua implantação caminhava em sentido oposto, pois ao questionar e desestabilizar a educação dada na casa aos seus senhores, expondo suas dificuldades e obstáculos, a instrução pública se propunha, então, apenas a substituí-la.

Nesse sentido, era preciso conciliar a instrução pública e as aspirações das elites acerca do Estado como patrocinador do projeto educativo e, nessas pretensões, aspirava-se à manutenção de privilégios e de diferenciações entre aqueles que eram pensados como cidadãos participantes do projeto de nação e aqueles que não sendo pensados como cidadãos, provavelmente, também não eram pensados como usuários da instrução pública.

Para delimitar os espaços de educação doméstica e de instrução pública se fazia necessária, ainda, a diferenciação dos sistemas de ensino, começando pelo local de atuação. Se a educação doméstica realizada na casa acompanhava esse cotidiano, à instrução pública se propunha a construção de espaços específicos que, considerados neutros, estivessem mais adequados às perspectivas do Estado e marcassem, definitivamente, a diferença entre a educação privada realizada na casa e a instrução pública tutelada pelo Estado Imperial.

A ambição da construção de escolas caracterizadas como locais adequados à instrução pública vai, progressivamente, incorporando-se ao próprio conceito de educação e destituindo do lugar de instrução todos os outros espaços, entre eles as casas e os ambientes domésticos utilizados para educação de crianças e jovens que, não assemelhados à escola, confrontavam a sua legitimidade e a sua exclusividade como instituição de educação.

Dessa forma, a instrução pública passa a ser demonstrada como uma dimensão exclusiva das escolas, caracterizadas como instituições educativas do Estado ou subordinadas a ele em suas licenças, autorizações e certificações.

Todavia, a difusão de tais idéias não foi suficiente para a mobilização da população para essa perspectiva de educação e escolarização, principalmente, nas classes que já usufruíam a educação nas casas.

O Estado, diante da resistência à escolarização e, conseqüentemente, ao projeto de instrução pública propagado em suas idéias e em seus projetos, vê-se na impossibilidade de colocar em prática suas disposições e realizar seus intentos. Para reverter tais circunstâncias é encaminhada aquela que parecia ser a possibilidade cabível de convencimento da população, o estabelecimento da obrigatoriedade do ensino por intermédio do instrumento de que o Estado dispunha, a imposição da legislação.

Apesar de contar com o apoio de educadores — que viam em tais medidas legais um estímulo à freqüência dos espaços escolares — e de a conjuntura política ser favorável à implantação de idéias que parecessem progressistas e voltadas para o atendimento das populações até então desassistidas, a obrigatoriedade do ensino, articulada à instrução pública, demonstrava uma interferência sem precedentes do Estado na educação, iniciando aquele que seria, mais tarde, o resultado do processo de estatização dos sistemas educacionais: a escolarização obrigatória.

Contudo, a afirmação da escolarização estatal gratuita e obrigatória se constituiu em um processo lento que suscitou avanços e recuos que perpassaram a própria história das instituições educativas no País.

Nas casas, muitos entendiam estar na sua vontade dar ou não instrução aos filhos, especialmente, quando a idéia de instrução pública estava identificada com a freqüência a uma escola estatal. A escola estatal não era vista como um lugar apropriado, seja por suas instalações deficientes seja pela diversidade de crianças e jovens que a freqüentavam ou, ainda, pelo temor dos efeitos à moralidade que poderia ocasionar tal reunião de meninos e, principalmente, de meninas.

O Estado se posicionava diante das críticas a seus projetos de unificação dos espaços de educação e de propagação de uma concepção de educação acessível a “todos” tutelada por ele, afirmando que a instrução e a educação dos filhos não constituíam um “direito do pátrio poder”, cujo exercício dependeria da vontade do pai, mas se caracterizaria como um ônus e um dever, cujo cumprimento cabia ao Estado exigir, como “[...] a primeira condição de progresso e da ordem social.” (ENSINO OBRIGATÓRIO, 1873, p. 171-172).

Além disso, o Estado, por meio de seus agentes, declarava “repugnante” e contraditório à natureza da família, às leis do progresso e à ordem social, esse pretendido direito de privar os filhos do desenvolvimento intelectual que, posto em prática, tornaria a família uma instituição bárbara e a distinguiria de seu verdadeiro papel de “base das sociedades cristãs” e “princípio de toda a civilização”.

Segundo os articulistas do Estado, a obrigação de instruir e educar os filhos tinha sanção legal nos Códigos Civis de todas as nações civilizadas e somente o Estado, pelo processo de escolarização, o qual se propunha a desenvolver, poderia exigir o cumprimento dessa obrigação, admitindo, porém, a possibilidade da educação privada sob as normas estatais, quando assim fosse o desejo dos pais, mas exigindo a instrução pública para todos os outros que não dispusessem de tais meios.

Na tentativa de seduzir adeptos a suas idéias, o Estado expunha ainda os aspectos econômicos de seu empreendimento educacional, demonstrando como a criação de um sistema público de ensino seria o mais fecundo em proveitosos resultados e o mais econômico, uma vez que reuniria para “dar educação em comum aos meninos e jovens pobres e aos meninos e jovens ricos.”

Tais argumentos, entretanto, desconsideravam aquele que se caracterizava como um dos maiores obstáculos ao projeto estatal: uma escola que reuniria classes sociais diferentes, perspectivas de cidadania distintas e formações que se pretendiam diferenciadas.

A escola estatal, porém, em sua constituição definitiva, estabelece-se, inicialmente, com ideais de socialização e difusão da educação pública para, posteriormente, em suas ações efetivas, adaptar-se às intenções e às expectativas das classes que podiam freqüentá-la.

No entanto, à medida que a escola estatal vai afirmando seu papel, as outras formas de educação não tuteladas pelo Estado, como a educação doméstica, vão sendo questionadas em sua legitimidade, limitando-se, no primeiro momento dessa fase de transição, à esfera da educação primária e, posteriormente, rendendo-se à educação estatal. Nesse percurso, bastante conflituoso, a educação doméstica não perece sem oferecer resistência, principalmente, à intervenção do Estado nos espaços de formação, mas, ao contrário, permanece ainda por muito tempo concomitante ao ensino oficial, como diferencial de posição social e expectativas educacionais.

Considerações finais

A educação doméstica foi durante muito tempo considerada pela historiografia da educação como uma prática de menor importância, baseando-se na hipótese de que se restringia a uma camada específica da população e que sua amplitude teria alcançado apenas alguns períodos e locais, onde a escola ainda não havia se afirmado. No entanto, pesquisas acerca do cotidiano sociocultural, principalmente do século XIX, demonstram que as lacunas de ensinamentos deixadas pela falta de escolarização da população, eram preenchidas pela educação doméstica, não só na aristocracia, mas nas camadas sociais emergentes que se inspiravam nos hábitos das classes mais favorecidas e aspiravam a dar a educação considerada apropriada, na época, aos seus filhos.

Nessa perspectiva, muitos foram aqueles que, durante o Oitocentos, tiveram educação nas casas, talvez até em maior número do que os que freqüentaram instituições escolares.

Mesmo quando a escola estatal emergente passa a ser uma demanda reconhecida pela população, pode-se afirmar que ela se destinava a um grupo social diferente daquele que já recebia educação. No entanto, é inegável que, sob a chancela do Estado, ela altera sensivelmente as formas de educação instituídas, como a educação doméstica, que se fragiliza pela impossibilidade de evoluir e por métodos e posturas constantemente criticados tanto por aqueles que dela usufruíam, como por aqueles que viam na intervenção estatal uma forma de integrar a nação e implantar critérios uniformes de se fazer ensino e educação.


Referências

ANÚNCIOS. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 04 jan. 1869.

BINZER, Ina Von. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora no Brasil. Tradução de Alice Rossi e Luisita da Gama Cerqueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

ENSINO OBRIGATÓRIO. Jornal A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 22, p. 171-172, 1873.

FARIA FILHO, Luciano Mendes. Instrução elementar no século XIX. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (Org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

INSTRUCÇÃO PÚBLICA. Àlbum litterario, periódico instructivo e recreativo, Rio de Janeiro, 15 mar. 1861, v. 2, n. 16, p. 2.

METHODO MENEMONICO. LER, ESCREVER E CONTAR. EXPOSIÇÃO DE METHODOS. A Semana, Jornal Litterario Scientifico e Noticioso, Rio de Janeiro, 08 dez. 1855, v.1, n.1, p. 4.

O ENSINO PRIMÁRIO. Jornal A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, 12 maio 1872, v. 1, n. 5, p. 34.

PRELECÇÕES PEDAGOGICAS. Jornal A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, v. 5. n. 48, p. 422-424, 1887.

VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e os seus mestres. A educação no Brasil de Oitocentos. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005.

VILLALTA. Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA, Laura de Mello e Souza. (Org.) História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


Profa. Dra. Maria Celi Chaves Vasconcelos
Faculdade de Educação
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Programa de Mestrado da Faculdade de Educação da Universidade
Católica de Petrópolis
Pesquisadora nas áreas de Políticas Públicas e História da Educação

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O presente artigo foi publicado na Revista Educação em Questão, Natal, v. 28, n. 14, p. 24-41, jan./jun. 2007 e se encontra disponível aqui: artigo.

A dissertação citada está disponível nesse LINK.


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O ensino de Cálculo no Ensino Médio

por Geraldo Ávila IMECC/UNICAMP

O texto O ensino do Cálculo no 2º grau foi retirado da Revista do Professor de Matemática (RPM), da Sociedade Brasileira de Matemática, nº 18 - 1º Semestre de 1991, disponível no site: LINK.

Ensinar Cálculo no 2.° grau?

Por que não ensinamos Cálculo na escola de 2° grau [atual Ensino Médio]? Será que é um assunto muito difícil? Foi sempre assim no passado, ou já houve época em que o Cálculo era ensinado na escola secundária? E nos outros países, como é a situação? É ou não conveniente introduzir o Cálculo no ensino? Por quê? Como fazer isso?

Estas são as questões que serão tratadas aqui. O tema é importante e deve merecer a atenção de quem se ocupa do ensino de 2.° grau, direta ou indiretamente.

Muita gente talvez não saiba - afinal, já são passados trinta anos! - mas no final dos anos 50 e começo dos anos 60, houve uma mudança significativa no ensino da Matemática no Brasil (em conseqüência do que então acontecia no exterior, diga-se de passagem). O nome do movimento era Matemática Moderna, pois, como propalavam seus defensores, era preciso modernizar esse ensino. A tônica dessa modernização foi uma ênfase excessiva no rigor e no formalismo das apresentações, à custa, inclusive, de retirar dos antigos programas tópicos importantes no ensino, como a Geometria e o Cálculo.

O Cálculo? Sim, o Cálculo! Pois fazia parte do programa da 3.ª série do chamado curso científico o ensino da derivada e aplicações a problemas de máximos e mínimos, além de outros tópicos como o polinômio de Taylor. Isso desde 1943, quando foi instituída uma reforma do ensino secundário que ficou conhecida pelo nome do ministro da educação na época, o sr. Gustavo Capanema. Mas mesmo antes da Reforma Capanema, quando o que hoje chamamos de 5.ª à 8.ª série [6º ao 9º ano atual] mais o 2.° grau era o curso ginasial de 5 anos, seguido por dois anos de pré-universitário, já o Cálculo fazia parte do programa no pré das escolas de engenharia.

Em outros países o Cálculo é ensinado na escola secundária. E às vezes até em quantidade substancial, como acontece nos Estados Unidos. Lá o sistema de ensino, embora varie de Estado para Estado, e mesmo nos diferentes distritos educacionais de um mesmo Estado, é organizado de maneira a ter maior flexibilidade nos anos finais, que formam o chamado senior high-school, correspondendo aproximadamente ao que aqui chamamos de 2.° grau. Assim, um aluno no senior high pode preferir estudar mais Matemática, mais Ciências ou mais Humanidades. Na primeira hipótese, ele terá à sua disposição cursos substanciais de Álgebra (incluindo Trigonometria e Geometria Analítica), Geometria, e Cálculo. E, geralmente, o aluno que faz Cálculo no senior high, quando entra na universidade, apresenta um certificado de proficiência que o dispensa do curso de Cálculo do primeiro semestre e, às vezes, do ano todo, dependendo do quanto de Cálculo ele estudou no senior high. Resultado: ele entra na universidade e já vai cursando disciplinas mais avançadas de Cálculo, Análise, Física, etc.

Por que o Cálculo foi excluído?

Se até 1960 o Cálculo era ensinado na escola secundária, por que então ele não foi incluído nos programas do novo sistema que criou o 2.° grau? De um lado, os reformistas valorizavam mais outros tópicos, que melhor se prestavam àquelas apresentações que eles consideravam modernas. De outro lado, não haveria mesmo espaço para tanta coisa nos programas, já que o rigor e o formalismo exigiam o ensino da teoria dos conjuntos (sic) e vários detalhamentos axiomáticos que tomam tempo. Foi precisamente por isso que o ensino da Geometria ficou tão prejudicado. Afinal, uma apresentação rigorosa da Geometria é tarefa difícil e demorada, que exige cinco grupos diferentes de axiomas. E o que pode motivar o aluno para isso é uma familiaridade preliminar com a própria Geometria com os problemas que surgem na organização das demonstrações, familiaridade com os fatos geométricos em primeiro lugar. Em outras palavras, para bem entender e apreciar uma apresentação rigorosa da Geometria, é preciso primeiro fazer um bom curso de Geometria, um curso de resultados. (Há um livro de Geometria, de Moise e Downs, escrito no espírito da Matemática Moderna, onde o Teorema de Pitágoras só vai aparecer na página 345, pois o autor tem de concentrar seu esforço na axiomática e no rigor! Como pode uma coisa assim?) Com essa excessiva preocupação com o rigor, o ensino do Cálculo exigiria agora um estudo detalhado dos números reais, coisa que tomaria no mínimo todo um semestre, por isto mesmo totalmente inviável...

O porquê do Cálculo

Os reformistas do ensino falavam em modernizar, criticavam o ensino por se limitar à Matemática que terminava no ano de 1700. Ora, o irônico é que descartaram o Cálculo, cujas idéias surgiram antes desse ano de 1700, e que são o que de mais moderno começava a surgir na Matemática. E desde então o Cálculo vem desempenhando um papel de grande relevância em todo o desenvolvimento científico-tecnológico. Portanto, descartá-lo no ensino é grave, porque deixa de lado uma componente significativa e certamente a mais relevante da Matemática para a formação do aluno num contexto de ensino moderno e atual. Incorreram os reformistas naquele erro de recusar a pedra angular, aquela que seria a mais importante na construção do edifício...

O Cálculo é moderno porque traz ideias novas, diferentes do que o aluno de 2.° grau encontra nas outras coisas que aprende em Aritmética, Álgebra, Geometria, Trigonometria e Geometria Analítica. Não apenas novas, mas idéias que têm grande relevância numa variedade de aplicações científicas no mundo moderno. Ora, o objetivo principal do ensino não é outro senão preparar o jovem para se integrar mais adequadamente à sociedade. Não se visa, com o ensino da Matemática no 2.° grau, formar especialistas no assunto. Ensina-se Matemática porque esta é uma disciplina que faz parte significativa da experiência humana ao longo dos séculos, porque ela continua sendo hoje, com intensidade ainda maior do que no passado, um instrumento eficaz e indispensável para os outros ramos do conhecimento.

O que ensinar

Mas - dirá alguém - será mesmo possível incluir o ensino do Cálculo em nossos programas já tão alentados? Queremos mostrar que sim, que é uma questão de arrumar os programas adequadamente. Ademais, o Cálculo, desde que apresentado convenientemente, ao contrário de ser difícil, é muito gratificante pelas idéias novas que traz e pelo poder e alcance de seus métodos. É perfeitamente possível, em uma única aula, introduzir a noção de reta tangente a uma curva e a de derivada de uma função, como já tivemos oportunidade de fazer em palestras para professores de 2.° grau. Para maiores esclarecimentos remetemos o leitor ao nosso livro de Cálculo [1], especialmente a parte que vai da seção 3.4 até o final do capítulo 3.

Ensina-se Matemática porque esta é uma disciplina que faz parte significativa da experiência humana ao longo dos séculos, porque ela continua sendo hoje, com intensidade ainda maior do que no passado, um instrumento eficaz e indispensável para os outros ramos do conhecimento.

É claro que a introdução da derivada deve ser acompanhada de várias de suas aplicações. Uma delas, tão útil e necessária nos cursos de Física, diz respeito à Cinemática. Não há dificuldades no estudo do movimento uniforme, ou seja, com velocidade constante. Mas ao passar adiante, desassistido da noção de derivada, o professor de Física faz uma ginástica complicada para apresentar o movimento uniformemente, variado. E as coisas seriam bem mais simples para ele e muito mais compreensíveis para o aluno se esse ensino fosse feito à luz da noção de derivada, interpretada como velocidade instantânea.

Uma vez aprendido que a derivada é o declive da reta tangente, o aluno entenderá facilmente, com apelo à intuição geométrica, que uma função é constante se sua derivada é zero. Daí segue que funções que tenham a mesma derivada diferem por uma constante, ou seja, uma é igual à outra mais uma constante. Isso permite obter facilmente a equação da velocidade a partir do dado de que a aceleração é constante; e também a equação horária do movimento, fazendo raciocínio análogo sobre a equação da velocidade.

A derivada tem inúmeras outras utilidades para o professor de Física, na introdução de conceitos como pressão, densidade de massa, densidade de carga elétrica, etc. E claro que isto suscita o problema de bem situar o ensino da derivada, que deve preceder ou ser feito simultaneamente ao da Cinemática na Física.

Uma aplicação importante da derivada na própria Matemática, e de muita atualidade nesta época de cálculos numéricos com auxílio de computadores eletrônicos, já foi apresentada nesta Revista; trata-se do método de Newton no cálculo numérico, em particular do cálculo de raízes n-ésimas pelo método das aproximações sucessivas; (Veja o artigo de Zanoni Carvalho da Silva, RPM 4, pp. 25 a 27.) Há interessantes aplicações da derivada a problemas de máximos e mínimos, da função exponencial a problemas de crescimento de populações, decaimento radioativo e outros mais (veja [1], seçs. 5.3 e 5.6), que cabem muito bem num curso introdutório e que têm alto poder de estímulo e gratificação, para o professor e para o aluno.

Outras aplicações que certamente estimularão o interesse e a curiosidade dos alunos requerem uma introdução à integral. Mas isto também pode ser feito de maneira intuitiva, sempre com ênfase nas idéias, nas técnicas e nas aplicações.

A idéia de que os programas de Matemática são extensos e não comportariam a inclusão do Cálculo é um equívoco. Os atuais programas estão, isto sim, mal estruturados.

Cabe aqui uma observação sobre livros. Estamos citando nosso livro de Cálculo porque ele reflete nosso modo de ver o ensino dessa disciplina. Embora escrito para a universidade, muitas de suas partes podem ser adequadas ao 2.° grau, com pequenas adaptações. Outros dois livros que tratam do Cálculo e que me chamaram a atenção são o 3.° volume da obra dos Profs. Trotta, Imenes e Jakubovic [5], onde o Cálculo (diferencial) ocupa todo o capítulo 2, e o livro do Prof. Nilson José Machado [4], todo ele dedicado ao Cálculo. A meu ver, os dois estão bem escritos, fazem bastante apelo à intuição geométrica e enfatizam as idéias em apresentações claras, sem excessos de formalismo. O primeiro deles foi até resenhado na RPM 1, pp. 18 e 19, pela Profa. Nilza Bertoni. Infelizmente está esgotado É de lamentar, porque, juntamente com os outros dois volumes da coleção, constitui-se numa das melhores obras já escritas para as três séries do 2.° grau. O livro do Professor Nilson cobre mais do que eu imagino deva integrar o currículo do 2.° grau. O autor vai razoavelmente longe numa apresentação bem equilibrada do Cálculo, incluindo também a integral.

Como introduzir Cálculo no ensino

A idéia de que os programas de Matemática são extensos e não comportariam a inclusão do Cálculo é um equívoco. Os atuais programas estão, isto sim, mal estruturados. A reforma dos anos 60 introduziu nos programas um pesado e excessivo formalismo. Não obstante as modificações que têm sido feitas nos últimos dez ou quinze anos, num esforço de melhoria do ensino, muito desse formalismo persiste em muitos livros e é responsável pelo inchaço desnecessário dos programas.

O exemplo mais evidente disso está no ensino das funções. Gasta-se muito tempo para introduzir uma extensa nomenclatura - contradomínio, função inversa, função composta, função injetiva, sobrejetiva - num esforço de poucos resultados práticos. É antipedagógico introduzir conceitos que não estejam sendo solicitados no desenvolvimento da disciplina. E se o professor seguir esta salutar orientação, ele não precisará, por bom tempo, de nenhum dos conceitos mencionados. Para que o conceito de contradomínio, por exemplo? A idéia de função inversa no Cálculo só vai aparecer significativamente quando desejamos calcular a derivada de uma função que possa ser interpretada como a inversa de outra cuja derivada já conhecemos. É este o caso da função arco-seno, inversa da função seno. A função composta só vai aparecer quando necessitarmos da regra de derivação em cadeia. Ora, muito antes de se lidar com essas coisas, há outras mais interessantes a apresentar aos alunos, tópicos substantivos, como o problema de definir e determinar a reta tangente. E para fazer isso não é preciso falar em contradomínio ou função injetiva; sequer necessitamos nos preocupar com o conceito de domínio. (Veja também o livro do Prof. Nilson [4], onde a apresentação inicial do conceito de função é rápida e direta.)

Infelizmente, o ensino das funções vem sendo feito com a introdução de muitas noções novas, como já dissemos, apresentação essa que é entremeada de exercícios pouco estimulantes, como determinar domínio e contradomínio de funções dadas, achar a inversa, compor funções, verificar que certas funções são injetivas, outras não, enfim, uma série de coisas que por si sós não estimulam a curiosidade do aluno. E para agravar ainda mais essa situação, as apresentações de funções geralmente são feitas com uma insistência no conceito mais geral de função, como caso particular de uma relação. Isto é um desatino! Já o seria se a insistência fosse apenas na situação mais particular de lei de correspondência que leva elementos de um conjunto - o domínio - em elementos de outro conjunto - o contradomínio. Não há por que preocupar-se com definição tão geral quando só serão usados exemplos simples de funções numéricas, como os polinômios, as funções racionais mais elementares e alguma raiz quadrada. (Veja-se, a este respeito, a seção 3.1 do nosso livro [1], uma aula apenas para generalidades sobre funções.) Não é de estranhar, depois de todo esse desacerto, que o aluno não goste de Matemática!...

Descartar o Cálculo no ensino é grave, porque deixa de lado uma componente significativa e certamente a mais relevante da Matemática para a formação do aluno num contexto de ensino moderno e atual.

Os matemáticos só conseguiram chegar ao conceito de função, tal como o entendemos hoje, depois de um longo período de evolução do Cálculo, cerca de século e meio. As funções iam aparecendo na formulação e tratamento dos problemas; primeiro funções simples, como os polinômios ou as que deles se obtêm por operações algébricas, depois a função logarítmica, a exponencial, as funções trigonométricas, etc. Aos poucos funções mais complicadas, dadas por séries ou integrais, também apareceram naturalmente, na tentativa de resolver equações diferenciais surgidas na formulação de problemas de Mecânica, condução do calor, em Mecânica Celeste, etc. Foi ao longo dessa lenta maturação que se foi reconhecendo a importância do conceito de função. É importante justamente porque com ele era possível formular e resolver problemas, o que exigia derivar e integrar funções, desenvolvê-las em séries infinitas, etc. (A respeito dessa evolução veja [2].)

Portanto, para podermos mostrar ao aluno a importância do conceito de função, temos de ensinar-lhe os conceitos de derivada e integral e para que servem esses conceitos. A medida que vamos avançando com a apresentação de idéias, com o desenvolvimento de métodos relevantes no tratamento de problemas significativos, aí sim, vão surgindo, a cada passo, gradativamente, a necessidade de definições novas, e dessa maneira o ensino pode tornar-se interessante, o aluno se sentirá estimulado porque entende a razão de ser do que está aprendendo.

Seria muito mais proveitoso que todo o tempo que hoje se gasta, no 2° grau, ensinando formalismo e longa terminologia sobre funções, que todo esse tempo fosse utilizado com o ensino das noções básicas do Cálculo e suas aplicações. Então, ao longo desse desenvolvimento, o ensino das funções seria feito no contexto apropriado, de maneira espontânea, progressiva e proveitosa.

Como se vê, o problema não é encontrar mais espaço nos atuais programas; trata-se, isto sim, de bem utilizar o espaço já disponível, com uma melhor distribuição e apresentação dos diferentes tópicos.

A estrutura dos programas

O que acabamos de escrever leva-nos naturalmente a considerar a estrutura dos atuais programas de Matemática. Hoje em dia vários tópicos desses programas são apresentados isoladamente uns dos outros, quando deveria haver maior articulação entre eles, para dar aquela tão desejada organicidade ao ensino. Esse fenômeno é conseqüência de sucessivas reformas; elas foram introduzindo mudanças, mas deixando certas coisas intocadas, as quais, depois de muito tempo, passaram a ser verdadeiros esqueletos no armário. Exemplo disto é o ensino de razões e proporções, de que tratamos em artigos publicados nas RPMs 8 e 9. Esse ensino não se modernizou e guarda resquícios de coisas muito antigas e de há muito ultrapassadas. (Veja, em particular, os comentários que fizemos nas pp. 1 e 2 da RPM 8.) O certo seria aproveitar o ensino de razões e proporções para dar início ao estudo de funções, enfatizando a interdependência das grandezas envolvidas e os gráficos. (O Prof. Nilson mostra como fazer isso em [4], p. 13 e seguintes.) Mais tarde, no estudo das equações lineares e da equação do 2.° grau, há oportunidade natural de voltar a enfatizar o aspecto de dependência funcional e utilizar gráficos. Por que não introduzir a noção de reta tangente e derivada no estudo do trinômio do 2.° grau, de seus extremos de máximo ou mínimo? Assim, a noção de função vai aparecendo aos poucos, em vários lugares onde é efetivamente utilizada, tecendo uma costura de harmonia entre as diferentes partes dos programas.

Outro tópico cujo tratamento já está defasado no tempo é o logaritmo. Se até há algumas décadas o logaritmo era um poderoso instrumento do cálculo numérico, isto já não é mais verdade há pelo menos vinte anos. Hoje em dia, com os computadores e as minicalculadoras, não há por que preocupar-se com tábuas de logaritmos e seu uso. Gastava-se muito tempo com isso, treinando os alunos na resolução de triângulos e em outros cálculos envolvendo tabelas de logaritmos de funções trigonométricas. Eis aí um espaço a ser preenchido com outras coisas. Não que descartemos o logaritmo. Ele continua sendo muito importante, não mais para o cálculo numérico, mas como função logarítmica. Sua inversa, a função exponencial, é talvez a função mais importante de toda a Matemática, com muitas aplicações interessantes, como já mencionamos. O natural, como se vê, é levar o logaritmo para o contexto do Cálculo. Definido como área sob uma hipérbole ([1], sec. 4.10; veja também [3] e p. 27 desta RPM), ele é um interessante prelúdio ao Cálculo Integral.

Como se vê, não é que falte espaço para o Cálculo nos programas. É preciso, isto sim, reestruturar esses programas, eliminar o que neles há de arcaico, introduzir novos tópicos e modernizar as apresentações, tudo isto feito de maneira que as diferentes partes fiquem bem articuladas entre si e o conjunto apresente organicidade.


Referências Bibliográficas:

[1]  Ávila, Geraldo. Cálculo 1. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora, 4* edição, 1981.

[2] Ávila, Geraldo. Evolução dos Conceitos de Função e de Integral. Revista Matemática Universitária, n.°1. Sociedade Brasileira de Matemática, 1985.

[3] Lima, Elon L. Logaritmos. Coleção Fundamentos da Matemática Elementar. Sociedade Brasileira de Matemática, 1985.

[4]  Machado, Nilson José. Noções de Cálculo. São Paulo, Editora Scipione, 1989.

[5]  Trotta, Imenes,  Jaknbovic. Matemática Aplicada. São Paulo, Editora Moderna, 1980.

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O que é o Trivium? - por Roberto Helguera

Transcrevemos abaixo trechos do vídeo O que é o Trivium? que foi traduzido pela própria Sacros*. O vídeo original está disponível neste link.

... e ordena o pensamento e ordena as paixões 
ordena o pensamento com lógica 
e ordena as paixões com a retórica.

Porque é a educação 
que prepara a mente para ser absoluta 
e totalmente livre de ideologias 
e para reconhecer a ordem das coisas,

são a sala de entrada da filosofia.


Olá. Como está você? Mais uma vez, quero falar com você sobre, obviamente, uma das questões de educação que eu mencionei para você. Você se lembra que no último vídeo falamos sobre as artes liberais, também falei sobre os três estágios do aprendizado das crianças, o estágio gramatical, o estágio lógico e o estágio retórico?

O que isso significa? Essas são três das artes tradicionais ou as artes liberais. A educação moderna inclui essas artes, mas as inclui dentro das matérias. Para falar a verdade é uma longa discussão, mas se tornou racionalista, iluminista e se esqueceu de fazer as coisas do modo como costumava fazê-las. O homem de antes, que para mim parece muito mais simples, mais fácil e melhor.

O que são as artes liberais? Hoje vou falar com você sobre o trivium especificamente dentro das artes liberais. As artes liberais são aquelas artes que o homem considera desde o homem da Grécia, Roma e o homem medieval, incluindo o Renascimento e, de fato, incluindo a boa educação que muitos de nossos de nossos heróis patrióticos tiveram, mas que a modernidade substituiu pela científica. São as artes da gramática, lógica e retórica ou trivium, cujo objeto é a palavra. Por quê? Porque como o homem aprende? O homem aprende observando a realidade, entendendo que essa realidade é externa a ele. Dar um nome a cada objeto, nomeando cada objeto, e logo depois unindo esses nomes por conexões lógicas, vamos dizer assim, e comunicando isso aos nossos iguais. Ou seja, como somos pessoas com inteligência e vontade, o que fazemos é olhar para a coisa, nomear a coisa e, ao nomear, recebemos os sons e nomes por nossos semelhantes, nossos pais, nossas mães, aqueles que nos precederam. Internalizar o nome da coisa que estamos vendo e depois comunicar. Então, é assim: eu penso, dou um nome e comunico verbalmente para outra pessoa. Das sete artes, estas são as três que têm como objeto a palavra. Então, o que são essas coisas que eu nomeio? São todas coisas externas a mim, em sua maior parte.

Depois vem o quadrivium: artes da aritmética, que é a arte de calcular a quantidade, porque é a categoria mais fácil para o homem.  Geometria, que lida com magnitude bem como a quantidade. A música, e aqui você pode pensar nas notas musicais depois cálculo, número; magnitude e tempo, ou seja, um ritmo e um tempo. Mas a música para os gregos também era tudo o que pertence às nove musas. Portanto, incluía as histórias épicas, incluía poesia, incluía as narrativas, as tragédias, as comédias, tudo o que fosse inspirado, música coral, música litúrgica, música lírica, isto é, tudo o que pertence às nove musas, música. Mas, acima de tudo, também um senso profundamente matemático da relação entre as coisas que geravam um som. Esse som harmônico era musical. Para isso, se você quiser, leia o diálogo: O Timeu de Platão, que é um diálogo que fala precisamente sobre música. E, finalmente, astronomia. Por que astronomia? Porque o ser humano não criou a si mesmo, senão que foi criado. E os planetas, por assim dizer para a antiguidade, eram os seres celestiais, eles eram os seres mais divinos ou mais semelhantes à divindade. Por quê? Porque eles eram aparentemente eternos, perfeitos, Vamos considerar a lua em sua forma redonda, cíclica, eles têm uma circularidade, por assim dizer, e o círculo para os antigos, mas também para nós, é o símbolo do infinito, porque é uma linha contínua que não começa e não termina. Então, de certa forma os corpos celestes e sua ordem eterna é a coisa mais próxima ao estudo de Deus, por assim dizer. Portanto, a astronomia fazia parte das antigas artes liberais. Mas também podemos substituir, se preferir, em um currículo moderno, a astronomia, deveria estar, pelo menos poeticamente, até que se tenha a matemática suficiente para entendê-la. Poderíamos substituí-la pelo que chamo de ciências naturais, que seria a observação de nosso ambiente e tentar entendê-lo a partir de suas causas. Mas vamos deixar o quadrivium, que são essas quatro artes liberais da aritmética, geometria, música e astronomia em um segundo momento. 

E hoje vamos falar sobre o trivium. Essas artes são chamadas de liberais, por quê? Porque elas são as artes que tornam o homem livre. São as artes que permitem que ao homem pensar de maneira adequada ser capaz de corresponder ou adaptar seu intelecto à realidade, que o cerca e, dessa forma exercer bem a virtude da prudência. Porque se eu enxergar a realidade como ela é, posso colocar em prática os meios apropriados e me comportar com sabedoria e lidar com tudo de acordo com sua natureza, ou seja, exercer justiça também de acordo com sua natureza. E, por fim, para entender por que eu devo ser forte e moderado. Então as virtudes cardeais são bem exercidas se eu entender bem a realidade e, para entender bem a realidade, preciso do trivium e do quadrivium, isto é, eles são a sala de entrada da filosofia. O filósofo é aquele que pode olhar para a realidade e entendê-la a partir de suas causas e a filosofia existe para nos levar, como diria Marechal, através da beleza, em até a teologia.  

As artes liberais libertam o homem por meio da verdade. As artes liberais liberam o homem por meio da verdade e permitem que ele se autodirecione. A inteligência é a parte mais elevada do homem. Por isso se a inteligência é usada para servir o corpo isso significa usar a parte superior ao serviço da mais baixa, é escravizante ou servil. Pensemos na modernidade de hoje em dia. Muito disso está acontecendo, não é mesmo? Inteligência, por outro lado, ao compreender ou entender, é livre, porque essa compreensão, esse mesmo entender é seu próprio bem. É por isso que com um Viktor Frankl ou com qualquer pessoa que tenha sido aprisionada ou que tenha sido detida injustamente, sabemos que esse homem em seu íntimo, em sua inteligência, é absoluta e totalmente livre e é impossível de ser aprisionado. Eis que surge a dificuldade e o perigo das ideologias quando elas impedem o homem de ver a realidade e escravizam a inteligência, mas liberam seu corpo. 

Veja isso. Então é por isso que você que estão assistindo a este vídeo, muitos de vocês podem ter decidido deixar as escolas para educar seus filhos, porque vocês perceberam que, embora seus filhos estejam cada vez mais livres fisicamente, ou seja, eles lhes dão educação sexual e lhe prometem liberdade absoluta e total, o que, na verdade, não é liberdade mas sim libertinagem, é escravidão às paixões. Eles estão invertendo a ordem e estão colocando a inteligência a serviço do corpo, liberando o corpo e escravizando a inteligência com uma ideologia que os impede de de ver a realidade cada vez mais. Não é à toa que Cristo diz que o único pecado que não é perdoável é o pecado contra o Espírito Santo. Por quê? Porque é o pecado em que não se pede perdão, porque não se reconhece mais o que é certo e o que é errado, porque se desvirtuou a inteligência, e a perverteu. Portanto, o aprendizado do trivium é fundamental.

Se compreender é libertador, entender as coisas mais elevadas é sempre o melhor. É por isso que nós vamos almejar nosso objetivo final. Por que estou sendo educado? Para que eu tenho o trivium de gramática, lógica e retórica? Porque eu quero chegar através do Verbo, da Palavra, aquele Verbo que no princípio era o Verbo e o Verbo era Deus. O Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Sem o Verbo nada foi criado. Então eu quero por meio dessa palavra, entender as coisas mais elevadas. Para isso, tenho que começar com o primeiro estágio e ir subindo degraus até chegar à teologia como eu lhe disse.

Então, as artes liberais são esse começo, para que então você possa fazer filosofia para que então você possa chegar à teologia. Essa é a pirâmide clássica do homem, até que chegarmos ao Iluminismo e à modernidade, onde é tudo substituído por uma pseudociência. Eu digo pseudociência porque não é uma ciência de fato, mas é uma parte da ciência. A ciência da medição, de contar. Isso vem desde Descartes até hoje, mas falaremos sobre isso em outro momento. Portanto, a educação que prepara homem para esse tipo de conhecimento ou que lhe ensina esse tipo de conhecimento do trivium e do quadrivium é realmente chamada de liberal, Pois é a educação que prepara a mente para ser absoluta e totalmente livre de ideologia e para reconhecer a ordem das coisas, para se adequar a essa ordem e, portanto, nunca ser surpreendido, ser livre, poder saber quais são minhas opções. Porque a liberdade não é ter todas as opções. Liberdade é saber quais não são as minhas escolhas. Eu não sou livre para voar. Preciso de um avião, preciso construir algo para voar porque eu sou um ser humano e não tenho asas. Um pássaro é livre para voar, mas não para pensar como eu penso. Sou livre para pensar e fazer as coisas que são próprias de minha natureza. O que os limites determinam é liberador, paradoxalmente. 

Como as artes liberais contribuem? A arte de forma genérica, São Tomás explica que é simplesmente um método eficiente de fazer as coisas. Então, se a palavra é meu principal modo de comunicação e é ela que faz a política, que é a ciência mais elevada da cidade. É o que faz todas as minhas relações com os seres humanos. O método efetivo de usar a palavra é muito importante e essa é uma parte essencial que deve estar na sua educação, na sua formação de seus filhos, caso você não tenha tido isso formalmente ou se sentir que está desordenado em seu pensamento, você pode estudar gramática, lógica e retórica. Podemos falar sobre esse assunto também. A prova do artista não está na vontade que ele coloca em seu trabalho, mas na excelência do trabalho que ele produz. Quero dizer, você pode se esforçar muito com gramática, lógica, retórica, mas produzir textos ruins, por assim dizer, ou pensamento de baixa qualidade, como acontece.

Os grandes oradores demagógicos são muito convincentes, mas não dizem nada. Tudo o que você precisa fazer é olhar para não apenas os debates presidenciais, você pode olhar para os jornalistas. Eles dizem um monte de coisas, mas não dizem nada. A excelência do trabalho que se produz é o que mede a qualidade do artista. Então temos essas artes, podemos usá-las para alguma coisa ou as tornamos servis. Por exemplo, podemos orientá-las para bens corpóreos e não liberais. Também existem as belas artes, que são as artes que visam satisfazer os sentidos, refrescar a alma. As artes liberais preparam a mente para a compreensão a partir das causas elas a aperfeiçoam especialmente nas ciências especulativas. Especulativas significa as ciências que apontam ao conhecimento pelo conhecimento, não para usá-lo de alguma forma. Quando eu descubro um buraco negro e que existe um buraco negro no espaço ou coisas que eu nunca vou tocar ou ver e assim por diante, estou fazendo isso para me fascinar com a ordem das coisas. Não porque eu vou construir uma nave espacial para chegar até o buraco negro. O importante é que são artes que eu preciso. Essas três artes do trivium preparam a inteligência para se adequar à realidade e, assim, permitem que atue livremente de acordo com o que é. Portanto, o trivium, tem como objeto a palavra. Já dissemos isso, e a palavra ordenada, a fala ou a palavra é o instrumento imediato da razão, é a maneira pela qual podemos raciocinar e expressar como raciocinamos. O quadrivium (tem como) objeto, a matéria que tem a quantidade, magnitude, tempo e espaço.

Deixamos isso de lado, voltamos ao trivium. A mente precisa da ferramenta da fala. Nós já dissemos isso, para entender objetos mais difíceis precisamos ter o domínio dessa ferramenta, porque a fala vai se tornando cada vez mais complexa quando vamos crescendo. É por isso que muitos jovens, por terem sido mal formados no trivium, chegam à universidade sem saber como ler e escrever ou entender o que lêem e como escrever. A lógica aqui tem uma certa preeminência, mas obviamente não é estudada formalmente até a idade da adolescência. Por quê? Porque dá método à cabeça, para que a mente seja capaz de usar a palavra de uma maneira apropriada. A primeira coisa que o trivium faz é ele nos dá a capacidade de significar. Essa é a gramática.

O que significa «significar»? «Significar» significa dar o símbolo ao significado como um sinal que aponta desde o grafema e o fonema que usamos para o objeto que ele representa. Ele é ordenado ao significado de algo. Temos dois tipos de de reação em relação a esse algo: o pensamento e a paixão. Paixão ou utilidade para mover a vontade de alguém. Isso seria retórica. Quando eu quero a utilidade ou convencer alguém do bom e do verdadeiro, tento mover e uso o significado das palavras para mover essa vontade. Esse é o meu objetivo e essa é a retórica. Por exemplo, para mover as paixões aponto o belo e a imaginação também, você tem que pensar sobre a fotografia, nos filmes, nas fotos nos filmes, nessa beleza. Se você já viu os filmes do Studio Ghibli, por exemplo, os japoneses ou se você já viu os filmes com excelente cinematografia, você verá que a beleza move as paixões. A música e fotografia fazem isso. As imagens movem as paixões para que o diretor, se for habilidoso, nos leve a sentir o que ele quer que sintamos naquele exato momento, para que fiquem satisfeitos e possam repousar. O mesmo faz a poesia. Isso é poesia, quando as paixões ficam satisfeitas e podem descansar. E você começa a ver que não apenas é só para entender e nos mover, mas quando começamos a descansar na beleza, começamos a ter uma experiência do céu, por assim dizer. Quando a palavra é ordenada apenas ao pensamento, ao bem em si mesmo, ao quê e ao porquê da lógica, nós estaremos usando a palavra não para um propósito utilitário, e sim para entender as coisas, principalmente a partir das causas. 

Então, até aqui eu disse a você que o trivium que é composto de gramática, lógica e retórica, tem a capacidade, ou seja, ordena a fala, porque a fala é o instrumento que a razão usa para se comunicar e pensar, e que a fala tem a capacidade de significar com grafemas e fonemas algo que existe fora de nosso intelecto, fora de nós e permite que o intelecto se adeque a esse algo, a essa realidade, e ordena o pensamento e ordena as paixões. Ordena o pensamento com lógica e ordena as paixões com a retórica. E com essa poesia ou essa beleza que mencionei na fotografia e na música, como exemplo, nos filmes. Mas além disso, podemos pensar na lógica, que é a ordem do pensamento. 

A lógica tem três movimentos. O primeiro, que é gramatical, digamos assim, que é o nome das coisas. Que nome eu dou às coisas? O segundo movimento do intelecto na lógica seria se eu disser que aquela coisa que nomeei ela é ou não é, ela sempre é, às vezes ou nunca, ou seja, é verdadeiro ou é falso. Eu lhe dou um sim ou não. A essa premissa,  que se chama assim quando menciono uma palavra, quero dizer, primeiro eu tenho o nome logo eu digo que é falsa ou verdadeira, que ela existe ou não existe, sempre ou as vezes, isso é uma premissa. Eu faço uma união dessas premissas em um terceiro ato do intelecto, que já seria o silogismo, que seria a junção de duas premissas com um termo médio um termo comum que seria a mesma palavra usada em uma premissa específica, uma premissa universal para chegar a uma nova conclusão. E assim estou construindo conhecimento.

Isso é, em poucas palavras, a lógica. Essa lógica, obviamente, quando parte de premissas evidentes que não precisam ser provadas, como, por exemplo, uma coisa não pode ser e não ser outra ao mesmo tempo no mesmo sentido, ou o inteiro é maior do que a parte ou o que quer que seja por definição em si, e vai avançando a partir dessa premissa se chama conhecimento científico mas na maioria das vezes, a discussão é outra quando as premissas são baseadas no que você acredita ou no que eu acredito.

Isso é chamado de dialética ou diálogo que começa com o que você acha que é verdade e parte daí vai com uma série de argumentações para me convencer de que isso é verdade, não é verdade, é falso, às vezes, e assim por diante. E assim o homem constrói o conhecimento e a fala. E essa é, se você preferir, a maneira em que essa dialética acontece, e tem diferentes tipos de discursos, se são forenses e discursos para estabelecer os fatos. E isso é feito no tempo passado, na retórica. Para estabelecer a moralidade ou o que é certo ou errado. E isso é feito no tempo presente, ou o político ou o possível, o futuro. E isso é feito no tempo futuro. Essas três razões para expressar todo esse conhecimento gramatical e lógico é expresso na retórica com os três modos retóricos de discurso. O forense, o moral, por assim dizer, e o político. E isso também requer uma pessoa que tenha seriedade, uma capacidade que demonstre que ela é capaz, que tem autoridade para falar dessa forma e que sabe como convencer. É por isso que a retórica inclui a beleza. A rainha do trivium é a retórica. Alguns dizem que é lógica porque é o que é necessário, mas eu acho que é a retórica porque é ela que incorpora toda a gramática e toda a lógica em um convencer o outro a mover sua vontade, para fazer o bem ou para fazer o mal. Mas a verdadeira retórica é aquela que embarca, que convence o outro, que move a vontade do outro e as paixões do outro para o bem, o belo e o verdadeiro. 

Isso é tudo sobre o trivium e é isso que eu queria dizer a você hoje. A primeira metade de uma boa educação explicado se você quiser um pouco mais filosoficamente. Espero que você tenha gostado, Espero que seja útil para você, caso contrário, aguarde a próxima semana Vou lhe falar sobre o quadrivium** e depois passaremos para outros e maiores horizontes.

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* Para saber mais sobre a Sacros clique aqui.

** O texto referido sobre o Quadrivium se encontra aqui.


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A Educação em Ilíada e Odisseia

A EDUCAÇÃO HOMÉRICA

É realmente de Homero que nossa história deve partir: é em Homero que começa, para não mais interromper-se, a tradição da cultura grega: seu testemunho é o mais antigo documento que podemos, proveitosamente, compulsar acerca da educação arcaica. O papel de primeiro plano, desempenhado por Homero na educação clássica, convida-nos, por outro lado, a determinar com precisão aquilo que podia já representar, para ele, a educação (1).

INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA DE HOMERO

Não é certamente sem precaução que o historiador pronunciará o nome Homero (2): ele não pode falar simplesmente da "época homérica": a Ilíada e a Odisséia apresentam-se-lhe como dois documentos de caráter complexo, e sua análise deve procurar discernir a herança de uma velha tradição legendária e poética, de um lado, e a contribuição própria do poeta, de outro; deve ela distinguir entre a composição de conjunto da obra e as modificações, inserções e conexões que o filólogo crê descobrir.

Na medida em que parece estabelecer-se um acordo sobre uma questão disputada exaustivamente (3), tende-se a admitir que nosso texto — aquele que, segundo se pensa, Hiparco teria levado, no fim do reinado de seu pai Pisístrato (528/7), da Jônia para Atenas, onde foi adotado oficialmente para o concurso de rapsodos das Panatenéias [1] — existia, substancialmente, desde o século VII. Partindo dessa data, fomos levados, aos poucos, a fixar a composição dos cantos essenciais da Ilíada (a Odisséia parece mais tardia) numa data “que não pode ser muito posterior aos meados do século VIII” (4). Supondo-se que essa redação deva ser considerada como obra de um só poeta — de um Homero real, antes que o resultado do esforço coletivo de várias gerações de aedos — ela exige a elaboração prévia de toda a tradição, bastante evoluída, suposta pela língua, o estilo, as lendas homéricas, à qual se deve conceder ao menos um século inteiro a título de margem, o que, entre tantas datas propostas pelos antigos (5) e pelos modernos, nos reconduz àquela em favor da qual se havia manifestado Heródoto que faz Homero (e Hesíodo) viver “quatro centenas de anos de mim, não mais [2]”, ou seja, por volta de 850.

Mas não basta ter feito remontar a epopéia inteira aos anos que medeiam entre 850 e 750: é necessário, ainda, determinar seu valor documental (6). Será útil não o esquecer, Homero é um poeta, não um historiador; e, ademais, dá livre vôo à sua imaginação criadora, uma vez que se propõe não a descrever cenas de costumes realistas, mas a evocar uma gesta heróica, projetada num passado prestigioso e longinquo, em que não somente os deuses mas também os animais falavam: recorde-se Xanto, um dos cavalos de Aquiles, dirigindo a seu dono palavras proféticas [3], à semelhança do cavalo de Roland, no Petit Roi de Galice: pois não se deve exagerar o caráter singelo e primitivo desta obra, herdeira de uma experiência já tão amadurecida. Mas não se pode, tampouco, fazer de Homero um Flaubert ou um Leconte de Lisle, refertos de escrúpulos arqueológicos: a sua imagem de uma idade heróica é uma imagem compósita, em que se superpõem reminiscências esfiadas durante quase um milênio de história (certos elementos remontam para além das sobrevivências micênicas, aos belos dias da grandeza minoana: assim, por exemplo, quando a Ilíada [4] evoca as danças da juventude de Cnossos e as acrobacias no “teatro” (χόρος) de Dédalo, destruído já por ocasião da catástrofe de 1400).

Entretanto, se essa imagem não contém muitos anacronismos, no conjunto deve tirar a maioria de seus elementos não precisamente talvez do período contemporâneo de “Homero” (a idade aristocrática das cidades da Jônia), mas daquele que o precedeu imediatamente, a idade medieva que sucede às invasões dóricas (1180-1000). Com a condição de proceder-se com prudência, eliminando tudo o que nele se possa mesclar de mais antigo ou se tenha introduzido de mais recente, é possível servir-se de Homero como uma fonte válida para estas idades obscuras.

CAVALHEIRISMO HOMÉRICO

Falaremos de uma “idade média homérica” não por tratar-se de um período pouco conhecido, inserto entre dois outros mais conhecidos, mas porque a estrutura política e social dessa sociedade arcaica apresenta analogias formais com a da nossa Idade Média ocidental (analogias que, obviamente, não cabe levar até um paralelismo paradoxal: na História não há retorno idêntico e omne simile claudicat: falo de um cavalheirismo homérico no sentido em que se diz “o feudalismo japonês”) (7). A comparação parece impor-se principalmente em relação à Idade Média primeva, aquela que vai da época merovíngia ao ano 1000: a sociedade homérica mostra-se bastante análoga ao pré-feudalismo carolíngio.

No vértice, o rei, cercado de uma aristocracia de guerreiros, de uma verdadeira corte que compreende, de uma parte, o conselho dos grandes vassalos, homens idosos (λέροντες), honrados como tais, e cuja experiência os torna. valiosos nos conselhos, a assessoria judiciária, e, de outra parte, o circulo dos fiéis, jovens guerreiros (κοῦροι) que formam a classe nobre, o λαός oposto à massa do δῆμος, dos plebeus, os θῆτες. Estes κοῦροι (que equivalem aos pueri vel vassalli de Hincmar) podem ser filhos de príncipes ou de chefes, que sirvam ao rei de sua pátria, como podem ser recrutados entre os peões e os aventureiros alienígenas perseguidos: essa sociedade da idade média helênica é ainda bastante instável e bem próxima do tempo das invasões. Vivem eles na corte (acaso não são companheiros do rei, ἔταἶροι?), alimentados à sua mesa com as contribuições ou tributos recebidos pelo soberano.

Essa vida de comunidade, essa confraria de guerreiros (cujas conseqüências para a história da educação e da moral logo veremos) dura até o dia em que, em recompensa por seus leais serviços, o súdito fiel é enfeudado, mediante a outorga de um domínio (τέμενος) provido dos rendeiros necessários ao seu usufruto e subtraído ao domínio público. Concessão a princípio precária, ou pelo menos transitória, antes de estabilizar-se e tornar-se hereditária. Parece que da Ilíada à Odisséia se processa uma evolução análoga aquela por que passou a sociedade carolíngia: a nobreza torna-se cada vez mais senhora de seus feudos, ao passo que o poder real se desintegra pouco a pouco ante a elevação desses domínios senhoriais à escala de pequenos burgos, os quais serão mais tarde aproximados e unidos para constituir a cidade clássica (os Côdridas aparecem-nos um pouco assim  como os Capetos da Ática).

A CULTURA CAVALHEIRESCA

Eis o fato fundamental que explicará as características originais da tradição educativa da Grécia clássica: a cultura grega foi, originariamente, privilégio de uma  aristocracia de guerreiros. Vemo-la aqui, essa cultura, em seu estado nascente. Pois estes heróis homéricos não são combatentes selvagens, guerreiros pré-históricos, como se compraziam em imaginá-los nossos predecessores românticos: em certo sentido, são já cavalheiros.

A sociedade homérica sucedera a uma velha civilização, da qual nem todos os refinamentos haviam desaparecido. Os jovens κοῦροι dispensam a seu suzerano o que se pode chamar propriamente um serviço de corte: como os donzéis da Idade Média, eles servem à mesa por ocasião dos festins reais: “os κοῦροι enchem as crateras até às bordas [5]”: verso tão característico de seu papel de copeiros que voltamos a encontrá-lo, repetido ou interpolado, em quatro outros episódios [6]; serviço nobre, bem diverso do dos simples domésticos (κήρυκες).

Participam também dos cortejos: sete jovens acompanharão Ulisses trazendo Briseida a Aquiles [7]; desempenham um papel nos sacrifícios, ao lado do sacerdote [8], não somente como trinchantes, mas porque “cantam o belo peã e com sua dança celebram o Preservador”,

καλὸν ἀείδοντες παιήονα κοῦροι  Ἀχαιῶν
μέλποντες Ἐκἀεργον [9].

Pátroclo veio refugiar-se na corte de Ftia, procedente de Opunte, sua pátria, depois de um assassínio involuntário. Seu próprio pai, Menécio, ali o apresenta ao rei Peleu; este o acolhe com afabilidade e o põe ao lado de seu filho Aquiles, ao qual prestará o serviço nobre de “escudeiro” (termo com que A. Mazon traduz, elegantemente, o θεἀπων de Homero [10]).

Juntamente com as cerimônias, os jogos constituíam o aspecto dominante da vida destes cavaleiros homéricos. Jogos ora livres e espontâneos, meros episódios da vida cotidiana (esta vida nobre é já uma vida de lazeres de bom gosto): como na festa promovida por Alcino [11]; jogos esportivos (8), divertimentos “musicais”: dança dos jovens feácios, dança da bola pelos filhos de Alcino, canto do aedo, dedilhar da lira: Aquiles, recolhido em sua tenda, disfarça sua pena cantando, somente para si mesmo, os feitos dos heróis, e acompanhando-se com a phorminx sonora [12]; possivelmente já, também, concursos de eloqüência e disputas verbais (9).

Outras vezes, ao contrário, constituem os jogos uma manifestação solene, organizada e regulamentada com diligência: que me baste lembrar, no canto Ψ da Ilíada, os jogos funerários em honra de Pátroclo: o boxe, tão caro já aos minoanos (10), a luta, a corrida, a justa, o arremesso de peso, o tiro de arco, o dardo e, especialmente e em primeiro lugar, o esporte que ficará sendo sempre o mais nobre, o mais estimado: a corrida de carros [13].

Sim, estes cavalheiros distinguem-se bastante de guerreiros bárbaros: sua vida é realmente uma vida de corte, já “cortês”: implica um refinamento notável de atitudes: considere-se a amabilidade que revela Aquiles em seu papel de organizador e de árbitro dos jogos [14], o espirito esportivo dos campeões e dos espectadores, seja do boxeador Epeio reerguendo seu adversário Euríalo após o duro golpe que acabava de pô-lo fora de combate [15], seja dos aqueus contendo Diomedes quando, sob seus golpes, a vida de Ájax está em perigo [16].

Essa polidez acompanha os heróis também no combate, até mesmo nos assaltos rituais de afrontas que preludiam a refrega. Subsiste ela em todas as circunstâncias: que refinamentos de cortesia nas relações entre Telêmaco e os pretendentes, relações no entanto tão tensas e transbordantes de ódio!

Essa atmosfera de polidez, pelo menos na Odisséia, que é mais recente, leva, como por seu florescimento normal, a uma grande delicadeza de atitude para com a mulher: como então esses mesmos pretendentes não respeitam Penélope? Do velho Laertes se diz que, para não despertar o ciúme de sua esposa, não se permitiu a si mesmo desfrutar da escrava Euricléia [17]. A mãe de família é, realmente, senhora da casa: atente-se para Arete, rainha dos feácios; atente-se para Helena em sua casa, em Esparta: é ela quem acolhe Telêmaco, quem dirige a conversação, quem “recebe”, na acepção mundana da palavra.

Cortesia, mas também habilidade (confluímos, aqui, na sabedoria oriental): como portar-se no mundo, como reagir ante circunstâncias imprevistas, como proceder e, antes de tudo, como falar: seja-me suficiente evocar Telêmaco em Pilos ou em Esparta, e Náusica diante de Ulisses náufrago.

Tal é, sumariamente esboçada, a imagem ideal do “perfeito cavalheiro” da epopéia homérica. Mas ninguém podia, espontaneamente, tornar-se um κοῦρος consumado: essa cultura, de conteúdo rico e complexo, supõe uma educação adequada. Ora, esta última não nos é desconhecida: Homero interessa-se pela psicologia de seus heróis na medida suficiente para que saibamos de que maneira foram eles educados, de que maneira puderam chegar a essa flor do cavalheirismo; a legenda heróica transmitia dados sobre a educação de Aquiles exatamente como os ciclos épicos da Idade Média, que consagravam, por exemplo, uma canção de gesta aos Enfances Vivien.

QUIRÃO E FÊNIX

A figura típica de educador é a de Quirão, “o sapientíssimo centauro [18]”; grande número de lendas parece ter-se apossado de seu nome: ele educou não somente Aquiles, mas ainda muitos outros heróis: Asclépio, o filho de Apolo [19], Actéon, Céfalos, Jasão, Melânio, Nestor...; Xenofonte [20] enumera, de enfiada, vinte e um nomes. Consideremos aqui sômente a educação de Aquiles. Quirão era amigo e conselheiro de Peleu (que lhe deve, entre outras coisas, a fortuna de suas núpcias com Tétis): é de modo bastante natural que este lhe confia o filho.

Grande número de monumentos literários e figurativos mostram (11) mostram Quirão ensinando a Aquiles os esportes e os exercícios cavalheirescos, caça, equitação, dardo, ou as artes corteses, como a lira, e mesmo (não reina ele sobre as planícies do Pelion, ricas em ervas medicinais?) a cirurgia e a farmacopéia [21]: curiosa tintura de saber enciclopédico, de sabor bem orientalizante (pensar-se-á na imagem da cultura de Salomão, evocada pelo autor alexandrino da Sabedoria [22]: não há dúvida de que se trata, aqui como lá, de uma imagem idealizada: o herói homérico deve. saber. tudo, mas é um herói; seria ingênuo imaginar que o cavalheiro homérico fosse também, normalmente, um feiticeiro curandeiro).

Este último traço é o único explicitamente mencionado por Homero, mas um episódio da Ilíada apresenta-nos [23] outro mestre de Aquiles cuja aparência, menos mítica que a de Quirão, tem a vantagem de permitir-nos entrever, de maneira realista, o que seria essa educação cavalheiresca: trata-se do episódio de Fênix (12). A fim de contribuir para o êxito de sua difícil embaixada junto a Aquiles, Nestor sabiamente reuniu, a Ulisses e Ájax, este bom velho que poderá comover o coração de seu antigo pupilo (e é realmente enternecido, com efeito, que Aquiles responderá a seu “velho bom papai”, como o chama: ἃττα γεραιέ [24]).

Para ser ouvido, Fênix julga que deve recordar a Aquiles toda a sua história, num longo discurso [25] cuja prolixidade um tanto senil é bastante instrutiva para nós: Fênix, fugindo à cólera de seu pai (estavam em conflito por causa de uma bela cativa), veio refugiar-se na corte de Peleu, que lhe outorgou um feudo nos Dólopes [26]. É a este vassalo querido que o rei vai confiar a educação de seu filho (não é este também um traço bastante “medieval"?): é-lhe entregue bem criança; vemos Fênix tomar Aquiles sobre os joelhos, cortar-lhe carne, fazê-lo comer, beber: “E quantas vezes me molhaste, de vinho, a túnica, no penoso tempo da infância! [27]"

“Fui eu quem fez de ti o que tu és!", declara com orgulho o velho preceptor [28], pois que sua assistência não se restringira à primeira infância: ainda a ele é confiado Aquiles por ocasião de sua partida para a guerra de Tróia, a fim de que venha em socorro de sua inexperiência. Nada mais notável que a dupla missão de que Peleu o investira nessa ocasião: “Não passavas de uma criança e nada sabias ainda da guerra, que a ninguém poupa, nem das assembléias onde os homens se fazem ilustres. E foi para isso que êle me havia enviado: para ensinar-te a ser, ao mesmo tempo, um bom conselheiro, um bom realizador de façanhas (μύθων τε ρητῆρ' ἕμεναι, πρηκτῆρά τε ἕργων) [29]”; fórmula em que se condensa o duplo ideal do perfeito cavalheiro: orador e guerreiro, capaz de prestar a seu suzerano tanto serviço judiciário como serviço de campanha. A Odisséia mostra-nos, da mesma maneira, Atena instruindo Telêmaco sob a inspiração dos exemplos de Mentes [30] ou de Mentor [31].

Encontramos assim, na origem da civilização grega, um tipo de educação nitidamente definido: aquele que o jovem nobre recebia dos conselhos e dos exemplos de um mais velho a quem tinha sido confiado, em vista de sua formação.

SOBREVIVÊNCIAS CAVALHEIRESCAS

Ora, durante longos séculos (pode-se dizer que quase até o termo de sua história), a educação antiga conservará muitos traços que lhe vinham desta origem aristocrática e cavalheiresca. Não me refiro ao fato de as sociedades antigas, inclusive as mais democráticas, permanecerem sempre, para nós modernos, sociedades aristocráticas em virtude do papel que nelas desempenha a escravatura, mas a um elemento mais intrínseco: mesmo quando pretendiam e se reputavam democráticas (como a Atenas do século IV, com sua política demagógica em matéria de cultura: θεωρικόν, arte ao alcance do povo, etc.), as sociedades antigas viviam sobre uma tradição de origem nobre: a cultura podia ser repartida igualitariamente, mas nem por isso conservava menos a marca dessa origem; estabelecer-se-á aqui, sem dificuldade, um paralelo com a evolução da civilização francesa. que progressivamente estendeu a todas as classes sociais e, de a1gum modo, vulgarizou uma cultura cuja origem e inspiração são nitidamente aristocráticas: não acabou de tomar sua Forma nos salões e na corte do século XVII? Todas as crianças da França descobrem a poesia e a literatura nas Fábulas de La Fontaine: este as havia dedicado ao Grão Delfim e (l. XII) ao duque de Borgonha!

Eis por que convém examinar um pouco mais de perto o conteúdo da educação homérica e seu destino. Nela se distinguirão, como em toda educação digna deste nome (a distinção encontra-se já em Platão [32]), dois os aspectos: uma técnica, pela qual a criança é preparada e progressivamente “iniciada em determinado modo de vida, e uma ética, algo mais que uma simples moral de preceitos: certo ideal da existência, um tipo ideal de homem a realizar (uma educação guerreira pode contentar-se em formar bárbaros eficazes ou, ao contrário, colimar um tipo refinado de “cavalheiros”).

O elemento técnico já nos é familiar: manejo de armas, esportes e jogos cavalheirescos, artes musicais (canto, lira, dança) e oratória; arte de bem viver, traquejo mundano; sabedoria. Todas estas técnicas se encontrarão de novo na educação da época clássica, não certamente sem passar por uma evolução no curso da qual veremos, particularmente, os elementos mais intelectuais desenvolverem-se em detrimento do elemento guerreiro: quase que somente em Esparta este último conservará seu lugar de primeiro plano, embora sobreviva, mesmo na pacífica e civil Atenas, no gosto do esporte e em certo estilo de vida realmente viril.

Importa, mais ainda, analisar a ética cavalheiresca, o ideal homérico do herói, e constatar-lhe a sobrevivência na época clássica.

HOMERO, EDUCADOR DA GRÉCIA

Tal sobrevivência parece, à primeira vista, explicar-se pelo fato de ter a educação literária grega conservado, durante toda a duração de sua história, Homero como texto de base, como centro de todos os estudos: fato considerável, do qual nós dificilmente conseguimos imaginar as conseqüências, porque, se temos clássicos, não temos (como os italianos têm Dante e os anglo-saxões Shakespeare) um clássico por excelência; e a dominação de Homero sobre a educação grega exerceu-se de maneira bem mais totalitária ainda do que, entre uns ou outros, a de Shakespeare ou a de Dante.

Como o disse Platão [33], Homero foi, no mais pleno sentido, o educador da Grécia (τν λλάδα πεπαίδευκεν). E o foi desde o princípio (ξ ρχς), como já salientava Xenófanes de Cólofon [34] no século VI: vede, no fim do século VIII, a profunda influência que, nesta Beócia ainda inteiramente campesina, exerce já sobre o estilo de Hesíodo (que começou sua carreira como rapsodo, recitador de Homero). E o será sempre: em plena Idade Média bizantina, no século XII, o arcebispo Eustácio de Tessalônica compilou seu grande comentário, acrescido de toda a contribuição da filologia helenística. Entre tantos testemunhos que atestam a presença de Homero à cabeceira de todo grego cultivado, como à de Alexandre em campanha, ressaltarei o do Banquete de Xenofonte [35], onde um personagem, Nicerato, nos diz: “Meu pai, desejando que eu me tornasse um homem completo (νρ γαθός), forçou-me a aprender Homero; e assim, até hoje, sou capaz de recitar de cor a Ilíada e a Odisséia

Em vista disso, deve-se admitir, o argumento se anula ou, pelo menos, serve a duas interpretações: porque a ética cavalheiresca permanecia no centro do ideal grego é que Homero, intérprete eminente desse ideal, foi escolhido e conservado como texto de base na educação. É necessário, com efeito, reagir contra uma apreciação puramente estética de sua longa primazia: não foi sobretudo por ser obra-prima literária que a epopéia foi estudada, mas porque seu conteúdo fazia dela um manual ético um tratado do ideal. Com efeito, como o veremos adiante, o conteúdo técnico da educação grega evoluiu profundamente, refletindo as transformações profundas de toda a civilização: somente a ética de Homero podia conservar, ao lado de seu valor estético imperecível, uma projeção permanente.

Não pretendo, obviamente, que, no curso de tão longa seqüência de séculos, essa projeção tenha sido, sempre, clara e exatamente compreendida. Na época helenística encontraremos pedagogos obtusos, que, com uma carência total de espirito histórico e subestimando a considerável diferenciação operada nos costumes, se esforçaram por descobrir em Homero todos os elementos de uma educação religiosa e moral válida para o tempo deles: com engenho freqüentemente cômico, esforçavam-se por tirar, dessa epopéia tão pouco sacerdotal e, no fundo, de espírito tão “laico” (13), algo equivalente a um verdadeiro catecismo, ensinando não somente (o que era legítimo [36]) a teogonia e a legenda dourada dos deuses e dos heróis, mas também uma teodicéia, e mesmo uma apologética, deveres para com os deuses e, mais que isso — todo um manual de moral prática, ensinando, através de exemplos, todos os preceitos, a começar pelos da civilidade pueril e virtuosa; melhor ainda: pela prática da exegese alegórica, Homero era utilizado para ilustrar a própria filosofia...

Mas isso não passava de tolices; o verdadeiro alcance educativo de Homero residia alhures: na atmosfera ética em que ele faz atuarem seus heróis, no estilo de vida destes. Desse clima, nenhum leitor assíduo podia, a longo prazo, deixar de impregnar-se. É com razão que se pode falar aqui, como apraz fazê-lo a Eustácio, de uma “educação homérica” (ὀμηρικὴ παιδεία): a educação que o jovem grego hauria em Homero era a mesma que o Poeta imprimia a seus heróis, aquela que vemos Aquiles receber da boca de Peleu ou de Fênix, e Telêmaco, da de Atena,

A ÉTICA HOMÉRICA

Ideal moral de natureza bastante complexa: de início compreende aquele, algo chocante para nós, do “homem das mil voltas” (πολὐτροπος ἀνήρ), que aos nossos olhos encarna a suspeita figura de aventureiro levantino que Ulisses reveste por um momento na epopéia marítima: a sabedoria de vida, a habilidade do herói homérico assimila-se aqui, como o notei de passagem, à sabedoria prática do escriba oriental; converte-se na arte de saber desvencilhar-se em qualquer circunstância. Nossa consciência, depurada por séculos de Cristianismo, perturba-se por um momento diante disto: pense-se na satisfação indulgente de Atena diante de uma mentira particularmente frutífera de seu querido Ulisses! [37]

Felizmente, porém, o essencial não está aí: muito mais do que o Ulisses do Regresso, é a nobre e impoluta figura de Aquiles que encarna o ideal moral do perfeito cavalheiro homérico; uma frase o define: uma moral heróica da honra, É a Homero, com efeito, que remonta, é em Homero que cada geração antiga reencontra aquilo que constitui o cerne fundamental desta ética aristocrática: o amor da glória.

A base sobre a qual repousa é esse pessimismo radical da alma helênica que o jovem Nietzsche tão profundamente meditou: a tristeza de Aquiles! (14) A vida breve, angústia da morte, pouca consolação a esperar da vida de além-túmulo: nada há ainda de bem firme, na idéia de uma sorte privilegiada que se possa receber nos Campos Eliseos, quanto ao destino comum das sombras, esta existência incerta e vaga, que escárneo! Sabemos como a julga o próprio Aquiles, na famosa apóstrofe que dirige, do Hades, a Ulisses, admirando a maneira pela qual as sombras vulgares se afastam, respeitosas, da sombra do herói: “Ah! Não tentes consolar-me de minha morte, ilustre Ulisses: eu preferiria, sendo lavrador, viver a serviço de um homem pobre, que não tivesse muitos bens, a reinar sobre estes mortos, sobre todo este povo extinto!” [38].

Esta vida tão breve, que seu destino de combatentes torna ainda mais precária, nossos heróis a amam ferozmente, com este coração tão terrestre, com este amor tão franco, sem segundo pensamento, que definem, a nossos olhos, certo clima da alma pagã. E, no entanto, esta vida cá embaixo, tão preciosa, não constitui a seus olhos o valor supremo. Estão dispostos — e com que decisão! — a sacrificá-la por algo mais elevado que ela própria; por isso a ética homérica é uma ética da honra (15).

Esse valor ideal, pelo qual a vida mesma é sacrificada, é a ἀρετή, palavra intraduzível, que não se pode exprimir, como o fazem nossos léxicos, por “virtude”, a menos que se enriqueça este vocábulo sem força de tudo aquilo que os contemporâneos de Maquiavel punham em sua virtù. A ἀρετή é, de modo muito geral, o valor, no sentido cavalheiresco da palavra, aquilo que faz do homem um bravo, um herói: “Ele tombou como um bravo que era (νρ γαθός γενόμενος ἀπέθανε)”, fórmula incessantemente repetida para saudar a morte do guerreiro, a morte em que se consagra verdadeiramente seu destino, no sacrifício supremo: o herói homérico vive e morre por encarnar em sua conduta certo ideal, certa qualidade da existência, que esta palavra ἀρετή simboliza.

Ora, a glória, o renome adquirido no meio competente dos bravos, é a moderação, o reconhecimento objetivo do valor, Donde este desejo apaixonado da glória, de ser proclamado o melhor, que é a mola fundamental dessa moral cavalheiresca. Foi Homero o primeiro a formulá-la; em Homero os antigos redescobriram, com entusiasmo, esta concepção da existência como uma competição esportiva em que se trata de excelir este “ideal agonístico da vida”, em que, desde as brilhantes análises de Jakob Burckhardt, é clássico apontar um dos aspectos mais significativos da alma grega (16). Sim, o herói homérico, como, a seu exemplo, o homem grego, não é verdadeiramente feliz senão quando se sente, quando se afirma como o primeiro em sua categoria, distinto e superior.

É essa uma idéia fundamental na epopéia que, por duas vezes, põe o mesmo preceito, formulado pelo mesmo verso, na boca de Hipóloco, dirigindo-se a seu filho Glauco, e na do prudente Nestor, reportando a Pátroclo os conselhos de Peleu a seu filho Aquiles: “Ser sempre o melhor e conservar-se superior aos outros!”

ἀιὲν ἀριστεύειν καί ὐπείροχον ἒμμεναι ἂλλων [39].

A figura de Aquiles recebe, desta tensão da alma inteira para esse fim único, aquilo que faz sua nobreza e sua grandeza trágicas: ele sabe (Tétis revelou-lho) que, uma vez vitorioso sobre Heitor, deverá morrer; no entanto, de cabeça erguida, avança ao encontro desse destino. Não se trata, para ele, de sacrificar-se pela pátria aqueana, nem de salvar a expedição ameaçada, mas somente de vingar Pátroclo, de subtrair-se ao opróbrio que o teria ameaçado. Avança unicamente por sua honra. Não vejo nisto nenhum individualismo romântico, embora este ideal seja terrivelmente pessoal: este amor de si mesmo (φιλαυτία), que Aristóteles analisará mais tarde, não é o amor do eu, mas do Si, da Beleza absoluta, do Valor perfeito que o herói procura encarnar numa Gesta que arrebatará a admiração da turba invejosa de seus pares.

Ofuscar, ser o primeiro, o vencedor, sobrepor-se, afirmar-se na competição, excluir um rival perante os juízes, realizar a façanha (ἀριστεία) que o classificará perante os homens, diante dos vivos, e talvez da posteridade, no primeiro plano: eis por que vive ele, e por que morre.

Sim, uma ética da honra, por vezes bastante estranha para uma alma cristã; implica na aceitação do orgulho (μεγαλοψυχία), que não é um vicio, mas o desejo elevado de quem aspira a ser grande, ou, no herói, a tomada de consciência de sua superioridade real; a aceitação da rivalidade, da inveja, esta nobre Ἒρις, inspiradora de grandes ações que Hesíodo celebrará [40], e com ela, do ódio, como o reconhecimento de uma superioridade manifestada: vede como Tucídides faz Péricles falar [41]: “O ódio e a hostilidade são sempre o que atraem, de imediato, aqueles que pretendem comandar os outros. Mas expor-se ao ódio por um fim nobre é bem inspirado!”

A IMITAÇÃO DO HERÓI

É em função desta alta idéia da glória que se define o papel próprio do poeta, que é de ordem educativa. O fim a que sua obra se subordina não é essencialmente de ordem estética, mas consiste em imortalizar o herói. O poeta, dirá Platão [42], “cobre de glória miríades de feitos dos antigos e assim faz a educação da posteridade”: sublinho este último traço, que parece fundamental.

Para compreender qual foi a influência educadora de Homero, basta lê-lo e ver como ele próprio procede, como ele concebe a educação de seus heróis. Faz-lhes propor, por seus conselheiros, grandes exemplos tirados à gesta legendária, exemplos que devem despertar neles o instinto agonístico, o desejo de rivalizar. Assim Fênix propõe a Aquiles, ao pregar-lhe a conciliação, o exemplo de Meleagro: “É exatamente isto o que nos ensinam os feitos dos antigos heróis... Recordo-me ainda desta gesta (τόδε ἒργον), uma história bem antiga... [43]”

Da mesma maneira Atena, querendo despertar afinal a vocação heróica nesse meninão irresoluto que é Telêmaco, opõe-lhe o exemplo de decisão viril de Orestes: “Deixa os brinquedos de criança, que não são mais para a tua idade. Vê o renome que entre os humanos conquistou o divino Orestes, quando matou o assassino de seu pai, esse astucioso Egisto [44]". O mesmo exemplo aparece ainda três vezes [45].

Tal é o segredo da pedagogia homérica: o exemplo heróico (παράδειγμα): Assim como à baixa Idade Media nos legou a Imitação de Cristo, a idade média helênica transmitiu à Grécia clássica, por meio de Homero, esta Imitação do Herói. É nesse sentido profundo que foi Homero o educador da Grécia: como Fênix, como Nestor ou Atena, continuamente apresenta, ao espirito de seu discípulo, modelos idealizados de ἀρετὴ heróica; ao mesmo tempo, pela perenidade sua obra, manifesta a realidade desta suprema recompensa que é a glória.

A História atesta o quanto suas lições foram ouvidas: o exemplo dos heróis freqüentou a alma dos gregos. Alexandre (como Pirro, depois dele) julgou-se, sonhou ser um novo Aquiles: quantos gregos aprenderam como ele, em Homero, “a subestimar uma vida longa e sem brilho por uma glória breve”, mas heróica!

Sem dúvida, não foi Homero o único educador que a Grécia ouviu: de século em século, os clássicos vieram completar o ideal moral da consciência helênica (vede como Hesíodo a enriquece já com suas noções tão preciosas de Direito, Justiça, Verdade); todavia, não é menos verdadeiro, por isso, que Homero representa a base fundamental de toda a tradição pedagógica clássica, e, quaisquer que tenham sido, aqui ou ali, as tentativas de sacudir sua influência tirânica, a continuidade dessa tradição manteve viva por séculos, na consciência de todos os gregos, sua ética feudal da façanha.


Notas Complementares

(1) A educação homérica: não há dúvida que sobre este tema se encontra, como sobre todos os temas possíveis, a Dissertação inaugural alemã de tipo clássico: R. F. KLÖTZER, Die Griechische Erziehung. Erziehung in Homers Iliad und Odyssee, ein Beitrag zur Geschichte der Erziehung im Altertum, diss. Leipzig, 1911; as páginas mais sugestivas que encontrei são, porém, as de W. JAEGER, Paideia, I, ps. 46-105 (ital). V. BENETTI-BRUNELLI, L'Educazione in Grecia, I. L'Educazione della Grecia eroica. Il problema (Publicazioni della Scuola di filosofia della R, Università di Roma, XIII), Florença, 1939, contém apenas prolegômenos e não versa a matéria anunciada.

(2) A questão homérica: seria abusivo, aqui, pretender orientar o leitor no dédalo da bibliografia; limito-me a remetê-lo a P. MAZON, Introduction à l'Iliade, Paris, 1942: obra recente, bem informada, bastante equilibrada e bem repousante, após as orgias conjecturais da erudição romântica, alemã sobretudo — da qual a Odyssée de V. BÉRARD, Paris, 1924, é ainda, de algum modo, uma bem curiosa herança.

(3) Jamais haverá consensus omnium em filologia: sempre haverá espíritos aventurosos a proporem hipóteses ousadas (equivalentes àquilo que os químicos chamam “experiências para ver”): mas não é necessário registrá-las, como tampouco refutá-las pormenorizadamente. Aqui, alude-se a Ed. SCHWARTZ (1924) e a U. VON WILAMOWITZ (1927), que pretendiam situar por volta de 550 as partes recentes da Odisséia: contrariamente, JAEGER, Paideia, I, p. 48.

(4) Sigo, citando-o, P. MAZON, Introduction à l'Iliade, p. 266.

(5) Relativamente à fixação desta data, os antigos hesitavam entre 1159 a.C. (Helanico) e 686 (Teopompo): PAULY-WISSOWA, VIII, c. 2207-2210, s. v. Homeros.

(6) Valor histórico do testemunho de Homero: ver um resumo das discussões a este respeito, ap. H. JEANMAIRE, Couroi et Courètes, essai sur l'Éducation spartiate et sur les Rites d'adolescence dans l'Antiquité hellénique, Travaux et Mémoires de l'Université de Lille, n.º 21, Lille, 1939, p. 12, n. 1; acrescentar MAZON, Introduction, ps. 288-292.

[7] Cavalaria homérica: adoto aqui as conclusões do primeiro capítulo (que tem este título) da tese, já citada, de H. JEANMAIRE, Couroi et Courètes, ps. 11-111.

(8) O esporte nos lazeres homéricos: cf. ainda B 773-775 (quando em inatividade, os guerreiros de Aquiles entretêm-se, na praia, no arremesso do disco ou do dardo, ou no exercício do arco).

(9) “Torneios de eloqüência? Pelo menos a aceitar-se (hesito, porém, em fazê-lo) a interpretação de H. JEANMAIRE, que toma em sentido forte os versos O 283-284, onde o poeta diz, de Thoas:

ἀγορῆ δὲ ἐ ραῦροι Ἀχαιῶν
νίκων, ὀππότε κοῦροι ἐρίσσειαν περὶ μύθων

“e na ágora poucos aqueus o sobrepujam quando os jovens guerreiros deblateram sobre os mitos”, — e não: “...discutem as opiniões na assembléia” (tese citada, p. 42).

(10) Pugilismo minoano: E. N. GARDNER, Athletics of the ancient world, ps. 11-14. Não posso senão levantar aqui o árduo problema das sobrevivências creto-micênias nos jogos gregos clássicos, esportivos ou musicais: cf. PAUS. XVIII, 4, 1; 23, 2; HES. Op., 655 (GARDINER, ibid. p. 30; W. D. RIDINGTON, The Minoan-Mycaenian background of Greek athletics, dissert. de Filadélfia, 1935).

(11) Quirão, educador de Aquiles: cf. V. SYBEL, s. v. Cheiron, ap. W. H. ROSCHER, Ausf. Lexikon der gr. u röm. Mythologie, I, c. 888-892; DE RONCHAUD, s. v. Chiron, ap. DAREMBERG-SAGLIO, I, 2, ps. 1105a- 1106a. Os textos mais interessantes são os de PÍNDARO, privilegiada testemunha da tradição aristocrática: Pyth., III, 1-5 (cf. IV, 101-115); VI, 20-27; Nom., III, 43-58. Entre os monumentos figurados, notar-se-ão um belo vaso de figuras vermelhas no Louvre, em que se vê Peleu conduzindo Aquiles pequeno até Quirão (C.V.A., Louvre, fasc. 2, III, 1 c, pl. 20, fig. D, uma pintura frequentemente reproduzida de Herculanum, no museu de Nápoles, Quirão ensinando a lira a Aquiles (O. ELIA, Pitture murali e mosaici nel Museo Nazionale di Napoli, Roma, 1932, n.º 25 (9019), fig. 5, p. 25) e os relevos da tensa capitolina, Quirão ensina a Aquiles a caça e o dardo (S. REINACH, RR.G.R., I, 377, II, a).

Existiu um poema arcaico, os Ensinamentos de Quirão (Χίρωνος  'Υροθῆκαι), do qual nos restam alguns fragmentos gnômicos, transmitidos sob o nome de Hesíodo. (ver, por exemplo, na edição Didot deste, ps. 61-69).

(12) Conjugar os papéis respectivos de Fênix e Quirão é tarefa que oferece algumas dificuldades. Os antigos (a julgar por LUCIANO, Dial. Mort., XV, 1) não viam malícia nisto, e falavam, simplesmente, “dos dois mestres” de Aquiles (τοῖν διδακάλοιν αμφοῖν). J. A. SCOTT, American Journal of Philology, XXXIII (1912), p. 76, esforça-se por mostrar que Aquiles teria tido Fênix por tutor durante sua primeira infância, antes de estudar com Quirão: mas Homero não reduz Fênix ao simples papel de “ama seca” (cf. 438 segs. 485). Para W. JAEGER, Paideia, I, ps. 60-65, Fênix é um correspondente humanizado do personagem mítico de Quirão, que o poeta não podia trazer judiciosamente à cena, em virtude do realismo de sua epopéia: o canto I pode ter sido composto à parte e acrescentado depois, mais ou menos tardiamente, e não sem certa discrepância, ao resto da Ilíada (cf. no mesmo sentido MAZON, Introduction, p. 178).

(13) Homero, como poeta não religioso, de espirito nobre, laico, anti-sacerdotal: cf. as fecundas observações de O. SPENGLER, Le Déclin de l'Occident, tradução francesa, II, II, p. 418 — este monumento de tenebrosos erros, entremeados de brilhantes lampejos. Em sentido contrário, a hipótese, bastante aventurosa e mal assentada, de C. AUTRAN, Homère et les Origines sacerdotales de l'Epopée grecque, t. I-III, Paris, 1938-1944; cf. também M. P. NILSSON e, contra, E. EHNMARK: ap. A, PASSERINI, IXe Congrès intern. des Sciences historiques, Paris, 1950, t. I, p. 125, n. 28; p. 126, a opinião do próprio Passerini.

(14) A tristeza de Aquiles: cf. o artigo, bastante falacioso, de resto, publicado sob este título por G. MÉAUTIS, ap. Revue des Études Grecques, XLIII (1930), ps. 9-20.

(15) A ética homérica: é aqui, principalmente, que faço eco do substancioso pensamento de W. JAEGER, Paideia, I, ps. 76 segs. Cf. também, secundariamente, P. MAZON, Introduction, ps. 296 segs.: “La morale de l'Iliade”, e uma bela página do padre A.-J. FESTUGIÈRE, L'Enfant d'Agrigente, ps. 13-14.

(16) O ideal agonístico: J. BURCKHARDT, Griechische Kulturgeschichte, pass. (assim II, ps. 365 segs.; IV, ps. 89 segs.) e, para uma sumária recapitulação, C. ANDLER, Nietzsche, I, ps. 299 segs.


Referências

[1] [PLATÃO] Hiparco, 228 b.

[2] Heródoto, História, II, 53.

[3] Homero, Ilíada, XIX, 404-423.

[4] Idem, XVIII, 590-605.

[5] Idem, I, 463; 470. 

[6] Idem, IX, 175; Odisséia, 1, 148; III, 339; XXI, 271.

[7] Ilíada, XIX, 238 a.

[8] Idem, I, 463 s.

[9] Idem, I 473-474.

[10] Idem, XXIII, 90.

[11] Odisséia, VIII, 104 a.

[12] Ilíada, IX, 186 s. 

[13] Idem, XXIII, 261-897.

[14] Idem, 257 s.

[15] Idem, 694.

[16] Idem, 822. 

[17] Odisséia, 1, 433.

[18] Ilíada, XI, 832.

[19] Idem, 219.

[20] XENOFONTE, Sobre a Caça I.

[21] Homero, Ilíada, XI, 831-2; IV, 219.

[22] Sabedoria de Salomão (Antigo Testamento grego), 7, 17-20. 

[23] Homero, Ilíada, IX, 434 s.

[24] Idem, 607. 

[25] Idem, 434-605.

[26] Idem, 480 s.

[27] Idem, 488-491.

[28] Idem, 485. 

[29] Idem, 442.

[30] Odisséia, I, 80 s.

[31] Idem, II, 267 s.

[32] PLATÃO, As Leis, I, 643a-644a.

[33] A República, X. 606e; cf. Protágoras, 339a.

[34] XENÓFANES DE CÓLOFON, frag. 10 (ed. Dils).

[35] Xenofonte, O Banquete, III, 5.

[36] Heródoto, História, II, 53.

[37] Homero, Odisséia, XIII, 287 s.

[38] Idem, XI, 488 a.

[39] Ilíada, VI, 208 - XI, 784.

[40] HESÍODO, Os Trabalhos e os Dias, 17 s.

[41] TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, II, 64. 

[42] PLATÃO, Fedro, 245a.

[43] HOMERO, Ilíada, IX, 524 s.

[44] Odisséia, 1, 206 s.

[45] Idem, 1, 30, 40; III, 306.

***

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas em 2017).


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