Loading [MathJax]/extensions/tex2jax.js

Postagem em destaque

COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae

Primeiramente quero agradecer bastante todo o apoio e todos que acessaram ao Summa Mathematicae . Já são mais de 100 textos divulgados por a...

Mais vistadas

Pedagogia de S. Bento

São Jerômimo no scriptorium
 - Master of Parral, 1480

Tempo de leitura 1h 20 min

Alguns princípios pedagógicos na Regra de São Bento, por Anselmo Chagas de Paiva, OSB [1].

Este documento está disponível na Biblioteca Digital da Universidad Católica Argentina, repositório institucional desenvolvido pela Biblioteca Central “San Benito Abad”. Seu objetivo é difundir e preservar a produção intelectual da Instituição: aqui ou AQUI. Anuario Argentino de Derecho Canónico Vol XXIII, Tomo II, 2017.

Resumo: Muitos preceitos da Regra de São Bento estão relacionados ao cultivo da educação e da disciplina. São normas que oferecem aos discípulos uma oficina adequada, com instrumentos e ferramentas que apontam e ensinam o caminho do conhecimento e da verdade, mostrando os elementos necessários para a eficácia deste trabalho. Esta educação ao discernimento da vontade e da fé é uma verdadeira arte; uma atmosfera familiar, onde existam confiança, diálogo, firmeza e respeito, permite que o educando torne-se progressivamente um cidadão instruído, íntegro e civilizado. Os valores beneditinos, transcritos na Regra de São Bento e aplicáveis na educação, mostram o equilíbrio humano de São Bento. Tais valores permanecem, ao longo dos séculos, como a base de um ideal pedagógico perene, sob a égide da Sagrada Escritura. Assim, pela pedagogia, podem-se buscar os valores que São Bento quis transmitir ao mundo pela sua Regra e pelo seu testemunho de vida.

Palavras-chave: São Bento. Educação. Regra de São Bento. Discípulo. Pedagogia.

Abstract: Many precepts of the Rule of Saint Benedict are related to the development of education and discipline. These are rules which offer the pupils an adequate workshop, containing devices and tools which point out and teach the path to knowledge and truth, revealing the features necessary to the efficacy of such a task. This education aiming the discernment of the will and faith is a true art; a familiar atmosphere, filled with confidence, dialogue, assurance and respect, allows the student to progressively develop as an educated, upright and civilized citizen. Benedictine values, transcribed in the Rule of Saint Benedict and applicable in the learning process, reveal Saint Benedict as balanced human being. Such values endure, over the centuries, as the basis of a perennial pedagogical ideal inspired by the Holy Scripture. Thus, through pedagogy, one can search the values which Saint Benedict wished to communicate to the world in his Rule and his life testimony.

Key words: Saint Benedict. Education. Rule of Saint Benedict. Pupil. Pedagogy.


Introdução

Cristo se apresentou aos homens como Mestre [2], e, desde cedo, a Igreja assumiu a continuidade de seu magistério; sendo assim, o elemento fundamental da doutrina apresentada por São Bento é de cunho sobrenatural. Este foi justamente o seu grande mérito: saber unir o modo perfeito da vida natural do discípulo com o sobrenatural. Toda a sua pedagogia tende a levar o discípulo a um grau de perfeição, para que ele possa desenvolver a sua personalidade e inserir-se como membro ativo na comunidade humana [3].

I. O surgimento das escolas beneditinas

Os monges, desde os tempos mais primitivos do monaquismo, dedicaram-se à obra da educação. São Bento recebeu dois meninos para educar: Mauro e Plácido [4]. No Capítulo 58 da sua Regra, admite expressamente que adultos não alfabetizados ingressem no mosteiro [5]. A Regra de São Bento fala também da admissão de crianças, dos filhos dos nobres ou dos pobres que são oferecidos ao mosteiro [6]. Esta acolhida de pessoas necessitadas de formação para a vida, apoiada na leitura, tornou indispensável a instituição de ensino dentro do mosteiro com vistas a educar e instruir os recém-chegados.

Além de uma escola interna, própria para os que desejavam a vida religiosa, com o passar do tempo, começaram a surgir, ao redor do mosteiro, algumas residências. Estas pessoas simples ouviam o canto dos salmos, a doutrina de Cristo, e queriam, então, aprender a ler, para acompanhar melhor os monges na leitura divina. Por isso, no interior dos mosteiros aprendiam tanto os que aspiravam à vida religiosa, quanto os que vinham morar em seus arredores. Desponta, então, a escola em um sentido mais específico, que surge como decorrência quase espontânea do encontro de um homem que sabe ler com outro que não o sabe [7].

O Papa São Gregório Magno nos relata que já na época de São Bento crianças eram deixadas pelos seus pais em Monte Cassino, para serem educadas no amor a Deus [8]. São Bento, em sua Regra, indica alguns capítulos referentes ao cuidado dessas crianças na vida comunitária e lhes concede uma atenção cercada de zelo, carinho e também correção, para que pudessem crescer salutarmente [9]. Mais tarde essas crianças passaram a receber a formação humana existente dentro dos claustros dos mosteiros e a usufruir de toda a riqueza artística e intelectual de suas bibliotecas [10].

As escolas monásticas começaram a postular um aprendizado, ampliando suas dimensões, sobretudo no início do século VIII, saindo do âmbito interno do mosteiro para se tornarem escolas destinadas a um público mais amplo [11].

Com o passar do tempo, devido aos prejuízos à observância monástica, tornou-se inviável a admissão de alunos seculares nas escolas claustrais [12]. Este fato teve como consequência uma certa diversificação nas escolas: internas para os religiosos e externas para os seculares. A partir do século VII, graças ao empenho de São Bonifácio, a educação beneditina ganha um novo arauto. Em muitos mosteiros são construídas escolas, dando ênfase, sobretudo, ao trabalho na terra, ao aprendizado do campo e ao cultivo do solo, unidos ao ensinamento da catequese e à cultura. Com isto, os monges beneditinos tornaram-se modelos para os camponeses. Introduziram novos métodos de atividades, como a ourivesaria, escultura, forja etc. A arquitetura recebeu deles iniciações preciosas. Enfim, os beneditinos foram, incontestavelmente, educadores das novas nações do ocidente [13].

Os monges beneditinos, ao longo dos séculos, sob o ponto de vista pedagógico, desenvolveram um trabalho de significativa importância: a educação beneditina contribuiu para criar a civilização medieval. Um fenômeno observado na história, uma vez que tanto no passado quanto no presente, os grandes mosteiros se dedicaram ao ensino, fazendo permear nos projetos pedagógicos de cada escola beneditina a lógica luminosa da fé, visando formar o homem em sua personalidade para uma melhor inserção na sociedade, unido a um conhecimento sólido nos diversos ramos do saber, para que cada educando siga na direção do bem e da justiça, levando para a vida uma educação completa e harmoniosa.

II. O acolhimento nos mosteiros beneditinos

A Regra de São Bento e a tradição deram à hospitalidade nos mosteiros beneditinos um especial realce, sendo o hóspede acolhido com todas as honras. Movido por uma preocupação educacional ou formadora, prescreve São Bento: “Leia-se diante do hóspede a lei divina para que se edifique e depois disso apresente a ele um tratamento cheio de humanidade” [14]. A criança necessitada de ajuda para a sua educação e aprendizado não foi expressamente incluída entre os possíveis hóspedes, mas a escola começou desde logo a ser uma das portas abertas do mosteiro. E o sentido de hospitalidade e serviço será uma das marcas fundamentais da educação beneditina: a escola é uma casa que acolhe. A educação beneditina tem, pois, o desejo de ser uma porta aberta, como também o deve ser o coração [15].

Em um dos “instrumentos das boas obras” propostos por São Bento, temos a prescrição: “Honrar todos os homens” [16], colocada depois do duplo mandamento da caridade e de cinco artigos do Decálogo. Nele também encontramos um outro preceito: “Honrar pai e mãe” [17], mas São Bento muda o texto para “Honrar todos os homens”. O mandamento “honrar pai e mãe” pode ser interpretado como uma exortação a alimentar relações com a família, as quais São Bento, em sua Regra, restringe de forma considerável [18].

A Regra beneditina indica não só que os irmãos prestem honra uns aos outros, mas também que os hóspedes sejam acolhidos com as devidas considerações [19]. Podemos perceber nesta passagem as insistentes recomendações de São Bento para com os hóspedes:

Todos os hóspedes que chegarem ao mosteiro sejam recebidos como o Cristo [...] E se dispense a todos a devida honra [...] Em todos os hóspedes que chegam e que saem, adore-se, com a cabeça inclinada ou com todo o corpo prostrado por terra, o Cristo que é recebido na pessoa deles [...] Leia-se diante do hóspede a lei divina para que se edifique e depois disso apresente a eles um tratamento cheio de humanidade. [...] lave o abade, bem assim como toda a comunidade, os pés de todos os hóspedes [20].

O gesto da hospitalidade supõe a acolhida. A forma como acolhemos as pessoas, como damos atenção a elas, pode ser ocasião fundamental para exercitar o mistério do amor escondido na prática da hospitalidade [21]. Foi por isto que Jesus valorizou mais a atitude de Maria do que a de Marta. Maria parou para ouvir o Mestre, e Marta ficou preocupada com as atividades da casa [22].

No livro bíblico do Gênesis encontramos também um modelo de acolhida e de hospitalidade. Abraão é recompensado porque soube acolher bem três homens enviados pelo Senhor. Eles anunciaram que, mesmo na velhice, sua esposa, Sara, teria um filho [23]. Na hospitalidade está a generosidade de Deus. No transeunte, no pobre, naquele que bate em nossas portas, está a presença de Deus.

São Bento se preocupa com a acolhida que se deve dar a todos com espírito sobrenatural. É em vista de Cristo que eles são honrados. É o que afirma, logo de início, a primeira frase do capítulo sobre os hóspedes. A mesma ideia ainda volta por duas vezes, no mesmo capítulo: “Cristo que é recebido na pessoa deles [...] Mostre-se principalmente um cuidado solícito na recepção dos pobres e peregrinos, porque sobretudo na pessoa desses, Cristo é recebido” [24].

Essa insistência de São Bento na ideia de que Cristo é recebido nos hóspedes é digna de nota. São Bento prescreve manifestações de caridade e honras quase divinas a eles, o que faz constituir o capítulo 53 da Regra, como uma norma de espírito sobrenatural, inspirada na mais pura tradição cristã e monástica.

A acolhida que São Bento presta aos hóspedes é calorosa e entusiástica. São Bento deseja que todos os homens, sem exceção, sejam honrados em vista de Cristo. Assim, insiste para que todos os hóspedes sejam recebidos como o Cristo em pessoa. Nessa apreciação aos hóspedes, São Bento não se inspirou em fontes literárias, mas na sua experiência de monge e de superior. Realmente, após ter recomendado cuidado especial na recepção dos pobres e dos peregrinos, São Bento revela sua experiência: “É principalmente neles que se recebe Cristo, pois o respeito que os ricos inspiram, provoca naturalmente a honra que se lhe deve” [25]. São Bento sabe como os próprios monges tão facilmente se esquecem das atenções devidas aos pobres e enfermos, daí a sua preocupação de honrar todos os homens.

As diferenças de condição social não devem influir na maneira de os irmãos se tratarem entre si e nem mesmo no acolhimento dos hóspedes. Não é nem aos mais ricos nem aos mais poderosos que se devem prestar as honras, mas a todos. No hóspede que chega, nossa fé reconhece a face do Cristo e a Santa Regra nos faz acolhê-lo com um verdadeiro rito: a comunidade, com o abade à frente, organiza-se em procissão ao encontro do recém-chegado, prostra-se e adora o Cristo que nele se recebe.

Mas a hospedagem não se resume a essa acolhida ritual. Exige a partilha com o hóspede que chega. Partilha do que se tem, por pouco que seja. Nos mosteiros, porém, tem-se muito a repartir: a Palavra de Deus, a participação na Liturgia das Horas, a paz, a alegria, o silêncio!

No momento em que recebemos o hóspede, nossa fé nos projeta naquela situação narrada por São Mateus, em que o Cristo nos dirá, ao encontrar-se conosco face a face: “Fui hóspede e me recebeste” [26]. Nessa perspectiva podemos incluir todos aqueles que batem à porta das nossas instituições para receber uma formação visando o aprimoramento da aprendizagem.

III. O educador segundo a Regra de São Bento

No prólogo da Regra de São Bento, encontramos a frase: “Devemos, pois, constituir uma escola de serviço do Senhor” [27]. O termo constituir, do latim, “constituere”, significa, instituir, fundar, estabelecer, erigir. O termo acentua um aspecto normativo e se refere a uma instituição que tem normas e leis.

A escola, em seu sentido original “schola”, indica o lugar em que se pratica o lazer, ou o lugar onde se exercita, se aprende alguma coisa, ou se presta um serviço especial. A escola é também a comunidade daqueles que buscam um objetivo comum. Desde o século IV, as associações e corporações que estavam a serviço do Imperador eram designadas como escolas. Havia uma escola militar onde o chefe era o “magister”, ou seja, o mestre, e os membros desta escola se chamavam irmãos [28].

O termo escola pode designar também os exercícios, o trabalho, o esforço e o zelo que desenvolvemos para alcançar um fim almejado [29]. Santo Agostinho afirma que os cristãos são discípulos de Cristo e que nós nos achamos reunidos em uma escola, tendo o próprio Cristo como guia e somos condiscípulos uns dos outros [30]. Para São Bento o termo ‘escola’ designa também o lugar do mosteiro em si, separado do mundo exterior. O conteúdo principal desta escola consiste em se deixar instruir, com toda a alma, pelo Cristo, o Mestre, por sua palavra, pelo seu Evangelho.

A escola compreende os exercícios e o aprendizado de uma doutrina, ou seja, da Sagrada Escritura, da doutrina de Cristo [31]. O abade também é um mestre que ensina a doutrina espiritual, para que o monge seja curado e alcance a verdadeira vida [32]; por isto, o termo escola indica também que o monge está sempre a caminho e jamais termina de aprender. Entretanto, para São Bento, não se trata de impor o que é duro e áspero, mas trata-se sobretudo do amor, do serviço do amor e da verdadeira fraternidade [33].

No mosteiro o abade é o representante de Cristo34 e sendo Cristo o Mestre [35], também o abade assim o representa, do mesmo modo que o seu magistério é uma extensão do magistério de Cristo. São Bento quer aplicar esta dimensão paterna ao mestre, visando a educação dos seus discípulos, unindo a severidade de mestre e o afeto de pai [36].

São Bento ressalta que o mestre deve propor o diálogo e o colóquio entre os discípulos; empenhar-se na promoção de cada um, a fim de que progridam e cresçam [37]. Para São Bento, o mestre deve ser compreensivo, amar os discípulos, empenhar-se em realizar aquilo que julga ser mais útil para o bem de todos [38] e esforçar-se para congregar os discípulos no convívio fraterno [39]. Ao mesmo tempo em que deve ser paciente para com todos, não deve tolerar as faltas dos transgressores, mas isento de ira e de ódio, amar a todos de forma sóbria e desinteressada [40].

Os dois capítulos da Regra de São Bento que falam do abade ressaltam um espírito rico de sabedoria e amor, que deve reger e inspirar cada educador, que tem como missão inculcar sabedoria, prudência e inflexibilidade contra os vícios, promoção das virtudes, compaixão para com os fracos e, sobretudo, o equilíbrio e o amor recíproco [41].

Ao revestir o abade com estas características, quis São Bento construir uma sociedade familiar, onde há um pai que provê, ensina e, principalmente, ama e respeita os seus discípulos. A partir destes conceitos emana o seu método de ensino. Este método apresenta-se na Regra em um duplo aspecto: um positivo, caracterizado pela dupla doutrina, e outro negativo, manifestado pela correção. Sendo a doutrina ensinada pelo abade essencialmente prática e vital, não deve ser apenas proposta por palavras, mas também pelo exemplo vivo [42].

E o motivo dessa dupla doutrina é a capacidade receptiva dos discípulos. Assim, o método de ensino não é apenas oral, mas também vital. A correção, por exemplo, tem um papel importante na pedagogia de São Bento, como podemos perceber pela sua exortação:

Portanto, em sua doutrina deve sempre o Abade observar aquela fórmula do Apóstolo: ‘Repreende, exorta, admoesta’ (2Tm 4,2), isto é, temperando as ocasiões umas com as outras, os carinhos com os rigores, mostre a severidade de um mestre e o pio afeto de um pai, quer dizer: aos indisciplinados e inquietos deve repreender mais duramente, mas aos obedientes, mansos e pacientes, deve exortar a que progridam ainda mais, e quanto aos negligentes e desdenhosos, advertimos que os repreenda e castigue [43].

O conceito de correção ressaltado por São Bento tem como base a Sagrada Escritura [44], onde o elemento pedagógico se faz presente. Todo o esforço do mestre é para que o discípulo, vítima do erro, reconheça a sua falta. E é aqui que o mestre deve mostrar sua compreensão da natureza humana enfraquecida pelo erro. Este método de ensino exige do mestre três qualidades: caridade, capacidade e adaptabilidade.

A lei fundamental do modo de agir do mestre é a caridade, já que ele é o representante do Cristo, que também é Mestre: “Seja, pois, igual a caridade dele para com todos” [45]. Os vícios devem ser cortados com caridade: “Deve ser casto, sóbrio, misericordioso e faça prevalecer sempre a misericórdia sobre o julgamento” [46]. E para o que foi castigado, recomenda São Bento: “Confirme na caridade para com ele, e rezem todos por ele” [47].

O mestre, segundo São Bento, deve ter sempre em vista o dia em que deverá prestar contas a Deus de seus discípulos: “Pense sempre que recebeu almas a dirigir, das quais deverá também prestar contas” [48], e deve buscar com todo empenho a salvação da alma do seu discípulo [49].

Deve ainda o mestre ter capacidade: “[...] seja eleito pelo mérito de vida e pela doutrina da sabedoria” [50]. Isto indica que ele deve ser capaz de ensinar por palavras e por atos. Deve também conhecer a lei divina: “Deve, pois, ser douto na lei divina para que saiba e tenha de onde tirar as coisas novas e antigas” [51]. Toda a Regra nos mostra que o mestre deve ser profundo conhecedor da psicologia humana, como o foi também São Bento.

A forma apostólica que o Abade deve seguir é: “Repreende, exorta, admoesta” [52]. São Bento adapta-a aos diversos gêneros de monges: os indisciplinados, os mansos e os negligentes. E para as crianças e os velhos, São Bento reserva um tratamento especial: “Haja sim, em relação a eles, uma pia consideração” [53]. O mestre deve dar, além da sua competência, um testemunho verdadeiramente exemplar de vida:

[...] apresente as coisas boas e santas, mais pelas ações do que pelas palavras, de modo que aos discípulos capazes de entendê-las proponha os mandamentos do Senhor por meio de palavras, e aos duros de coração e aos mais simples mostre os preceitos divinos pelas próprias ações [54].

São Bento conhece as fraquezas do homem, suas reações e suas possibilidades, por isso, preconiza, em alguns capítulos de sua Regra, normas que devem ser aplicadas a cada um deles, para que sejam virtuosos, obedientes, pacientes, turbulentos, insolentes: “Aos indisciplinados e inquietos deve repreender mais duramente, mas aos obedientes, mansos e pacientes, deve exortar a que progridam ainda mais” [55]. A cada uma dessas categorias, deve o mestre aplicar os cuidados e corretivos correspondentes, como manifestação do seu amor pelos seus discípulos.

Podemos notar como São Bento preconiza uma educação personalizada, uma relação mestre e discípulo: “Não seja feita distinção de pessoas [...]” [56]. E ainda: “Seja, pois, igual a caridade dele para com todos; que uma só disciplina seja proposta a todos, conforme os merecimentos de cada um” [57]. Na caridade, o mestre deve se dedicar a todos por igual.

IV. O discípulo

Aquele que recebe o ensino de alguém é chamado de discípulo; uma expressão originária do judaísmo tardio, levando a seu termo uma tradição bíblica, na qual percebemos que, habitualmente, os sábios tinham discípulos, a quem chamavam de filhos [58]. A sabedoria divina personificada chama assim os homens a ouvi-la e a seguir as suas lições [59]; por isso, o Novo Testamento reserva o nome de discípulo àqueles que reconheceram Jesus por seu Mestre e aprenderam dele as suas lições [60]. No mosteiro, o mestre é o pai [61] e o discípulo é o filho [62]. Esta união dos dois conceitos já era comum também na antiga tradição.

A atitude de aprender não é meramente passiva, mas o discípulo coopera ativamente nela. O discípulo ouve conscientemente e assimila os ensinamentos recebidos [63]. Se São Bento proíbe que se fale na conferência ou durante a leitura no refeitório [64], é porque o ouvir e o silêncio são atitudes que visam facilitar a aprendizagem do discípulo.

Para São Bento, seu discípulo é quem escuta [65]. A atitude de atender é sumamente importante. O discípulo deve ser obediente e exercer a humildade na escola de serviço do Senhor [66]. São Bento respeita a liberdade. Não obriga a todos; pergunta e chama aquele que deseja escutar os preceitos do mestre [67]. Estabelece uma relação pessoal entre pai e filho, entre o mestre e o discípulo.

A franqueza é uma outra atitude almejada por São Bento para o seu discípulo. Deve confessar espontaneamente as faltas contra a disciplina regular [68] e revelar ao mestre todas as cogitações do seu coração [69]. A franqueza é um elemento pedagógico de suma importância, pois através dela não só o mestre conhece o discípulo, mas exercita-se na humildade e na obediência.

O discípulo que obedece não só é ajudado a ultrapassar os limites estreitos daquilo que procura como útil para si naquele momento, mas alarga-se a uma melhor adaptação à vida social, cooperando por dever de consciência e atingindo aquela liberdade interior que é necessária para chegar à maturidade pessoal [70]. Não obstante toda essa diversidade, o discípulo de São Bento manifesta-se pelas seguintes qualidades: receptividade, cooperação, franqueza e respeito. A disciplina é necessária para todos, e os vícios devem ser cortados pela raiz. São Bento é exigente no caso da murmuração, porque ela aparece como uma oposição à paz [71].

Dentre os instrumentos das boas obras temos ainda: “Não ser murmurador” [72]. O Livro da Sabedoria também nos diz: “Guardai-vos da vã murmuração, guardai a língua da maledicência: pois nem a mais leve palavra fica sem castigo e a boca mentirosa mata a alma” [73]. A referência à murmuração aparece em diversos lugares da Regra de São Bento [74], com frequência frisando que este vício deve ser corrigido. O valor fundamental da atitude de obediência certamente fica ameaçado diante do vício não corrigido da murmuração.

A murmuração é severamente condenada por São Bento como um terrível mal, vício perigoso que põe em perigo a saúde da comunidade e dos indivíduos. São Bento resume o tema da murmuração, segundo a tradição monástica, de forma muito sintética e objetiva. A murmuração é o zelo mau, proveniente do ciúme ou da inveja [75]. Não diz respeito apenas a palavras, mas também a sinais, a gestos, à comunicação não-verbal e, de fato, podemos murmurar dura e ofensivamente por meio da gesticulação e da mímica. São Bento indica como remédio reconhecer o mal como algo próprio de si mesmo [76] e, tão logo ele ascenda no coração, seja esmagado de encontro ao Cristo e revelado ao pai espiritual [77].

São Bento apresenta as regras para corrigir o discípulo: primeiro existe a admoestação oral; em seguida, se não há correção, deve-se amputar o vício. Para isto, deve ser aplicado o que melhor convier em cada caso. Para São Bento a correção é também personalizada, cada idade e cada inteligência deve ser tratada de um modo apropriado [78].

V. Alguns princípios pedagógicos a serem ressaltados

A Regra de São Bento pretende ajudar o discípulo no trabalho de sua formação, pondo a sua disposição uma oficina adequada com seus instrumentos e ferramentas, que lhe ensine o caminho do conhecimento de sua realidade interior e os elementos necessários para o seu progresso. Uma leitura atenta da Regra de São Bento nos permite identificar alguns elementos aplicáveis à pedagogia, com grande realce na educação beneditina, a qual se estabelece a partir de uma aliança entre pais e educadores, visando propor uma vida plena e rica de sentido, aberta a Deus e ao próximo.

V.1. Escuta: sinal da abertura do coração

São Bento inicia o prólogo da sua Regra dizendo: “Escuta, ó filho, os preceitos do Mestre” [79]. O escutar que São Bento enfatiza tem uma especial importância, tanto para a formação humana quanto para qualquer trabalho educativo mais amplo. A primeira palavra da Regra de São Bento, cuja influência é tão profunda, é: “Escuta [...]” [80] e todo o Prólogo desse documento está orientado a expressar o conceito de mosteiro como uma “escola do serviço do Senhor” [81], isto é, um lugar, um ambiente disciplinado, uma estrutura onde tudo está destinado a facilitar um processo educativo baseado no diálogo, cuja abertura e iniciativa merecem respeito e atenção.

Abre-se o livro e a primeira palavra que aparece aos olhos do leitor é a palavra de alguém que nos chama: “Escuta, ó filho” [82]. É um chamado personalizado dirigido ao leitor. Somos convidados a refletir sobre este apelo inaugural da Regra; ou seja, quando mergulhamos no seu universo, nos dispomos à audição, a ouvir alguém que fala. Portanto, o primeiro alerta é para ouvirmos.

Dada esta consideração sobre a audição, conforme nos interpela a Regra de São Bento, constatamos que a iniciativa de falar não é nossa, mas parte de alguém que nos fala, e este é o Mestre dos Mestres, o próprio Cristo: tal palavra tem uma força de expressão e abrangência que nos remete à perfeição, isto, porém, se houver uma predisposição interna para torná-la coerente com a vida. Assim diz São Bento: “Escuta, ó filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração;  recebe de boa vontade o conselho de um bom pai, e o executa eficazmente” [83].

A tônica deste primeiro versículo da Regra de São Bento é escutar e obedecer. Os antigos mestres de sabedoria já recomendavam o ato de escutar, também os pais costumam interpelar assim os seus filhos [84]. Em todos os casos é alguém mais velho que fala, um mestre que deseja instruir. Com isso São Bento mostra a escola viva dos mais velhos, que têm uma experiência a transmitir às forças mais jovens, como observa: “Os mais jovens respeitem os mais velhos, e os mais velhos amem os mais jovens” [85]. Eles devem ser favorecidos para que atinjam a idade adulta e colaborem eficazmente na construção do mundo. Por conseguinte, assim como os anciãos constituem o elo indispensável com o passado, os jovens fazem o vínculo também imprescindível com o futuro.

A escola é uma instituição na qual se conserva, se veicula ou se transmite todo o conhecimento acumulado, toda riqueza de sabedoria dos predecessores, tornando presente e viva a tradição, passando de geração em geração todo o patrimônio cultural. Isto é feito através de cada indivíduo que se empenha na função de ensinar. Quem recebe o conhecimento de seus antepassados deve abrilhantá-lo com os seus méritos para poder passá-lo adiante, ainda mais enriquecido, a uma nova geração, que também procurará enriquecê-lo [86].

São Bento, em sua Regra, prescreve “venerar os mais velhos” [87], porque através deles temos um elo com o passado e a tradição; eles constituem a memória da família, da comunidade e da sociedade. Além disso, os mais velhos têm a experiência de vida; aprenderam numa escola insubstituível, que é a própria vivência, por isso, são os mestres da vida e merecem consideração especial [88]. Assim, a atitude de escutar supõe confiança nos mais experientes; é sinal de sabedoria e educação escutar com docilidade aqueles que estão mais adiantados na vida e podem falar em nome de sua própria experiência.

Neste sentido, o tema da obediência está intimamente ligado ao tema da escuta, como um prolongamento natural do ouvir, e se manifesta como um aprofundamento da escuta. Uma das mais importantes capacidades humanas é a capacidade de escutar. A escola é um lugar onde os estudantes aprendem como escutar e como obedecer ao mestre89. A principal responsabilidade dos que se encarregam disso é criar espaço para este particular processo de desenvolvimento [90].

“Escuta” foi a primeira palavra que São Bento escolheu para o início da sua Regra [91], enquanto que “executa eficazmente” conclui a frase. A intenção de São Bento é que toda a vida do discípulo seja uma escuta, e é sob esta ótica que a Regra deve ser lida; sob o prisma da escuta, o que implica a obediência em seu pleno sentido.

Quando São Bento prescreve ao discípulo, “executa eficazmente”, chama-o de filho, mostrando assim o afeto que deve ter aquele que ensina, e a correspondência daquele que ouve. Este primeiro versículo da Regra de São Bento quer dispor favoravelmente o ouvinte para que preste toda a atenção para com aquele que lhe está falando e se apresse a pôr em prática a doutrina que escutou [92]. O que adiantaria abrir-nos em escuta ao Mestre, se desse fato não resultassem atos?

A escuta precede a ação, em sentido pleno deve traduzir-se em atos, sem murmurar, logo imediatamente à ordem, e com perfeição. São Bento não quer traçar somente uma teoria, mas também estimular a sua execução [93]. E a própria Sagrada Escritura nos exorta: “Felizes os que ouvem a palavra de Deus e a observam” [94]. A expressão “executa eficazmente” pode significar ainda a obediência, tão cara para São Bento em sua Regra [95], o que constitui o elemento essencial da pedagogia beneditina. O educando deve ser pronto à obediência, o seu ouvido deve estar aberto ao saber.

Certamente, uma das palavras fundamentais da vida do educando é escutar. Só aquele que escuta o outro pode receber e transmitir o conhecimento [96]. São Bento conhece e desenvolve uma autêntica pedagogia do escutar. O processo da escuta e da compreensão da palavra se desenvolve desde uma primeira atenção exterior, passando pela inclinação do ouvido do coração e a percepção alegre e pronta, até a realização edificada na ação. A escuta envolve as duas partes, tanto aquele que ouve quanto aquele que fala, havendo uma participação conjugada entre ambos. Na escuta se determina a liberdade de nosso coração. Aquele que escuta está e vive em diálogo com o mestre.

Podemos observar que São Bento parece colocar, neste primeiro versículo, todo seu coração. A palavra “filho” é carregada de afeto; é o “bom pai” quem fala; ele se dirige ao ouvido do coração e o filho deve receber a palavra de boa vontade. Os dois interlocutores se defrontam neste primeiro versículo: de um lado o mestre, que é também um pai bondoso e que comunica ao outro uma palavra, um conselho, um preceito e um ensinamento. Do outro lado está o discípulo, que é designado pelo nome de filho [97]. O discípulo é confrontado quatro vezes com um imperativo: “escuta – inclina – recebe – executa”. Este mestre e pai, no contexto pedagógico, é, por certo, cada professor no ofício de seu magistério [98].

Na frase: “Escuta, ó filho”, encontramos ainda uma série de ensinamentos que se a combinam: o educador, na qualidade de mestre, deve semear na mente dos seus discípulos a razão de sua ordem e da sua instrução. Como o fermento que faz crescer, convence e ajuda o discípulo a obedecer, assim, a voz de quem ordena atinge o ouvido. O ouvido vai permitir a percepção, a compreensão do que foi dito. Passa-se, portanto, da exterioridade, daquilo que foi ouvido, à interioridade; do chamado à resposta esperada.

Para São Bento, ainda não basta o primeiro apelo à escuta; ele o reforça com a metáfora bíblica do inclinar do ouvido: “[...] inclina o ouvido do teu coração”. Na Regra de São Bento a palavra inclinar ocorre sempre em conexão com a humildade. Assim, ela é explicada nos antigos comentários como um fazer-se humilde e pequeno, um abrir-se para o alto, a partir do íntimo de si mesmo [99]. Muitos, talvez, abrem os ouvidos do corpo e escutam os sons, mas, se não inclinam o coração, não podem sentir a verdade [100].

Na Sagrada Escritura, o “coração” designa não só o que há de mais íntimo em sua capacidade de amar, mas também em sua capacidade de pensar. Também para São Bento o coração é a parte do corpo onde a semente do ensinamento se aloja, e o ouvido deve estar ligado a ele. Assim, o coração que recebe a palavra, desenvolve também a sabedoria e o conhecimento.

Diz-nos ainda o texto: “Recebe de boa vontade”. Com isso São Bento mostra a maneira como devemos acolher a palavra, o ensinamento: com bondade e com prontidão. Cada um poderia, evidentemente, endurecer o seu coração [101]. O coração é como a terra boa que deve se abrir para poder receber a semente [102]. É bem característico de São Bento mostrar que esta abertura de si mesmo exige o esforço, para atingir o mais íntimo do ser e, assim, ele quer que escutemos todo o ensinamento com amor e recolhimento.

Se o mestre beneditino, como vimos, é capaz de ensinar, seja o discípulo capaz de receber este ensinamento [103]. A receptividade do discípulo é a atitude de escuta. A obediência e o silêncio compõem um binômio, onde o mestre e o discípulo interagem. Para São Bento, a obediência é sem demora e fundamenta-se na humildade [104] e no silêncio: “Como efeito, falar em ensinar compete ao mestre, ao discípulo convém calar e ouvir” [105]. Esta ligação dos conceitos de obediência e silêncio é apresentada na Regra de forma bem específica, sendo o capítulo da obediência anterior ao capítulo do silêncio.

No capítulo 73, São Bento mostra que os discípulos que vivem mal são chamados de relaxados e negligentes [106], e os bons são chamados de “obedientes” [107]. O que caracteriza os negligentes e relaxados é que eles não querem se abrir para a escuta [108]. Assim, para São Bento, o não querer escutar é o mesmo que não querer obedecer.

Notemos, com isso, que a escuta exige um clima de silêncio. Silêncio exterior e, principalmente, silêncio interior. Não se pode ouvir na agitação, e é por isso que São Bento tanto valoriza o silêncio. Podemos notar que neste versículo São Bento trata de uma trilogia: escutar, crer e obedecer. Estas três palavras indicam o movimento do homem que escuta, levando-o à concentração, intimidade e comunhão. O desejo de escutar nos leva, em última análise, a compreender o outro. A atitude de escutar, de ouvir, é, portanto, uma atitude básica, própria e constante da vocação do discípulo.

A escuta verdadeira conduz ao conhecimento da verdade e da obediência. A obediência, a princípio, parece ser algo que limita a liberdade pessoal. Dizer que a obediência é a máxima promoção do homem soa estranho e até contraditório para uma sociedade que hoje cultiva outros valores.

Dentro do ponto de vista educacional, a obediência está intimamente unida à sabedoria, isto supõe uma exigência daquele que ordena e daquele que obedece. E a obediência beneditina supõe prudência, reflexão, conselho e diálogo. Neste sentido, a obediência é um caminho de renúncia e abandono e, ao mesmo tempo, conduz a uma grande liberdade interior, onde o homem passa a não viver mais escravizado pelo egoísmo e orgulho, mas põe-se à disposição do outro, ao ouvi-lo e compreendê-lo.

V.2. A liberdade no processo educativo

No cerne do processo educativo está a “verdade”, ou, em uma visão mais dinâmica, o conhecimento da verdade e a sua conquista. O homem é curioso, isto é, tem sede de saber e se alegra com a descoberta da verdade. A inteligência do homem precisa da verdade e podemos dizer ainda que ela é iluminada pela verdade, que confere ao homem a lucidez para discernir, avaliar e escolher, ponderar e decidir, e, por isso, ela também o liberta. Sendo assim, a educação tem por fim a conquista da liberdade interior [109], razão pela qual a educação tem seu ponto de partida na inteligência e no irradiante efeito clarificador da verdade.

A perspectiva em que São Bento enfoca a educação tem suas raízes na afirmação do próprio Cristo: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” [110]. O discípulo é aquele que escuta interiormente a Verdade. Esta é a chave da antropologia cristã e, de uma maneira especial, da ideia cristã de liberdade. Em uma época em que se fala muito acerca do lugar da liberdade nos métodos educacionais, é útil lembrar que toda a visão que São Bento tem do homem, na descrição que ele faz da natureza humana, se baseia no seu conceito de liberdade. Este é um conceito preciso e é apresentado na Regra de São Bento de forma concreta. A liberdade não é o meio, mais um fim: é uma qualidade interior da vida, embora não seja imposta, mas só pode ser adquirida por meio de um processo de aprendizagem [111].

Três das seções mais conhecidas da Regra de São Bento são dedicadas à descrição desta liberdade. A primeira está no final do Prólogo, no qual o contexto é o propósito da disciplina; a segunda se encontra no final do capítulo sétimo, cujo conteúdo é a humildade. E, finalmente, no capítulo 72, que diz respeito, em sua totalidade, ao amor fraterno. Para São Bento, só o homem disciplinado, humilde e caritativo pode ser capaz de alcançar a verdadeira liberdade, que é fonte da educação.

Nesta instituição esperamos nada estabelecer de áspero ou de pesado. Mas se aparecer alguma coisa um pouco mais rigorosa ditada por motivo de equidade, para emenda dos vícios ou conservação da caridade, não fujas logo, tomado de pavor, do caminho da salvação que nunca se abre se não por estreito início. Mas, com o progresso da vida monástica e da fé, dilata-se o coração e com a inenarrável doçura de amor, é percorrido o caminho dos mandamentos de Deus [112].

São Bento usa a expressão “dilata-se o coração”. Essa expressão é o âmago da Regra em sua totalidade: a meta da disciplina não é a conformidade, mas um “coração dilatado”, uma indescritível “doçura” que a maioria das pessoas chamaria de felicidade. No capítulo 72 São Bento mostra a riqueza de sua concepção de liberdade quando a descreve sob o título de zelo bom.

Exerçam, portanto, os monges, este zelo com amor ferventíssimo, isto é, antecipam-se uns aos outros em honra. Tolerem pacientissimamente suas fraquezas, quer do corpo quer do caráter; rivalizem em emprestar mútua obediência; ninguém procure aquilo que julga útil para si, mas, principalmente, o que o é para outro, ponham em ação castamente a caridade fraterna; temam a Deus com amor; nada absolutamente anteponham a Cristo, que nos conduza juntos para a vida eterna [113].

Esta inspiradora e difícil visão da liberdade, ao mesmo tempo tão cristã e tão humana, deve sempre estar presente no espírito de todo o trabalho educacional autenticamente beneditino. O propósito da educação é criar condições apropriadas para o desenvolvimento do educando, visando a sua liberdade interior. A liberdade intelectual é fruto de conhecimentos práticos adquiridos na busca disciplinada da verdade [114].

É certamente este o verdadeiro sentido da insistência de São Bento na obediência: a obediência é uma condição do desenvolvimento interior. O discípulo que não obedece autenticamente ao seu abade e ao seu irmão não será um discípulo feliz. Toda desobediência representa, nesse sentido, a busca de uma liberdade ilusória que obstrui a aquisição da verdadeira liberdade. E, no plano da educação, esta obediência é o principal pré-requisito para uma aprendizagem eficaz, como sendo a virtude mais apropriada para atingir a perfeição.

Esta relação entre obediência e liberdade resulta particularmente importante para a formação do educando nos colégios beneditinos. Não está nos moldes da educação pretendida por São Bento um enfoque radicalmente “permissivo”. Uma instituição beneditina sem “um certo rigor disciplinar” significaria uma contradição em termos. De igual maneira, a obediência deve fundamentar-se e levar o educando a respeitar a todos [115]. Mas a autoridade não deve ser usada de modo totalitário; quando São Bento fala do abade, diz que deve ser mais amado do que temido [116]. O abade não é só mestre; ele é também um bom pastor e um pai bondoso [117].

O enfoque beneditino na educação fundamenta-se, pois, em uma determinada forma de relacionar a obediência com a liberdade. A preocupação e a meta formativa da educação beneditina consistem em criar boas condições nas quais o educando possa crescer [118]. Em toda a Regra de São Bento, podemos verificar que nenhuma pressão é exercida, exceto a coerência com o caminho espiritual proposto. São Bento fundamenta sua doutrina em conformidade com os ensinamentos de Cristo: exigência e liberdade.

A mensagem do evangelho é exigente. E Cristo, a este propósito, jamais iludiu os seus discípulos e aqueles que o escutavam. Ao contrário, com muita firmeza os preparava para toda espécie de dificuldades internas e externas, levando sempre em conta o fato de que eles podiam também decidir deixá-lo [119]. Mas, ao mesmo tempo, Jesus diz aos seus discípulos: “Não tenham medo!” [120] – e certamente não diz isso para anular de algum modo o que exige. Antes, com estas palavras, confirma toda a verdade do Evangelho e todas as exigências nele contidas. Se o homem aceita a mensagem de Jesus, em atitude de fé, encontra também na graça a força necessária para enfrentar as dificuldades [121].

E São Bento coloca no início da Regra a lista dos instrumentos da arte espiritual [122]. É este o caminho da liberdade e, portanto, da escolha, onde o próprio discípulo se submete à Regra, que ele livremente escolheu seguir. Para o discípulo de São Bento, a Regra é o itinerário de vida e escola de sabedoria [123]. O capítulo sobre os noviços é, por si só, uma formação para a liberdade. Desde a sua chegada ao mosteiro, o discípulo aprende procurar a Deus. Depois disso, é colocado diante da escolha decisiva: “Eis a lei sob a qual queres militar: se podes observá-la, entra; mas se não podes, sai livremente” [124].

Esta liberdade proposta por São Bento é um caminho a ser encontrado em conjunto, em uma obra comum, onde ninguém siga o que é “útil para si, mas para os outros” [125]. A liberdade tem necessidade de um conteúdo comunitário. O discípulo de São Bento, prometendo obedecer às instruções da Regra, faz a experiência de ali encontrar uma escola de amor. Incorporando-se a um grupo que o precedeu, ele pode encontrar um apoio para a sua orientação e formação.

V.3. O amor fraterno

A convivência pacífica há de fundar-se particularmente na justiça, na liberdade verdadeira, na compreensão mútua, no auxílio fraterno. E esta caridade supõe um respeito mútuo entre os discípulos [126] e está unida à ordem e à disciplina [127]. Portanto, o amor e a humildade unem-se, movendo o homem. E São Bento quer que o homem viva e cresça no amor. Para São Bento, todos os que estão no mosteiro, do superior até o hóspede desconhecido e pobre, do doente ao último dos irmãos, todos significam a presença viva de Cristo. Assim, ao valorizar o respeito e o amor fraterno, São Bento promove as relações de amizade e, no campo pedagógico, um melhor convívio entre os alunos favorece a disposição mútua de se compreenderem.

Na Regra de São Bento os dois grandes capítulos que se referem ao abade [128] e o capítulo que alude ao Prior [129] mostram as qualidades requeridas para o superior ideal, mas, presumivelmente, também as características do discípulo ideal. Indicam-se com bastante clareza as qualidades que se espera que os discípulos valorizem, a que devem aspirar e que deveriam procurar incutir nos demais [130]. Podemos dizer ainda que estas qualidades apreciadas por São Bento no abade e no seu prior são também apreciáveis em qualquer outra pessoa, sinal de que o educador deverá ter, segundo a concepção de São Bento, essas mesmas qualidades.

Esse mesmo tema emerge quando São Bento se refere ao celeireiro, cuja responsabilidade é a administração prática do mosteiro. A atitude de São Bento com respeito à eficiência é igual a sua atitude com respeito à disciplina: um meio e não um fim. O trabalho principal do celeireiro consiste em manter felizes os irmãos: deve ser eficiente, mas não sobrepujar-se em sua eficiência, isto é, deve ser prudente, paciente e previdente; e sempre dar respostas razoáveis inclusive aos que pedem sem razão [131].

São Bento prescreve ainda que o celeireiro deve cuidar com especial solicitude dos enfermos, das crianças, dos hóspedes e dos pobres [132], e preocupar-se igualmente com as pequenas coisas que, muito facilmente, são mal atendidas na vida em comunidade. O propósito de tudo isto é que “ninguém se perturbe nem fique triste” [133]. Nesta linha podemos dizer que todo trabalho realizado pelo monge no mosteiro deve ser um trabalho de amor [134]. E São Bento ainda adverte que o mais humilde dos utensílios do mosteiro deve ser visto com o mesmo valor dos vasos sagrados do altar [135]. Daí provém a insistência, presente em toda a Regra, de que todo mosteiro e todos os seus trabalhos devem ser considerados “casa de Deus” [136]. Para Santo Tomás de Aquino “o primeiro ato da caridade é amar” [137] e São Bento nos exorta a fazer de nosso ambiente um lugar de amor [138].

Chama a atenção como São Bento repete e enfatiza por diversas ocasiões em sua Regra a importância da caridade fraterna. As normas apresentadas por São Bento são todas perpassadas pelo amor fraterno. Esta é a razão pela qual, muitas vezes, a qualidade mais importante que se busca no abade e no prior de um mosteiro é a sua habilidade prática de fomentar o verdadeiro amor na comunidade. São Bento define o amor em termos bem práticos. O abade deve amar a

todos por igual [139], sabendo que o favoritismo de qualquer tipo é a força que cria

a maior divisão na comunidade. Não obstante, deve constantemente “adaptar-se

às circunstâncias [...] de acordo com a condição e a inteligência de cada um” [140].

Em cada ser humano há uma dignidade imensa, enquanto imagem e filho de Deus, que deve ser reconhecida e respeitada por todos. No mosteiro essa dignidade é informada por uma visão sobrenatural, enquanto o outro não apenas é respeitado, mas amado. Amor se traduz na paciência com o discípulo, em ajudá-lo a superar o que existe de negativo em si próprio [141]. São Bento conhece, certamente, por experiência a importância da paciência no desenvolvimento do discípulo, e São Paulo mostra que a paciência é a primeira manifestação do amor, que tudo suporta e tolera [142]. Em toda a Regra, São Bento demonstra uma atitude de paciência misericordiosa para com os fracos de corpo e de caráter; assim, São Bento faz da paciência uma forma cotidiana de amor.

Conclusão

A abordagem dos princípios pedagógicos na Regra de São Bento teve como objetivo ressaltar a fertilidade do pensamento de São Bento no contexto pedagógico, a partir do estudo dos conceitos de mestre, de discípulo, de doutrina e de ambiente. São Bento, com efeito, foi uma referência segura para a vida no seu tempo e, por isso, os seus ensinamentos podem ser aplicados, visando auxiliar na formação do homem contemporâneo.

O propósito foi chamar a atenção para três pontos fundamentais na educação beneditina: a disciplina, o trabalho e o exercício paterno da autoridade, que deve ter o equilíbrio entre o rigor e a bondade, entre a solicitude e a comunhão, entre a abertura para o mundo e o espaço interior, entre o incentivo aos fortes e a consideração para com os fracos.

São Bento assumiu as grandes virtudes monásticas, como a obediência, o silêncio, a humildade, a ascese, a paciência, a perseverança, etc. Mas também acrescentou, ou acentuou mais fortemente, elementos da tradição cenobítica e da própria experiência: a comunhão do amor fraterno, o serviço mútuo e a consideração para com as pessoas.

Os ensinamentos da Regra de São Bento nos chamam ao aprimoramento desta tarefa no campo da educação enquanto avançamos em direção ao amanhã. Os jovens que educamos preparam-se para o futuro. A Regra de São Bento pode dar a sua contribuição, tendo em vista a construção da paz e da fraternidade. A educação não é apenas conhecimento, mas também experiência. Ela une o saber e o agir, instaura a unidade e procura a coerência. Ela compreende o campo afetivo e emocional, com uma dimensão ética: saber fazer e ousar transformar a sociedade e o mundo [143].


Notas:

[1] Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Católica Argentina. Tesis: Amoris Officium Pascere. A dimensão do serviço da autoridade do superior religioso à luz da Regra de São Bento, a partir de uma leitura teológica-jurídica do cânon 619 do CIC (2004). Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Diretor da Facul-dade  de  São  Bento  do  Rio  de  Janeiro  (FSBRJ).  Promotor  de  Justiça  do  Tribunal  Eclesiástico  Interdiocesano do Rio de Janeiro. Email: dom.anselmo@osb.org.br

[2] Cf. Mt. 11, 5-29; 23,10.

[3] Cf. Sagrada Congregação para a Educação Católica (1977), n° 39.

[4] Cf. S. Gregório Magno, 2003, II, 11.

[5] Cf. Regra de São Bento (RB) 58, 20.

[6] Cf. S. Gregório Magno, 2003, II, 3, 14; 11, 1; 20, 1; RB 48, 7-9; 59, 1-6.

[7] Cf. L. Almeida Prado, Afinal, o que é educação? Uma visão filosófica, em Souza, P. N. P; Silva, E. B. da (coord.). Educação: uma visão crítica, São Paulo 1989, pág. 51.

[8] Cf. S. Gregório Magno, 2003, II, 9. 12.

[9] Cf. RB 27, 30; 30, 10; 31, 9; 37; 45, 3; 59, 1.6; 63, 6.18; 70, 6.

[10] Cf. D. Milroy, La educación según la Regla de San Benito, en Cuadernos Monásticos 64 (1983) 86-90.

[11] Cf. F. Peeters - M, A, Cooman, A pequena história da educação. São Paulo 1968, pág. 44.

[12] Cf. L. Almeida Prado, Afinal..., pág. 196.

[13] Cf. F. Peeters – M, A, Cooman, A pequena..., pág. 44.

[14] RB 53, 9.

[15] A porta é um dos símbolos do Cristo. Ele disse: “Eu sou a porta” (Jo. 10,9). Cristo é a porta da vida em plenitude. Através dele encontramo-nos a nós mesmos e encontramos os outros. Ele nos ajuda a abrirmos as portas do coração aos outros. A juventude é mesmo a idade das grandes descobertas, das mais variadas experiências [...] As portas de uma instituição educacional se abrem para a esperança e as perspectivas de futuro. São portas que normalmente conduzem o educando a novas aventuras e o faz mergulhar em experiências novas, por caminhos ainda não trilhados. E Cristo ainda completa: “Quem entrar por mim tem a vida!” (Jo. 10,9). Quem entrar por Ele não fica desiludido, não sairá defraudado e encontrará orientação para a vida. Cristo é a porta que dá sentido à vida. Uma porta sempre aberta. E cada mestre e cada educando é também chamado a passar por esta porta, e mais ainda, a porta do coração, e que cada discípulo saiba ter a mente aberta e o coração sempre disponível a acolher a mensagem, que visa o progresso e o desenvolvimento da pessoa. A expressão latina “Patet porta, magis cor” encontrada em cima da porta de um mosteiro medieval indica que esta deve ser também a finalidade e o objetivo de cada mosteiro beneditino: saber acolher bem todo aquele que chega ao cenóbio (Cf. L. Almeida Prado, Afinal..., pág. 240).

[16] RB 4,8.

[17] Ex. 20, 12. Cf. Mt. 19, 18-19.

[18] Cf. RB 54,1-2.

[19] Cf. RB 53, 2.6-7.15.

[20] RB 58,1-2; 6-7; 9.13.

[21] Cf. P. Mendes Peixoto, O valor da hospitalidade. Caminhar na missão, Uberaba 2016, págs. 2-4.

[22] Cf. Lc. 10, 38-42.

[23] Cf. Gn. 18, 10.

[24] RB 53, 7.15.

[25] RB 53, 15.

[26] Cf. Mt. 25, 31ss.

[27] RB Pról. 45.

[28] Cf. A. Böckmann, Perspectivas da Regra de São Bento, Rio de Janeiro 1990, pág. 48.

[29] Cf. L. cit.

[30] Cf. S. Agostinho, 1954, s. 177,2; 292,1.

[31] Cf. RB Pról. 50. Cf. também RB 2,4; 64,9.

[32] Cf. RB 2.

[33] Cf. RB 35, 6; 72.

[34] Cf. RB 2, 2s; 64, 13.

[35] Cf. Jo 13, 13ss.

[36] Cf. RB 2, 24.

[37] Cf. S. João Paulo II, L’Osservatore Romano 35, 31/08/1980, pág. 3.

[38] Cf. RB 64, 15.8

[39] Cf. RB 27, 5.8-9.

[40] Cf. RB 2, 24.

[41] Cf. RB 2 e 64.

[42] Cf. RB 2, 12ss.

[43] RB 2, 23-25.

[44] Cf. Mt. 18, 5; 1Cor. 5,5.

[45] RB 2, 22.

[46] RB 64, 9.

[47] RB 27, 4.

[48] RB 2, 34.

[49] Cf. RB 25, 4.

[50] RB 64, 2.

[51] RB 64, 9.

[52] RB 2, 23; 2Tm. 4, 2.

[53] RB 37, 3.

[54] RB 2, 12.

[55] RB 2, 25.

[56] RB 2, 16.

[57] RB 2, 22.

[58] Cf. RB Pr 1, 8.10; 2, 1; 3, 1.

[59] Cf. RB Pr 1, 20ss; 8, 4ss.

[60] Cf. RB Mt 10, 1; 12, 1; Lc. 10, 1; 6,7; 19, 37.

[61] Cf. RB 2, 4ss; 64, 2.9.

[62] Cf. RB Pról. 1; 2, 3.

[63] Cf. RB 58, 14.

[64] Cf. RB 6, 2; 6, 8; 19, 7.

[65] Cf. RB 73, 12.

[66] Cf. RB Pról. 45.

[67] Cf. RB Pról. 1.

[68] Cf. RB 46.

[69] Cf. RB 46, 5; 7, 44ss.

[70] Cf. S. João Paulo II, L’Osservatore Romano 35, 31/08/1980, pág. 3.

[71] Cf. E. Contreras, La murmuración en la Regla de San Benito, in Cuadernos Monásticos 8 (1973) 121-131.

[72] RB 4, 39.

[73] Sb. 1, 11.

[74] Cf. RB 5, 14.17.18. 19.

[75] Cf. RB 4, 66; 64, 16; 65, 22.

[76] Cf. RB 4, 48.

[77] Cf. RB 4, 57; cf. RB Pról. 28.

[78] Cf. RB 30, 1.

[79] RB Pról. 1. A Regra de São Bento abre-se com um Prólogo, que é um escrito preliminar cujo objetivo é apresentar o livro. Poderia ser também chamado de Proemium (palavra exortatória). O Prólogo da Regra de São Bento é um valioso documento de espiritualidade, que descreve a vocação monástica e as grandes linhas de seu itinerário. Tem caráter sapiencial, isto é, entra na série dos escritos dos grandes mestres da sabedoria da antiguidade, tais como: Livro dos Provérbios, Eclesiástico e Livro da Sabedoria. Este caráter sapiencial se depreende do vocabulário e do estilo do Prólogo: O autor é um pai que se dirige a seu filho e o chama; é também um mestre que fala ao discípulo; propõe uma exortação que tende a suscitar uma decisão concernente ao seu futuro [cf. E. Bettencourt, Escuta, ó filho..., in Em Comunhão 55 (1984) 3].

[80] RB Pról. 1.

[81] RB Pról. 45.

[82] RB Pról. 1.

[83] RB Pról. 1.

[84] Na Sagrada Escritura, com frequência, temos a exortação a “prestarmos ouvido”. A parábola do Bom Pastor (cf. Jo. 10,1-18) mostra a relação entre escutar, crer e obedecer. As ovelhas escutam a voz do Bom Pastor e fazem mais, seguem-no, o que supõe intimidade. Escutar, seguir e conhecer Cristo é acreditar. Conhecer a voz de Cristo é identificar-se com a sua mensagem, não somente crer nessa mensagem, mas, identificá-la e senti-la como própria. Neste sentido, o Bom Pastor não é somente o modelo e exemplo de todos os pastores, mas é modelo e exemplo de todos os que creem e querem obedecer a Deus. Existe ainda um texto importante para compreender as exigências do escutar, que se encontra em 1Sm 3,10: “Fala, Senhor, teu servo escuta”. Esta resposta do jovem Samuel contém em si a atitude da completa atenção, atitude de obediência total à palavra de Deus (cf. Sl. 33,12; 94,7-10; Mt.. 7, 24-27; Ap. 2, 7.11.17.29; 3,6; Pr. 4,20. 5,1; 7.1).

[85] RB 63,10. E em RB 4,70 temos: “Venerar os mais velhos. Amar os mais jovens”.

[86] Cf. E. Bettencourt, Jovens e anciãos na Regra de São Bento, em Comunhão 15 (1991) 7-10.

[87] RB 4, 70.

[88] Cf. RB 37,1-3

[89] O termo obediência vem do latim obedire, próximo do verbo audire e significa ouvir, atender a palavra do outro, aceitando-a e executando-a. Implica naturalmente o ato sensível de ouvir, acompanhado da sua compreensão pelo intelecto, seguido da aceitação voluntária, e voltando ao plano sensível pela execução. Envolve todo o homem, corpo e alma. Três capítulos da Regra são dedicados especialmente à obediência, nos quais esta virtude fundamental é definida, considerada nos seus múltiplos aspectos e aplicações: nos capítulos 5, 58 e 71. No capítulo 4 ela já é lembrada entre os instrumentos das boas obras (cf. RB 4,60-61), e no capítulo 7 a obediência evidencia-se como elemento essencial à humildade. Ao realçar a obediência como atitude fundamental e indispensável ao monge, São Bento seguiu a trilha da tradição monástica, sobretudo a dos monges do deserto, cujas doutrinas lhe foram transmitidas por Cassiano. São Jerônimo, ao falar dos antigos monges do Egito, afirma que “primeiro acento entre eles é obedecer aos seus superiores e fazer tudo que eles mandam” (Ep. 22,35). Para Sulpício Severo, entre os monges, a obediência é a prima Lex, e diz: “Esta é a primeira das suas virtudes, obedecer ao mandato alheio” (cf. S. Gregório Magno, Diál. 1,19; 1,10-11).

[90] Cf. D. Milroy, La educación según la Regla de San Benito, en Cuadernos Monásticos 64 (1983) 84.

[91] Ao escolher esta expressão, São Bento foi certamente influenciado pela Sagrada Escritura. No sentido bíblico a palavra ‘escutar’ designa uma atitude global que inclui a obediência. Escuta-se com o coração, do íntimo de si mesmo, como indica o Sl. 94: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações” (RB Pról. 10). No livro do profeta Jeremias lê-se a exortação do Senhor que diz: “Ouve, ó Israel, escutai a minha voz” (Jr 7,23). E no momento da transfiguração do Senhor, de uma nuvem pode-se ouvir uma voz do céu a dizer: “Este é o meu Filho, o Eleito; escutai-o” (Lc. 9,35).

[92] Cf. A. Böckmann, Perspectivas da Regra de São Bento, Rio de Janeiro 1990, pág. 17.

[93] Cf. Ibid., pág. 26.

[94] Lc. 11,28.

[95] Cf. RB 5.

[96] Cf. RB Pról. 2. Cf. também RB 5,1; 7,31-48; 53,20; 58, 7.17; 62, 4.11; 63,16; 68, 1.5; 72,6.

[97] Cf. RB 3; 61,4.

[98] Cf. A. Böckmann, Perspectivas da Regra de São Bento, Rio de Janeiro 1990, pág. 18.

[99] Cf. Ibid., pág. 19.

[100] Cf. Ibid., pág. 24.

[101] O coração é um dos órgãos fundamentais do nosso corpo, e o mais importante na circulação do sangue. A Sagrada Escritura nos apresenta o coração como algo mais íntimo de uma pessoa, revela a sua ternura e a sua capacidade de amar. Para as culturas antigas o coração é tido como a sede da inteligência e da vontade (cf. Dt. 11,18), por isso, a primeira função espiritual do coração é conhecer (cf. Ex. 7,23; 9,21; 1Sm. 4,20). Deste modo, a inteligência e todas as capacidades intelectuais são próprias do coração: “Reconhecerás, então, no teu coração, que tal como um homem educa o seu filho, assim o Senhor, teu Deus, te educa” (Dt. 8,5; Jr 24,7). A literatura sapiencial atribui ainda ao coração a capacidade de julgar: “ [...] e a sabedoria entrará no teu coração e o conhecimento será para ti uma delícia. A reflexão te guardará e o entendimento amparar-te-á, para te livrar do mau caminho” (Pr. 2,10; Ecl. 1,16). É também sede da vontade e das decisões (cf. 2Sm. 7,2; 1Rs. 8,17; Is. 10,7). E ainda, é o coração que tem a capacidade de escutar a Palavra (cf. Dt. 4,29; 6,5; 10,12; 11,13; Lc. 8,15). Por isso, o coração que não quer escutar a Palavra é um coração obcecado, cego, que não vê (cf. Is 6,10). Mas o coração que escuta a Palavra é comparado a uma tabuinha onde o próprio Deus escreverá a sua lei (cf. Jr 31,33; Dt. 4,39; 10,16; 30,6; Ez. 44,7.9; Hb. 8,10). O coração endurecido e pesado é o que não escuta a Palavra de Deus, não percebe os seus desígnios (cf. Ex. 14,4; Sl. 95,8; Jr. 3,17; 7,24; 9,13; Ex. 24,3). Mas aquele que escuta a Palavra de Deus sente o seu coração transformar-se, como diziam os discípulos de Emaús: “Não nos ardia o nosso coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lc. 24,32). Uma das causas mais comuns da luta de Jesus com os fariseus e judeus em geral era porque estes tinham o coração fechado a sua palavra (cf. Mc. 3,5).

[102] Cf. Mc. 4,20; Lc. 8,15.

[103] Os antigos sentiam predileção por estas formas diretas que criam imediatamente um clima de intimidade entre mestre e discípulo, um clima propício às confidências de coração a coração. Nota-se um elo de ternura em quem exorta seus “filhos” a “escutar” com o ouvido do coração, matiz de interioridade que se apropria dos nomes de mestre e pai. Assim São Bento escreverá que deve tratar seus discípulos com “a severidade de um mestre e o piedoso afeto de um pai” (RB 2,24). Ao mestre é atribuído o nome de pai, conforme a tradição sapiencial, porque é mestre de sabedoria, e o título de mestre, porque ocupou como abade o lugar de Cristo no mosteiro (cf. RB 2,2).

[104] Cf. RB 5,1.

[105] RB 6,6.

[106] Cf. RB 73,7 e 48,23.

[107] RB 73,6.

[108] Cf. RB 48,18.

[109] Cf. L. Almeida Prado, Afinal, o que é educação? Uma visão filosófica, em Souza, P. N. P; Silva, E. B. da (coord.). Educação: uma visão crítica, São Paulo 1989, pág. 47.

[110] Jo. 8, 31-32.

[111] Cf. Milroy, 1983, pág. 85.

[112] RB Pról. 46-49.

[113] RB 72, 3-11.

[114] Cf. D. Milroy, La educación según la Regla de San Benito, en Cuadernos Monásticos 64 (1983) 86.

[115] Cf. RB 23-30.

[116] Cf. RB 64,15.

[117] Cf. RB 64,15; 72,10.

[118] Cf. D. Milroy, La educación según la Regla de San Benito, en Cuadernos Monásticos 64 (1983) 87.

[119] Cf. Jo. 6,67.

[120] Na Sagrada Escritura a primeira vez que aparece a palavra “medo” é imediatamente após nossos primeiros pais terem cometido o pecado: “Ouvi teus passos no jardim, por isso tive medo […]” (Gn. 3,10). O medo se nos apresenta nas suas mais diferentes facetas: medo de Deus, medo de comprometer-se, medo da própria afetividade, medo do passado, medo do que é novo, medo de assumir-se cristão em locais públicos. No Novo Testamento o anjo aparece a José e diz a ele: “Não tenhas medo!” (Mt. 1,20). O Anjo Gabriel diz a Zacarias: “Não tenhas medo!” (Lc. 1,13). E o mesmo anjo diz também a Maria: “Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus!” (Lc. 1,30). Não ter medo é o primeiro obstáculo que nós precisamos vencer para nos aproximarmos do Cristo. O medo nos destrói e nos corrói por dentro e não nos permite dar passos firmes na fé, e seguir adiante. O medo nos leva a enterrarmos os próprios talentos que Deus nos deu. O contrário de não ter medo significa confiar, ter a certeza, ter a convicção, a fé única neste Deus que nos ama e quer o nosso bem. Mesmo quando o “mar” à nossa volta parece querer nos engolir, Jesus vem em socorro de nossas limitações, e nos estende a sua mão. Ele não nos quer acomodados em nossa falsa segurança. Se queremos seguir os seus passos, Ele sempre nos diz como disse a Pedro: “Venha!”. Na nossa falta de fé, duvidamos. Não somente de nós mesmos, mas do Senhor. Ele nos encoraja e nos levanta: “Homem de pouca fé, por que duvidaste?” (Mt. 14,31), ao mesmo tempo em que nos estende a sua mão. O Senhor continua a nos dizer: “Não tenhas medo!” (Lc. 12,31). É necessário que, como Pedro, saibamos seguir os passos de Cristo, apesar dos riscos. Precisamos reconhecer nossas fraquezas, mas também nossas capacidades. Esta exortação “Não tenhas medo!” precisa ser lida numa dimensão muito ampla. Não devemos ter medo porque o homem foi redimido por Deus, e a redenção perpassa toda a história humana. Ele é a luz que resplandece nas trevas (cf. Jo. 1,5). Jesus já dizia aos apóstolos: “Não tenhas medo!” (Lc. 24,36) e depois de sua ressurreição disse também às mulheres: “Não tenhas medo!” (Mt. 28,10). Nós somos movidos pelos nossos medos: medo de doenças, medo da morte, medo de algo não dar certo, medo de não conseguir. Medo dos nossos próprios fracassos, medo dos nossos erros, das nossas incertezas, das pessoas, da violência. O medo é nossa condição existencial; ele nos acompanha da infância até a morte. Mas não precisamos ter medo, porque o Senhor está com cada um de nós. Ele mesmo disse: “Eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt. 28,20). Lembremos também do que diz o salmista: “O Senhor é minha luz e minha salvação, a quem temerei? O Senhor é o protetor de minha vida, de quem terei medo?” (Sl. 26,1).

[121] Cf. S. João Paulo II, 1994, pág. 202.

[122] Cf. RB 4.

[123] Cf. RB Pról. 20.

[124] RB 58,10.

[125] RB 72,7.

[126] Cf. RB 72.

[127] Cf. RB 31,18.

[128] Cf. RB 2 e 64.

[129] Cf. RB 31.

[130] Cf. D. Milroy, La educación según la Regla de San Benito, en Cuadernos Monásticos 64 (1983) 87.

[131] Cf. RB 31.

[132] Cf. RB 31,9; 66,3; 53,15.

[133] RB 31,19

[134] Cf. D. Milroy, La educación según la Regla de San Benito, en Cuadernos Monásticos 64 (1983) 88.

[135] Cf. RB 31,10; 32,4.

[136] Cf. RB 31,19; 53,22.

[137] Cf. S. Tomás de Aquino, 1980, II, q. 27.

[138] Cf. RB 72.

[139] Cf. RB 2,22.

[140] RB 2, 23-25.

[141] Cf. RB 72,3; 1Cor 13,7.

[142] Cf. 1Cor. 13,4.

[143]. Cf. Congregação para a Educação Católica, 2014, pág. 6.


Referências

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2015.

ALMEIDA PRADO, L. Afinal, o que é educação? Uma visão filosófica. In: SOUZA, P. N. P; SILVA, E. B. da (coord.). Educação: uma visão crítica. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989, p. 47-61.

______. São Bento, o eterno no tempo. Rio de Janeiro: Marques Saraiva: Lumen Christi, 1994.

BETTENCOURT, E. Escuta, ó filho... Em Comunhão, 55, p. 3-7, 1984.

______. Jovens e anciãos na Regra de São Bento. Em Comunhão, 15, p. 7-10, 1991.

BÖCKMANN, A. Perspectivas da Regra de São Bento. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1990.

CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Educar hoje e amanhã: Uma paixão que se renova. Brasília: Edições CNBB, 2014.

CONTRERAS, E. La murmuración en la Regla de San Benito. Cuadernos Monásticos, vol. 8, p. 121-131, 1973.

MENDES PEIXOTO, P. O valor da hospitalidade. Caminhar na missão. Uberaba: p. 2-4, 2016.

MILROY, D. La educación según la Regla de San Benito. Cuadernos Monásticos, vol. 64, p. 86-90, 1983.

PEETERS, F.; COOMAN, M. A. A pequena história da educação. São Paulo: Paulinas, 1968.

A Regra de São Bento. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 2015.

SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. A escola católica. Petrópolis: Vozes, 1977.

S. AGOSTINHO. In Iohannis Evangelium Tractatus, Turnhout: Brepols, 1954.

S. GREGÓRIO MAGNO. Diálogos. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 2003.

S. JOÃO PAULO II. Cruzando o limiar da esperança. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

______. São Bento Patrono da Europa mestre de vida cristã. L’Osservatore Romano 35 (cidade do Vaticano 31 de agosto de 1980), 3.

S. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Porto Alegre: EdiPUCRS, 1980.

***

Leia mais em O professor católico e a Regra de São Bento.


Leia mais em COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae


Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.




Institutiones, um livro que preservou a Educação Clássica

 

O copista Jean Mielot (1448-68) trabalhando em seu
scriptorium na página de um manuscrito do século XV

Tempo de leitura: 8 min.

O texto abaixo é a Apresentação do livro de Institutiones: introdução às letras divinas e seculares, de Cassiodoro, publicado pelas Edições Kírion, 2018.

APRESENTAÇÃO

Flávio Magno Aurélio Cassiodoro Senador viu a luz deste mundo pela primeira vez por volta de 485 na cidade de Scyllaceum, atual Squillace, localizada nas terras quentes do sul da Península Itálica e beijada docemente pelas águas do Mar Jônio. Quando nasceu, o Império Romano do Ocidente já estava morto e enterrado, e com ele todo aquele período que séculos mais tarde os historiadores chamariam de Idade Antiga. Na segunda metade da década de oitenta do séc. V, a porção ocidental da Europa já se havia tornado uma enorme colcha de retalhos de reinos germânicos que se esforçavam em manter-se de pé sobre os escombros do colossal edifício civilizacional construído pelos romanos ao longo de mais de mil anos.

A Itália dos antigos césares, pátria de Cassiodoro, se encontrava naquele momento sob o domínio dos ostrogodos, de jure subordinados à corte de Constantinopla; de facto, porém, independentes. Em outras palavras, isso significava que os ostrogodos tinham em suas mãos a hercúlea missão de encontrar o tênue equilíbrio entre a manutenção do legado romano (ainda muito vivo na população nativa remanescente) mediante a conservação de diversas instituições e leis do extinto Império do Ocidente, e a preservação dos costumes típicos dos próprios ostrogodos. Falhar no primeiro ponto poderia lançar a península em uma guerra contra Constantinopla, aquela porção do Império Romano ainda muito viva, de conseqüências inimagináveis naquele momento; falhar no segundo seria agir para o progressivo embotamento da própria identidade. A esse caldeirão fervente devemos acrescentar também o ingrediente inflamável da divisão religiosa. Ora, os ostrogodos aderiram em sua maioria ao arianismo, enquanto a população nativa da Península Itálica era majoritariamente adepta da fé católica proclamada com solenidade pelo Concílio de Nicéia em 325. Por cerca de cinqüenta anos os ostrogodos tiveram governantes — como Teodorico, o Grande — que souberam dar bases sólidas à ponte do presente que haveria de unir o passado ao futuro. A partir da década de trinta do séc. VI, no entanto, crises políticas agudas romperam o frágil equilíbrio das coisas e a intervenção inevitável das forças de Constantinopla sepultaram o reino ostrogodo. Cassiodoro não só testemunhou todos esses eventos como também, de certa forma, deixou-se moldar por eles.

Assim como seu pai, Cassiodoro ocupou altos cargos entre os ostrogodos. Sob Teodorico, o Grande, foi sucessivamente questor, cônsul e magister officiorum, isto é, ministro para a política interna. Atalarico, sucessor de Teodorico, fez dele prefeito do pretório da Itália. De suas mãos correram rios de tinta que deram forma a diversas obras nesta etapa de sua vida, entre as quais citamos: Chronica, Historia Gothorum e Variae. As crises que culminaram na eclosão da guerra entre os ostrogodos e o Império Romano do Oriente levaram Cassiodoro à desesperança na política e, por conseguinte, ao abandono da vida pública. Por volta de 545, Cassiodoro fundou nos arredores de sua cidade natal o monastério de Vivarium, destinado a tornar-se o embrião dos centros culturais monásticos da Idade Média. Ali viveria o restante de seus dias, emigrando deste mundo com aproximadamente noventa anos de idade.

No Vivarium, Cassiodoro tomou em suas mãos a tarefa de preservar os monumentos da literatura ameaçados pelos conflitos que percorriam as terras da Itália com a impetuosidade de fogo em palha seca. Assim, foram realizados ali os trabalhos de cópia e tradução de tudo o que se pudesse encontrar de gregos e latinos. Para este fim, criaram-se métodos e estabeleceram-se preceitos rigorosos a fim de que os textos produzidos fossem os mais fidedignos possíveis. A biblioteca que se estruturou no Vivarium tornou-se, como se pode imaginar, verdadeiro tesouro das preciosíssimas jóias do mundo greco-romano. Como uma espécie de prolongamento dessa atividade, instituiu-se naquele local uma escola voltada ao estudo de assuntos sagrados e humanos.

Ora, em decorrência dos trabalhos realizados no Vivarium, o grande engenho de Cassiodoro produziu as célebres Institutiones, que o leitor tem agora nas mãos em uma bela edição traduzida para o português. Escritas em torno do ano de 550, as Institutiones possuíam como objetivo primeiro a instrução dos monges residentes no Vivarium. Entretanto, a posteridade demonstrou que a grandeza das Institutiones não podia ficar circunscrita a este modesto escopo e fez delas uma das obras mais influentes do medievo.

O tratado se divide em duas partes bastante distintas. Na primeira, o autor discorre sobre os livros sagrados e aproveita a oportunidade para tratar de seus principais comentadores, conduzindo o leitor por veredas suaves à introdução daquilo que hoje chamamos Patrística. A mensagem de Cassiodoro é clara: a leitura das Sagradas Escrituras deve sustentar-se na autoridade da Igreja — manifestada, por exemplo, através dos Concílios — e nos comentários dos grandes sábios cristãos. Ademais, o autor salienta que a educação não deve ser vista como um fim em si, mas como um meio que fornece os instrumentos adequados para a reta compreensão das Sagradas Escrituras. Por fim, abordam-se questões referentes à arte de copiar e à ortografia. A segunda parte, por sua vez, versa sobre cada uma das artes que compõem o trivium e o quadrivium, percorrendo, portanto, cada uma das sete artes liberais, consideradas, como já mencionado há pouco, suportes para o estudo da Teologia.

Embora as Institutiones não tenham sido escritas para eruditos e especialistas, Cassiodoro não deixou de empregar em seu texto o melhor do estilo latino de seu tempo. Podemos mesmo conjecturar que talvez o êxito de seu escrito se explique justamente pelo fato de o autor conciliar de maneira magistral a simplicidade didática na exposição dos temas com um bom estilo latino que se empenha em seguir os cânones da literatura clássica. O que não quer dizer que o seu latim não se ressinta aqui e acolá do cenário conturbado e decadente daqueles tempos de incertezas e miscigenação cultural que empurravam a língua latina para províncias cada vez mais distantes daquelas freqüentadas outrora por Cícero, Virgílio e Horácio. Assim, o tradutor de Cassiodoro enfrenta não poucas dificuldades para determinar se tal termo foi empregado em sua acepção clássica ou de acordo com um significado mais recente. Além disso, o uso de termos técnicos e neologismos se torna outro campo minado mesmo para o tradutor mais experiente. Entretanto, nenhuma dessas coisas é suficiente para ofuscar a beleza e a relevância das páginas que logo se abrirão aos olhos do leitor.

Para concluir, é preciso ressaltar que todo aquele que estiver realmente empenhado em resgatar a essência das artes liberais sob um viés cristão não pode de forma alguma ignorar o conteúdo destas Institutiones, verdadeira espinha dorsal de tal projeto pedagógico.

William Bottazzini Rezende
Pouso Alegre, abril de 2018

***

Leia mais em Boécio e Cassiodoro.

Leia mais em Sobre as artes e as disciplinas das letras liberais, por Cassiodoro.


Leia mais em COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.




Quadrivium: O Estudo dos Números

Pitágoras de Samos

Tempo de leitura: 8 min.

Quadrivium: O Estudo dos Números por Wagner Jales.

A Matemática é uma das ciências mais antigas que existem e, segundo Boyer está “originalmente centrada nas ideias de número, grandeza e forma”. Os gregos antigos influenciados por Pitágoras reconheciam que “na natureza tudo é número” e consideravam 4 formas básicas de estudá-los; pela Aritmética, Geometria, Música e Astronomia e o conjunto dessas disciplinas foi chamado de Quadrivium que, juntamente com as disciplinas do Trivium, que são: a Gramática, Dialética e Retórica compõem as 7 artes liberais e eram a base da educação carolíngia.

O Quadrivium seria o melhor meio de compreender a ordem do universo, enquanto obra primorosa concebida pelo divino arquiteto” com essa frase Lopes (2014) sintetiza o interesse mais elevado dos pensadores gregos e tal interesse foi herdado pelos medievais cristãos que viam nos estudo dos números, uma maneira de compreensão integral da palavra de Deus contida nas escrituras.

O que é o Quadrivium

Alguns pesquisadores falam que o termo “Quadrivium” aparece pela primeira na obra De institutione arthmetica de Boécio (489 – 524 d.C). No mesmo documento, o monge explica que “se o investigador carece dessas quatro partes [Aritmética, Geometria, Música e Astronomia], não poderá encontrar o que e verdadeiro, e sem essa especulação da verdade nada pode ser retamente sabido […] Este, pois é o Quadrivium”.

A afirmação de Boécio sugere a utilização do Quadrivium na busca pela verdade não através de uma pesquisa experimental, mas através do raciocínio abstrato e da interpretação simbólica dos números. Essa mesma ideia é vista em Isidoro de Sevilha (560 – 636 d.C.) quando o mesmo divide a Filosofia em “especulativa” e “prática”, onde a primeira “Eleva-nos acima do visível tornando possível contemplarmos as coisas divinas e celestiais, as quais só podem ser apreciadas com a mente, pois está acima do corpo”.

A Filosofia especulativa por sua vez é subdividida em “Doutrinal”, “Natural” e “Divina” sendo a primeira, definida pelo próprio bispo como “Aquela que investiga a quantidade abstrata” e é nessa subdivisão que o autor enquadra das disciplinas do Quadrivium.

A Aritmética pode ser definida como o estudo ou teoria dos números; a Geometria como o estudo do número no espaço; a Harmonia (ou Música) que, para Platão, representava o número no tempo e a quarta, a Astronomia/Astrologia, o número no tempo e no espaço.

Com essas definições é possível observar que sem a Aritmética não é possível existir as demais disciplinas e o estudo em sequencia se faz necessário, pois o conhecimento adquirido na disciplina anterior serve de base para o estudo da posterior.

Outra observação que pode ser feita é que a Gramática está para o Trivium assim como a Aritmética está para o Quadrivium; enquanto que a primeira é a base para as “Artes da Linguagem” e sem ela não se avança no Trivium, a segunda é base das “Artes dos Números” e, da mesma forma, sem ela não se estuda as demais.

O Quadrivium em York, e as referências de Alcuíno.

Por não ter produzido literatura especifica sobre o Quadrivium, para investigar quais as bases utilizadas por Alcuíno no renascimento Carolíngio é necessário conhecer a sua historia e seus referenciais.

Alcuíno foi instruído na escola de York e nela, seu maior professor era o Venerável Beda (672 – 735 d.C.). Suas grandes obras se tornaram material didático para a grande escola de York e foram levados por Alcuíno às escolas de Carlos Magno. O venerável é reconhecido por obras sobre Aritmética, Música e Astronomia/Astrologia e em especial por seus trabalhos De Tempurum Ratione e De Natura Rerum.

Na escola carolíngia também se utilizou trabalhos de Plínio, o Velho (23 – 79 d.C.) e Macróbio (390 – 430 d.C.) complementados com traduções romanas de Phaenomena de Arato (315 – 240 a.C.) bem como De Natura Rerum e Etymologia de Isidoro de Sevilha “além das tábuas de contagem (Computus), a tradição irlandesa que foi extensamente consultada”.

Outros autores importantes aparecem no catálogo da biblioteca de Reichenau de 821/822 a exemplo; Boécio sobre Aritmética, Música e Geometria além dos livros de Vitruvius (81 a.C. – 15 a.C.) arquiteto romano que descreveu em um dos seus livros, a proporções ideais do corpo humano.

Em seu texto Dialogus De Rethorica Et Virtutibus, Alcuino descreve um esquema de subdivisões da Filosofia. As disciplinas que formam o Quadrivium estão subordinadas à Física, definida na mesma publicação como Physis naturi ou física natural. Nesta obra, a Aritmética é definida como “a ciência dos números”, dividindo-se em Astronomia e Astrologia, Geometria (conceituada como “a disciplina que mede as distâncias e tamanhos dos corpos”) e Música (definida como “a divisão dos sons”).

O estudo dos números no período de Carlos Magno possuía três diferentes formas; uma forma mais “pura”, próxima ao que chamamos hoje de teoria dos números; uma abordagem aplicada e uma terceira; mais mística e simbólica.

O que se tem hoje de conhecimento de Aritmética, Geometria, Música e Astronomia com certeza é muito superior ao que se tinha há aproximadamente 1.200 anos. Seria inconcebível nos dias atuais abandonar tudo o que se produziu do século IX em diante, mas o que devemos aprender com os medievais é reconhece da presença de uma inteligência superior na natureza.


Referências

ALCUINO – Dialogua De Rethorica et Virtutibus, Opera Omnia, 2 vols. Paris, 1851. (Migne, Patrologia Latina, C, CI).

BOÉCIO, A. M. S. De Arithmetica. Manuscrito. Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze. 1872

BOYER, C.B. História da matemática. Tradução de Elza F. Gomide. 2 ed. São Paulo: Edgard Blücher, 1996.

LOPES, J. F. N. S. T. (2014) “A Escola de Chartres e a Tradição do Quadrivium” Cuestiones Teológicas, No 96, Medelim-Colômbia. ISSN 0120-131X. [Disponível AQUI]

MARTINEAU J. (Org) (2014). Quadrivium, As Quatro Artes Liberais Clássicas Da Aritmética, Da Geometria, Da Música E Da Cosmologia. Tradução Jussara Trindade de Almeida – São Paulo. É Realizações. São Paulo, SP.

JOSEPH, M (2008). O Trivium: as artes liberais da lógica, gramática e retórica: entendendo a natureza e a função da linguagem. Tradução e adaptação de Henrique Paul Dmyterko – São Paulo. SP. É Realizações, 2008.

EASTWOOD, B. S. (2007) Ordering the Heavens, Roman Astronomy and Cosmology in the Carolingian Renaissance, BRILL, Leiden – Boston.

Texto disponível no LINK.

***


Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.






Um tesouro perdido da Educação

Tempo de leitura: 18 min.

O texto abaixo é a Apresentação do livro de Didascalicon - sobre a arte de ler, de Hugo de São Vitor, publicado pelas Edições Kírion, 2018. 

APRESENTAÇÃO

O que aqui se oferece ao leitor é uma obra rica e profunda, que por muito tempo constituiu um dos pilares da educação cristã, mas que depois acabou por ser totalmente esquecida. Por esta razão, não podemos simplesmente jogá-la em seu colo sem fazer-lhe a advertência de que este livreto aparentemente obsoleto é na verdade um grande tesouro. O propósito desta apresentação — e também das notas de rodapé ao longo do livro — é propiciar uma absorção mais consciente de seus ensinamentos tão fundamentais, enquadrando-os num panorama mais abrangente da pedagogia vitorina, de modo que os frutos colhidos desta leitura possam ser mais saborosos e nutritivos.

***

A começar pelo autor da obra, podemos afirmar que, se é pouco conhecido o seu nome, menos ainda o são sua vida e sua relevância na história da Igreja e da educação. Já considerado por muitos um dos expoentes da educação, não só cristã, mas ocidental, e um dos maiores teólogos da história, ao lado de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, Hugo de São Vítor reúne em si, harmonicamente, todas as principais potências que um bom cristão pode almejar, como descreve São Boaventura:

“[…] de onde se deduz que todas as Sagradas Escrituras ensinam estas três coisas: a geração eterna e a encarnação temporal de Cristo, a norma do viver e a união da alma com Deus, ou a fé, os costumes e o fim de ambos. Sobre a primeira destas coisas devemos exercitar-nos com afinco no estudo dos Doutores; sobre a segunda, no estudo dos Pregadores; sobre a terceira, no estudo das almas contemplativas. Santo Agostinho ensina de preferência a primeira; São Gregório, a segunda; São Dionísio Areopagita, a terceira. Santo Anselmo segue a Santo Agostinho; São Bernardo segue a São Gregório; Ricardo de São Vítor segue a São Dionísio Areopagita; porque Santo Anselmo se distingue no raciocínio, São Bernardo na pregação e Ricardo de São Vítor na contemplação. Mas Hugo de São Vítor se sobressai nas três” [1].

Qual foi, então, a causa do esquecimento de tão grande doutor? No que concerne à sua obra teológica, o motivo parece claro. Hugo de São Vítor, calcado numa longa tradição de comentadores e estudiosos da Sagrada Escritura, realiza com seu trabalho uma nova façanha: reunir, num único livro, tudo que o cristão deve saber de fundamental sobre os mistérios da fé. Ou seja, tudo aquilo que antes estava disperso nos muitos comentários dos Santos Padres e dos teólogos subseqüentes foi sintetizado numa única obra, com uma unidade perfeita, de tal modo que este tipo de escrito veio a se tornar a nova prática no estudo da teologia: é o que posteriormente se chamará de “suma teológica”. Ele mesmo o descreve:

“Por isto reunimos nesta obra uma suma de todos os mistérios da fé, para que a alma, firmando-se em coisas certas, pudesse conformar-se e unir-se às mesmas em sua intenção, a fim de não ser tragada sem direção e sem ordem pelos vários volumes e lições das Sagradas Escrituras” [2].

Portanto, o que Hugo de São Vítor fez foi nada menos que lançar as bases e o modo de fazer daquilo que São Tomás de Aquino levaria à perfeição. E foi justamente isto o que fez com que o seu De Sacramentis Fidei Christianae deixasse de ser copiosamente lido, dando lugar à Suma teológica de São Tomás de Aquino.

Quanto ao âmbito da educação, seu esquecimento não foi algo individual. Na verdade, toda aquela educação que gerara tantos sábios e santos ao longo de séculos foi progressivamente abandonada devido ao novo esquema educacional centrado nas universidades. Fica evidente logo nas primeiras páginas do Didascalicon que Hugo de São Vítor não visava formar pessoas para desempenharem certas funções — garantidas pelo futuro diploma —, mas para alcançarem o último degrau da Sabedoria, a contemplação, com a qual, segundo ele mesmo, “tem-se um antegosto nesta vida do que será a recompensa futura das boas obras”. Ele visava a uma formação integral que proporcionasse uma união cada vez mais profunda com o próprio Deus, ou seja, algo que não teria Ԃm aqui nesta vida e nem mesmo no Céu, o exato oposto de uma formação que visa à conclusão do curso. De um ponto de vista mais geral, Hugo de São Vítor foi esquecido junto com muitos outros ao passo que a tradição cristã foi perdendo vigência na Europa, dando lugar aos modismos cada vez mais passageiros da modernidade.

Afinal, qual é a origem deste homem e o que ele fez?

Hugo de São Vítor nasceu na Saxônia, em 1096, em uma família profundamente religiosa. Influenciado desde cedo pelo seu tio Reinardo, que era bispo e matinha uma relação muito próxima como Mosteiro de São Vítor, localizado nos arredores de Paris, Hugo convenceu um tio-avô seu de mesmo nome, Hugo, a irem até lá e entregarem suas vidas unicamente a Deus, tornando-se religiosos daquele recente mas já famoso mosteiro.

A fundação do Mosteiro de São Vítor está diretamente ligada à fama, primeiro porque seu fundador quis fugir dela, e segundo porque ele não conseguiu. Guilherme de Champeaux fez seus estudos na escola anexa à Catedral de Notre Dame, em Paris, e ali mesmo continuou sua trajetória, tornando-se padre, bispo e o mais célebre professor da mais célebre escola do início do século XII. Ao chegar ao auge da fama, Guilherme percebeu ser outro o caminho que Deus queria para ele, e fez a inesperada escolha de largar sua cátedra e sua fama para se isolar nas proximidades da capelinha de São Vítor, afastada do centro movimentado de Paris, e viver uma vida ascética e de maior comunhão com Deus, optando por vestir o hábito agostiniano. Porém alguns de seus alunos, sedentos pelos ensinamentos de seu antigo mestre, seguiram-no e o encontraram. No começo tomavam aulas semanais, mas a freqüência foi aumentando, e com ela o número de alunos, e Guilherme viu-se obrigado a tomar uma atitude: por volta de 1108, dando-lhe o nome da capela onde se reuniam, ele funda, com uma escola anexa e sob a Regra de Santo Agostinho, o Mosteiro de São Vítor.

Essa mesma fama atraiu o jovem Hugo, que levou consigo seu tio-avô, o qual acabaria por ser o maior financiador das despesas da grande igreja do mosteiro de São Vítor. (Hoje, infelizmente, a igreja e o mosteiro já não existem, destruídos durante a Revolução Francesa). Lá Hugo continuou os estudos que havia começado em sua terra natal e ordenou-se sacerdote. Em 1125 tornou-se professor da escola anexa ao mosteiro; em 1133, diretor; logo depois, tornou-se também o prior do mosteiro, tendo sido consagrado bispo. Faleceu em São Vítor em 11 de fevereiro de 1141.

“Hugo foi certamente um dos homens mais ilustres de seu tempo por suas virtudes e por sua ciência. Jacques de Vitry, em sua História ocidental, depois de um elogio pomposo da comunidade de São Vítor e dos grandes homens que ela produziu, acrescenta: ‘O mais célebre e o mais renomado de todos foi Hugo. Ele foi a harpa do Senhor, e o órgão do Espírito Santo: um símbolo de virtudes e um símbolo de pregação. Levou um grande número de cristãos à prática do bem pelo seu exemplo e pela sua pia conversação, dando-lhes a ciência pela sua doutrina tão doce quanto o mel’” [3]

É realmente incrível tudo que Hugo fez em apenas 45 anos de vida. Além de todas estas funções, dirigindo tantas almas, ele escreveu inúmeros tratados, livros e opúsculos acerca dos mais variados temas, desde teologia, moral e mística até gramática, pedagogia e geograԂa; sua obra ocupa três volumes da Patrologia Latina de Migne. Em 1154, o cronista Robert de Torigny registrou: “O mestre Hugo escreveu tantos livros que não haveria modo de enumerá-los, de tão espalhados que estão”.

Um dos pontos mais interessantes a ser ressaltado na sua produção escrita, em relação à esfera pedagógica, é que Hugo de São Vítor fazia de fato o que hoje os teóricos dizem ser a grande novidade da educação contemporânea: colocar o foco do processo de aprendizado no estudante. O que hoje parece inovação é, na verdade, um simulacro do que se fez durante séculos, desde Platão até Hugo de São Vítor. Hoje podemos encontrar inúmeros livros que dirão aos professores como centrarem-se no aluno, mas Hugo de São Vítor se dirigia aos próprios estudantes: o leitor-estudante é o interlocutor do Didascalicon. Para Hugo, era absolutamente claro ser o aluno a causa eԂciente do processo de aprendizado. Portanto, o Didascalicon não é um livro sobre como ensinar, mas como aprender; não é sobre didática, mas a própria didática aplicada, uma verdadeira aula, por assim dizer, a todo aquele que procura percorrer este caminho que conduz à Sabedoria.

“Os resultados destes modos diversos de encarar a pedagogia são também diversos. O primeiro, centrado no mestre, tende a tornar-se uma transferência mecânica de conhecimento do professor para o aluno; o segundo, centrado no aluno, tende a tornar-se uma aventura do espírito. A escola centrada no mestre só irá produzir um discípulo melhor do que o mestre por acaso, quando o discípulo, apesar do método utilizado, puder fugir espontaneamente às regras desta pedagogia; a escola centrada no aluno tende a produzir por sua natureza um certo número de alunos melhores do que o mestre. Conseqüência destes fatos é que os professores da escola centrada no mestre são, no que depende da escola, a cada geração possuidores de um nível cada vez mais baixo, enquanto que na escola centrada no aluno a tendência é a oposta.

[…]

Obras filosóficas e sínteses deste porte ainda surgem hoje em dia; mas a diferença é que hoje em dia elas aparecem apesar das escolas, enquanto que na época da Escola de São Vítor e na época em que Aristóteles estudou com Platão elas surgiam por causa das escolas. O tipo de gênio que havia em Newton e em Einstein foi desenvolvido por eles próprios sem que, entretanto, o soubessem desenvolver em seus alunos. Na escola de Platão, o gênio do mestre soube reproduzir-se em Aristóteles, e na de São Vítor o gênio de Hugo soube reproduzir-se em Ricardo, e, menos diretamente, em diversos contemporâneos que reproduziram seu sistema de ensino” [4].

Neste caminho que visa à Sabedoria, a última ciência a ser adquirida é a Ciência Sagrada, que tem na Sagrada Escritura o seu alicerce. Hugo pertence a uma tradição, que começou mais explicitamente com Orígenes, na qual o caminho rumo à Sabedoria está no estudo dos conhecimentos mais profundos da Sagrada Escritura. Assim diz Cassiodoro, a quem Hugo de São Vítor tinha por mestre:

“Esta talvez seja a escada de Jacó pela qual os anjos subiam e desciam, e feliz será aquela alma a quem Deus conceder formar-se na intimidade deste caminho; mais feliz ainda será aquele que nele souber indagar pela inteligência da vida, aquele que, sabendo despojar-se dos pensamentos humanos, souber revestir-se do discurso divino” [5].

Para estes sábios, compreender a palavra de Deus é o caminho mais eԂciente para se unir à Palavra Viva de Deus, o Logos Divino. AԂnal, para Hugo, a filosofia — a amizade com a Sabedoria —, é uma participação na própria Sabedoria Divina, e elas não são duas coisas distintas, mas a mesma inteligência que está no ser de todas as coisas, não sendo contida por elas, mas contendo-as todas.

Muitos especialistas em educação podem achar que este ensino, com esta finalidade e este caminho, é na verdade um tipo específico de escola, adequado para determinados fins. Para Hugo de São Vítor, porém, esta é a verdadeira e única escola: tudo o que não se direcionar à Sabedoria é um simulacro de escola, de aprendizado, uma deturpação do uso da nossa inteligência, a qual nos foi dada por Deus para, acima de tudo, contemplarmos a Ele próprio. “Esta é a verdadeira e legítima finalidade da escola. São as outras escolas, e não esta, que representam um desvio do verdadeiro ideal do ensino”[6].

Por fim, a última advertência que faço ao leitor é que não se espante se o texto às vezes lhe parecer demais sintético ou obscuro. É praticamente impossível em uma primeira leitura e sem qualquer mediação compreender com profundidade os escritos filosóficos deste glorioso período, considerado por muitos o apogeu da educação cristã, e que culminou enԂm em São Tomás de Aquino. Nossa ignorância é tão sobrepujante que a princípio nos parece estarmos lendo algo errado, ou incompleto, ou fora de ordem. Hoje em dia estamos todos, de modo geral, acostumados a uma linguagem rasa e unívoca, que pouco expressa além de nossos sentimentos e desejos mais momentâneos. Quando nos deparamos com uma obra de tamanha densidade (sem esquecer de que ela era voltada para os iniciantes nos estudos), não sabemos sequer por qual caminho seguir a fim de apreender esta luz que brilha para nós como se tivéssemos acabado de sair da escuridão. Sentimos falta de explicações detalhadas, de exemplos abundantes e de clareza nos termos. Mas a clareza que buscava Hugo de São Vítor e seus pares não estava focada nas palavras, mas na própria realidade e na sua compreensão. Se não tivermos isso sempre em vista, jamais compreenderemos o que ele está querendo nos mostrar através de suas palavras.

Que este possa ser o objetivo do leitor com este livro: iluminar sua compreensão do mundo e de sua própria vida; que, além de uma fonte de informações, este escrito seja uma porta que se abre para o aperfeiçoamento cujos frutos são de valor inestimável, como nos diz o próprio Hugo:

“Quem quer que se entregue ao estudo da sabedoria ou da ciência divina conhecerá o fruto de seu aprendizado mais pela experiência do que pelo documento ou conhecimento alheio. Nela a alma possuirá o bem da ocupação honesta, o amparo da meditação, o estímulo da oração e a luz da suprema contemplação. Ali será formada no exemplo da santidade, será instruída no exercício da virtude e se fundamentará no exercício da boa obra. Ali, rejeitado o engano da falsidade, expulsa a malícia da iniqüidade, será conduzida ao verdadeiro e ao perfeito conhecimento da verdade e amor da bondade. Nela será fortalecida, para não desanimar diante da adversidade; será conԂrmada, para não desviar-se na prosperidade, aprenderá a recordar-se do passado e a acautelar-se com o futuro”[7].

Roger Campanhari 
Campinas, junho de 2018.


Notas:

[1] São Boaventura, Redução das ciências à teologia.

[2] Hugo de São Vítor, Prólogo ao De Sacramentis Fidei Christianae.

[3] Monsenhor Hugonin, bispo de Bayeux, Ensaio sobre a fundação da Escola de São Vítor de Paris.

[4] Princípios fundamentais de pedagogia, disponível em cristianismo.org.br/pfp-00.htm.

[5] Cassiodoro, De Institutione Divinarum Litterarum.

[6] Princípios fundamentais de pedagogia, idem.

[7] Hugo de São Vítor, Prólogo ao Simbologia de ambos os Testamentos.

***

Leia mais em Princípios Fundamentais de Pedagogia - parte 1

Leia mais em Princípios Fundamentais de Pedagogia - parte 2

Leia mais em Opúsculo sobre o modo de aprender e de meditar de Hugo de São Vítor.

Leia mais em Hugo e Ricardo de São Vítor


Leia mais em COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.



Total de visualizações de página