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Um tesouro perdido da Educação

Tempo de leitura: 18 min.

O texto abaixo é a Apresentação do livro de Didascalicon - sobre a arte de ler, de Hugo de São Vitor, publicado pelas Edições Kírion, 2018. 

APRESENTAÇÃO

O que aqui se oferece ao leitor é uma obra rica e profunda, que por muito tempo constituiu um dos pilares da educação cristã, mas que depois acabou por ser totalmente esquecida. Por esta razão, não podemos simplesmente jogá-la em seu colo sem fazer-lhe a advertência de que este livreto aparentemente obsoleto é na verdade um grande tesouro. O propósito desta apresentação — e também das notas de rodapé ao longo do livro — é propiciar uma absorção mais consciente de seus ensinamentos tão fundamentais, enquadrando-os num panorama mais abrangente da pedagogia vitorina, de modo que os frutos colhidos desta leitura possam ser mais saborosos e nutritivos.

***

A começar pelo autor da obra, podemos afirmar que, se é pouco conhecido o seu nome, menos ainda o são sua vida e sua relevância na história da Igreja e da educação. Já considerado por muitos um dos expoentes da educação, não só cristã, mas ocidental, e um dos maiores teólogos da história, ao lado de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, Hugo de São Vítor reúne em si, harmonicamente, todas as principais potências que um bom cristão pode almejar, como descreve São Boaventura:

“[…] de onde se deduz que todas as Sagradas Escrituras ensinam estas três coisas: a geração eterna e a encarnação temporal de Cristo, a norma do viver e a união da alma com Deus, ou a fé, os costumes e o fim de ambos. Sobre a primeira destas coisas devemos exercitar-nos com afinco no estudo dos Doutores; sobre a segunda, no estudo dos Pregadores; sobre a terceira, no estudo das almas contemplativas. Santo Agostinho ensina de preferência a primeira; São Gregório, a segunda; São Dionísio Areopagita, a terceira. Santo Anselmo segue a Santo Agostinho; São Bernardo segue a São Gregório; Ricardo de São Vítor segue a São Dionísio Areopagita; porque Santo Anselmo se distingue no raciocínio, São Bernardo na pregação e Ricardo de São Vítor na contemplação. Mas Hugo de São Vítor se sobressai nas três” [1].

Qual foi, então, a causa do esquecimento de tão grande doutor? No que concerne à sua obra teológica, o motivo parece claro. Hugo de São Vítor, calcado numa longa tradição de comentadores e estudiosos da Sagrada Escritura, realiza com seu trabalho uma nova façanha: reunir, num único livro, tudo que o cristão deve saber de fundamental sobre os mistérios da fé. Ou seja, tudo aquilo que antes estava disperso nos muitos comentários dos Santos Padres e dos teólogos subseqüentes foi sintetizado numa única obra, com uma unidade perfeita, de tal modo que este tipo de escrito veio a se tornar a nova prática no estudo da teologia: é o que posteriormente se chamará de “suma teológica”. Ele mesmo o descreve:

“Por isto reunimos nesta obra uma suma de todos os mistérios da fé, para que a alma, firmando-se em coisas certas, pudesse conformar-se e unir-se às mesmas em sua intenção, a fim de não ser tragada sem direção e sem ordem pelos vários volumes e lições das Sagradas Escrituras” [2].

Portanto, o que Hugo de São Vítor fez foi nada menos que lançar as bases e o modo de fazer daquilo que São Tomás de Aquino levaria à perfeição. E foi justamente isto o que fez com que o seu De Sacramentis Fidei Christianae deixasse de ser copiosamente lido, dando lugar à Suma teológica de São Tomás de Aquino.

Quanto ao âmbito da educação, seu esquecimento não foi algo individual. Na verdade, toda aquela educação que gerara tantos sábios e santos ao longo de séculos foi progressivamente abandonada devido ao novo esquema educacional centrado nas universidades. Fica evidente logo nas primeiras páginas do Didascalicon que Hugo de São Vítor não visava formar pessoas para desempenharem certas funções — garantidas pelo futuro diploma —, mas para alcançarem o último degrau da Sabedoria, a contemplação, com a qual, segundo ele mesmo, “tem-se um antegosto nesta vida do que será a recompensa futura das boas obras”. Ele visava a uma formação integral que proporcionasse uma união cada vez mais profunda com o próprio Deus, ou seja, algo que não teria Ԃm aqui nesta vida e nem mesmo no Céu, o exato oposto de uma formação que visa à conclusão do curso. De um ponto de vista mais geral, Hugo de São Vítor foi esquecido junto com muitos outros ao passo que a tradição cristã foi perdendo vigência na Europa, dando lugar aos modismos cada vez mais passageiros da modernidade.

Afinal, qual é a origem deste homem e o que ele fez?

Hugo de São Vítor nasceu na Saxônia, em 1096, em uma família profundamente religiosa. Influenciado desde cedo pelo seu tio Reinardo, que era bispo e matinha uma relação muito próxima como Mosteiro de São Vítor, localizado nos arredores de Paris, Hugo convenceu um tio-avô seu de mesmo nome, Hugo, a irem até lá e entregarem suas vidas unicamente a Deus, tornando-se religiosos daquele recente mas já famoso mosteiro.

A fundação do Mosteiro de São Vítor está diretamente ligada à fama, primeiro porque seu fundador quis fugir dela, e segundo porque ele não conseguiu. Guilherme de Champeaux fez seus estudos na escola anexa à Catedral de Notre Dame, em Paris, e ali mesmo continuou sua trajetória, tornando-se padre, bispo e o mais célebre professor da mais célebre escola do início do século XII. Ao chegar ao auge da fama, Guilherme percebeu ser outro o caminho que Deus queria para ele, e fez a inesperada escolha de largar sua cátedra e sua fama para se isolar nas proximidades da capelinha de São Vítor, afastada do centro movimentado de Paris, e viver uma vida ascética e de maior comunhão com Deus, optando por vestir o hábito agostiniano. Porém alguns de seus alunos, sedentos pelos ensinamentos de seu antigo mestre, seguiram-no e o encontraram. No começo tomavam aulas semanais, mas a freqüência foi aumentando, e com ela o número de alunos, e Guilherme viu-se obrigado a tomar uma atitude: por volta de 1108, dando-lhe o nome da capela onde se reuniam, ele funda, com uma escola anexa e sob a Regra de Santo Agostinho, o Mosteiro de São Vítor.

Essa mesma fama atraiu o jovem Hugo, que levou consigo seu tio-avô, o qual acabaria por ser o maior financiador das despesas da grande igreja do mosteiro de São Vítor. (Hoje, infelizmente, a igreja e o mosteiro já não existem, destruídos durante a Revolução Francesa). Lá Hugo continuou os estudos que havia começado em sua terra natal e ordenou-se sacerdote. Em 1125 tornou-se professor da escola anexa ao mosteiro; em 1133, diretor; logo depois, tornou-se também o prior do mosteiro, tendo sido consagrado bispo. Faleceu em São Vítor em 11 de fevereiro de 1141.

“Hugo foi certamente um dos homens mais ilustres de seu tempo por suas virtudes e por sua ciência. Jacques de Vitry, em sua História ocidental, depois de um elogio pomposo da comunidade de São Vítor e dos grandes homens que ela produziu, acrescenta: ‘O mais célebre e o mais renomado de todos foi Hugo. Ele foi a harpa do Senhor, e o órgão do Espírito Santo: um símbolo de virtudes e um símbolo de pregação. Levou um grande número de cristãos à prática do bem pelo seu exemplo e pela sua pia conversação, dando-lhes a ciência pela sua doutrina tão doce quanto o mel’” [3]

É realmente incrível tudo que Hugo fez em apenas 45 anos de vida. Além de todas estas funções, dirigindo tantas almas, ele escreveu inúmeros tratados, livros e opúsculos acerca dos mais variados temas, desde teologia, moral e mística até gramática, pedagogia e geograԂa; sua obra ocupa três volumes da Patrologia Latina de Migne. Em 1154, o cronista Robert de Torigny registrou: “O mestre Hugo escreveu tantos livros que não haveria modo de enumerá-los, de tão espalhados que estão”.

Um dos pontos mais interessantes a ser ressaltado na sua produção escrita, em relação à esfera pedagógica, é que Hugo de São Vítor fazia de fato o que hoje os teóricos dizem ser a grande novidade da educação contemporânea: colocar o foco do processo de aprendizado no estudante. O que hoje parece inovação é, na verdade, um simulacro do que se fez durante séculos, desde Platão até Hugo de São Vítor. Hoje podemos encontrar inúmeros livros que dirão aos professores como centrarem-se no aluno, mas Hugo de São Vítor se dirigia aos próprios estudantes: o leitor-estudante é o interlocutor do Didascalicon. Para Hugo, era absolutamente claro ser o aluno a causa eԂciente do processo de aprendizado. Portanto, o Didascalicon não é um livro sobre como ensinar, mas como aprender; não é sobre didática, mas a própria didática aplicada, uma verdadeira aula, por assim dizer, a todo aquele que procura percorrer este caminho que conduz à Sabedoria.

“Os resultados destes modos diversos de encarar a pedagogia são também diversos. O primeiro, centrado no mestre, tende a tornar-se uma transferência mecânica de conhecimento do professor para o aluno; o segundo, centrado no aluno, tende a tornar-se uma aventura do espírito. A escola centrada no mestre só irá produzir um discípulo melhor do que o mestre por acaso, quando o discípulo, apesar do método utilizado, puder fugir espontaneamente às regras desta pedagogia; a escola centrada no aluno tende a produzir por sua natureza um certo número de alunos melhores do que o mestre. Conseqüência destes fatos é que os professores da escola centrada no mestre são, no que depende da escola, a cada geração possuidores de um nível cada vez mais baixo, enquanto que na escola centrada no aluno a tendência é a oposta.

[…]

Obras filosóficas e sínteses deste porte ainda surgem hoje em dia; mas a diferença é que hoje em dia elas aparecem apesar das escolas, enquanto que na época da Escola de São Vítor e na época em que Aristóteles estudou com Platão elas surgiam por causa das escolas. O tipo de gênio que havia em Newton e em Einstein foi desenvolvido por eles próprios sem que, entretanto, o soubessem desenvolver em seus alunos. Na escola de Platão, o gênio do mestre soube reproduzir-se em Aristóteles, e na de São Vítor o gênio de Hugo soube reproduzir-se em Ricardo, e, menos diretamente, em diversos contemporâneos que reproduziram seu sistema de ensino” [4].

Neste caminho que visa à Sabedoria, a última ciência a ser adquirida é a Ciência Sagrada, que tem na Sagrada Escritura o seu alicerce. Hugo pertence a uma tradição, que começou mais explicitamente com Orígenes, na qual o caminho rumo à Sabedoria está no estudo dos conhecimentos mais profundos da Sagrada Escritura. Assim diz Cassiodoro, a quem Hugo de São Vítor tinha por mestre:

“Esta talvez seja a escada de Jacó pela qual os anjos subiam e desciam, e feliz será aquela alma a quem Deus conceder formar-se na intimidade deste caminho; mais feliz ainda será aquele que nele souber indagar pela inteligência da vida, aquele que, sabendo despojar-se dos pensamentos humanos, souber revestir-se do discurso divino” [5].

Para estes sábios, compreender a palavra de Deus é o caminho mais eԂciente para se unir à Palavra Viva de Deus, o Logos Divino. AԂnal, para Hugo, a filosofia — a amizade com a Sabedoria —, é uma participação na própria Sabedoria Divina, e elas não são duas coisas distintas, mas a mesma inteligência que está no ser de todas as coisas, não sendo contida por elas, mas contendo-as todas.

Muitos especialistas em educação podem achar que este ensino, com esta finalidade e este caminho, é na verdade um tipo específico de escola, adequado para determinados fins. Para Hugo de São Vítor, porém, esta é a verdadeira e única escola: tudo o que não se direcionar à Sabedoria é um simulacro de escola, de aprendizado, uma deturpação do uso da nossa inteligência, a qual nos foi dada por Deus para, acima de tudo, contemplarmos a Ele próprio. “Esta é a verdadeira e legítima finalidade da escola. São as outras escolas, e não esta, que representam um desvio do verdadeiro ideal do ensino”[6].

Por fim, a última advertência que faço ao leitor é que não se espante se o texto às vezes lhe parecer demais sintético ou obscuro. É praticamente impossível em uma primeira leitura e sem qualquer mediação compreender com profundidade os escritos filosóficos deste glorioso período, considerado por muitos o apogeu da educação cristã, e que culminou enԂm em São Tomás de Aquino. Nossa ignorância é tão sobrepujante que a princípio nos parece estarmos lendo algo errado, ou incompleto, ou fora de ordem. Hoje em dia estamos todos, de modo geral, acostumados a uma linguagem rasa e unívoca, que pouco expressa além de nossos sentimentos e desejos mais momentâneos. Quando nos deparamos com uma obra de tamanha densidade (sem esquecer de que ela era voltada para os iniciantes nos estudos), não sabemos sequer por qual caminho seguir a fim de apreender esta luz que brilha para nós como se tivéssemos acabado de sair da escuridão. Sentimos falta de explicações detalhadas, de exemplos abundantes e de clareza nos termos. Mas a clareza que buscava Hugo de São Vítor e seus pares não estava focada nas palavras, mas na própria realidade e na sua compreensão. Se não tivermos isso sempre em vista, jamais compreenderemos o que ele está querendo nos mostrar através de suas palavras.

Que este possa ser o objetivo do leitor com este livro: iluminar sua compreensão do mundo e de sua própria vida; que, além de uma fonte de informações, este escrito seja uma porta que se abre para o aperfeiçoamento cujos frutos são de valor inestimável, como nos diz o próprio Hugo:

“Quem quer que se entregue ao estudo da sabedoria ou da ciência divina conhecerá o fruto de seu aprendizado mais pela experiência do que pelo documento ou conhecimento alheio. Nela a alma possuirá o bem da ocupação honesta, o amparo da meditação, o estímulo da oração e a luz da suprema contemplação. Ali será formada no exemplo da santidade, será instruída no exercício da virtude e se fundamentará no exercício da boa obra. Ali, rejeitado o engano da falsidade, expulsa a malícia da iniqüidade, será conduzida ao verdadeiro e ao perfeito conhecimento da verdade e amor da bondade. Nela será fortalecida, para não desanimar diante da adversidade; será conԂrmada, para não desviar-se na prosperidade, aprenderá a recordar-se do passado e a acautelar-se com o futuro”[7].

Roger Campanhari 
Campinas, junho de 2018.


Notas:

[1] São Boaventura, Redução das ciências à teologia.

[2] Hugo de São Vítor, Prólogo ao De Sacramentis Fidei Christianae.

[3] Monsenhor Hugonin, bispo de Bayeux, Ensaio sobre a fundação da Escola de São Vítor de Paris.

[4] Princípios fundamentais de pedagogia, disponível em cristianismo.org.br/pfp-00.htm.

[5] Cassiodoro, De Institutione Divinarum Litterarum.

[6] Princípios fundamentais de pedagogia, idem.

[7] Hugo de São Vítor, Prólogo ao Simbologia de ambos os Testamentos.

***

Leia mais em Princípios Fundamentais de Pedagogia - parte 1

Leia mais em Princípios Fundamentais de Pedagogia - parte 2

Leia mais em Opúsculo sobre o modo de aprender e de meditar de Hugo de São Vítor.

Leia mais em Hugo e Ricardo de São Vítor


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