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Institutiones, um livro que preservou a Educação Clássica

 

O copista Jean Mielot (1448-68) trabalhando em seu
scriptorium na página de um manuscrito do século XV

Tempo de leitura: 8 min.

O texto abaixo é a Apresentação do livro de Institutiones: introdução às letras divinas e seculares, de Cassiodoro, publicado pelas Edições Kírion, 2018.

APRESENTAÇÃO

Flávio Magno Aurélio Cassiodoro Senador viu a luz deste mundo pela primeira vez por volta de 485 na cidade de Scyllaceum, atual Squillace, localizada nas terras quentes do sul da Península Itálica e beijada docemente pelas águas do Mar Jônio. Quando nasceu, o Império Romano do Ocidente já estava morto e enterrado, e com ele todo aquele período que séculos mais tarde os historiadores chamariam de Idade Antiga. Na segunda metade da década de oitenta do séc. V, a porção ocidental da Europa já se havia tornado uma enorme colcha de retalhos de reinos germânicos que se esforçavam em manter-se de pé sobre os escombros do colossal edifício civilizacional construído pelos romanos ao longo de mais de mil anos.

A Itália dos antigos césares, pátria de Cassiodoro, se encontrava naquele momento sob o domínio dos ostrogodos, de jure subordinados à corte de Constantinopla; de facto, porém, independentes. Em outras palavras, isso significava que os ostrogodos tinham em suas mãos a hercúlea missão de encontrar o tênue equilíbrio entre a manutenção do legado romano (ainda muito vivo na população nativa remanescente) mediante a conservação de diversas instituições e leis do extinto Império do Ocidente, e a preservação dos costumes típicos dos próprios ostrogodos. Falhar no primeiro ponto poderia lançar a península em uma guerra contra Constantinopla, aquela porção do Império Romano ainda muito viva, de conseqüências inimagináveis naquele momento; falhar no segundo seria agir para o progressivo embotamento da própria identidade. A esse caldeirão fervente devemos acrescentar também o ingrediente inflamável da divisão religiosa. Ora, os ostrogodos aderiram em sua maioria ao arianismo, enquanto a população nativa da Península Itálica era majoritariamente adepta da fé católica proclamada com solenidade pelo Concílio de Nicéia em 325. Por cerca de cinqüenta anos os ostrogodos tiveram governantes — como Teodorico, o Grande — que souberam dar bases sólidas à ponte do presente que haveria de unir o passado ao futuro. A partir da década de trinta do séc. VI, no entanto, crises políticas agudas romperam o frágil equilíbrio das coisas e a intervenção inevitável das forças de Constantinopla sepultaram o reino ostrogodo. Cassiodoro não só testemunhou todos esses eventos como também, de certa forma, deixou-se moldar por eles.

Assim como seu pai, Cassiodoro ocupou altos cargos entre os ostrogodos. Sob Teodorico, o Grande, foi sucessivamente questor, cônsul e magister officiorum, isto é, ministro para a política interna. Atalarico, sucessor de Teodorico, fez dele prefeito do pretório da Itália. De suas mãos correram rios de tinta que deram forma a diversas obras nesta etapa de sua vida, entre as quais citamos: Chronica, Historia Gothorum e Variae. As crises que culminaram na eclosão da guerra entre os ostrogodos e o Império Romano do Oriente levaram Cassiodoro à desesperança na política e, por conseguinte, ao abandono da vida pública. Por volta de 545, Cassiodoro fundou nos arredores de sua cidade natal o monastério de Vivarium, destinado a tornar-se o embrião dos centros culturais monásticos da Idade Média. Ali viveria o restante de seus dias, emigrando deste mundo com aproximadamente noventa anos de idade.

No Vivarium, Cassiodoro tomou em suas mãos a tarefa de preservar os monumentos da literatura ameaçados pelos conflitos que percorriam as terras da Itália com a impetuosidade de fogo em palha seca. Assim, foram realizados ali os trabalhos de cópia e tradução de tudo o que se pudesse encontrar de gregos e latinos. Para este fim, criaram-se métodos e estabeleceram-se preceitos rigorosos a fim de que os textos produzidos fossem os mais fidedignos possíveis. A biblioteca que se estruturou no Vivarium tornou-se, como se pode imaginar, verdadeiro tesouro das preciosíssimas jóias do mundo greco-romano. Como uma espécie de prolongamento dessa atividade, instituiu-se naquele local uma escola voltada ao estudo de assuntos sagrados e humanos.

Ora, em decorrência dos trabalhos realizados no Vivarium, o grande engenho de Cassiodoro produziu as célebres Institutiones, que o leitor tem agora nas mãos em uma bela edição traduzida para o português. Escritas em torno do ano de 550, as Institutiones possuíam como objetivo primeiro a instrução dos monges residentes no Vivarium. Entretanto, a posteridade demonstrou que a grandeza das Institutiones não podia ficar circunscrita a este modesto escopo e fez delas uma das obras mais influentes do medievo.

O tratado se divide em duas partes bastante distintas. Na primeira, o autor discorre sobre os livros sagrados e aproveita a oportunidade para tratar de seus principais comentadores, conduzindo o leitor por veredas suaves à introdução daquilo que hoje chamamos Patrística. A mensagem de Cassiodoro é clara: a leitura das Sagradas Escrituras deve sustentar-se na autoridade da Igreja — manifestada, por exemplo, através dos Concílios — e nos comentários dos grandes sábios cristãos. Ademais, o autor salienta que a educação não deve ser vista como um fim em si, mas como um meio que fornece os instrumentos adequados para a reta compreensão das Sagradas Escrituras. Por fim, abordam-se questões referentes à arte de copiar e à ortografia. A segunda parte, por sua vez, versa sobre cada uma das artes que compõem o trivium e o quadrivium, percorrendo, portanto, cada uma das sete artes liberais, consideradas, como já mencionado há pouco, suportes para o estudo da Teologia.

Embora as Institutiones não tenham sido escritas para eruditos e especialistas, Cassiodoro não deixou de empregar em seu texto o melhor do estilo latino de seu tempo. Podemos mesmo conjecturar que talvez o êxito de seu escrito se explique justamente pelo fato de o autor conciliar de maneira magistral a simplicidade didática na exposição dos temas com um bom estilo latino que se empenha em seguir os cânones da literatura clássica. O que não quer dizer que o seu latim não se ressinta aqui e acolá do cenário conturbado e decadente daqueles tempos de incertezas e miscigenação cultural que empurravam a língua latina para províncias cada vez mais distantes daquelas freqüentadas outrora por Cícero, Virgílio e Horácio. Assim, o tradutor de Cassiodoro enfrenta não poucas dificuldades para determinar se tal termo foi empregado em sua acepção clássica ou de acordo com um significado mais recente. Além disso, o uso de termos técnicos e neologismos se torna outro campo minado mesmo para o tradutor mais experiente. Entretanto, nenhuma dessas coisas é suficiente para ofuscar a beleza e a relevância das páginas que logo se abrirão aos olhos do leitor.

Para concluir, é preciso ressaltar que todo aquele que estiver realmente empenhado em resgatar a essência das artes liberais sob um viés cristão não pode de forma alguma ignorar o conteúdo destas Institutiones, verdadeira espinha dorsal de tal projeto pedagógico.

William Bottazzini Rezende
Pouso Alegre, abril de 2018

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Leia mais em Boécio e Cassiodoro.

Leia mais em Sobre as artes e as disciplinas das letras liberais, por Cassiodoro.


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