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Sobre o Ensino em S. Tomás de Aquino

Santo Tomás de Aquino, escrevendo em
frente do crucifixo, por Antonio Rodríguez

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Tempo de leitura: 46 minutos. 

Texto retirado do livro Sobre o ensino (De magistro) e Os sete pecados capitais, de S. Tomás de Aquino, com tradução e estudos introdutórios por  Luiz Jean Lauand, Editora Martins Fontes, 2000.

Apresentação

Apresentamos ao leitor dois importantes estudos de Tomás de Aquino: um dedicado ao ensino, outro à ética: Sobre o ensino e Os sete pecados capitais.

No estudo e apêndices que os acompanham, mais do que esmiuçar as teses que o leitor irá encontrar no próprio texto de Tomás, optamos por privilegiar, em cada caso, o referencial mais amplo que permita situar - no quadro de sua filosofia - cada um desses opúsculos do Aquinate: assim, apresentamos os conceitos fundamentais da antropologia e do conhecimento como prólogo ao Sobre o ensino e um enquadramento da ética - em sentenças do próprio Tomás - como Apêndice aos Pecados capitais, além de uma seleção especial de sentenças sobre a inveja e a avareza.

Sobre o ensino, o De magistro, é a questão 11 das Quaestiones Disputatae de Veritate [1] de Tomás e segue o sistema geral dessas aulas do Aquinate (por essa razão, retomamos em sua introdução algumas considerações que tecíamos ao apresentar, para esta mesma coleção, as questões sobre a verdade e o verbo [2]).

O opúsculo Os sete pecados capitais compõe-se de uma seleção de trechos das obras Questões disputadas sobre o mal [3] e da Suma teológica.

LUIZ JEAN LAUAND
março de 2000


Introdução

Sendo o De magistro de Tomás uma das questões disputadas sobre a verdade (a de nº 11), comecemos por relembrar o papel que essas questões tinham na universidade medieval .

A quaestio disputata, essência da universidade medieval

Da primeira regência de Tomás na Universidade de Paris procedem as Quaestiones Disputatae de Veritate. Essas questões foram disputadas em Paris de 1256 a 1259: as questões 1 a 7 (sobre a verdade; o conhecimento de Deus; as idéias divinas; o verbum; a Providência Divina; a predestinação e o "livro da vida") são do ano letivo 1256-7; as de 8 a 20 (sabedoria angélica; comunicação angélica ; a mente como imagem da Trindade; o ensino; a profecia como sabedoria; o êxtase; a fé; a razão superior e a inferior; a sindérese; a consciência; o conhecimento de Adão no Paraíso; o conhecimento da alma depois da morte e o conhecimento de Cristo nesta vida), de 1257-8, e as de 21 a 29 (a bondade; o desejo do bem e a vontade; a vontade de Deus; o livre-arbítrio; o apetite dos sentidos; as paixões humanas; a gra­ça; a justificação do pecador e a graça da alma de Cristo), de 1258-9.

A quaestio disputara, como bem salienta Weisheipl [1], integra a própria essência da educação escolástica: "Não era suficiente escutar a exposição dos grandes livros do pensamento ocidental por um mestre; era essencial que as grandes idéias se examinassem criticamente na disputa." E a disputatio, na concepção de um filósofo da universidade como Pieper, transcende o âmbito organizacional do studium medieval e chega até a constituir a própria essência da universidade em geral [2].

Para que o leitor possa bem avaliar o significado de uma quaestio disputara em S. Tomás, apresentaremos o modus operandi dessas quaestiones, procurando também indicar a ratio pedagógica que as informa.

Uma quaestio disputata está dedicada a um tema - como por exemplo a verdade ou o verbum - e divide-se em artigos, que correspondem a capítulos ou aspectos desse tema . Naturalmente, por detrás da "técnica pedagógica" está um espírito: a quaestio disputata, como analisaremos em tópico ulterior, traduz a própria idéia de inteligibilidade - devida ao Verbum (o Logos divino, o Filho) -, ao mesmo tempo que a de incompreensibilidade, a de pensamento "negativo" , também fundada no Verbum...

Procurando veicular, operacionalizar em método a vocação de diálogo polifônico - que constitui a razão de ser da universitas -, primeiro enuncia-se a tese de cada artigo (já sob a forma de polêmica: "Utrum... [3]") e a quaestio começa por um videtur quod non... ("Parece que não..."), começa por dar voz ao adversário pelas obiectiones, objeções à tese que o mestre pretende sustentar. 

Já aí se mostra o caráter paradigmático e atemporal (e atual...) da quaestio disputara, a essência da universidade, assim discutida por Pieper: "Houve na universidade medieval a instituição regular da disputatio, que, por princípio, não recusava nenhum argumento e nenhum contendor, prática que obrigava, assim, à considera­ção temática sob um ângulo universal. Um homem como Santo Tomás de Aquino parece ter considerado que precisamente o espírito da disputatio é o espírito da universidade." [4] E prossegue: "O importante é que, por trás da forma externa de disputa verbal regulamentada, a disputa - com toda a agudeza de um confronto real - dá-se no elemento do diálogo. Este ponto decisivo é hoje, para a universidade, mil vezes mais importante do que pode ter sido alguma vez para a universidade medieval."

Nos textos de Tomás, após as objeções, levantam-se contra-objeções (sed contra, rápidas e pontuais sentenças colhidas em favor da tese do artigo; ou algumas vezes in contrarium, que defendem uma terceira posição que não é a da tese nem a das obiectiones). Após ouvir estas vozes, o mestre expõe tematicamente sua tese no corpo do artigo, a responsio (solução) . Em seguida, a responsio ad obiecta, a resposta a cada uma das objeções do início.

Torna-se dispensável dizer que não se entende por quaestio disputata nada que tenha que ver com sutilezas enfadonhas e estéreis. Por outro lado, o que afirmamos acima sobre o diálogo e a impossibilidade de dar resposta cabal, de esgotar um assunto filosófico não significa, evidentemente, que na quaestio disputata não se deva tomar uma posição e defendê-la: não se trata, de modo algum, de agnosticismo. Podemos conhecer a verdade, mas não podemos esgotá-la. Posto que o homem pode conhecer a verdade (e na medida em que o pode fazer), a discussão filosófica chega a uma responsio, a uma certa determinatio.

Finalmente, dentre as características da quaestio disputata de S. Tomás de Aquino, destaquemos a de dar voz ao adversário com toda a honestidade, formulando sem distorções, exageros ou ironia (o que, em geral, nem sempre ocorre nas polêmicas e debates de hoje), as posições contrárias às que se defendem. Nesse sentido, Pieper faz notar que em S. Tomás a objetividade chega a tal ponto que o leitor menos avisado pode tomar como do Aquinate aquilo que ele recolhe dos adversários a modo de objeção. A propósito [5], é o caso do tão celebrado Carl Prantl, que interpretou como se fosse a posição de Tomás objeções brilhantemente por ele apresentadas às suas próprias teses.

O De magistro e a Antropologia Filosófica

Na "questão disputada" De magistro, Tomás de Aquino expõe sua concepção de ensino/aprendizagem em oposição às doutrinas dominantes da época. Por detrás de questões pedagógicas encontram-se, na verdade, concepções filosóficas - a Filosofia da Educação é inseparável da Antropologia Filosófica - e teológicas.

A antropologia de Tomás - revolucionária para a época - afirma o homem em sua totalidade (espiritual, sim, mas de um espí­rito integrado à matéria) e está em sintonia com uma teologia (também ela dissonante para a época) que, precisamente para afirmar a dignidade de Deus criador, afirma a dignidade do homem e da criação como um todo: material e espiritual. Sugestiva nesse sentido é, por exemplo, a luta que Tomás teve de travar na Universidade de Paris para defender a tese da unicidade da alma no homem: a mesma e única alma é responsável pelos atos mais espirituais e mais prosaicos no homem (a teologia dominante - pensando dar glória a Deus - separava "a alma espiritual" das "outras duas" - sensitiva e vegetativa - em favor de uma antropologia "espiritualista" e desencarnada).

Nesse quadro de oposição a um cristianismo demasiadamente espiritualista e que pretende exagerar o papel de Deus e aniquilar a criatura, compreendem-se as colocações de Tomás e até mesmo os artigos selecionados para a questão: art. 1 - Se o homem - ou somente Deus - pode ensinar e ser chamado mestre; art. 2 - Se se pode dizer que alguém é mestre de si mesmo; art. 3 - Se o homem pode ser ensinado por um anjo; art. 4 - Se ensinar é um ato da vida ativa ou da vida contemplativa.

Não é de estranhar, portanto, que Tomás comece discutindo a objeção: "Se o homem - ou somente Deus - pode ensinar e ser chamado mestre" (o fato curioso é que Tomás discuta isso precisamente como professor em sala de aula...). O exagero do papel de Deus - no caso em relação à aprendizagem - é por conta daquela teologia que considera tão sublime a intelecção humana que, em cada caso que ela ocorre, requereria uma iluminação imediata de Deus . Tomás, em seu realismo, admite uma iluminação de Deus, mas esta iluminação Deus no-la deu de uma vez por todas, dotando-nos da "luz natural da razão", aliás, dependente das coisas mais sensíveis e materiais...

Assim, no debate acadêmico no qual se gera o De magistro encontraremos - uma e outra vez - a objeção com que se abre o trabalho: "Diz a Escritura (Mt 23, 8): 'Um só é vosso mestre' (...) ao que diz a Glosa [6]: 'não atribuais a homens a honra divina e não usurpeis o que é de Deus'."

Para bem entender este e outros temas do De magistro é oportuno oferecer um resumo dos conceitos básicos da antropologia filosófica de Tomás (como se sabe, em boa medida tomada de Aristóteles).

O homem e a alma em Tomás

A palavra-chave para entendermos a doutrina de Tomás sobre o homem é "alma" , que, classicamente, designa o princípio da vida. Chamemos, desde já, a atenção para o fato de que, ao longo deste estudo, aparecerão outras palavras cujo sentido filosófico clássico não coincide exatamente com o sentido usual que lhes damos hoje: "potência", "ato", "matéria", "forma" etc.

O referencial a que Tomás se remete nestes temas é a doutrina basicamente estabelecida por Aristóteles em seu Peri PsychéSobre a alma. A "psicologia" de Aristóteles emergiu como uma reação de equilíbrio e moderação ante o exagerado espiritualismo da antropologia de Platão (que tem encontrado sucessivas versões tanto no Ocidente como no Oriente...). O espiritualismo platônico é uma certa tomada de posição radicalmente dualista diante da questão: "O que é o homem?". Platão situa espírito e matéria como realidades justapostas, disjuntas, em união fraca e extrínseca no homem. O homem, para Platão, seria primordialmente espírito (e o corpo seria, nessa visão, algo assim como um mero cárcere do espírito) [7].

Do ponto de vista aristotélico, esse dualismo platônico atenta contra a intrínseca unidade substancial do homem, ao desprezar a dimensão material do ser humano, exagerando a separação entre o espiritual e o corpóreo. E é esta unidade o que, afinal, permite a cada homem proferir o pronome "eu", englobando tanto o espírito quanto o corpo. Para os platônicos (e para a teologia dominante em Paris no tempo de Tomás), o homem seria essencialmente espírito, em extrínseca união com a matéria: a matéria não faria parte da realidade propriamente humana. Já para Tomás há, no homem, uma união intrínseca de espírito e matéria [8].

Do ponto de vista de Aristóteles e Tomás, a questão "O que é o homem?" é inquietante porque a realidade humana se apresenta como fenômeno muito complexo, integrando em si a unidade harmônica de espírito e matéria. Assim, a dimensão corporal é plenamente afirmada e reconhecida como integrante da natureza humana: o fato, afinal evidente, de que o homem é um animal , compartilhando uma dimensão material - um corpo, uma bioquímica... - com os outros animais [9]. Mas, se por um lado afirma-se a realidade corpórea, por outro afirma-se, com igual veemência, que há também, no homem, uma transcendência do âmbito meramente biológico: certas características que, classicamente, têm sido chamadas de espirituais, ligadas - como veremos mais adiante - às duas faculdades espirituais da alma humana : a inteligência e a vontade.

Potência-Ato. Matéria-Forma. Alma

O realismo aristotélico é considerado um dualismo equilibrado e apresenta uma grande unidade em sua concepção teórica, uma unidade centrada no conceito de "alma". É muito importante destacar essa unidade. Para Aristóteles e para Tomás a filosofia do homem é uma extensão da filosofia do ser vivo em geral, e esta, por sua vez, continua a mesma linha de análise filosófica do ser material em geral. Afirma-se pois, plenamente, a realidade espiritual, mas em articulação, em íntima conexão com a matéria.

A filosofia de Tomás reconhece uma impressionante unidade no mundo material: a mesma estrutura de análise filosófica do ente físico em geral, de uma pedra, digamos, é aplicada a todos os viventes e, também, ao homem, que é um ente espiritual.

Não é o caso aqui de examinarmos com detalhes técnicos os conceitos filosóficos que integram essa análise. Em todo caso, vale a pena mencionar, brevemente, alguns desses conceitos como: potência e ato; matéria e forma; alma e espírito.

Potência e ato são dois modos distintos e fundamentais de ser. Sendo modos fundamentais de ser são, a rigor, indefiníveis. Aristóteles contenta-se com descrevê-los: potência é a possibilidade, a potencialidade de vir a ser ato. E o ser-em-ato é aquele que propriamente é, enquanto o ser-em-potência pode vir a ser ato. O exemplo clássico é o da semente (potência) que pode vir a ser árvore (a árvore real é o ato contido na potência, na potencialidade da semente). Encontramos, ainda hoje, vestígios desse uso aristotélico da palavra "ato". Nesse sentido, é interessante notar o tributo que a língua inglesa paga a Aristóteles : para referir-se ao que realmente é, à realidade de fato, o inglês diz actually, que significa, ao pé da letra, o advérbio do ato, atualmente, significando: de verdade, de fato. E quando, em português, dizemos que algo é exato, estamos pensando em ex-actu, ex - a partir de / - actu, a realidade [10]

Para a análise do ser vivo (como para a análise do ser físico em geral) Tomás, seguindo Aristóteles, aplica o binômio ato-potência, sob a formulação matéria-forma. Devemos pensar estas palavras "matéria" e "forma" não no sentido usual que lhes damos hoje, mas num outro sentido, naquele que recebem no quadro da filosofia aristotélica da natureza, denominada hilemoifismo (literalmente: matéria-forma; hilé-morjé).

Assim, matéria ou matéria-prima [11] deve ser entendida simplesmente como potencialidade, como pura possibilidade de ser ente físico. Uma potência que se vê realizada (atualizada) pela união com o ato que é a forma (substancia [12]) . Desse modo, um ser físico qualquer, digamos, um diamante é composto de maté­ria e forma, em união intrínseca : a matéria-prima é a pura potência de ser ente físico e a forma substancial é o ato primeiro, fundamental, que determina a atualização dessa potência. Assim, se o diamante é um ser físico, é porque tem possibilidade, potencialidade de sê-lo (e assim todo ser físico tem matéria-prima, potencialidade de ser um ente físico).

Essa potencialidade da matéria-prima é realizada, atualizada, recebe seu ato, sua realidade, pela forma substancial: aquele componente que faz com que o diamante seja diamante e não, digamos, um gato ou uma orquídea . O diamante, a orquídea, o gato e o homem têm algo em comum: todos são seres físicos que se constituem, portanto, da pura potencialidade indeterminada que é a matéria-prima. Mas são distintos pela forma que cada um tem e que faz com que cada um seja o que é: o diamante é diamante porque tem forma substancial de diamante; Mimi é gato porque tem forma substancial de gato; João é homem porque tem forma substancial de homem [13].

E é tal a unidade de sua consideração do cosmos, que Tomás emprega o mesmo binômio matéria-forma para indicar tanto a composição substancial de uma pedra quanto a de um homem, que é um ser espiritual.

Nesse contexto é fácil entender o conceito de alma. Alma é pura e simplesmente uma forma: a forma substancial do vivente. Certamente, a alma é uma forma muito especial (daí que também receba um nome especial), mas é uma forma [14].

Sempre que houver vida - e a vida caracteriza-se por um modo especial de interagir com o exterior a partir de uma interioridade - essa vida implica uma especialidade de forma do vivente: a alma. Desse modo, pode-se falar em alma de um vegetal, alma de uma samambaia, em alma de uma formiga ou de um cão e, também, em alma humana (neste caso, trata-se de uma alma espiritual) . A alma (como, aliás, todas as formas substanciais) é um princípio de composição substancial dos viventes. Ou melhor, um co-princípio (em intrínseca união com o outro co-princí­pio: a matéria-prima). É pela alma que se constitui e se integra o vivente enquanto tal , e ela é também a fonte primeira de seu agir, de suas operações.

Estas são, aliás, as duas definições que Aristóteles e Santo Tomás dão da alma.

1ª definição: Alma é o ato primeiro do corpo natural organizado (Tomás de Aquino, De anima II, 1, 412, a 27, b.S).

Esta definição diz, pura e simplesmente, que a alma é forma substancial para o vivente: o princípio ativo constituinte da unidade e do ser do vivente.

2ª definição: Alma é aquilo pelo que primeiramente vivemos, sentimos, mudamos de lugar e entendemos... (Tomás de Aquino, De anima II, 2, 414, a 12).

Também esta segunda definição caracteriza a alma como forma substancial, mas, neste caso, enfatizando a forma substancial enquanto fonte radical das operações do sujeito. O cão late ou morde não porque tem boca, sim, mas em última instância, porque é vivo, porque tem forma substancial, alma de cão.

A alma e suas potências: os fatores na operação

A alma não opera diretamente, e é por esta razão que Aristó­teles diz: "A alma é aquilo pelo que primeiramente sentimos, mudamos de lugar etc." "Primeiramente" , aqui, significa que não é a alma diretamente que vê, anda, conhece ou quer, mas o vivente opera tudo isto por meio das potências ("potências" aqui, não no sentido entitativo, mas no sentido de potências operativas: faculdades) da alma: a potência visual, a potência motriz etc.

É conveniente, portanto, distinguir os diversos fatores presentes numa operação qualquer de um vivente. O mesmo vivente pode estar exercendo ou não tal operação e, no entanto, está continuamente vivo, está sendo informado pela alma. Daí que seja necessário distinguir a alma (substancial, sempre atuante) de suas potências operativas (que podem estar operando ou não). A potência visual ou a motriz não estão atuando quando, por exemplo, estou dormindo, mas a alma, princípio vital, está sempre presente, como forma substancial do vivente.

Enumeremos os diversos fatores que concorrem nas opera­ções do vivente.

1) O próprio vivente. O sujeito, João, que faz esta ou aquela operação (por exemplo, ver ou ouvir).

2) A alma. Se João realiza tais e tais operações é porque é vivente e, em última instância, porque é dotado de alma. Se ele fosse pedra, não veria nem ouviria.

3) As potências da alma. Pois não é a alma diretamente que vê , ouve, se locomove etc. Ela realiza estas operações por meio de suas potências. A alma é dotada de uma potência visual, que realiza o ato de ver; de uma potência auditiva , que realiza o ato de ouvir etc.

4) Os atos das potências. Sabemos que a alma é dotada de diferentes faculdades, precisamente porque são distintos os atos que o vivente realiza: o ato de ver é diferente do de ouvir; pensar é distinto de querer etc.

5) Os objetos (formais) dos atos. Podemos dizer que se esses atos (de ver e de ouvir, por exemplo) são diferentes é porque são diferentes seus objetos: o objeto do ato de ver é a cor; o objeto do ato de ouvir é o som.

6) O objeto material. Claro que o mesmo objeto material - uma fogueira, por exemplo - pode ser apreendido por diversas potências, mas cada uma o apreende pelo seu particular objeto formal (a potência visual capta a cor do fogo; a auditiva , seu crepitar; o olfato se ocupa do cheiro de queimado etc.).

Os três graus de vida. Espírito e inteligência no homem

Vida é a capacidade de realizar operações com espontaneidade e imanência, portanto, por iniciativa própria, a partir de si mesmo e operações que terminam no próprio sujeito.

Três graus de vida correspondem a três graus de espontaneidade e de imanência na realização das operações. E correspondem também a três tipos de alma: vegetativa, sensitiva e intelectiva.

Ao primeiro grau de vida - a vida vegetativa - corresponde um ínfimo grau de espontaneidade e imanência: o vegetal é senhor apenas da mera execução da operação: do seu "nutrir-se", do seu crescimento, de sua reprodução.

Note-se de passagem que, na medida em que subimos na escala da vida, ao mesmo tempo que a alma vai crescendo em espontaneidade e imanência ocorre também uma ampliação de seu campo de relacionamento: desde o limitado meio que circunda uma planta ao mundo sem fronteiras do espírito humano.

A alma em cada grau de vida é - como princípio vital - única e realiza todas as funções dos graus inferiores: a alma espiritual responsável pelas delicadas poesias que João da Silva compõe é a mesma e única que é o princípio de operações vegetativas, como a circulação de seu sangue ou sua digestão.

Para além da mera execução das operações - que caracteriza a vida vegetativa -, a alma sensitiva do animal é responsável também - e isto diferencia o animal da planta - pelo sentir, pelo conhecimento sensível: pela apreensão (cognoscitiva) de realidades concretas e particulares que o circundam.

Assim, pelo conhecimento, que é claramente um fator importante em suas operações, o animal é mais dotado de espontaneidade e imanência do que o vegetal : o gato Mimi percebe este pires de leite, apreende-o com seus sentidos, e este conhecimento é responsável pelo seu movimento em direção a ele. Assim, os animais têm uma dimensão de vida superior à das plantas: são mais donos de suas operações e de suas interações com o ambiente, porque são capazes de sentir, isto é, são capazes de conhecimento de realidades sensíveis, de conhecimento de realidades particulares e concretas.

Essas faculdades do sentir ou faculdades do conhecimento sensível são os sentidos: a visão, a audição etc. [15]. Estão presentes nos animais e no homem. O conhecimento dos outros animais, porém, não transcende o âmbito do sensível, do concreto: esta cor, este cheiro, este som...

No caso do homem (que é o caso da vida intelectiva), sua alma, além das características próprias e peculiares, realiza todas as operações dos graus inferiores de vida. A alma humana não só é responsável pela realização das operações ligadas às faculdades da vida vegetativa - a circulação do sangue, a digestão etc. -; a mesma e única alma realiza também as operações sensitivas (pró­prias da vida animal, como o conhecimento sensível) e, além de tudo isto, essa mesma alma irrompe numa dimensão nova: a do espírito.

A alma humana está dotada de duas potências espirituais: a inteligência e a vontade.

Para nossa questão, interessa-nos especialmente a inteligência. Se o conhecimento sensível versa sobre a realidade particular e concreta (este vermelho, este sabor salgado, esta forma triangular etc.), a inteligência humana transcende, supera esse âmbito do particular, do material e do concreto e pode versar sobre o universal. A geometria, por exemplo, como conhecimento intelectual humano, não se ocupa desta forma triangular do recorte de papel que tenho diante dos olhos; ela trata, sim, do triângulo abstrato. E diz: "A soma dos ângulos internos do triângulo vale dois retos. "Destaquemos, nessa afirmação, seu caráter abstrato e universal: pouco importa se o triângulo é azul ou amarelo, se é acutângulo, retângulo ou obtusângulo; a inteligência versa sobre "o triângulo". E para "o triângulo": "A soma dos ângulos internos é dois retos. " Já a medicina estuda hepatologia, independentemente deste ou daquele fígado concreto.

Esta capacidade da inteligência de apreender o universal e abstrato abre um mundo sem fronteiras para o conhecimento: ele não se limita à realidade concreta que o circunda, mas atinge todo o ser. E precisamente essa abertura para a totalidade do real é o que se chama de espírito. Espírito é a capacidade de travar relações com a totalidade do real. Daí que Tomás repita, uma e outra vez, a sentença aristotélica: "Anima est quodammodo omnia", "A alma humana, sendo espiritual, é, de certo modo, todas as coisas"...

Podemos agora, com base na definição de inteligência como faculdade de conhecimento espiritual do homem, rever, com luzes novas, os conceitos básicos de Tomás.

Contra todo dualismo que tende a separar exageradamente no homem a alma espiritual e a matéria, Tomás afirma a intrínseca união, a substancial união de ambos os princípios: a alma espiritual, como forma, requer - em tudo e por tudo - a integração com a matéria. Pense-se, por exemplo, em todo o tema - hoje mais agudo e atual do que nunca - das doenças psicossomáticas: da relação, digamos, entre um desgosto ou uma crise existencial, por um lado, e uma gastrite ou uma úlcera, por outro. Mas o exemplo mais veemente dessa integração é encontrado na discussão do objeto próprio da inteligência humana.

Como dizíamos, não operamos diretamente pela alma, mas por meio de suas potências operativas. Ora, cada potência da alma é proporcionada a seu objeto: a potência auditiva não capta cores, a potência visual não atua sobre aromas.

Dizer que a inteligência é uma potência espiritual é dizer que seu campo de relacionamento é a totalidade do ser: todas as coisas - visíveis e invisíveis - são inteligíveis, "calçam" bem, combinam com a inteligência. Contudo, a relação da inteligência humana com seus objetos não é uniforme. Dentre os diversos entes e modos de ser, há alguns que são mais direta e imediatamente acessíveis à inteligência. É o que Tomás chama de objeto próprio de uma potência: aquela dimensão da realidade que se ajusta, por assim dizer, "sob medida" à potência (ou, melhor dizendo, é a potência que se ajusta àquela realidade). Não que a potência não incida sobre outros objetos, mas o objeto próprio é sempre a base de qualquer captação: se pela visão captamos, por exemplo, nú­mero e movimento (e vemos, digamos, sete pessoas correndo), é porque vemos a cor, objeto próprio da visão. Ora, próprio da inteligência humana - potência de uma forma espiritual acoplada à matéria - é a abstração: seu objeto próprio são as essências abstratas das coisas sensíveis. Próprio da inteligência humana é apreender a idéia abstrata de "cão" por meio da experiência de conhecer pelos sentidos diversos cães: Lulu, Duque e Rex...

Assim, Tomás afirma: "O intelecto humano, que está acoplado ao corpo, tem por objeto próprio a natureza das coisas existentes corporalmente na matéria. E, mediante a natureza das coisas visíveis, ascende a algum conhecimento das invisíveis" (S. Th. I, 84, 7). E nesta afirmação, como dizíamos, espelha-se a própria estrutura ontológica do homem: mesmo as realidades mais espirituais só são alcançadas, por nós, através do sensível. "Ora - prossegue Tomás -, tudo o que nesta vida conhecemos, é conhecido por comparação com as coisas sensíveis naturais." Esta é a razão pela qual o sentido extensivo e metafórico está presente na linguagem de modo muito mais amplo e intenso do que, à primeira vista, poderíamos supor.

Contra todo dualismo que tende a separar exageradamente no homem a alma espiritual e a matéria, Tomás afirma a intrínseca união e mútua ordenação de ambos os princípios. Contra todo "espiritualismo", Tomás conclui: "É evidente que o homem não é só a alma, mas um composto de alma e de corpo" (Summa theologica I, 75, 4). E esta união se projeta na operação espiritual que é o conhecimento: "A alma necessita do corpo para conseguir o seu fim, na medida em que é pelo corpo que adquire a perfeição no conhecimento e na virtude" (C.G. 3, 144.).

Para Tomás o conhecimento intelectual (abstrato) requer o conhecimento sensível. É sobre os dados do conhecimento sensí­vel que atua o intelecto, em suas duas funções: intelecto agente e paciente.

A seguir apresentaremos um resumo tipificado (com as limitações que se dão nesses casos...) de como ocorre uma apreensão intelectual: o sujeito cognoscente está diante de um objeto determinado, digamos, João diante de um gato, Mimi. O que se conhece, segundo Tomás, é a própria realidade (ainda que para isso sejam necessários certos intermediários: as espécies...). Na passagem da impressão sensível para a idéia abstrata, o intelecto vai exercer duas funções: a de intelecto agente e a de intelecto paciente (ou passivo). Por isso, Tomás compara o intelecto a um olho que emite luz sobre aquilo que ele mesmo vê.

Todo conhecimento começa pelos sentidos: uma vez que os sentidos apreendem uma imagem (imagem em qualquer dimensão sensível, não só visual, mas também auditiva etc.), essa imagem assim interiorizada (que recebe o curioso nome de "fantasma") é oferecida ao intelecto (agente) para que - para além das impressões sensíveis (a determinada cor, aspecto, cheiro etc. deste gato concreto) - torne "visível" sua essência abstrata de gato. Nesse sentido, um filósofo contemporâneo, ]ames Royce, compara a ação do intelecto agente a um tubo emissor de raios X que torna visí­vel a estrutura óssea (na comparação: a essência) subjacente à pele (comparada aos aspectos sensíveis): esta é visível em nível de luz normal (conhecimento sensível); aquela (a essência), em nível de raios X (na comparação: o conhecimento intelectual). Esse "fantasma" despojado de suas características particularizantes [16], abstraído, é oferecido ao intelecto passivo (que só é passivo no sentido de que depende da ação do intelecto agente), para que produza o conceito. Na metáfora, o intelecto paciente poderia ser comparado ao filme virgem de raios X (com a ressalva de que o filme é totalmente passivo, enquanto o intelecto reage ativamente para formar o conceito) . O conceito, por sua vez, é meio para a união com o próprio objeto. O intelecto agente está assim ligado à atividade de aquisição do conhecimento; o paciente, ao estado de saber.

O conhecimento é assim uma apropriação imaterial, intencional [17] de formas (acidentais ou substanciais) sensíveis ou não, pelas quais o sujeito se une à própria realidade do objeto (que tem a forma materialmente, constituindo-o como tal ente). A potência intelectiva de posse de formas está in-formada, conhece.

A segunda potência espiritual: a vontade

Mas o homem - tal como os outros animais - não é só inteligência. Há nele, além disso, uma dinâmica , um tender à posse efetiva (e não meramente cognoscitiva) de objetos, e isto é o que se chama, classicamente, apetite. Um animal, um cachorro, por exemplo, não só tem um conhecimento, digamos, de um osso (conhecimento que, no caso do animal, não supera o âmbito do sensível, do particular, do concreto), mas tende a esse osso realmente, tende à posse efetiva do osso: é o que, como dizíamos, se chama apetite (um apetite que, no caso dos animais, está limitado também ao âmbito do sensível, do particular, do concreto).

Apetite é a tendência a aproximar-se do bem (daquilo que o conhecimento apresenta como bem) e afastar-se do mal. Naturalmente, o apetite está ligado ao conhecimento e dele decorre: porque farejou o osso é que o cachorro procura roê-lo; porque viu o lobo é que a ovelha foge... Ora, assim como no homem há, além do conhecimento sensível um conhecimento intelectual, assim também, além do apetite sensível, estamos dotados de uma outra potência apetitiva que se articula com o conhecimento intelectual: é a vontade. A vontade é, pois, a potência apetitiva espiritual, o apetite que decorre do conhecimento intelectual. Esta é a razão pela qual podemos nos motivar não só pela obtenção de uma realidade particular e concreta, digamos, um sorvete de creme, mas também ser motivados por: "a justiça", "a dignidade", "o bem", "os direitos do homem", "a honra" etc. Se o objeto formal de todo apetite é o bem, o objeto formal da vontade, enquanto apetite intelectual, é o bem intelectualmente conhecido como tal.

O problema do ensino no De magistro

O problema do ensino, como não poderia deixar de ser, é proposto por Tomás nos quadros de sua antropologia e doutrina sobre o conhecimento.

A própria palavra "educação", ainda que não apareça em Tomás, é como que sugerida diversas vezes em suas análises: trata-se de um eduzir o conhecimento em ato a partir da potência: "scientia educatur de potentia in actum (art. 1, obj. 10); a mente extrai o ato dos particulares dos conhecimentos universais (ex universalibus cognitionibus mens educitur - art. 1, solução); leva ao ato (educantur in actum - art. 1, ad 5) [18].

Ensinar é, pois, uma edução do ato; uma condução da potência ao ato que só o próprio aluno pode fazer. Tomás está distante de qualquer concepção do ensino como transmissão mecâ­nica; o professor, tudo o que faz é en-signar (insegnire), apresentar sinais para que o aluno possa por si fazer a edução do ato de conhecimento, no sentido da sugestiva acumulação semântica que se preservou no castelhano: enseñar (ensinar/mostrar): o mestre mostra! Nesse contexto, é altamente sugestiva a genial comparação da aprendizagem com a cura e a do professor com o médico, no art. 1.

Tomás, ainda no art. 1 (solução) , contesta algumas concep­ções da época, como a da existência de um único intelecto agente, separado, para todos os homens. Para ele, os que afirmam que Deus é o único agente (também no caso do ensino) atentam contra o plano do próprio Deus, causa primeira que age também pelas criaturas (causas próximas): "Ignoram a dinâmica que rege o universo pela articulação de causas concatenadas: Deus pela excelência de sua bondade confere às outras realidades não só o ser, mas também que possam ser causa."

No art. 2, Tomás aprofunda na discussão do ensino em oposição à aquisição de conhecimentos por si próprio. E conclui afirmando a superioridade do ensino.

O art. 3 é dedicado à curiosa questão da possibilidade de o homem ser ensinado por um anjo: "se bem que só Deus infunda na mente a luz da verdade, o anjo ou o homem podem remover impedimentos para a percepção da luz" (Em contr. 6). E estuda também de que formas o homem pode ser ensinado por um anjo (o anjo, ao contrário do homem, não raciocina - o intelecto angé­lico atinge diretamente o conhecimento e não precisa dos enlaces lógicos e dos silogismos, que classicamente se chamam razão).

No art. 4, Tomás mostra o caráter, ao mesmo tempo ativo e contemplativo, do ensinar

Cronologia

Contexto em que ocorre o nascimento de Tomás

c. 1170. Nascimento de São Domingos em Caleruega (Castela).

1182. Nascimento de Francisco de Assis. Francisco e Domingos irão fundar, no começo do séc. XIII, as ordens mendicantes: franciscanos e dominicanos. As ordens mendicantes, voltadas para a vida urbana, e, posteriormente, para a Universidade, sofrerão duras perseguições em Paris.

c. 1197. Nascimento de Alberto Magno, um dos primeiros grandes pensadores dominicanos, mestre de Tomás.

1210. Primeira proibição eclesiástica de Aristóteles em Paris.

1215. Estatutos fundacionais da Universidade de Paris. Inglaterra: Carta Magna.
Fundação da Ordem dos Pregadores.

1220. Coroação do imperador Frederico II.

1224-5. Nascimento de Tomás no castelo de Aquino, em Roccasecca (reino de Nápoles). Filho de Landolfo e Teodora. Seu pai e um de seus irmãos pertencem à aristocracia da corte de Frederico II.
Frederico II funda a Universidade de Nápoles para competir com a Universidade de Bolonha (pontifícia).

1226. Morte de São Francisco de Assis.

Infância e adolescência no Reino de Nápoles

1231. Tomás é enviado como oblato à abadia de Monte Cassino (situada entre Roma e Nápoles). Monte Cassino, além de abadia beneditina, é também um ponto crucial na geopolítica da região: é um castelo de divisa entre os territórios imperiais e pontifícios.

1239-44. Tomás estuda Artes Liberais na Universidade de Nápoles e toma contato com a Lógica e a Filosofia Natural de Aristóteles, em pleno processo de redescoberta no Ocidente. Conhece também a recém-fundada ordem dominicana, que - junto com a franciscana - encarna o ideal de pobreza e de renova­ção moral da Igreja.

Juventude na Ordem dos Frades Pregadores

1244. Tomás integra-se aos dominicanos de Nápoles, sob forte oposição da família, que tinha para o jovem Tomás outros planos que não o de ingressar numa
ordem de pobreza.

1245-8. Superada a oposição da família, Tomás faz seu noviciado e estudos em Paris. A Universidade de Paris, desde há muito, goza de um prestígio incomparável.

1248. Sexta Cruzada.

1248-52. Tomás com Alberto Magno em Colônia, onde em 1250-1 recebe a ordenação sacerdotal.

1250. Morre Frederico II.

Os anos de maturidade

1252-9. Tomás professor em Paris. Inicialmente (1252-6), como bacharel sentenciário e, de 1256 a 1259, como mestre regente de Teologia. Escreve o Comentário às sentenças de Pedro Lombardo. Em 1259, come­ça a redigir a Summa contra Gentiles. Em defesa da causa das ordens mendicantes, perseguidas, escreve em 1256 o Contra impugnantes Dei cultum et religionem.

1260-1. Tomás é enviado a Nápoles para organizar os estudos da Ordem. Continua a compor a Contra
Gentiles.

1261-4. O papa Urbano IV - pensando numa união entre o Oriente cristão e a cristandade ocidental - leva Tomás por três anos a sua corte em Orvieto.

1264. Tomás conclui a Summa contra Gentiles.

1265. Tomás é enviado a Roma com o encargo da dire­ção da escola de Santa Sabina. Começa a escrever seus comentários a Aristóteles e a Summa theologica. Nascimento de Dante Alighieri.

1266. Nascimento de Giotto.

1267. Um novo papa, Clemente IV, chama Tomás à sua corte em Viterbo, onde permanece até o ano seguinte.

1269-72. Tomás exerce sua segunda regência de cátedra em Paris. Escreve o Comentário ao Evangelho de João. Recrudesce a perseguição contra as ordens mendicantes na Universidade de Paris.

1272-3. Tomás regente de Teologia em Nápoles.

1274. Tomás morre a caminho do Concílio de Lyon.

1277. Condenação, por parte do bispo de Paris, de 219 proposições filosóficas e teológicas (algumas de Tomás) em Paris.

1280. Morte de Alberto Magno.

1323. Tomás é canonizado por João XXII

Notas:

Apresentação

[1] O texto latino de que fundamentalmente nos valemos para essa tradução do De Veritate é o da edição eletrônica feita por Roberto Busa, Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milão, Editaria Elettronica Editei, 1992 (Textus Leoninus aequiparatus).

[2] Cf. Tomás de Aquino, Verdade e conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 1999; trad. e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand e M. B. Sproviero. Nessa edição, o leitor encontrará um estudo biobibliográfico sobre Tomás que traz também alguns outros textos do Aquinate (das Questões disputadas sobre a verdade e do Comentário ao Evangelho de João). E em outro volume desta mesma "Coleção Clássicos"- Cultura e Educação na Idade Média, L. J. Lauand (org.) - encontram-se outros quatro pequenos estudos de Tomás de Aquino sobre o amor, o estudo, o bom humor e o reinado de Cristo (comentário ao salmo 2).

[3] O texto latino de que nos valemos para a tradução dos artigos do De Malo é o texto crítico da edição leonina: S. Thomae Aquinatis Doctoris Angelici, Opera Omnia iussu Leonis XIII, P. M. edita, curo et studio fratrum praedicatorum, Romae 1882 ss., reproduzido na edição I vizi capitali (intr., trad. e nota di Umberto Galeazzi), Milão, Biblioteca· Universale Rizoli, 1996. A Summa e as sentenças seguem a edição eletrônica feita por Roberto Busa, Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milão, Editoria Elettronica Editel, 1992.

Introdução

[1] Weisheipl, ]ames A. Tomás de Aquino - Vida, obras y doctrina, Pamplona, Eunsa, 1994, p. 235.

[2] Pieper, Abertura para o todo: a chance da Universidade, São Paulo, Apel, 1989, p. 44.

[3] Utrum é o "se" latino que indica uma entre duas possíveis opções (daí neutrum, "nem um nem outro").

[4] Pieper, Abertura..., pp. 44-5.

[5]. Cf. Pieper, Wahrheit der Dinge, Munique, Kösel, 1951, pp. 113 ss.

[6] Entre as autoridades citadas por Tomás está a Glosa. A Glosa - ordinária e interlinear (esta mais breve) - deriva dos ensinamentos de Anselmo de Laon e de sua escola (séc. XII) e utiliza muito material exegético anterior.

[7] Platão chega a admitir a existência de três almas no homem, que correspondem às três funções da mesma e única alma humana na doutrina aristotélica.

[8] União extrínseca é a que se dá, digamos, entre um indivíduo e sua roupa ou entre o queijo e a goiabada; união intrínseca é a que ocorre, por exemplo, entre um objeto e sua cor (a cor não se dá sem o objeto e nem se dá objeto sem cor).

[9] E aqui é interessante notar a força do realismo de Tomás: a própria expressão "outros animais", em suas diversas formas latinas - alia animalia, aliis animalibus etc. - aparece nada menos do que cerca de quatrocentas vezes na obra do Aquinate.

[10] Um terno exato em suas medidas e feitura é um terno feito a partir da realidade do sujeito que vai usá-lo, e não, digamos, um terno comprado pronto e mal-ajustado a quem o usa...

[11] Conceito que, aliás, não coincide com a acepção industrial que hoje damos à expressão "matéria-prima".

[12] A forma substancial é aquela que, em união com a matéria-prima, constitui a substância do sujeito. Naturalmente, há também formas acidentais (cor, tamanho etc.) que inerem na substância.

[13] Cabe aqui uma breve explicação sobre o modo como a filosofia chegou a esses conceitos. Para analisar a realidade material, Aristóteles parte da experiência dos fenômenos da unidade substancial de cada ente, de cada sujeito. Aristóteles parte também da realidade das mudanças substanciais, isto é, aquelas, por assim dizer, mais sérias, nas quais o que muda é não já esta ou aquela qualidade acidental do sujeito (que ficou mais alto, mais gordo, mais corado, ou mudou de lugar...), mas o próprio sujeito: uma coisa, X deixa de ser o que era e passa a ser outra coisa: Y (para mero efeito de exemplificação didática, pensemos em um pedaço de madeira que se queima e deixa de ser a substância que era - madeira - e passa a ser outra coisa: cinza). Nesses casos de mudança substancial, o novo ser Y não proveio do nada (mas, evidentemente, de X) e o ser X não se reduziu ao nada (deixou de ser X e passou a ser Y). Examinando, portanto, esses casos de mudança de substância, vemos que há algo que permanece e algo que muda (o que indica que a substância é composta de dois elementos: um que permanece, outro que muda). O que permanece é a matéria-prima, realizada, atualizada, em cada caso, por um fator determinante dessa potência que faz com que X seja X e Y seja Y: a forma substancial.

[14] Sempre que falo desse ponto, lembro-me do comentário jocoso (mas pleno de sentido...) feito por um aluno. "Com a palavra 'alma' (em relação às demais formas)- dizia ele- dá-se algo de semelhante ao que ocorre com certas denominações de sanduíche: os sanduíches com queijo são prefixados por cheesecheese-burger, cheese-dog etc. Mas o 'misto quente' é um sanduíche tão tradicional, tão especial, que ninguém o chama de cheese-presunto, mas por um nome também especial: 'misto quente'". Brincadeiras à parte, podemos dizer que a alma é uma forma, mas uma forma muito especial, porque atua, in-forma o vivente, constituindo o princípio da vida e, portanto, recebe o nome especial de alma.

[15] A filosofia clássica divide as potências dos conhecimentos sensíveis, ou seja, os sentidos, em: sentidos externos (basicamente os tradicionais cinco sentidos) e sentidos internos, em número de quatro: sentido comum, imagina­ção, memória e capacidade estimativa.

[16] Outra operação importante nesse processo é a collatio, a confrontação (feita pelo sentido interno chamado "capacidade cogitativa", que participa do intelecto) entre esta impressão e outras semelhantes, preparando a formação do conceito intelectual.

[17] No sentido de intentio, o conhecimento que se apropria de uma forma.

[18] Daí também que Tomás afirme que a aquisição do conhecimento, com as devidas ressalvas, pode ser comparado às "razões seminais", aquelas potencialidades que "não se tornam ato por nenhum poder criado, mas estão inscritas na natureza só por Deus" (obj. 5). Ressalvas, pois se trata de potencialidades que não procedem da criatura, mas que podem ser conduzidas ao ato pela ação do ensino humano (resposta ã obj. 5).

***

Leia mais em O professor e a docência em S. Tomás de Aquino

Leia mais em Progresso e Tradição em Pedagogia



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Como analisar um livro de Matemática do Ensino Médio


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Tempo de leitura: 16 minutos. 

Apresentamos o texto da Apresentação e da Introdução do livro Exame de Textos: Análise de Livros Didáticos de Matemática Para o Ensino Médio, dos seguintes autores:

Elon Lages Lima (editor)

Analistas:

Augusto César Morgado 
Edson Durão Júdice
Eduardo Wagner
Elon Lages Lima
João Bosco Pitombeira de Carvalho 
José Paulo Quinhões Carneiro 
Maria Laura Magalhães Gomes 
Paulo Cezar Pinto Carvalho

e publicado em 2001 por

VITAE - Apoio à Cultura, Educação e Promoção Social 
IMPA Instituto de Matemática Pura e Aplicada 
SBM Sociedade Brasileira de Matemática.


Apresentação

Este trabalho contém análises de 36 volumes, que compõem 12 coleções de livros didáticos de Matemática, utilizados nos três anos do Ensino Médio das escolas brasileiras.

Ao publicá-lo, moveu-nos o propósito de contribuir para a melhoria da qualidade dos nossos livros-texto, complementando a ação do MEC, que tem avaliado os livros da primeira à oitava série. Devemos esclarecer, entretanto, que há pelo menos duas diferenças fundamentais entre nossa iniciativa e a do MEC. A primeira é que não nos propomos a fazer avaliações; nem sequer temos mandato para isso. A segunda é que nossas análises têm um cunho de orientação, oferecendo (junto com a crítica) sugestões e propostas, numa linha de pensamento objetivo, com base nos princípios estabelecidos na Introdução que dá início a este livro. Depois de apresentadas as 36 análises, o Posfácio resume ao final a impressão que nos deixou essa longa leitura de mais de 15 mil páginas.

Para cumprir esta tarefa, contei com a competente e dedicada colaboração de um seleto grupo de colegas aos quais tive o privilégio de me associar e tenho agora a satisfação de agradecer publicamente. Muito obrigado, pois, a Augusto César Morgado, Edson Durão Júdice, Eduardo Wagner, João Bosco Pitombeira de Carvalho, José Paulo Quinhões Carneiro, Maria Laura Magalhães Gomes e Paulo Cezar Pinto Carvalho.

Cada coleção foi analisada por dois de nós. No índice, após a referência a cada obra escrutinizada, seguem-se os nomes dos respectivos analistas.

A execução deste projeto só foi possível graças ao honroso patrocínio de VITAE, uma organização privada à qual a Educação em nosso país muito deve. Como sempre, contamos com o apoio do IMPA, que vê corretamente o ensino básico como uma etapa indispensável para a pesquisa, e da SBM, cujo suporte nosso trabalho tem sido constante todos esses anos.

Rio de Janeiro, fevereiro de 2001
Elon Lages Lima


Introdução

Fundamentos para a análise dos livros-texto de Matemática para o Ensino Médio

Análise dos livros-texto para o ensino da Matemática na Escola Média deve levar em conta, acima de tudo, sua adequação às três componentes básicas desse ensino, a saber: Conceituação, Manipulação e Aplicação. Em seguida, deve-se indagar se o livro examinado é organizado de modo a permitir ao seu leitor (professor ou aluno) o acesso aos, a familiarização com, e — posteriormente — a utilização efetiva dos conhecimentos adquiridos.

A Conceituação compreende a formulação de definições, o enunciado de proposições, o estabelecimento de conexões entre os diversos conceitos, bem como a interpretação e a reformulação dos mesmos sob diferentes aspectos. É importante destacar que a conceituação precisa é indispensável para o êxito das aplicações.

A Manipulação, de caráter essencialmente (mas não exclusivamente) algébrico, está para o ensino e o aprendizado da Matemática assim como a prática dos exercícios e escalas musicais está para a Música. A habilidade no manuseio de equações, fórmulas, operações e construções geométricas elementares, o desenvolvimento de atitudes mentais automáticas, verdadeiros reflexos condicionados, permitem ao usuário da Matemática concentrar sua atenção consciente nos pontos realmente cruciais, sem perder tempo e energia com detalhes.

A Aplicação é o emprego de noções e teorias da Matemática em situações que vão de problemas triviais do dia-a-dia a questões mais sutis provenientes de outras áreas, quer científicas quer tecnológicas. Ela é a principal razão pela qual o ensino da Matemática é tão difundido e tão necessário.

Ainda no  âmbito dessas considerações gerais, o crítico deve ter em mente que o livro didático é, na maioria dos casos, a única fonte de referência com que conta o professor para organizar suas aulas, e até mesmo para firmar seus conhecimentos e dosar a apresentação que fará em classe. Assim, é necessário que esse livro seja não apenas acessível e atraente para o aluno, como também que ele constitua uma base amiga e confiável para o professor, induzindo-o a praticar os bons hábitos de clareza, objetividade e precisão, além de ilustrar, sempre que possível, as relações entre a Matemática e a sociedade atual.

Conceituação

No exame do livro didático sob o aspecto da Conceituação, os seguintes itens devem ser apreciados:

1. Erros. Este é um quesito de natureza ampla, que abrange, entre outros, os tipos abaixo.

(a) Erros provenientes de desatenção, como erros de cálculo e de impressão. Estes são corrigíveis pelo professor cuidadoso mas são muito desagradáveis para o aluno, que fica perplexo, principalmente quando os encontra nas respostas dos exercícios.

(b) Erros de raciocínio, como confundir uma proposição com sua recíproca, tirar conclusões forçadas (exemplo: afirmar que um fato geral é conseqüência de um caso particular), dividir por algo que pode ser zero, etc.

(c) Erros de definição. Uma definição pode ser incorreta por vários motivos. Ela pode estar em flagrante desacordo com a prática universal (exemplo: “chama-se intervalo a todo conjunto de números reais”), pode conduzir a contradições (exemplo: admitir uma reta como paralela a si própria e, noutro local, dizer que um sistema linear com duas incógnitas é impossível quando as retas que representam as equações são paralelas), pode ser incompleta, deixando de lado casos importantes que deveriam ser incluídos nela, pode ser excessivamente abrangente, etc.

(d) Erros resultantes de conceitos mal formulados e vagos, que dão lugar a ambigüidades, das quais resultam conclusões absurdas, como “no sistema $S$, de $3$ equações com $3$ incógnitas, $x$ e $y$ são indeterminados mas $z$ é impossível”.

2. Excesso de formalismo. Isto ocorre, por exemplo, na definição de função como conjunto de pares ordenados, na desnecessária definição de equação e, de um modo geral, nos capítulos que se referem a conjuntos.

3. Linguagem inadequada. Erros gramaticais, como “o objeto $A$ satisfaz a propriedade $P$”, “grau de uma função”, “raiz de uma função”, “variável” em vez de “incógnita”, “interceptar” em vez de “intersectar”, etc.

4. Imprecisão. Principalmente nas definições. O radiano, por exemplo, raramente é definido corretamente. O comprimento de um arco também. Até mesmo seno e cosseno têm definições vagas. O importante conceito de número real, que deve ser apresentado como o resultado de uma medida, é sempre deixado indefinido.

5. Obscuridade. Aqui a Conceituação e a Didática devem juntar-se para que se dê atenção a trechos ambíguos, ininteligíveis ou contraditórios.

6. Confusão de conceitos. Principalmente nos argumentos demonstrativos.

7. Ainda se pode incluir no item “Conceituação” o importante aspecto do livro didático que diz respeito à sua objetividade, que consiste em não dar relevância a pontos triviais e, ao mesmo tempo, destacar os tópicos, os conceitos e as proposições de importância crucial. Exemplos de desatenção a este princípio são abundantes e refletem uma deficiência realmente danosa, a saber, a ignorância do autor sobre as utilizações posteriores do que está apresentando. Esta deficiência é claramente notada no longo e dispersivo tratamento dado à Trigonometria, com exagero de fórmulas sem importância, impedindo o aluno, e o próprio professor, de distinguir o essencial do supérfluo. Esta grave falta ocorre ainda em vários outros tópicos, como PA, PG, Geometria Analítica, etc.

8. Conexões. Os vários assuntos expostos no livro (ou na coleção) devem ser relacionados uns com os outros, sempre que possível. Exemplos: PA com função afim, PG com função exponencial, função linear e função quadrática com áreas e volumes. A maioria dos livros fala em função inversa no vol. 1 e não menciona que exp e log são inversas; muito menos explora este fato. Sistemas lineares não são vistos sob o ponto de vista geométrico, etc. A conexão entre Trigonometria e Números Complexos tem sido pouco explorada. O mesmo ocorre entre Números Complexos e Geometria Plana.

Manipulação

Este aspecto é tão predominante nos livros didáticos brasileiros que praticamente o público em geral (mesmo os professores e alunos também) considera a Matemática como se resumindo a ele.

A manipulação deve estar presente, principalmente, nos exercícios mas precisa também ocorrer no texto, neste caso (sempre que possível) acompanhada de observações visando ajudar o leitor a ganhar eficiência, evitar erros, refletindo a experiência do autor que oferecerá sugestões para que a prática seja proveitosa.

É bem conhecido o abuso de manipulações desnecessariamente complicadas e inúteis, como por exemplo, os famosos “carroções” e mesmo as expressões (e equações) trigonométricas.

Exercícios de manipulação devem ser comedidos, simples, elegantes e, sempre que possível, úteis para emprego posterior.

Aplicações

Aqui reside a principal deficiência dos livros didáticos brasileiros de Matemática. Um teste revelador sobre a qualidade do livro a este respeito é o seguinte: quais são os exercícios e exemplos nele contidos, onde o objeto principal não é o assunto que acaba de ser estudado? Exemplos: exercícios sobre logaritmos onde a palavra “logaritmo” não ocorra no enunciado; problemas que se resolvam com trigonometria mas que não falem em seno, cosseno, etc.

Qualidades didáticas

As qualidades didáticas de um livro são as características nele contidas que ajudam o leitor a entender mais facilmente as noções ali apresentadas, aprendendo como utilizá-las e, principalmente, motivando-o a prosseguir na leitura, atraído pelo estilo do autor, pela elegância e simplicidade dos seus argumentos e pelos desafios que propõe.

A este respeito, uma importante qualidade que o livro deve possuir é que cada novo conceito apresentado seja precedido de situações-problema que justifiquem sua introdução e acompanhado de vários exemplos que visem não somente exibir suas aplicações como também esclarecer o significado desse conceito e familiarizar o leitor com seu uso. As aplicações podem variar do emprego na vida real até as conexões com outros tópicos matemáticos. Por exemplo, o estudo da função quadrática pode ser ilustrado com aplicações físicas ou por meio de problemas geométricos.

Deve ainda ser incluída entre as boas qualidades didáticas do livro a transmissão que seu(s) autor(es) faça(m) de sua experiência para o leitor, ajudando-o a não cometer erros e a corrigi-los caso os cometa. Por exemplo, sempre que cabível, nos exemplos e exercícios resolvidos no texto, deve ser feita uma estimativa preliminar da ordem de grandeza do resultado. O livro deve ainda incentivar o uso do bom-senso, para que erros sejam detectados por conduzirem a resultados absurdos. Isto, naturalmente, levará os autores a fazerem com que os dados e respostas dos problemas sejam realísticos.

Adequação do livro à realidade atual

O livro deve ajudar a preparação do aluno para tarefas relevantes na sociedade de hoje. Para isso, ele deve libertar-se de tópicos e métodos ultrapassados, substituindo-os por outros que correspondam aos dias de hoje.

Um habito arraigado nos textos tradicionais, fortemente impregnado na mente dos professores (e conseqüentemente dos alunos) é o mito das fórmulas e regras: fórmula das raízes de uma equação do segundo grau, regra de Cramer, fórmulas trigonométricas, regra de extração da raiz quadrada, etc. É necessário conscientizar-se da superioridade dos algoritmos sobre as fórmulas e regras, dos métodos iterativos de aproximação sobre as expressões fechadas e pouco utilizáveis.

Outro exemplo de obsolescência são as tabuas de logaritmos, que foram banidas pela calculadora mas ainda sobrevivem em diversos livros didáticos.

De um modo geral, o uso de calculadoras deve ser estimulado, como meio de evitar o desperdício de tempo com cálculos longos, laboriosos e inúteis (mas nunca como substituto para a tabuada).

Ainda dentro deste item se enquadra a escolha dos assuntos tratados pelo livro, que deve conter material que, além de atraente e ilustrativo, seja relevante por seu conteúdo básico e por suas aplicações, tanto a outras áreas da Matemática como a outras Ciências e à vida de hoje. Naturalmente esta seleção, para ser bem feita, requer do autor uma visão ampla, consultas a especialistas diversos e uma pesquisa cuidadosa em fontes variadas.

Papel educativo da avaliação

Cada relatório concernente à análise de uma coleção deverá trazer (além dos destaques dos pontos positivos e das críticas às suas deficiências) sugestões no sentido de corrigir as falhas, dando assim oportunidade a que os autores e editores de boa-vontade possam, em edições posteriores, reformular os textos, adaptando-os aos objetivos do Ensino Médio, conforme definidos na Lei de Diretrizes e Bases.


Livros analisados

Antônio dos Santos Machado - Matemática na Escola do Segundo Grau. Editora Saraiva.

(Analisado por Elon Lages Lima e Eduardo Wagner)


Benigno Barreto Filho e Cláudio Xavier da Silva - Matemática, Aula por Aula. Editora FTD.

(Analisado por Elon Lages Lima e Eduardo Wagner)


Edwaldo Bianchini e Herval Paccola - Matemática. Editora Moderna

(Analisado por Analisado por Paulo Cezar P. Carvalho e João Bosco Pitombeira de Carvalho)


Gelson Iezzi, Osvaldo Dolce, José Carlos Teixeira, Nilson José Machado, Márcio Cintra Goulart, Luiz Roberto da Silveira Castro e Antônio dos Santos Machado - Matemática. Editora Saraiva

(Analisado por Eduardo Wagner e Augusto César Morgado)


Nelson Gentil, Carlos Alberto Marcondes dos Santos, Antonio Carlos Greco, Antônio Bellotto Filho e Sérgio Emílio Greco - Coleção Matemática para o Segundo Grau. Editora Ática

(Analisado por Paulo Cezar P. Carvalho e João Bosco Pitombeira de Carvalho)


José Ruy Giovanni e José Roberto Bonjorno - Coleção Matemática. Editora FTD

(Analisado por José Paulo Q. Carneiro e Augusto César Morgado)


Katia Cristina Stocco Smole e Rokusaburo Kiyukawa - Matemática. Editora Saraiva

(Analisado por Eduardo Wagner e Augusto César Morgado)


Luiz Roberto Dante - Matemática: Contexto e Aplicações. Editora Ática

(Analisado por Elon Lages Lima e Eduardo Wagner)


Manoel Rodrigues Paiva - Coleção Matemática. Editora Moderna

(Analisado por Paulo Cezar P. Carvalho e João Bosco Pitombeira de Carvalho)


Márcio Cintra Goulart - A Matemática no Ensino Médio. Editora Scipione

(Analisado por Elon Lages Lima e Eduardo Wagner)


Maria Helena Soares de Souza e Walter Spinelli - Matemática. Editora Scipione

(Analisado por Paulo Cezar P. Carvalho e João Bosco Pitombeira de Carvalho)


Paulo Bucchi - Curso Prático de Matemática. Editora Moderna

(Analisado por Edson Durão Júdice e Maria Laura Magalhães Gomes)

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Leia mais em A dura tarefa de escrever livros de Matemática

Leia mais em Os três componentes da Matemática



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A educação clássica é a opressão da ignorância

O recital, 1862, por Gustave Léonard de Jonghe

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Tempo de leitura: 40 minutos.

Texto retirado do capítulo 2 do livro Desconstruindo Paulo Freire, organizado por Thomas Giuliano Ferreira do Santos (org), Editora: História Expressa, 2017.

2 A educação clássica é a opressão da ignorância, por Clístenes Hafner Fernandes [*]

A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.
(Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia) 

Quis miles sine certamine coronabitur? Quis agricola sine labore abundat panibus? Nonne vetus proverbium, radices litterarum esse amaras, fructus autem dulces? Igitur et noster orator in Epistula ad Hebreos idem probat. Omnis quidem disciplina in praesenti non videtur esse gaudii sed moeroris; postea vero pacatissimum fructum exercitatis in ea affert iustitiae.
(Alcuinus, De Grammatica) [**]

O tema deste capítulo é a educação clássica no contexto da educação no Brasil, cujo patrono é Paulo Freire. Por mais que o título do livro seja Desconstruindo Paulo Freire, o que quero aqui é pôr algo no terreno que fica baldio depois da demolição; vamos ver, sim, o porquê de não seguirmos certas diretrizes dos órgãos responsáveis pelas instituições educacionais que são profundamente influenciadas por uma só doutrina em sua quase totalidade, mas queremos antes de tudo propor algo bastante concreto. E essa proposta não tem nada de própria e nenhum mérito deve a mim, mas a toda a cultura ocidental, que há milênios deixa registrados muitos de seus erros e acertos. O que queremos então é olhar para trás e ver o que deu certo. Isso por termos a firme convicção de que é somente assim, com verdadeira educação tradicional, que é possível não termos que, a cada nova geração, descobrir novamente como fazer fogo. As gerações passadas já nos ensinaram tal arte, e podemos gastar nossas mentes com problemas de outra ordem, isto é, de alguma forma ininterrupta, chegou até nós a arte do fogo. Assim é com todo o desenvolvimento cultural, pois nós vivemos em uma cultura específica que só é possível quando temos conhecimentos adquiridos por gerações passadas que, através da linguagem humana, chegaram até nós, que também temos a responsabilidade de não deixar que as próximas gerações sejam privadas das conquistas dos mais antigos.

Não foi só o fogo, foram também os números, as técnicas agrícolas e pastoris, a organização social e, principalmente, a esperança inabalável na vida post mortem que através de um instrumento muito humano, a linguagem, faz com que vivamos e gozemos das conquistas passadas. A linguagem possibilita que não só os contemporâneos possam ajudar uns aos outros, mas também permite a comunicação com os antigos. Para atingir maior eficácia nessa transmissão da cultura, a língua surge, desenvolve-se e morre junto com a música e o verso, que são, na verdade, a mesma coisa. Vejam que a língua surge para a transmissão da cultura, sim, da cultura inteira e não somente daquilo que chamamos de Kultur com k maiúsculo ou alta-cultura. Também as técnicas com as quais devemos fazer fogo e cozinhar os alimentos e a forma com a qual devemos construir casas e confeccionar roupas dependem da língua para seu próprio aprimoramento, pois a máxima “duas cabeças pensam melhor do que uma” é irrevogável. Ao referir-me à língua, faço-o em seu sentido mais amplo; numa língua, está contido todo o conjunto das experiências sonoras e corporais propriamente humanas: além das palavras, a música e a poesia, a história, a oratória, as regras gramaticais também são língua.

Por tudo isso que foi dito e muito mais, a língua sempre ocupou o lugar supremo da educação. Sendo as sociedades letradas ou não, sempre é importante ensinar os mais jovens a falar – para que possam conhecer os costumes e melhor agirem – e a conhecer as realidades materiais – para melhores coisas fazerem. Enfim, é com a língua que nos é possível a transcendência, nos é possível ser não só animal, mas também animal racional. Quero dizer que um ser humano por qualquer problema físico, ou até mesmo mental, não se encaixaria na definição aristotélica de homem? Obviamente, não; isso é coisa para especialistas, mas mesmo assim sabemos que não há ser humano sem língua; por mais que latente, todos são capazes de abstrações verbais; um homem com um vocabulário reduzido não é menos homem que Coelho Neto [1]; é importante usar a língua da melhor forma, mas disso independe a definição de homem.

Hoje, a poesia, a música e muitas outras artes parecem estar só nos âmbitos do entretenimento, no máximo como um diletantismo, mas é por existir uma tradição educacional, que depois chamaremos de clássica, que o homem foi capaz de libertar-se da opressão de sua própria ignorância, ganhando assim autonomia não só do espírito, mas também do corpo através do domínio cada vez maior sobre a matéria. Sem a linguagem, que por questões práticas deve revestir-se de música e verso para melhor proveito da memória, não seria possível que o homem fizesse coisa alguma e seria sim necessário, a cada nova geração, descobrirmos uma vez mais como fazer fogo.

A quem duvida da praticidade e da eficácia da poesia para questões práticas, sugiro que busque em qualquer livro de culinária a receita de arroz de carreteiro. Tente memorizar todo o texto e, além disso, saiba exatamente o quod non est, saiba qual o gênero próximo e a diferença específica do carreteiro para os outros tipos de pratos com arroz. Depois de alguns longos anos, tente preparar um carreteiro com o texto que tiver na memória. Provavelmente, não estará mais lá, pois o texto em prosa, sem o auxílio da melodia que possui o texto em verso, é infinitamente mais difícil de ser decorado, e você não saberá mais como fazer o prato. Ora, pegue o poema de Jayme Caetano Braun intitulado “Arroz de Carreteiro” e o memorize. Não será fácil. Talvez precise de muitos dias para isso, mas, como que por mágica, esse texto virá a sua cabeça durante toda a vida, e daqui a muitos anos, você poderá fazer o arroz como se estivesse com o livro de receitas na mão; você estará livre e autônomo para fazer algo de útil e saboroso. Se é assim com uma simples e rústica receita culinária, quanto mais com questões espirituais como a ética, a política e a religião. Precisamos nos libertar, precisamos de autonomia, precisamos da educação clássica, cujas raízes são amargas, mas os frutos, doces.

A educação dita clássica é a verdadeira educação para a liberdade, pois oprime dolorosamente a ignorância e habilita os alunos à participação ativa na sociedade. Capitalismo versus socialismo, patrões versus empregados, oprimidos versus opressores. O mundo parece ser tão simples se observado por essa ótica. Mas tenhamos cuidado; o mundo é sempre simples se percebido por um só homem ou mesmo por um conjunto de homens que não observam o mundo, mas apenas repetem as conclusões de um único observador. Desde que se tem notícia, existiram homens à procura de observadores que lhes pudessem entregar os resultados de suas observações para se pouparem do árduo trabalho de observarem por si mesmos: sábia decisão. Porém, há os que, apegando-se ao relato de um único observador e levados pela preguiça constituinte de todo animal racional, passam a defender com unhas e dentes qualquer fiapo de opinião minimamente bem apresentada. É o que vemos ter acontecido com o patrono da educação brasileira, e é o que queremos evitar ao propormos neste capítulo o cultivo do que de melhor, mais belo e mais próximo da verdade o homem já conquistou. Propomo-nos a ouvir os relatos e as conclusões do maior número possível de observadores; propomos a educação de sempre; propomos a educação clássica.

Mas não sou eu, um professor de nível médio, quem propõe nada. Não proponho nada porque sei que muitos outros já propuseram, outros com mais talento, mais leituras e mais maturidade do que eu. Vou deixar que esses homens falem. Sejamos democráticos e levemos em consideração a opinião alheia não só de nossos contemporâneos, mas de toda a res publica litteraria, aquela comunidade humana que deixou por escrito o que deveríamos conhecer, o que deveríamos fazer e como deveríamos agir; que, consciente da própria existência, criou monumentos. Um monumento é tudo aquilo que nos monet, que nos instiga e move ao bem ou ao mal, à beleza ou à feiura, à verdade ou ao erro. Participemos da democracia dos mortos; ouçamos a Tradição [2].

É buscando ouvir a Tradição que, ao depararmo-nos com a frase de Paulo Freire que está na epígrafe, podemos ver o quão longe pode-se estar de uma verdadeira doutrina pedagógica. Alcuíno de Iorque foi para Carlos Magno e para todo o Sacro Império Romano Germânico o que Paulo Freire é para nós brasileiros. Na virada do século VIII para o IX, tudo estava por ser feito, e a figura de pai ou mesmo de patrono da educação de todo um império é uma ótima analogia para descrevermos o mestre Albinus, que usava esse pseudônimo para manter-se humilde diante de tudo o que construiu e que ficou conhecido como a Renascença Carolíngia. E notamos a grande diferença nas citações: o primeiro propõe o céu na terra, um aprendizado sem dor, que sabemos ser possível, mas que gera amargas ervas daninhas, o segundo simplesmente observa a realidade e vê que a educação dói, mas gera frutos doces.

“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. (Paulo Freire)

“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. (Paulo Freire) 

Podemos concordar com muitas das frases soltas de qualquer autor, até mesmo de Paulo Freire. É impressionante a nossa tendência a abraçarmos uma doutrina por termos lido umas poucas frases. Fora o estilo e o uso de neologismos totalmente desnecessários, não há quem possa discordar de tudo contido numa doutrina qualquer. Essa é uma lição, ou até mesmo um dos princípios, não só da educação clássica, mas também do argumento bíblico (Que digo? A Bíblia só existe pela educação clássica e não o contrário, como alguns podem pensar, mas isso é matéria para outro texto.): spiritum nolite extinguere, prophetias nolite spernere, omnia autem probate quod bonum est, tenete [3].

A educação de sempre é a educação para o trabalho. Falar da educação clássica é falar da educação de sempre, da educação que não só, simplesmente, vê e imita tudo aquilo que vem dando certo nos últimos três mil anos, mas também que olha para o que não deu certo e que por isso deve ser repudiado. Pronto! Nada além disso! Mas há de se reconhecer que é algo muito duro. Primeiro, porque três mil anos de cultura, desde Homero e Moisés até os nossos dias, são inabarcáveis por uma pessoa só. Segundo, porque se não houver uma profunda mudança para melhor na personalidade dos alunos e dos professores, a educação clássica é só um passatempo um pouquinho mais erudito do que fazer palavras cruzadas. Terceiro, porque há no mercado formas muito mais fáceis e menos dolorosas de se cumprir a exigência de estudar, afinal, todos temos de estudar em certa época da vida, e não importa o quê.

E por que devemos estudar? “Para podermos trabalhar, conseguir um emprego, fazer um concurso.” Normalmente, quem fala sobre educação clássica responde que não, que não é a atividade profissional o fim da verdadeira educação. Mas neste capítulo, vou juntar-me ao coro dos que dizem que sim, que precisamos de educação para podermos trabalhar e trabalhar bem, pois é aí, no trabalho, que tiraremos a prova real da eficácia dos métodos empregados na formação clássica. É no trabalho que empenhamos os anos da vida em que maturidade e gravidade de caráter se servem da força física e da esperança próprias da juventude para mexermos na natureza das coisas. Mesmo que, por uma visão macrocósmica, o homem só seja capaz de ser aquele pardal tentando apagar o fogo de uma casa com o pouco de água que consegue carregar no bico.

Mas há a visão microcósmica, a visão dos grandes homens de ciências, de letras ou de artes, que é o objeto principal da educação clássica, a educação que forma os homens de dentro para fora e permite que aquele que olha para dentro, ao emergir desse mergulho na alma, enxergue o quão importante é moldar e mudar a si mesmo. O trabalho é a oportunidade que temos para mudarmos a nós mesmos.

No princípio era o ócio – poderiam dizer alguns –, era aquela ocupação à qual se dedicava Adão no paraíso, ou a ocupação dos homens de ouro em Hesíodo. Era um tempo quando não havia trabalho – dizem outros –, e a Bíblia vê o trabalho como algo feio, algo a que o homem é condenado após o pecado original. Antes era o ócio, e Adão passava os dias de sua até então imortalidade dedicando-se à poesia, à literatura e à filosofia; dava nome às coisas. Mas dar nome às coisas já não é trabalhar? E ter de ser o senhor da criação não é uma responsabilidade grande demais para ociosos? Sim, e Adão não foi condenado a trabalhar, mas, sim, a suar. E como todos os que estudam os clássicos sabem, qualquer um poderia ter escrito sobre a criação do homem, já que ali não há nada que não possa ser concluído por alguém que olhe para si mesmo. E como ensina o vulgo: o ruim não é o trabalho, mas, sim, ter de trabalhar.

A palavra escola quer dizer justamente isso, σχολή, otium que se opõe a negócio, nec otium, negotium. A escola é originariamente o momento em que eu não trabalho, só estudo… Não, na escola, trabalha-se sem suor! E aqui, chegamos para dizer que o estudo é um trabalho, que a atividade de jardineiro, advogado, pintor, diplomata, bancário, pedreiro, presidente da república, monarca ou qualquer outra não é diferente daquela exercida na escola. Se para alguns é, nós precisamos falar sobre a escola.

Como pode ser que todas as pessoas, sem distinção alguma, devam aprender as mesmas coisas entre os cinco e os 18 anos de idade? Pode ser, sim, pois há uma cultura que deve ser comum a todos os homens livres. Dizendo de outro modo, há uma cultura – um cultivo da alma – que torna os homens livres. Essa liberdade, que passam a possuir todos aqueles que verdadeiramente cultivam a alma, é um grande valor, ou melhor, uma grande virtude que nunca saiu de moda, a diferença é que em cada período histórico o vocábulo liberdade foi aplicado a realidades materialmente distintas. Do tirano ao povo, do senhor ao escravo, dos íncolas aos imigrantes, todos encheram a boca para falar de liberdade. Hoje, só Hitler é lembrado pelo Arbeit macht frei, provando que até nos piores casos é possível haver concórdia se isolamos os termos.

Estudem-se não os contemporâneos e aqueles que têm as nossas mesmas tendências, mas os grandes homens do passado, cujas obras adquiriram há séculos um valor sempre igual e igual renome… Estude-se Molière, estude se Shakespeare, mas, antes de mais nada, os antigos gregos, e sempre os gregos! (Goethe) 

Não estudamos os antigos porque eram melhores do que nós. Surgiu na Alemanha uma ideia paradisíaca sobre o homem grego. Winkelmann, um iluminista historiador da arte, desenhara a Grécia Antiga como uma espécie de Jardim do Éden ou, para ficarmos na mesma cosmovisão, uma espécie de Campos Elíseos. Mas o erro histórico e antropológico de enxergar a perfeição em um tempo passado é recorrente nos espíritos que por vontade própria ou necessidade espacial e temporal estão fora da solução do problema judaico-cristão. Talvez tenha sido aí que começamos a encarar os estudos de línguas mortas e de textos antigos como deleite e passatempo. Antes disso, era o que tínhamos para fazer. Precisávamos ser capazes de conversar uns com os outros; não só com os contemporâneos, mas também com todos os que tiveram algo de importante a dizer. Precisávamos ser capazes de oprimir nossa ignorância para que ela nos libertasse. Ninguém possui a ignorância, é ela que nos possui. Inscitia nos tenet. A partir de então, quando pensávamos estar voltando-nos para as origens mais profundas de nossa civilização, criamos a falsa ilusão de um céu na terra que teria existido no Peloponeso, invertendo completamente a finalidade transcendental e libertadora da educação clássica, que passou a igualar-se a idas a museus.

A educação clássica não é um museu. Certa vez, assisti a um filme dirigido por Woody Allen chamado “Meia-Noite em Paris”. É interessante ver que certos movimentos da alma criativa se repetem sempre e parecem não se resolver nunca. No filme, o personagem principal está na Paris de nossos dias e sofre daquela saudade de um tempo que não viveu, que é típica dos escritores; ele gostaria que a cidade tivesse se conservado ou até permanecido nos anos vinte. Por mágica, o protagonista acaba tendo a oportunidade de voltar no tempo e viver algumas horas na sua década amada, e conhece uma jovem que por sua vez sofre de saudade da Belle Époque. Os dois têm a oportunidade de voltar no tempo e viver também algumas horas em Paris no século XIX. Só que ali, sofre-se de saudade do iluminismo. Enfim, o filme, de cuja qualidade não posso dizer nenhuma palavra por não entender nada de cinema, convida-nos a esquecermo-nos do passado, pelo menos de um passado em que haja uma perfeição ideal.

Tudo isso para dizer que a educação clássica não é um museu como muitas vezes é não só vista, mas até mesmo idealizada, por alguns. Ninguém tem de aprender latim para conservar certas citações de autores célebres em um canto da memória. A língua oficial da república literária ajuda-nos a viver com liberdade e com autonomia, pois temos para onde recorrer para dirimir nossas dúvidas.

O primeiro passo para uma educação clássica é o domínio da linguagem em todas as suas quatro habilidades, ou four skills, como dizem os de língua inglesa. Por dois mil anos, essa língua a ser dominada foi o latim, e eu acho cedo demais para pensarmos que já deixou de ser. A educação clássica, a educação para o trabalho em todas as suas dimensões, para a liberdade e para a autonomia passa inevitavelmente pelo aprendizado da língua latina. É isso que quero dizer neste capítulo, pois o fim do ensino do latim marca o início da decadência da educação clássica.

O uso do latim como língua escrita, posto que não se identifique de todo com a causa […] da cultura greco-latina e mediterrânea, é, contudo, o indício mais seguro de uma comunicação vital entre o mundo antigo e o moderno. Quando cessar esse uso, cessará também, necessariamente, o aporte contínuo de ideias que nos vêm da antiguidade. Pode ser que a nossa civilização moderna não tenha mais necessidade disso. Mas eu não diria que essa sua nova independência contribuirá para torná-la melhor.
(Giovanni Battista Pighi) 

A Gramática ou Literatura ou, simplesmente Litterae, letras, frequentemente foi simbolizada por uma palmatória. Talvez não usemos mais palmatórias em nossos alunos, mas o símbolo continua muito válido como bem nos lembra mestre Alcuíno. Isso porque nada é mais doloroso para o intelecto do que aprender. Ao dedicarmo-nos ao domínio de uma fonética diferente daquela que ouvimos desde a gestação no seio materno, à aquisição de vocabulário, às regras de sintaxe e ao aprimoramento do estilo através de incessantes leituras, podemos ver o quanto aprender qualquer coisa dói. Dói porque nossos olhos estão acostumados à escuridão.

Por que é mais importante estudar latim e grego do que línguas modernas? Não há como ler bem textos antigos em traduções para o português! Ou inglês, ou espanhol, ou francês, ou italiano. Em alemão, teria sido possível se essa língua tivesse tomado um rumo diferente ao longo de sua história, mas isso é questão para artigo focado mais em filologia e menos em pedagogia. Dou-vos um exemplo simples propondo o seguinte exercício: 

Leia este verso da Sequência de Corpus Christi, Lauda Sion, de Santo Tomás de Aquino: Noctem lux eliminat.

Sempre que lemos uma frase, uma série daquilo que o filósofo chamou de fantasmas aparece em nossa imaginação na mesma ordem em que os vocábulos estão dispostos. Na frase noctem lux eliminat, temos noite e luz. Tente imaginar essas duas realidades, porém em ordens diferentes: imagine a noite. Agora, imagine a luz. Por fim, faça o contrário, imagine a luz e depois a noite.

A questão é: Santo Tomás quis que, quando lêssemos esse verso, pensássemos na noite antes de pensarmos na luz. Assim, o verbo eliminat é praticamente desnecessário. Quando traduzimos para o português, o melhor que temos é A luz elimina a noite. A luz vem antes, e aí temos um problema, pois o autor não quis que nós víssemos o fantasma da noite antes do da luz. Mas e a voz passiva? Como diz o nome, é passiva. Se disser noite é eliminada pela luz, está suavizando o sujeito, que em gramática não se chama mais sujeito, e sim agente da passiva, e acabamos dando maior valor à noite do que à luz.

A luz, no verso de Santo Tomás, é Cristo, e a noite é o pecado. O que é mais importante, o pecado ou Cristo? Certamente, Cristo! Mas por que devemos ler (e imaginar) o pecado primeiro? Muito simples: o pecado antecede a Cristo tanto historicamente quanto espiritualmente. Assim, não só na eucaristia, que vem eliminar a escuridão do pecado, como também nos demais sacramentos, em que Cristo sempre se faz presente, primeiro tens o pecado, depois vem Cristo e o elimina.

Podemos entender isso lendo a frase em português? Sim, claro, pois é uma frase curta e fácil, que trata de uma realidade simples como o próprio cristianismo. Mas os textos antigos são sempre assim, e se não puser os fantasmas na ordem certa, talvez acabe por não entender o texto. 

Portanto, a posição das palavras diz muito sobre o conteúdo de uma frase, e numa língua sem declinações de substantivos e adjetivos, não temos todos os recursos para que o leitor ou ouvinte crie os fantasmas na ordem que queremos e de que precisamos. Em português, foram precisos diversos parágrafos para explicar um verso que deveria ser entendido à primeira vista; em latim, o próprio verso é autoexplicativo. É preciso, portanto, ler no original, coisa muito elementar e evidente até poucos anos, até o dia em que passamos a encarar a cultura ocidental como um museu e deixamos de estudar a língua que era o principal veículo de nosso culto.

Uma língua é uma língua. O latim é uma língua. Existem métodos bons e ruins para ensinar línguas. Quanto mais o método se esquece de que o latim é uma língua, pior fica. A Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo, é um grande livro, mas, como o nome diz, serve para que aprendamos gramática, e não língua.

Se perguntássemos a Erasmo de Rotterdam, um dos maiores prosadores do latim em épocas em que este já era uma língua morta, o que é um adjunto adnominal restritivo, ele não saberia responder. E um genitivo? Sim, isso sim. Mas isso ele aprendeu depois de entender bem a diferença entre filius Deus e filius Dei. E ninguém tentou ensinar tal diferença explicando o que era um genitivo e muito menos um adjunto adnominal restritivo.

Nem só de latim vive o homem, alguns frequentemente me dizem, e é verdade, mas é o latim o instrumento da liberdade e da autonomia. Foi assim durante séculos e é cedo demais para afirmarmos que deixou de ser o caminho mais seguro. Mesmo que depois de termos oprimido nossa ignorância pelas longas horas de exercícios de morfologia, sintaxe e estilo nunca peguemos num livro latino, teremos infinitamente mais facilidade para o aprendizado de outras línguas que venham a ser diretamente mais úteis, teremos aprendido a estudar e a aprender, teremos sofrido sob a palmatória da gramática e nos tornado autônomos e livres para seguir qualquer caminho dentro da sociedade, independentemente da classe social, raça, nacionalidade ou credo; pertenceremos à república das letras e teremos o direito e o dever de participar da verdadeira democracia, aquela que ouve a todos, até os mortos; participaremos da Tradição.

Um dia deixamos de ter uma língua comum com interlocutores de todas as épocas e, a partir daí, também por não termos essa matéria que é uma verdadeira palmatória espiritual se bem ensinada, o caminho estava aberto para que usurpassem o vocabulário e, através de métodos alternativos, pudessem inverter os valores da educação realmente voltada para a autonomia e a liberdade.

Sim, liberdade, pois não foram só homens virtuosos a sair dos bancos escolares clássicos. Se a educação tivesse sido opressora, não no sentido real da palavra, mas no sentido freiriano, os franciscanos não teriam Ockham, nem os jesuítas – verdadeiros patronos da educação no Brasil – teriam Diderot, Rousseau ou até Descartes.

Não é possível pensar em transformar o mundo sem sonho, sem utopia, sem projeto. (…) Os sonhos são projetos pelos quais se luta (Freire). Não é mesmo possível, sr. Freire, mas o nosso sonho, a nossa utopia, o nosso projeto é muito mais antigo e valoroso do que os seus. Nosso sonho é o de São José; pega sua esposa e seu filho e vai para o Egito, pega tudo o que merece ser conservado e garante a sua sobrevivência. Nossa utopia é a de São Tomás Moro, nosso projeto é o de Sócrates.

A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores oprimidos, que é a libertação de todos. (…) A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo, não mais opressor; não mais oprimido, mas homem, libertando-se. (Paulo Freire) 

Sim, a educação é um parto, como diria não Paulo Freire, mas Sócrates, e só há parto depois da gestação. O ventre não oprime, ele guarda, nutre, protege, assim como a educação clássica guarda tudo o que pode ser guardado e faz com que a civilização se desenvolva desde o estado embrionário; nutre pela assimilação dos alimentos que necessariamente precisam nutrir primeiro a mãe; protege contra tudo o que possa prejudicar o processo longo e obstinado de parir. Após o parto, a civilização ainda não está livre. Tudo pode acontecer! A criança precisa de anos de ensinamentos para que aprenda simplesmente a fazer aquilo que no ventre acontecia de forma natural. Terá que aprender a guardar para conhecer, a nutrir-se para agir e a proteger-se se quiser fazer qualquer coisa.

Quando que deixamos de acreditar que o importante na escola é aprender a ler, a escrever e a contar? Acho que a grande maioria das pessoas nunca deixou. Quem deixou foram os pedagogos discípulos do mestre Freire. Se não é isso, o que deve ser a educação? Sempre houve discordâncias entre os pedagogos sobre como e por que ensinar leitura, escrita e matemática, mas não me parece ter havido, antes de Freire, alguém que propusesse a quase abolição dessas matérias. Como fazer para alcançarmos a tal liberdade? Como fazer para que cresçamos em autonomia se para tudo precisamos de um professor que nos ensine, pois não temos a habilidade necessária para ir a qualquer biblioteca, tomarmos um volume sobre determinado assunto e aprendermos sozinhos o que nos é necessário? Que liberdade? Que autonomia? Discutamos, sim, o método de ensinar e encontremos o mais eficaz para cada sociedade e para cada tempo, mas não nos iludamos serem possíveis a liberdade e a autonomia onde não há, através do suor seco das horas de ditados, cópias, leituras, recitações, memorizações e cálculos de cabeça, verdadeira opressão da ignorância.

Enfim, a educação clássica é a pedagogia do oprimido pela ignorância que busca a autonomia para que, por suas próprias pernas, possa buscar o que é bom, belo e verdadeiro; possa trabalhar, contemplar a realidade e ter cada vez mais certeza de que está no caminho certo, caminho sem fim, mas certo. E quando esse oprimido se sentir inseguro ao lutar bravamente contra a ignorância, pela sua libertação, terá a certeza de que não está sozinho; alguém antes dele deve ter deixado uma canção sobre como fazer fogo.


Notas:

[*] Professor de Artes Liberais no Instituto Hugo de São Vítor.

[**] Tradução: “Qual soldado será coroado sem uma batalha? Qual agricultor terá pão em abundância se não trabalhar? Não diz o velho ditado as raízes das letras serem amargas, mas os frutos doces? Assim sendo, também o nosso orador (São Paulo) comprova o mesmo na epístola aos hebreus. Pois ‘nenhuma correção é vista como alegria no presente, mas como sofrimento; no futuro, por sua vez, ela traz um fruto de paz pelo exercício da justiça.’” (Alcuíno de Iorque, Sobre a Arte Gramática) 

[1] Henrique Maximiano Coelho Neto foi contemporâneo de Machado de Assis e ficou conhecido por, dentre outras coisas, escrever valendo-se de um vocabulário enorme.

[2] Grafo Tradição com t maiúsculo referindo-me não ao que a Igreja Católica chama de Tradição, nem aos costumes mais simples e sujeitos a mudanças, como há no campo da etiqueta, da moda e do folclore. Com Tradição quero referir-me a todas as grandes conquistas da história humana que, por terem sido devidamente registradas, libertaram-se da lei da morte.

[3] Tradução: “Não extingais o espírito, não desprezeis as profecias, examinai tudo, abraçai o que é bom.” (I Tessalonicenses 5, 19-21)

 ***

Leia mais em Paulo Freire, patrono ou ídolo de barro?

Leia mais em Livro A Crise da Educação Ocidental



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