Introdução
Sendo o De magistro de Tomás uma das questões disputadas sobre a verdade (a de nº 11), comecemos por relembrar o papel que essas questões tinham na universidade medieval .
A quaestio disputata, essência da universidade medieval
Da primeira regência de Tomás na Universidade de Paris procedem as Quaestiones Disputatae de Veritate. Essas questões foram disputadas em Paris de 1256 a 1259: as questões 1 a 7 (sobre a verdade; o conhecimento de Deus; as idéias divinas; o verbum; a Providência Divina; a predestinação e o "livro da vida") são do ano letivo 1256-7; as de 8 a 20 (sabedoria angélica; comunicação angélica ; a mente como imagem da Trindade; o ensino; a profecia como sabedoria; o êxtase; a fé; a razão superior e a inferior; a sindérese; a consciência; o conhecimento de Adão no Paraíso; o conhecimento da alma depois da morte e o conhecimento de Cristo nesta vida), de 1257-8, e as de 21 a 29 (a bondade; o desejo do bem e a vontade; a vontade de Deus; o livre-arbítrio; o apetite dos sentidos; as paixões humanas; a graça; a justificação do pecador e a graça da alma de Cristo), de 1258-9.
A quaestio disputara, como bem salienta Weisheipl [1], integra a própria essência da educação escolástica: "Não era suficiente escutar a exposição dos grandes livros do pensamento ocidental por um mestre; era essencial que as grandes idéias se examinassem criticamente na disputa." E a disputatio, na concepção de um filósofo da universidade como Pieper, transcende o âmbito organizacional do studium medieval e chega até a constituir a própria essência da universidade em geral [2].
Para que o leitor possa bem avaliar o significado de uma quaestio disputara em S. Tomás, apresentaremos o modus operandi dessas quaestiones, procurando também indicar a ratio pedagógica que as informa.
Uma quaestio disputata está dedicada a um tema - como por exemplo a verdade ou o verbum - e divide-se em artigos, que correspondem a capítulos ou aspectos desse tema . Naturalmente, por detrás da "técnica pedagógica" está um espírito: a quaestio disputata, como analisaremos em tópico ulterior, traduz a própria idéia de inteligibilidade - devida ao Verbum (o Logos divino, o Filho) -, ao mesmo tempo que a de incompreensibilidade, a de pensamento "negativo" , também fundada no Verbum...
Procurando veicular, operacionalizar em método a vocação de diálogo polifônico - que constitui a razão de ser da universitas -, primeiro enuncia-se a tese de cada artigo (já sob a forma de polêmica: "Utrum... [3]") e a quaestio começa por um videtur quod non... ("Parece que não..."), começa por dar voz ao adversário pelas obiectiones, objeções à tese que o mestre pretende sustentar.
Já aí se mostra o caráter paradigmático e atemporal (e atual...) da quaestio disputara, a essência da universidade, assim discutida por Pieper: "Houve na universidade medieval a instituição regular da disputatio, que, por princípio, não recusava nenhum argumento e nenhum contendor, prática que obrigava, assim, à consideração temática sob um ângulo universal. Um homem como Santo Tomás de Aquino parece ter considerado que precisamente o espírito da disputatio é o espírito da universidade." [4] E prossegue: "O importante é que, por trás da forma externa de disputa verbal regulamentada, a disputa - com toda a agudeza de um confronto real - dá-se no elemento do diálogo. Este ponto decisivo é hoje, para a universidade, mil vezes mais importante do que pode ter sido alguma vez para a universidade medieval."
Nos textos de Tomás, após as objeções, levantam-se contra-objeções (sed contra, rápidas e pontuais sentenças colhidas em favor da tese do artigo; ou algumas vezes in contrarium, que defendem uma terceira posição que não é a da tese nem a das obiectiones). Após ouvir estas vozes, o mestre expõe tematicamente sua tese no corpo do artigo, a responsio (solução) . Em seguida, a responsio ad obiecta, a resposta a cada uma das objeções do início.
Torna-se dispensável dizer que não se entende por quaestio disputata nada que tenha que ver com sutilezas enfadonhas e estéreis. Por outro lado, o que afirmamos acima sobre o diálogo e a impossibilidade de dar resposta cabal, de esgotar um assunto filosófico não significa, evidentemente, que na quaestio disputata não se deva tomar uma posição e defendê-la: não se trata, de modo algum, de agnosticismo. Podemos conhecer a verdade, mas não podemos esgotá-la. Posto que o homem pode conhecer a verdade (e na medida em que o pode fazer), a discussão filosófica chega a uma responsio, a uma certa determinatio.
Finalmente, dentre as características da quaestio disputata de S. Tomás de Aquino, destaquemos a de dar voz ao adversário com toda a honestidade, formulando sem distorções, exageros ou ironia (o que, em geral, nem sempre ocorre nas polêmicas e debates de hoje), as posições contrárias às que se defendem. Nesse sentido, Pieper faz notar que em S. Tomás a objetividade chega a tal ponto que o leitor menos avisado pode tomar como do Aquinate aquilo que ele recolhe dos adversários a modo de objeção. A propósito [5], é o caso do tão celebrado Carl Prantl, que interpretou como se fosse a posição de Tomás objeções brilhantemente por ele apresentadas às suas próprias teses.
O De magistro e a Antropologia Filosófica
Na "questão disputada" De magistro, Tomás de Aquino expõe sua concepção de ensino/aprendizagem em oposição às doutrinas dominantes da época. Por detrás de questões pedagógicas encontram-se, na verdade, concepções filosóficas - a Filosofia da Educação é inseparável da Antropologia Filosófica - e teológicas.
A antropologia de Tomás - revolucionária para a época - afirma o homem em sua totalidade (espiritual, sim, mas de um espírito integrado à matéria) e está em sintonia com uma teologia (também ela dissonante para a época) que, precisamente para afirmar a dignidade de Deus criador, afirma a dignidade do homem e da criação como um todo: material e espiritual. Sugestiva nesse sentido é, por exemplo, a luta que Tomás teve de travar na Universidade de Paris para defender a tese da unicidade da alma no homem: a mesma e única alma é responsável pelos atos mais espirituais e mais prosaicos no homem (a teologia dominante - pensando dar glória a Deus - separava "a alma espiritual" das "outras duas" - sensitiva e vegetativa - em favor de uma antropologia "espiritualista" e desencarnada).
Nesse quadro de oposição a um cristianismo demasiadamente espiritualista e que pretende exagerar o papel de Deus e aniquilar a criatura, compreendem-se as colocações de Tomás e até mesmo os artigos selecionados para a questão: art. 1 - Se o homem - ou somente Deus - pode ensinar e ser chamado mestre; art. 2 - Se se pode dizer que alguém é mestre de si mesmo; art. 3 - Se o homem pode ser ensinado por um anjo; art. 4 - Se ensinar é um ato da vida ativa ou da vida contemplativa.
Não é de estranhar, portanto, que Tomás comece discutindo a objeção: "Se o homem - ou somente Deus - pode ensinar e ser chamado mestre" (o fato curioso é que Tomás discuta isso precisamente como professor em sala de aula...). O exagero do papel de Deus - no caso em relação à aprendizagem - é por conta daquela teologia que considera tão sublime a intelecção humana que, em cada caso que ela ocorre, requereria uma iluminação imediata de Deus . Tomás, em seu realismo, admite uma iluminação de Deus, mas esta iluminação Deus no-la deu de uma vez por todas, dotando-nos da "luz natural da razão", aliás, dependente das coisas mais sensíveis e materiais...
Assim, no debate acadêmico no qual se gera o De magistro encontraremos - uma e outra vez - a objeção com que se abre o trabalho: "Diz a Escritura (Mt 23, 8): 'Um só é vosso mestre' (...) ao que diz a Glosa [6]: 'não atribuais a homens a honra divina e não usurpeis o que é de Deus'."
Para bem entender este e outros temas do De magistro é oportuno oferecer um resumo dos conceitos básicos da antropologia filosófica de Tomás (como se sabe, em boa medida tomada de Aristóteles).
O homem e a alma em Tomás
A palavra-chave para entendermos a doutrina de Tomás sobre o homem é "alma" , que, classicamente, designa o princípio da vida. Chamemos, desde já, a atenção para o fato de que, ao longo deste estudo, aparecerão outras palavras cujo sentido filosófico clássico não coincide exatamente com o sentido usual que lhes damos hoje: "potência", "ato", "matéria", "forma" etc.
O referencial a que Tomás se remete nestes temas é a doutrina basicamente estabelecida por Aristóteles em seu Peri Psyché, Sobre a alma. A "psicologia" de Aristóteles emergiu como uma reação de equilíbrio e moderação ante o exagerado espiritualismo da antropologia de Platão (que tem encontrado sucessivas versões tanto no Ocidente como no Oriente...). O espiritualismo platônico é uma certa tomada de posição radicalmente dualista diante da questão: "O que é o homem?". Platão situa espírito e matéria como realidades justapostas, disjuntas, em união fraca e extrínseca no homem. O homem, para Platão, seria primordialmente espírito (e o corpo seria, nessa visão, algo assim como um mero cárcere do espírito) [7].
Do ponto de vista aristotélico, esse dualismo platônico atenta contra a intrínseca unidade substancial do homem, ao desprezar a dimensão material do ser humano, exagerando a separação entre o espiritual e o corpóreo. E é esta unidade o que, afinal, permite a cada homem proferir o pronome "eu", englobando tanto o espírito quanto o corpo. Para os platônicos (e para a teologia dominante em Paris no tempo de Tomás), o homem seria essencialmente espírito, em extrínseca união com a matéria: a matéria não faria parte da realidade propriamente humana. Já para Tomás há, no homem, uma união intrínseca de espírito e matéria [8].
Do ponto de vista de Aristóteles e Tomás, a questão "O que é o homem?" é inquietante porque a realidade humana se apresenta como fenômeno muito complexo, integrando em si a unidade harmônica de espírito e matéria. Assim, a dimensão corporal é plenamente afirmada e reconhecida como integrante da natureza humana: o fato, afinal evidente, de que o homem é um animal , compartilhando uma dimensão material - um corpo, uma bioquímica... - com os outros animais [9]. Mas, se por um lado afirma-se a realidade corpórea, por outro afirma-se, com igual veemência, que há também, no homem, uma transcendência do âmbito meramente biológico: certas características que, classicamente, têm sido chamadas de espirituais, ligadas - como veremos mais adiante - às duas faculdades espirituais da alma humana : a inteligência e a vontade.
Potência-Ato. Matéria-Forma. Alma
O realismo aristotélico é considerado um dualismo equilibrado e apresenta uma grande unidade em sua concepção teórica, uma unidade centrada no conceito de "alma". É muito importante destacar essa unidade. Para Aristóteles e para Tomás a filosofia do homem é uma extensão da filosofia do ser vivo em geral, e esta, por sua vez, continua a mesma linha de análise filosófica do ser material em geral. Afirma-se pois, plenamente, a realidade espiritual, mas em articulação, em íntima conexão com a matéria.
A filosofia de Tomás reconhece uma impressionante unidade no mundo material: a mesma estrutura de análise filosófica do ente físico em geral, de uma pedra, digamos, é aplicada a todos os viventes e, também, ao homem, que é um ente espiritual.
Não é o caso aqui de examinarmos com detalhes técnicos os conceitos filosóficos que integram essa análise. Em todo caso, vale a pena mencionar, brevemente, alguns desses conceitos como: potência e ato; matéria e forma; alma e espírito.
Potência e ato são dois modos distintos e fundamentais de ser. Sendo modos fundamentais de ser são, a rigor, indefiníveis. Aristóteles contenta-se com descrevê-los: potência é a possibilidade, a potencialidade de vir a ser ato. E o ser-em-ato é aquele que propriamente é, enquanto o ser-em-potência pode vir a ser ato. O exemplo clássico é o da semente (potência) que pode vir a ser árvore (a árvore real é o ato contido na potência, na potencialidade da semente). Encontramos, ainda hoje, vestígios desse uso aristotélico da palavra "ato". Nesse sentido, é interessante notar o tributo que a língua inglesa paga a Aristóteles : para referir-se ao que realmente é, à realidade de fato, o inglês diz actually, que significa, ao pé da letra, o advérbio do ato, atualmente, significando: de verdade, de fato. E quando, em português, dizemos que algo é exato, estamos pensando em ex-actu, ex - a partir de / - actu, a realidade [10]
Para a análise do ser vivo (como para a análise do ser físico em geral) Tomás, seguindo Aristóteles, aplica o binômio ato-potência, sob a formulação matéria-forma. Devemos pensar estas palavras "matéria" e "forma" não no sentido usual que lhes damos hoje, mas num outro sentido, naquele que recebem no quadro da filosofia aristotélica da natureza, denominada hilemoifismo (literalmente: matéria-forma; hilé-morjé).
Assim, matéria ou matéria-prima [11] deve ser entendida simplesmente como potencialidade, como pura possibilidade de ser ente físico. Uma potência que se vê realizada (atualizada) pela união com o ato que é a forma (substancia [12]) . Desse modo, um ser físico qualquer, digamos, um diamante é composto de matéria e forma, em união intrínseca : a matéria-prima é a pura potência de ser ente físico e a forma substancial é o ato primeiro, fundamental, que determina a atualização dessa potência. Assim, se o diamante é um ser físico, é porque tem possibilidade, potencialidade de sê-lo (e assim todo ser físico tem matéria-prima, potencialidade de ser um ente físico).
Essa potencialidade da matéria-prima é realizada, atualizada, recebe seu ato, sua realidade, pela forma substancial: aquele componente que faz com que o diamante seja diamante e não, digamos, um gato ou uma orquídea . O diamante, a orquídea, o gato e o homem têm algo em comum: todos são seres físicos que se constituem, portanto, da pura potencialidade indeterminada que é a matéria-prima. Mas são distintos pela forma que cada um tem e que faz com que cada um seja o que é: o diamante é diamante porque tem forma substancial de diamante; Mimi é gato porque tem forma substancial de gato; João é homem porque tem forma substancial de homem [13].
E é tal a unidade de sua consideração do cosmos, que Tomás emprega o mesmo binômio matéria-forma para indicar tanto a composição substancial de uma pedra quanto a de um homem, que é um ser espiritual.
Nesse contexto é fácil entender o conceito de alma. Alma é pura e simplesmente uma forma: a forma substancial do vivente. Certamente, a alma é uma forma muito especial (daí que também receba um nome especial), mas é uma forma [14].
Sempre que houver vida - e a vida caracteriza-se por um modo especial de interagir com o exterior a partir de uma interioridade - essa vida implica uma especialidade de forma do vivente: a alma. Desse modo, pode-se falar em alma de um vegetal, alma de uma samambaia, em alma de uma formiga ou de um cão e, também, em alma humana (neste caso, trata-se de uma alma espiritual) . A alma (como, aliás, todas as formas substanciais) é um princípio de composição substancial dos viventes. Ou melhor, um co-princípio (em intrínseca união com o outro co-princípio: a matéria-prima). É pela alma que se constitui e se integra o vivente enquanto tal , e ela é também a fonte primeira de seu agir, de suas operações.
Estas são, aliás, as duas definições que Aristóteles e Santo Tomás dão da alma.
1ª definição: Alma é o ato primeiro do corpo natural organizado (Tomás de Aquino, De anima II, 1, 412, a 27, b.S).
Esta definição diz, pura e simplesmente, que a alma é forma substancial para o vivente: o princípio ativo constituinte da unidade e do ser do vivente.
2ª definição: Alma é aquilo pelo que primeiramente vivemos, sentimos, mudamos de lugar e entendemos... (Tomás de Aquino, De anima II, 2, 414, a 12).
Também esta segunda definição caracteriza a alma como forma substancial, mas, neste caso, enfatizando a forma substancial enquanto fonte radical das operações do sujeito. O cão late ou morde não porque tem boca, sim, mas em última instância, porque é vivo, porque tem forma substancial, alma de cão.
A alma e suas potências: os fatores na operação
A alma não opera diretamente, e é por esta razão que Aristóteles diz: "A alma é aquilo pelo que primeiramente sentimos, mudamos de lugar etc." "Primeiramente" , aqui, significa que não é a alma diretamente que vê, anda, conhece ou quer, mas o vivente opera tudo isto por meio das potências ("potências" aqui, não no sentido entitativo, mas no sentido de potências operativas: faculdades) da alma: a potência visual, a potência motriz etc.
É conveniente, portanto, distinguir os diversos fatores presentes numa operação qualquer de um vivente. O mesmo vivente pode estar exercendo ou não tal operação e, no entanto, está continuamente vivo, está sendo informado pela alma. Daí que seja necessário distinguir a alma (substancial, sempre atuante) de suas potências operativas (que podem estar operando ou não). A potência visual ou a motriz não estão atuando quando, por exemplo, estou dormindo, mas a alma, princípio vital, está sempre presente, como forma substancial do vivente.
Enumeremos os diversos fatores que concorrem nas operações do vivente.
1) O próprio vivente. O sujeito, João, que faz esta ou aquela operação (por exemplo, ver ou ouvir).
2) A alma. Se João realiza tais e tais operações é porque é vivente e, em última instância, porque é dotado de alma. Se ele fosse pedra, não veria nem ouviria.
3) As potências da alma. Pois não é a alma diretamente que vê , ouve, se locomove etc. Ela realiza estas operações por meio de suas potências. A alma é dotada de uma potência visual, que realiza o ato de ver; de uma potência auditiva , que realiza o ato de ouvir etc.
4) Os atos das potências. Sabemos que a alma é dotada de diferentes faculdades, precisamente porque são distintos os atos que o vivente realiza: o ato de ver é diferente do de ouvir; pensar é distinto de querer etc.
5) Os objetos (formais) dos atos. Podemos dizer que se esses atos (de ver e de ouvir, por exemplo) são diferentes é porque são diferentes seus objetos: o objeto do ato de ver é a cor; o objeto do ato de ouvir é o som.
6) O objeto material. Claro que o mesmo objeto material - uma fogueira, por exemplo - pode ser apreendido por diversas potências, mas cada uma o apreende pelo seu particular objeto formal (a potência visual capta a cor do fogo; a auditiva , seu crepitar; o olfato se ocupa do cheiro de queimado etc.).
Os três graus de vida. Espírito e inteligência no homem
Vida é a capacidade de realizar operações com espontaneidade e imanência, portanto, por iniciativa própria, a partir de si mesmo e operações que terminam no próprio sujeito.
Três graus de vida correspondem a três graus de espontaneidade e de imanência na realização das operações. E correspondem também a três tipos de alma: vegetativa, sensitiva e intelectiva.
Ao primeiro grau de vida - a vida vegetativa - corresponde um ínfimo grau de espontaneidade e imanência: o vegetal é senhor apenas da mera execução da operação: do seu "nutrir-se", do seu crescimento, de sua reprodução.
Note-se de passagem que, na medida em que subimos na escala da vida, ao mesmo tempo que a alma vai crescendo em espontaneidade e imanência ocorre também uma ampliação de seu campo de relacionamento: desde o limitado meio que circunda uma planta ao mundo sem fronteiras do espírito humano.
A alma em cada grau de vida é - como princípio vital - única e realiza todas as funções dos graus inferiores: a alma espiritual responsável pelas delicadas poesias que João da Silva compõe é a mesma e única que é o princípio de operações vegetativas, como a circulação de seu sangue ou sua digestão.
Para além da mera execução das operações - que caracteriza a vida vegetativa -, a alma sensitiva do animal é responsável também - e isto diferencia o animal da planta - pelo sentir, pelo conhecimento sensível: pela apreensão (cognoscitiva) de realidades concretas e particulares que o circundam.
Assim, pelo conhecimento, que é claramente um fator importante em suas operações, o animal é mais dotado de espontaneidade e imanência do que o vegetal : o gato Mimi percebe este pires de leite, apreende-o com seus sentidos, e este conhecimento é responsável pelo seu movimento em direção a ele. Assim, os animais têm uma dimensão de vida superior à das plantas: são mais donos de suas operações e de suas interações com o ambiente, porque são capazes de sentir, isto é, são capazes de conhecimento de realidades sensíveis, de conhecimento de realidades particulares e concretas.
Essas faculdades do sentir ou faculdades do conhecimento sensível são os sentidos: a visão, a audição etc. [15]. Estão presentes nos animais e no homem. O conhecimento dos outros animais, porém, não transcende o âmbito do sensível, do concreto: esta cor, este cheiro, este som...
No caso do homem (que é o caso da vida intelectiva), sua alma, além das características próprias e peculiares, realiza todas as operações dos graus inferiores de vida. A alma humana não só é responsável pela realização das operações ligadas às faculdades da vida vegetativa - a circulação do sangue, a digestão etc. -; a mesma e única alma realiza também as operações sensitivas (próprias da vida animal, como o conhecimento sensível) e, além de tudo isto, essa mesma alma irrompe numa dimensão nova: a do espírito.
A alma humana está dotada de duas potências espirituais: a inteligência e a vontade.
Para nossa questão, interessa-nos especialmente a inteligência. Se o conhecimento sensível versa sobre a realidade particular e concreta (este vermelho, este sabor salgado, esta forma triangular etc.), a inteligência humana transcende, supera esse âmbito do particular, do material e do concreto e pode versar sobre o universal. A geometria, por exemplo, como conhecimento intelectual humano, não se ocupa desta forma triangular do recorte de papel que tenho diante dos olhos; ela trata, sim, do triângulo abstrato. E diz: "A soma dos ângulos internos do triângulo vale dois retos. "Destaquemos, nessa afirmação, seu caráter abstrato e universal: pouco importa se o triângulo é azul ou amarelo, se é acutângulo, retângulo ou obtusângulo; a inteligência versa sobre "o triângulo". E para "o triângulo": "A soma dos ângulos internos é dois retos. " Já a medicina estuda hepatologia, independentemente deste ou daquele fígado concreto.
Esta capacidade da inteligência de apreender o universal e abstrato abre um mundo sem fronteiras para o conhecimento: ele não se limita à realidade concreta que o circunda, mas atinge todo o ser. E precisamente essa abertura para a totalidade do real é o que se chama de espírito. Espírito é a capacidade de travar relações com a totalidade do real. Daí que Tomás repita, uma e outra vez, a sentença aristotélica: "Anima est quodammodo omnia", "A alma humana, sendo espiritual, é, de certo modo, todas as coisas"...
Podemos agora, com base na definição de inteligência como faculdade de conhecimento espiritual do homem, rever, com luzes novas, os conceitos básicos de Tomás.
Contra todo dualismo que tende a separar exageradamente no homem a alma espiritual e a matéria, Tomás afirma a intrínseca união, a substancial união de ambos os princípios: a alma espiritual, como forma, requer - em tudo e por tudo - a integração com a matéria. Pense-se, por exemplo, em todo o tema - hoje mais agudo e atual do que nunca - das doenças psicossomáticas: da relação, digamos, entre um desgosto ou uma crise existencial, por um lado, e uma gastrite ou uma úlcera, por outro. Mas o exemplo mais veemente dessa integração é encontrado na discussão do objeto próprio da inteligência humana.
Como dizíamos, não operamos diretamente pela alma, mas por meio de suas potências operativas. Ora, cada potência da alma é proporcionada a seu objeto: a potência auditiva não capta cores, a potência visual não atua sobre aromas.
Dizer que a inteligência é uma potência espiritual é dizer que seu campo de relacionamento é a totalidade do ser: todas as coisas - visíveis e invisíveis - são inteligíveis, "calçam" bem, combinam com a inteligência. Contudo, a relação da inteligência humana com seus objetos não é uniforme. Dentre os diversos entes e modos de ser, há alguns que são mais direta e imediatamente acessíveis à inteligência. É o que Tomás chama de objeto próprio de uma potência: aquela dimensão da realidade que se ajusta, por assim dizer, "sob medida" à potência (ou, melhor dizendo, é a potência que se ajusta àquela realidade). Não que a potência não incida sobre outros objetos, mas o objeto próprio é sempre a base de qualquer captação: se pela visão captamos, por exemplo, número e movimento (e vemos, digamos, sete pessoas correndo), é porque vemos a cor, objeto próprio da visão. Ora, próprio da inteligência humana - potência de uma forma espiritual acoplada à matéria - é a abstração: seu objeto próprio são as essências abstratas das coisas sensíveis. Próprio da inteligência humana é apreender a idéia abstrata de "cão" por meio da experiência de conhecer pelos sentidos diversos cães: Lulu, Duque e Rex...
Assim, Tomás afirma: "O intelecto humano, que está acoplado ao corpo, tem por objeto próprio a natureza das coisas existentes corporalmente na matéria. E, mediante a natureza das coisas visíveis, ascende a algum conhecimento das invisíveis" (S. Th. I, 84, 7). E nesta afirmação, como dizíamos, espelha-se a própria estrutura ontológica do homem: mesmo as realidades mais espirituais só são alcançadas, por nós, através do sensível. "Ora - prossegue Tomás -, tudo o que nesta vida conhecemos, é conhecido por comparação com as coisas sensíveis naturais." Esta é a razão pela qual o sentido extensivo e metafórico está presente na linguagem de modo muito mais amplo e intenso do que, à primeira vista, poderíamos supor.
Contra todo dualismo que tende a separar exageradamente no homem a alma espiritual e a matéria, Tomás afirma a intrínseca união e mútua ordenação de ambos os princípios. Contra todo "espiritualismo", Tomás conclui: "É evidente que o homem não é só a alma, mas um composto de alma e de corpo" (Summa theologica I, 75, 4). E esta união se projeta na operação espiritual que é o conhecimento: "A alma necessita do corpo para conseguir o seu fim, na medida em que é pelo corpo que adquire a perfeição no conhecimento e na virtude" (C.G. 3, 144.).
Para Tomás o conhecimento intelectual (abstrato) requer o conhecimento sensível. É sobre os dados do conhecimento sensível que atua o intelecto, em suas duas funções: intelecto agente e paciente.
A seguir apresentaremos um resumo tipificado (com as limitações que se dão nesses casos...) de como ocorre uma apreensão intelectual: o sujeito cognoscente está diante de um objeto determinado, digamos, João diante de um gato, Mimi. O que se conhece, segundo Tomás, é a própria realidade (ainda que para isso sejam necessários certos intermediários: as espécies...). Na passagem da impressão sensível para a idéia abstrata, o intelecto vai exercer duas funções: a de intelecto agente e a de intelecto paciente (ou passivo). Por isso, Tomás compara o intelecto a um olho que emite luz sobre aquilo que ele mesmo vê.
Todo conhecimento começa pelos sentidos: uma vez que os sentidos apreendem uma imagem (imagem em qualquer dimensão sensível, não só visual, mas também auditiva etc.), essa imagem assim interiorizada (que recebe o curioso nome de "fantasma") é oferecida ao intelecto (agente) para que - para além das impressões sensíveis (a determinada cor, aspecto, cheiro etc. deste gato concreto) - torne "visível" sua essência abstrata de gato. Nesse sentido, um filósofo contemporâneo, ]ames Royce, compara a ação do intelecto agente a um tubo emissor de raios X que torna visível a estrutura óssea (na comparação: a essência) subjacente à pele (comparada aos aspectos sensíveis): esta é visível em nível de luz normal (conhecimento sensível); aquela (a essência), em nível de raios X (na comparação: o conhecimento intelectual). Esse "fantasma" despojado de suas características particularizantes [16], abstraído, é oferecido ao intelecto passivo (que só é passivo no sentido de que depende da ação do intelecto agente), para que produza o conceito. Na metáfora, o intelecto paciente poderia ser comparado ao filme virgem de raios X (com a ressalva de que o filme é totalmente passivo, enquanto o intelecto reage ativamente para formar o conceito) . O conceito, por sua vez, é meio para a união com o próprio objeto. O intelecto agente está assim ligado à atividade de aquisição do conhecimento; o paciente, ao estado de saber.
O conhecimento é assim uma apropriação imaterial, intencional [17] de formas (acidentais ou substanciais) sensíveis ou não, pelas quais o sujeito se une à própria realidade do objeto (que tem a forma materialmente, constituindo-o como tal ente). A potência intelectiva de posse de formas está in-formada, conhece.
A segunda potência espiritual: a vontade
Mas o homem - tal como os outros animais - não é só inteligência. Há nele, além disso, uma dinâmica , um tender à posse efetiva (e não meramente cognoscitiva) de objetos, e isto é o que se chama, classicamente, apetite. Um animal, um cachorro, por exemplo, não só tem um conhecimento, digamos, de um osso (conhecimento que, no caso do animal, não supera o âmbito do sensível, do particular, do concreto), mas tende a esse osso realmente, tende à posse efetiva do osso: é o que, como dizíamos, se chama apetite (um apetite que, no caso dos animais, está limitado também ao âmbito do sensível, do particular, do concreto).
Apetite é a tendência a aproximar-se do bem (daquilo que o conhecimento apresenta como bem) e afastar-se do mal. Naturalmente, o apetite está ligado ao conhecimento e dele decorre: porque farejou o osso é que o cachorro procura roê-lo; porque viu o lobo é que a ovelha foge... Ora, assim como no homem há, além do conhecimento sensível um conhecimento intelectual, assim também, além do apetite sensível, estamos dotados de uma outra potência apetitiva que se articula com o conhecimento intelectual: é a vontade. A vontade é, pois, a potência apetitiva espiritual, o apetite que decorre do conhecimento intelectual. Esta é a razão pela qual podemos nos motivar não só pela obtenção de uma realidade particular e concreta, digamos, um sorvete de creme, mas também ser motivados por: "a justiça", "a dignidade", "o bem", "os direitos do homem", "a honra" etc. Se o objeto formal de todo apetite é o bem, o objeto formal da vontade, enquanto apetite intelectual, é o bem intelectualmente conhecido como tal.
O problema do ensino no De magistro
O problema do ensino, como não poderia deixar de ser, é proposto por Tomás nos quadros de sua antropologia e doutrina sobre o conhecimento.
A própria palavra "educação", ainda que não apareça em Tomás, é como que sugerida diversas vezes em suas análises: trata-se de um eduzir o conhecimento em ato a partir da potência: "scientia educatur de potentia in actum (art. 1, obj. 10); a mente extrai o ato dos particulares dos conhecimentos universais (ex universalibus cognitionibus mens educitur - art. 1, solução); leva ao ato (educantur in actum - art. 1, ad 5) [18].
Ensinar é, pois, uma edução do ato; uma condução da potência ao ato que só o próprio aluno pode fazer. Tomás está distante de qualquer concepção do ensino como transmissão mecânica; o professor, tudo o que faz é en-signar (insegnire), apresentar sinais para que o aluno possa por si fazer a edução do ato de conhecimento, no sentido da sugestiva acumulação semântica que se preservou no castelhano: enseñar (ensinar/mostrar): o mestre mostra! Nesse contexto, é altamente sugestiva a genial comparação da aprendizagem com a cura e a do professor com o médico, no art. 1.
Tomás, ainda no art. 1 (solução) , contesta algumas concepções da época, como a da existência de um único intelecto agente, separado, para todos os homens. Para ele, os que afirmam que Deus é o único agente (também no caso do ensino) atentam contra o plano do próprio Deus, causa primeira que age também pelas criaturas (causas próximas): "Ignoram a dinâmica que rege o universo pela articulação de causas concatenadas: Deus pela excelência de sua bondade confere às outras realidades não só o ser, mas também que possam ser causa."
No art. 2, Tomás aprofunda na discussão do ensino em oposição à aquisição de conhecimentos por si próprio. E conclui afirmando a superioridade do ensino.
O art. 3 é dedicado à curiosa questão da possibilidade de o homem ser ensinado por um anjo: "se bem que só Deus infunda na mente a luz da verdade, o anjo ou o homem podem remover impedimentos para a percepção da luz" (Em contr. 6). E estuda também de que formas o homem pode ser ensinado por um anjo (o anjo, ao contrário do homem, não raciocina - o intelecto angélico atinge diretamente o conhecimento e não precisa dos enlaces lógicos e dos silogismos, que classicamente se chamam razão).
No art. 4, Tomás mostra o caráter, ao mesmo tempo ativo e contemplativo, do ensinar
Cronologia
Contexto em que ocorre o nascimento de Tomás
c. 1170. Nascimento de São Domingos em Caleruega (Castela).
1182. Nascimento de Francisco de Assis. Francisco e Domingos irão fundar, no começo do séc. XIII, as ordens mendicantes: franciscanos e dominicanos. As ordens mendicantes, voltadas para a vida urbana, e, posteriormente, para a Universidade, sofrerão duras perseguições em Paris.
c. 1197. Nascimento de Alberto Magno, um dos primeiros grandes pensadores dominicanos, mestre de Tomás.
1210. Primeira proibição eclesiástica de Aristóteles em Paris.
1215. Estatutos fundacionais da Universidade de Paris. Inglaterra: Carta Magna.
Fundação da Ordem dos Pregadores.
1220. Coroação do imperador Frederico II.
1224-5. Nascimento de Tomás no castelo de Aquino, em Roccasecca (reino de Nápoles). Filho de Landolfo e Teodora. Seu pai e um de seus irmãos pertencem à aristocracia da corte de Frederico II.
Frederico II funda a Universidade de Nápoles para competir com a Universidade de Bolonha (pontifícia).
1226. Morte de São Francisco de Assis.
Infância e adolescência no Reino de Nápoles
1231. Tomás é enviado como oblato à abadia de Monte Cassino (situada entre Roma e Nápoles). Monte Cassino, além de abadia beneditina, é também um ponto crucial na geopolítica da região: é um castelo de divisa entre os territórios imperiais e pontifícios.
1239-44. Tomás estuda Artes Liberais na Universidade de Nápoles e toma contato com a Lógica e a Filosofia Natural de Aristóteles, em pleno processo de redescoberta no Ocidente. Conhece também a recém-fundada ordem dominicana, que - junto com a franciscana - encarna o ideal de pobreza e de renovação moral da Igreja.
Juventude na Ordem dos Frades Pregadores
1244. Tomás integra-se aos dominicanos de Nápoles, sob forte oposição da família, que tinha para o jovem Tomás outros planos que não o de ingressar numa
ordem de pobreza.
1245-8. Superada a oposição da família, Tomás faz seu noviciado e estudos em Paris. A Universidade de Paris, desde há muito, goza de um prestígio incomparável.
1248. Sexta Cruzada.
1248-52. Tomás com Alberto Magno em Colônia, onde em 1250-1 recebe a ordenação sacerdotal.
1250. Morre Frederico II.
Os anos de maturidade
1252-9. Tomás professor em Paris. Inicialmente (1252-6), como bacharel sentenciário e, de 1256 a 1259, como mestre regente de Teologia. Escreve o Comentário às sentenças de Pedro Lombardo. Em 1259, começa a redigir a Summa contra Gentiles. Em defesa da causa das ordens mendicantes, perseguidas, escreve em 1256 o Contra impugnantes Dei cultum et religionem.
1260-1. Tomás é enviado a Nápoles para organizar os estudos da Ordem. Continua a compor a Contra
Gentiles.
1261-4. O papa Urbano IV - pensando numa união entre o Oriente cristão e a cristandade ocidental - leva Tomás por três anos a sua corte em Orvieto.
1264. Tomás conclui a Summa contra Gentiles.
1265. Tomás é enviado a Roma com o encargo da direção da escola de Santa Sabina. Começa a escrever seus comentários a Aristóteles e a Summa theologica. Nascimento de Dante Alighieri.
1266. Nascimento de Giotto.
1267. Um novo papa, Clemente IV, chama Tomás à sua corte em Viterbo, onde permanece até o ano seguinte.
1269-72. Tomás exerce sua segunda regência de cátedra em Paris. Escreve o Comentário ao Evangelho de João. Recrudesce a perseguição contra as ordens mendicantes na Universidade de Paris.
1272-3. Tomás regente de Teologia em Nápoles.
1274. Tomás morre a caminho do Concílio de Lyon.
1277. Condenação, por parte do bispo de Paris, de 219 proposições filosóficas e teológicas (algumas de Tomás) em Paris.
1280. Morte de Alberto Magno.
1323. Tomás é canonizado por João XXII
Notas:
Apresentação
[1] O texto latino de que fundamentalmente nos valemos para essa tradução do De Veritate é o da edição eletrônica feita por Roberto Busa, Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milão, Editaria Elettronica Editei, 1992 (Textus Leoninus aequiparatus).
[2] Cf. Tomás de Aquino, Verdade e conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 1999; trad. e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand e M. B. Sproviero. Nessa edição, o leitor encontrará um estudo biobibliográfico sobre Tomás que traz também alguns outros textos do Aquinate (das Questões disputadas sobre a verdade e do Comentário ao Evangelho de João). E em outro volume desta mesma "Coleção Clássicos"- Cultura e Educação na Idade Média, L. J. Lauand (org.) - encontram-se outros quatro pequenos estudos de Tomás de Aquino sobre o amor, o estudo, o bom humor e o reinado de Cristo (comentário ao salmo 2).
[3] O texto latino de que nos valemos para a tradução dos artigos do De Malo é o texto crítico da edição leonina: S. Thomae Aquinatis Doctoris Angelici, Opera Omnia iussu Leonis XIII, P. M. edita, curo et studio fratrum praedicatorum, Romae 1882 ss., reproduzido na edição I vizi capitali (intr., trad. e nota di Umberto Galeazzi), Milão, Biblioteca· Universale Rizoli, 1996. A Summa e as sentenças seguem a edição eletrônica feita por Roberto Busa, Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milão, Editoria Elettronica Editel, 1992.
Introdução
[1] Weisheipl, ]ames A. Tomás de Aquino - Vida, obras y doctrina, Pamplona, Eunsa, 1994, p. 235.
[2] Pieper, Abertura para o todo: a chance da Universidade, São Paulo, Apel, 1989, p. 44.
[3] Utrum é o "se" latino que indica uma entre duas possíveis opções (daí neutrum, "nem um nem outro").
[4] Pieper, Abertura..., pp. 44-5.
[5]. Cf. Pieper, Wahrheit der Dinge, Munique, Kösel, 1951, pp. 113 ss.
[6] Entre as autoridades citadas por Tomás está a Glosa. A Glosa - ordinária e interlinear (esta mais breve) - deriva dos ensinamentos de Anselmo de Laon e de sua escola (séc. XII) e utiliza muito material exegético anterior.
[7] Platão chega a admitir a existência de três almas no homem, que correspondem às três funções da mesma e única alma humana na doutrina aristotélica.
[8] União extrínseca é a que se dá, digamos, entre um indivíduo e sua roupa ou entre o queijo e a goiabada; união intrínseca é a que ocorre, por exemplo, entre um objeto e sua cor (a cor não se dá sem o objeto e nem se dá objeto sem cor).
[9] E aqui é interessante notar a força do realismo de Tomás: a própria expressão "outros animais", em suas diversas formas latinas - alia animalia, aliis animalibus etc. - aparece nada menos do que cerca de quatrocentas vezes na obra do Aquinate.
[10] Um terno exato em suas medidas e feitura é um terno feito a partir da realidade do sujeito que vai usá-lo, e não, digamos, um terno comprado pronto e mal-ajustado a quem o usa...
[11] Conceito que, aliás, não coincide com a acepção industrial que hoje damos à expressão "matéria-prima".
[12] A forma substancial é aquela que, em união com a matéria-prima, constitui a substância do sujeito. Naturalmente, há também formas acidentais (cor, tamanho etc.) que inerem na substância.
[13] Cabe aqui uma breve explicação sobre o modo como a filosofia chegou a esses conceitos. Para analisar a realidade material, Aristóteles parte da experiência dos fenômenos da unidade substancial de cada ente, de cada sujeito. Aristóteles parte também da realidade das mudanças substanciais, isto é, aquelas, por assim dizer, mais sérias, nas quais o que muda é não já esta ou aquela qualidade acidental do sujeito (que ficou mais alto, mais gordo, mais corado, ou mudou de lugar...), mas o próprio sujeito: uma coisa, X deixa de ser o que era e passa a ser outra coisa: Y (para mero efeito de exemplificação didática, pensemos em um pedaço de madeira que se queima e deixa de ser a substância que era - madeira - e passa a ser outra coisa: cinza). Nesses casos de mudança substancial, o novo ser Y não proveio do nada (mas, evidentemente, de X) e o ser X não se reduziu ao nada (deixou de ser X e passou a ser Y). Examinando, portanto, esses casos de mudança de substância, vemos que há algo que permanece e algo que muda (o que indica que a substância é composta de dois elementos: um que permanece, outro que muda). O que permanece é a matéria-prima, realizada, atualizada, em cada caso, por um fator determinante dessa potência que faz com que X seja X e Y seja Y: a forma substancial.
[14] Sempre que falo desse ponto, lembro-me do comentário jocoso (mas pleno de sentido...) feito por um aluno. "Com a palavra 'alma' (em relação às demais formas)- dizia ele- dá-se algo de semelhante ao que ocorre com certas denominações de sanduíche: os sanduíches com queijo são prefixados por cheese: cheese-burger, cheese-dog etc. Mas o 'misto quente' é um sanduíche tão tradicional, tão especial, que ninguém o chama de cheese-presunto, mas por um nome também especial: 'misto quente'". Brincadeiras à parte, podemos dizer que a alma é uma forma, mas uma forma muito especial, porque atua, in-forma o vivente, constituindo o princípio da vida e, portanto, recebe o nome especial de alma.
[15] A filosofia clássica divide as potências dos conhecimentos sensíveis, ou seja, os sentidos, em: sentidos externos (basicamente os tradicionais cinco sentidos) e sentidos internos, em número de quatro: sentido comum, imaginação, memória e capacidade estimativa.
[16] Outra operação importante nesse processo é a collatio, a confrontação (feita pelo sentido interno chamado "capacidade cogitativa", que participa do intelecto) entre esta impressão e outras semelhantes, preparando a formação do conceito intelectual.
[17] No sentido de intentio, o conhecimento que se apropria de uma forma.
[18] Daí também que Tomás afirme que a aquisição do conhecimento, com as devidas ressalvas, pode ser comparado às "razões seminais", aquelas potencialidades que "não se tornam ato por nenhum poder criado, mas estão inscritas na natureza só por Deus" (obj. 5). Ressalvas, pois se trata de potencialidades que não procedem da criatura, mas que podem ser conduzidas ao ato pela ação do ensino humano (resposta ã obj. 5).