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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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A implausível eficácia da Matemática nas Ciências Naturais

Por EUGENE F. WIGNER Princeton University 

“A matemática, apropriadamente vista, é dotada não somente de verdade, mas de uma beleza suprema, uma beleza fria e austera, como a de uma escultura, sem suplicar a nenhuma parte de nossa fraca natureza, sem as deslumbrantes armadilhas da pintura e da música, por ora sublimemente pura e susceptível a uma severa perfeição tal qual somente a maior das artes pode revelar. O verdadeiro espírito de deleite, a exaltação, o senso de ser mais que Homem, que é o crivo da mais alta excelência, é encontrada na matemática tão seguramente quanto na poesia.” 

–BERTRAND RUSSELL, Estudo da Matemática

“e é provável que haja aqui algum segredo ainda a ser descoberto” (C. S. Peirce) 

Existe uma história a respeito de dois amigos, colegas de classe no colégio, falando sobre suas profissões. Um deles tornou-se um estatístico e estava trabalhando com estudos populacionais. Ele mostrou uma publicação ao seu antigo colega de classe. A publicação começava, como de hábito, com a distribuição gaussiana e o estatístico explicou ao colega o significado dos símbolos para a população real, para a população média e assim por diante. Seu colega se mostrava um pouco incrédulo e parecia não estar certo de que não estava sendo vítima de uma brincadeira. “Como você pode saber isso?” foi sua pergunta. “E o que é este símbolo aqui?” “Ah,” disse o estatístico, “isso é π”. “O que é isso?” “A razão entre a circunferência do círculo e seu diâmetro.” “Agora você está levando a brincadeira longe demais,” disse o colega, “certamente a população não tem nada a ver com a circunferência de um círculo.” 

Nossa inclinação natural é sorrir diante da simplicidade desse ponto de vista. No entanto, sempre que ouço essa história, sou tomado por um sentimento sinistro pois na reação do colega do estatístico não há nada mais que uma manifestação de puro e simples bom senso. Fiquei ainda mais confuso quando, alguns dias mais tarde, alguém expressou a mim seu espanto (1) com o fato de que fazemos escolhas muito restritas quando escolhemos os dados que vamos utilizar para testar nossas teorias. “Como podemos saber que não é possível, levando-se em conta o que havíamos desprezado e desprezando o que havíamos considerado, construir uma nova teoria, em tudo diferente da que temos mas que, tanto quanto ela, é capaz de explicar um grande número de fatos significativos”. Temos que admitir que não existe nenhuma evidência definitiva de que isso não é possível. 

As duas histórias precedentes ilustram duas questões principais que são o assunto do presente discurso. A primeira delas é que os conceitos matemáticos aparecem em situações totalmente inesperadas. Além disso, eles permitem, com frequência, descrições, surpreendentemente próximas e precisas, dos fenômenos em questão. A segunda é que, exatamente por causa das circunstâncias descritas e também por não entendermos as razões dessa utilidade, não podemos saber se a teoria formulada em termos desses conceitos matemáticos é a única apropriada. Estamos numa situação parecida com a do homem que recebeu um molho de chaves e que, tendo de abrir seguidamente diversas portas, sempre encontra, na primeira ou na segunda tentativa, a chave certa. Esse fato o torna cético em relação à unicidade da correspondência entre chaves e portas. 

Muito do que será dito a respeito dessas questões não será novidade; provavelmente já ocorreu, de uma forma ou de outra, para a maioria dos cientistas. Meu principal objetivo será iluminar a questão de diversos ângulos. O primeiro aspecto a ser considerado é que a enorme utilidade da matemática para as ciências naturais é algo que beira o mistério e que não pode ser racionalmente explicado. Em segundo lugar, é exatamente essa misteriosa utilidade dos conceitos matemáticos que levanta a questão da unicidade de nossas teorias físicas. Para tratar da primeira questão, que a matemática desempenha uma função na física cuja importância ultrapassa o razoável, será útil dizer alguma coisa sobre a questão “O que é a matemática?” e a seguir sobre “O que é a física?” e, em seguida, sobre como a matemática aparece nas teorias físicas e, finalmente, sobre a razão do sucesso da matemática ao tratar com a física ser tão desconcertante. Muito menos se dirá sobre a segunda questão: a unicidade das teorias físicas. Uma resposta adequada para esta questão exigiria um trabalho teórico e experimental que até hoje ainda não foi realizado. 

O que é a matemática? Alguém disse, certa vez, que filosofia é o mau uso de uma terminologia inventada exatamente com esse propósito. (2) Nessa mesma linha, eu diria que a matemática é a ciência de engenhosas operações com regras e conceitos inventados exatamente com esse propósito. A principal ênfase está na invenção dos conceitos. A matemática veria esgotar rapidamente seus teoremas interessantes se eles fossem formulados apenas em termos dos conceitos que já apareceram nos postulados. Além disso, apesar de ser inquestionável que os conceitos da matemática elementar, particularmente os da geometria elementar, são formulados para descrever entidades que são diretamente sugeridas pelo mundo real, o mesmo não parece ser verdadeiro para os conceitos mais avançados, em particular para os conceitos que desempenham um papel fundamental para a física. Assim, as regras para operar com pares de números são obviamente formuladas para fornecer os mesmos resultados que os das operações com frações que inicialmente aprendemos sem fazer referência a “pares de números”. As regras para operações com sequências, isto é, com números irracionais, ainda pertencem a categoria das regras que foram formuladas para reproduzir regras de operações de quantidades que já eram por nós conhecidas. A maior parte dos conceitos matemáticos mais avançados, tais como os números complexos, álgebras, operadores lineares, conjuntos de Borel – e a lista pode ser prolongada quase indefinidamente – foram concebidas de forma a serem entidades com as quais o matemático pode demonstrar toda sua engenhosidade e senso de beleza. De fato, a definição desses conceitos, com a percepção de que considerações engenhosas e interessantes poderiam ser a eles aplicadas, é a primeira demonstração de engenhosidade do matemático que os define. A profundidade de pensamento que entra na formulação de conceitos matemáticos é justificada, a posteriori, pela habilidade (eficácia) com que esses conceitos são utilizados. O grande matemático explora integralmente, quase implacavelmente, os domínios dos raciocínios permissíveis até o limite dos não permissíveis. Que esse atrevimento não o leve a um pântano de contradições é, em si mesmo, um milagre: é difícil de acreditar que nosso poder de raciocínio foi levado, por um processo de seleção natural Darwiniano, à perfeição que aparenta possuir. Esse não é, no entanto, o assunto de que estamos tratando. O ponto principal que terá que ser recordado mais tarde é que se o matemático não quiser que a matemática fique restrita a uns poucos teoremas interessantes, será necessário definir novos conceitos além daqueles já contidos nos axiomas, mais ainda do que isso, esses conceitos precisam ser definidos de forma a permitir hábeis operações lógicas, com forte apelo estético, tanto no que se refere as operações como também em termos de resultados de grande generalidade e simplicidade. (3)

Os números complexos fornecem um exemplo notável para o que vem a seguir. É certo que não há nada em nossa experiência que possa sugerir a introdução dessas quantidades. De fato, se pedirmos a um matemático para que justifique seu interesse por esses números ele apontará, com alguma indignação, para o grande número de belos teoremas na teoria das equações, para a teoria de séries de potências e para a teoria geral das funções analíticas cuja origem está ligada a introdução dos números complexos. O matemático não pretende abrir mão de seu interesse por essas belas criações de seu gênio. (4) 

O que é Física? O físico se interessa em descobrir as leis da natureza inanimada. Para entendermos essa afirmação é necessário analisarmos o conceito de “lei natural”. 

O mundo ao nosso redor é de desconcertante complexidade e o fato mais óbvio a seu respeito é que não podemos prever o futuro. Embora se costume dizer que somente o otimista acha o futuro incerto, o otimista está, nesse caso, certo: o futuro é imprevisível. É, como Schroedinger observou, um milagre que certas regularidades nos eventos, apesar da desconcertante complexidade do mundo, possam ser descobertas [1]. Uma dessas regularidades, descoberta por Galileu, é que duas pedras, soltas no mesmo instante, de uma mesma altura, atingem o chão simultaneamente. As leis da natureza se referem a essas regularidades. A regularidade de Galileu é um protótipo de uma grande classe delas. Por três razões, essa regularidade é surpreendente. 

A primeira razão pela qual ela é surpreendente é que ela não é verdadeira apenas em Pisa, no tempo de Galileu mas é verdadeira em todos os lugares da terra, foi verdadeira no passado e continuará, sempre, sendo verdadeira. Essa propriedade é claramente uma propriedade de invariância e, como tive a oportunidade de observar algum tempo atrás [2], sem princípios de invariância semelhantes a esse, obtido pela generalização das observações de Galileu, a física não é possível. A segunda razão para essa regularidade que estamos discutindo é surpreendente é o fato dela não depender de muitas condições que poderiam afetá-la. Chovendo ou não chovendo, sendo realizada numa sala ou na Torre Inclinada e independentemente de ser homem ou mulher a pessoa que solta a pedra, ela é válida. Continua válida também no caso das duas pedras serem soltas, simultaneamente e da mesma altura, por duas pessoas diferentes. Existem, obviamente, enumeráveis outras condições que não interferem na validade da regularidade de Galileu. A irrelevância de muitas circunstâncias que poderiam intervir num fenômeno observado também tem sido chamado de invariância [2]. Essa invariância tem, no entanto, características diferentes da anterior em virtude do fato dela não poder ser formulada como um princípio geral. A exploração das condições que afetam ou não um determinado fenômeno faz parte das pesquisas experimentais iniciais que são feitas ao se estudar de um campo. É a perícia e a argúcia do experimentador que irão indicar a ele fenômenos que dependem de um número relativamente pequeno de condições que podem ser facilmente percebidas e reproduzidas. (5) No caso presente, a restrição feita por Galileu de só trabalhar com corpos relativamente pesados, é a mais importante. Voltamos a insistir que, se não existissem fenômenos dependentes apenas de um pequeno número de condições que podemos controlar, a física não seria possível. 

Os dois pontos precedentes, embora muito significativos para o filósofo, não foram os que mais surpreenderam Galileu uma vez que eles não contém uma lei da natureza. A lei da natureza está contida na afirmação de que o intervalo de tempo necessário para um objeto pesado cair de uma determinada altura é independente do tamanho, da forma e do material de que é feito o corpo que cai. No contexto da segunda “lei” de Newton isso equivale à afirmação de que a força gravitacional que age no corpo em queda livre é proporcional a sua massa mas, independe do tamanho, da forma e do material do qual o corpo é feito. 

A discussão precedente tem a intenção de lembrar, em primeiro lugar que não é nada natural que “leis da natureza” existam e, muito menos, que o homem seja capaz de descobri-las. (6) O presente autor teve a ocasião, algum tempo atrás, de chamar a atenção para os sucessivos níveis de “leis da natureza”, cada nível contendo leis mais gerais e abrangentes do que o anterior e também para o fato de as descobertas desses níveis constituírem-se num crescente aprofundamento na estrutura do universo em relação aos níveis conhecidos anteriormente [3]. No entanto, o ponto mais importante no presente contexto é que todas essas leis da natureza, mesmo em suas mais remotas consequências, contém apenas um pequeno fragmento de nosso conhecimento da natureza inanimada. Todas as leis da natureza são afirmações condicionais que permitem, a partir do conhecimento do presente, predizer alguns eventos futuros; na realidade, apenas alguns aspectos do atual estado do mundo são necessários pois, na prática, a maioria esmagadora das condições que determinam o estado presente do mundo são, do ponto de vista da previsão, irrelevantes. A irrelevância é entendida aqui no sentido do segundo ponto da discussão do teorema de Galileu. (7) 

No que se refere ao estado presente do mundo, tal como a existência da Terra em que vivemos e onde os experimentos de Galileu foram feitos, a existência do Sol e de todos os nossos arredores, as leis da natureza nada dizem. É em consonância com isso que as leis da natureza só podem ser utilizadas para predizer eventos futuros sob circunstâncias excepcionais – quando todos os fatores que determinam o presente estado do mundo são conhecidos. É também em consonância com isso que a construção de máquinas cujo funcionamento podemos prever, constitui as mais espetaculares realizações dos físicos. Nessas máquinas, o físico cria uma situação em que todas as coordenadas relevantes são conhecidas de tal forma que o comportamento da máquina pode ser predito. Radares e reatores nucleares são exemplos desse tipo de máquinas. 

O principal propósito da presente discussão é salientar o fato de que as leis da natureza são afirmações condicionais e que se relacionam apenas com uma parte muito pequena de nosso conhecimento do mundo. Assim, a mecânica clássica, que é o mais conhecido protótipo de todas as teorias físicas, dá, a partir do conhecimento das posições, etc. dos corpos, as derivadas segundas das coordenadas de posição de todos esses corpos. Não dá porém, nenhuma informação sobre a existência, as posições no momento, nem da velocidade desses corpos. A bem da precisão precisamos mencionar que aprendemos, há mais ou menos trinta anos, que mesmo as afirmações condicionais não podem ser completamente precisas: as afirmações condicionais são leis de probabilidade que somente nos capacitam a fazer apostas inteligentes, fundadas em nosso conhecimento do presente, sobre as propriedades que o mundo inanimado terá no futuro. Elas não nos permite fazer afirmações categóricas, nem mesmo afirmações condicionais categóricas, fundadas em nosso conhecimento do presente. A natureza probabilística das “leis da natureza” se manifesta também no caso das máquinas, pelo menos no caso dos reatores nucleares quando os fazemos funcionar com potências muito baixas isso pode ser verificado. Todavia essa limitação adicional ao escopo das leis da natureza, (8) imposta pela sua natureza probabilística, não desempenhará papel algum no resto de nossa discussão. 

O Papel da Matemática nas Teorias Físicas. Após havermos analisado aspectos essenciais da matemática e da física, devemos estar em melhor posição para discutir o papel da matemática nas teorias físicas. 

É, naturalmente, corriqueiro o uso da matemática na física para calcular os resultados das aplicações das leis da natureza, isto é, para aplicar as afirmações condicionais às particulares condições que prevalecem no momento ou àquelas em que tivermos interesse. Para que isso seja possível, as leis da natureza precisam já estar formuladas em linguagem matemática. No entanto, a função de calcular as consequências de teorias já estabelecidas não é o papel mais importante da matemática na física. à matemática, ou melhor, à matemática aplicada não desempenha o principal papel nessa função: ela é apenas uma ferramente auxiliar. 

A matemática, todavia, desempenha um papel bem mais importante em física. Isso já estava implícito quando afirmamos, ao discutir o papel da matemática aplicada, que as leis da natureza já deviam estar formuladas em linguagem matemática para poderem ser por ela utilizadas. A afirmação de que as leis da natureza são escritas em linguagem matemática já foi feita, muito adequadamente, trezentos anos atrás; (9) essa afirmação é agora ainda mais verdadeira do que jamais foi. Para mostrar a importância que os conceitos matemáticos têm na formulação das leis físicas, vamos, como um exemplo, recordar os axiomas da mecânica quântica formulados, de forma explícita, pelo grande matemático von Neumann, ou, implicitamente, pelo grande físico Dirac [4,5]. Existem dois conceitos básicos em mecânica quântica: estados e observáveis. Os estados são vetores num espaço de Hilbert e os observáveis são operadores auto-adjuntos nesse espaço. Os possíveis valores das observações são os valores característicos dos operadores – é, no entanto, melhor parar por aqui para não termos que fazer uma lista de conceitos matemáticos criados pela teoria dos operadores. 

É claro que é verdade que a física escolhe certos conceitos matemáticos para formular as leis da natureza e, certamente, apenas uma pequena fração desses conceitos é utilizada na física. Também é verdade que eles não foram escolhidos, de forma arbitrária, entre os conceitos que figuram numa lista de termos matemáticos mas, ao contrário, foram, em muitos casos, se não na maioria deles, desenvolvidos, de forma independente pelo físico e, somente a posteriori, reconhecidos como tendo sido concebidos previamente pelo matemático. Não é verdade, porem, como é afirmado com frequência, que isso teria que acontecer porque a matemática utiliza os conceitos mais simples possíveis e, em virtude disso, eles teriam que aparecer em qualquer formalismo. Como já vimos, os conceitos matemáticos não são escolhidos por sua simplicidade conceitual – mesmo sequência de pares de números estão muito longe de estar entre os conceitos mais simples – e sim por se prestarem a manipulações astutas e a argumentos brilhantes. Não devemos esquecer que o espaço de Hilbert da mecânica quântica é um espaço sobre os números complexos com produto escalar Hermitiano. Certamente para o espírito despreocupado, os números complexos estão longe de ser naturais e simples e não podem ser sugeridos por observações físicas. Além disso, o uso de números complexos não é, nesse caso, um truque computacional de matemática aplicada mas se aproxima de uma necessidade na formulação das leis da mecânica quântica. Finalmente, começa agora a parecer que as chamadas funções analíticas estão destinadas a desempenhar papel decisivo na formulação da teoria quântica. Estou me referindo ao rápido desenvolvimento da teoria das relações de dispersão. 

É difícil evitar a impressão de que nos defrontamos aqui com um milagre, que pela sua surpreendente natureza, se compara com outro que é a capacidade que a mente humana tem de encadear mil argumentos sem cair em contradição ou ainda a dois outros que são a existência das leis da natureza e a capacidade da mente humana de adivinhá-las. Que eu saiba, a observação que mais se aproxima de uma explicação para o fato dos conceitos de matemática aparecerem tanto em física foi feita por Einstein que afirmou que as únicas teorias físicas que estamos dispostos a aceitar são as bonitas. Resta argumentar que os conceitos matemáticos, que convidam ao exercício de tanta argúcia, tem a qualidade de beleza. No entanto, a observação de Einstein pode, na melhor das hipóteses, explicar propriedades de teorias que queremos aceitar mas, ela não faz referência à precisão intrínseca dessas teorias. Retornaremos, mais tarde a essa questão. 

O Sucesso das Teorias Físicas é Realmente Surpreendente? Uma possível forma de explicar o uso que o físico faz da matemática para formular suas leis da natureza é que ele é uma pessoa até certo ponto irresponsável. Por causa disso, quando ele encontra uma conexão entre duas quantidades que se assemelha a uma conexão já conhecida em matemática ele conclui imediatamente, que a conexão da física é a da matemática já que ele não conhece nenhuma outra similar. Não pretendemos aqui refutar essa acusação de certa irresponsabilidade por parte do físico. Pode ser que ele seja assim. É, no entanto, importante observar que a formulação matemática de uma experiência física, às vezes rudimentar, leva, um número surpreendente de vezes, a uma descrição extraordinariamente precisa de uma classe muito grande de fenômenos. Isso mostra que a linguagem matemática tem mais a recomendá-la do que ser a única linguagem que sabemos utilizar; mostra num sentido muito real que é a linguagem correta. Vamos examinar alguns exemplos. 

O primeiro exemplo, frequentemente citado, é o do movimento planetário. As leis dos corpos em queda livre ficaram muito bem estabelecidas em consequência de experiências efetuadas principalmente na Itália. Essas experiências, em parte por causa do efeito causado pela resistência do ar e, em parte, pela impossibilidade que se tinha na época de medir intervalos de tempo muito pequenos, não poderiam ter sido muito precisas. Entretanto, não causa grande surpresa que os cientistas naturais italianos tenham adquirido familiaridade com a forma como os objetos se movimentam através da atmosfera. Foi Newton quem relacionou a lei que rege os objetos em queda livre com o movimento da Lua, notou que a parábola descrita pela pedra atirada na Terra e a trajetória circular da Lua no céu são casos particulares de um mesmo objeto matemático e, apoiado apenas numa única e, na época, pouco precisa coincidência numérica, formulou e postulou a lei da gravitação universal. Do ponto de vista filosófico, a lei de gravitação, da forma como foi formulada por Newton, era repugnante não apenas a seu tempo mas também a si próprio. Baseava-se em observações empíricas muito escassas. A linguagem matemática na qual era formulada continha o conceito de segunda derivada e aqueles de nós que já tentaram desenhar um círculo osculador de uma curva sabem que uma segunda derivada não é um conceito muito imediato. A lei de gravitação que Newton estabeleceu de forma tão relutante e que foi capaz de verificar com precisão de aproximadamente 4% provou ser correta dentro de uma aproximação de um sobre dez mil por cento e tornou-se tão associada a idéia de exatidão absoluta que apenas recentemente os físicos adquiriram coragem para questionar os limites dessa exatidão. (10) Sem dúvida, o exemplo da lei de Newton, citado tão frequentemente, deve ser o primeiro a ser mencionado como um exemplo monumental de uma lei formulada em termos que parecem simples para um matemático e que mostrou uma precisão além de qualquer expectativa razoável. Vale a pena recapitular nossa tese nesse exemplo: em primeiro lugar a lei, particularmente por conter uma derivada segunda, é simples apenas para o matemático e não para o senso comum ou para uma mente não matemática; em segundo lugar é uma lei condicional de escopo muito limitado. Ela não explica nada sobre a Terra que atrai as pedras lançadas por Galileu ou sobre a órbita circular da Lua ou sobre os planetas do Sol. A explicação dessas condições iniciais é relegada ao geólogo e ao astrônomo que enfrentam, com isso, grandes dificuldades. 

O segundo exemplo refere-se a mecânica quântica elementar. Originou-se com a observação feita por Max Born de que algumas regras de cálculo formuladas por Heisenberg eram formalmente idênticas a regras de cálculo com matrizes, estabelecidas muito antes, pelos matemáticos. Born, Jordan e Heisenberg propuseram então substituir a posição e o momento nas equações da mecânica clássica por variáveis matriciais [6]. Eles aplicaram as regras da mecânica matricial a uns poucos problemas, altamente idealizados, e os resultados foram bem satisfatórios. Entretanto, não havia naquela época nenhuma evidência racional de que essa mecânica matricial pudesse, em condições mais realistas, vir a ser correta. Eles, de fato, se perguntaram: “A mecânica, da forma proposta, em seus traços essenciais, não poderia estar correta?” Na realidade, a primeira aplicação dessa mecânica a um problema real, o do átomo de hidrogênio, foi feita, alguns meses mais tarde, por Pauli. Essa aplicação forneceu resultados concordantes com a experiência. Isso era satisfatório mas ainda compreensível porque as regras de cálculo de Heisenberg foram formuladas a partir de problemas que incluíam a antiga teoria do átomo de hidrogênio. O verdadeiro milagre ocorreu apenas quando a mecânica matricial, ou uma teoria matematicamente equivalente, foi aplicada a problemas para os quais as regras de cálculo de Heisenberg não faziam sentido. As regras de Heisenberg tinham como pressuposto que as equações clássicas do movimento tivessem soluções com certas propriedades de periodicidade. Com dois elétrons, no caso do átomo de hélio, ou um número ainda maior quando se trata de átomos mais pesados, as equações do movimento não têm essas propriedades e portanto as regras de Heisenberg não podem ser aplicadas. No entanto, o cálculo feito no nível mais baixo de energia do hélio, feito alguns meses atrás por Kinoshita em Cornell e por Bazley no Bureau of Standards, concorda com os dados experimentais dentro dos limites de precisão da observação que é de um sobre dez milhões. Desta vez, tiramos das equações, algo que, certamente, não havíamos posto nelas. 

O mesmo é verdadeiro em relação as características qualitativas dos “espectros complexos”, isto é, dos espectros dos átomos mais pesados. Desejo relatar uma conversa com Jordan que me contou, na época em que as propriedades qualitativas dos espectros foram deduzidas, que uma discordância entre as regras derivadas da teoria da mecânica quântica e as regras estabelecidas por pesquisa empírica, teriam fornecido uma última oportunidade para fazer uma mudança na mecânica matricial. Em outras palavras, Jordan sentiu que teríamos ficado, pelo menos temporariamente, perdidos caso houvesse ocorrido um inesperado desacordo na teoria do átomo de hélio. A verificação da concordância foi feita, na época, por Kellner e Hilleraas. O formalismo matemático era muito claro e imutável de forma que, não houvesse ocorrido o milagre descrito anteriormente com o hélio, uma verdadeira crise estaria instalada. Certamente, de uma forma ou de outra a física teria superado essa crise. Por outro lado é verdade que a física como a conhecemos hoje não seria possível sem a constante repetição de milagres similares ao do átomo de hélio que é provavelmente o mais extraordinário que ocorreu no desenvolvimento da mecânica quântica elementar, mas está muito longe de ser o único. De fato esse número de milagres só é limitado por nossa disposição de buscar outros. A mecânica quântica teve muitos outros sucessos, quase igualmente extraordinários, o que nos dá a firme convicção de que ela é, o que chamamos, correta. 

O último exemplo é o da eletrodinâmica quântica, ou a teoria do deslocamento de Lamb. Enquanto a teoria da gravitação de Newton ainda estava obviamente ligada a experiência, esta só participa da formulação da mecânica matricial de uma forma muito refinada ou sublimada através das prescrições de Heisenberg. A teoria quântica do deslocamento de Lamb da forma concebida por Bethe e estabelecida por Schwinger é uma teoria puramente matemática e a única contribuição experimental direta foi a demonstração da existência de um efeito mensurável. A concordância com os cálculos é melhor do que uma parte em mil. 

Os três exemplos precedentes, que poderiam ser aumentados quase indefinidamente, devem ilustrar a propriedade e a precisão da formulação matemática das leis da natureza em termos dos conceitos escolhidos pela sua manipulabilidade, sendo as “leis da natureza” de uma precisão quase fantástica mas de escopo estritamente limitado. Proponho chamar de lei empírica da epistemologia as observações que esses exemplos ilustram. Ela forma, junto com as leis de invariância das leis físicas, a indispensável fundamentação dessas teorias. Sem as leis de invariância as teorias físicas não poderiam ser fundamentadas com fatos; se a lei empírica da epistemologia não fosse correta teríamos falta de estímulo e segurança que são necessidades emocionais sem as quais as “leis da natureza” não poderiam ter sido exploradas com sucesso. O Dr. R. G. Sachs com quem discuti a lei empírica da epistemologia chamou-a de artigo de fé do físico teórico e, sem dúvida nenhuma, é isso mesmo que ela é. No entanto, o que ele chamou de nosso artigo de fé pode ser ilustrado por exemplos verdadeiros – muitos outros exemplos além dos três que mencionamos. 

A Unicidade das Teorias Físicas. A natureza empírica da observação anterior me parece óbvia. Ela certamente não é uma “necessidade do pensamento” e não deveria ser necessário para provar isso apelar para o fato de que ela somente se aplica a uma pequena parte do nosso conhecimento do mundo inanimado. É absurdo acreditar que a existência de expressões matemáticas simples para a derivada segunda da (função) posição é evidente quando nenhuma expressão similar para a posição ou para a velocidade existem. É, portanto, muito surpreendente a presteza com que o maravilhoso presente contido na lei empírica da epistemologia foi dado como evidente. A habilidade da mente humana, já mencionada anteriormente, de encadear mil argumentos de forma “correta” é um dom similar. 

Toda lei empírica tem a inquietante qualidade de não se conhecer suas limitações. Vimos que existem regularidades nos eventos do mundo que nos cerca que podem ser formuladas em termos de conceitos matemáticos com incrível precisão. Existem, por outro lado, aspectos do mundo em relação aos quais não acreditamos na existência de regularidades precisas. Esses aspectos recebem o nome de condições iniciais. A questão que se apresenta é se essas diferentes regularidades, isto é, as diferentes leis da natureza que serão descobertas irão se fundir numa única unidade consistente ou se, pelo menos, se aproximarão assintoticamente dessa fusão. Por outro lado é possível que sempre existam algumas leis da natureza que não tenham nada em comum umas com as outras. No presente, isso ocorre, por exemplo, com as leis da hereditariedade e as da física. É até mesmo possível que algumas leis da natureza, em suas implicações estejam em conflito umas com as outras mas que sejam tão convincentes em seus próprios domínios que não se queira abandoná-las. Podemos nos resignar a esse estado de coisas ou ainda mais, nosso interesse em resolver esse conflito entre as diversas teorias, pode desaparecer. Podemos perder nosso interesse pela “verdade última”, isto é, um panorama que seja a fusão consistente das diversas imagens locais formadas por cada um dos diversos aspectos da natureza. 

Pode ser útil ilustrar as alternativas por um exemplo. Temos agora, em física duas teorias de grande poder e interesse: a teoria dos fenômenos quânticos e a teoria da relatividade. Essas teorias tem suas raízes em grupos de fenômenos mutuamente exclusivos. A teoria da relatividade se aplica a corpos macroscópicos como, por exemplo, estrelas. O evento de coincidência, que é em última análise uma colisão, é o evento primitivo na teoria da relatividade e define um ponto no espaço-tempo, ou, pelo menos, definiria um ponto se as partículas em colisão forem infinitamente pequenas. A teoria quântica tem suas raízes no mundo microscópico e, de seu ponto de vista, o evento de coincidência, ou de colisão, mesmo que ele ocorra entre partículas sem extensão espacial, não é primitivo e de forma alguma nitidamente isolado no espaço-tempo. As duas teorias utilizam conceitos matemáticos diferentes – um espaço Riemanniano de dimensão 4 e um espaço de Hilbert de dimensão infinita, respectivamente. Até agora, as duas teorias não puderam ser reunidas, isto é, não existe nenhuma formulação matemática da qual ambas as teorias sejam aproximações. Todos os físicos acreditam que a união das duas teorias é inerentemente possível e que iremos conseguir fazê-la. No entanto, é possível também imaginar que nenhuma união das duas teorias possa ser encontrada. O exemplo que demos ilustra as duas possibilidades anteriormente mencionadas, união e conflito, ambas concebíveis. 

Para conseguirmos uma indicação de qual das alternativas devemos esperar que aconteça podemos fingir que somos um pouco mais ignorantes do que realmente somos e nos colocarmos num nível de conhecimento abaixo do que realmente possuímos. Se pudermos encontrar uma fusão de nossas teorias nesse nível mais baixo de conhecimento poderemos ficar confiantes de que encontraremos também uma fusão no nível do nosso conhecimento real. Por outro lado, se chegarmos, nesse nível mais baixo, a teorias mutuamente contraditórias não poderemos descartar a possibilidade de que as teorias permaneçam conflitantes no nível mais alto. O nível de conhecimento e de engenhosidade é uma variável contínua e é pouco provável que pequenas variações dessa variável transforme a imagem que podemos ter do universo de inconsistente para consistente. (11) Considerado desse ponto de vista, o fato de que algumas das teorias que sabemos serem falsas fornecerem resultados tão incrivelmente precisos, é um fator adverso. Se tivéssemos um conhecimento um pouco menor, o grupo de fenômenos que essas teorias “falsas” explicam pareceria para nós suficientemente grande para “prová-las”. No entanto, consideramos essas teorias falsas pelo fato de que elas são, em última análise, incompatíveis em contextos mais abrangentes e, se um número suficiente dessas teorias falsas fosse descoberto, elas poderiam também estar em conflito, umas com as outras. De maneira similar, é possível que as teorias que consideramos “provadas” por um número de concordâncias numéricas que aparenta ser suficientemente grande, sejam falsas por estarem em conflito com teorias mais abrangentes mas que estejam fora do alcance de nossas descobertas. Se isso for verdade deveremos esperar conflitos entre nossas teorias, sempre que seu número cresça além de um certo ponto e assim que abranjam um número suficientemente grande de grupos de fenômenos. Em contraste com o artigo de fé mencionado anteriormente, este é o pesadelo do físico teórico. 

Vamos considerar alguns exemplos de teorias “falsas” que, em vista de sua falsidade, fornecem descrições alarmantemente precisas de alguns grupos de fenômenos. Com alguma boa vontade é possível descartar algumas da evidências que esses exemplos fornecem. As idéias iniciais e pioneiras de Bohr sobre o átomo nunca tiveram grande sucesso e o mesmo pode ser dito dos epiciclos de Ptolomeu. Nossa posição privilegiada possibilita uma descrição precisa de todos esses fenômenos que essas teorias primitivas não tinham condições de oferecer. Isso não é verdade para a, assim chamada, teoria do elétron livre que fornece uma descrição incrivelmente boa de muitas, senão de todas, as propriedades dos metais, dos semicondutores e isolantes. Em particular, ela explica o fato, nunca adequadamente compreendido pela “teoria real”, de que isolantes exibem uma resistência a corrente elétrica que pode chegar a ser 10^26 vezes maior do que aquela dos metais. Não existe, de fato, nenhuma evidência experimental para mostrar que a resistência não é infinita sob as condições em que a teoria do elétron livre nos leva a crer que ela seria infinita. Apesar disso, estamos convencidos de que a teoria do elétron livre é uma aproximação muito crua e que deveria, ao descrevermos todos os fenômenos referentes aos sólidos, ser substituída por algo mais adequado. 

Vista do nosso ponto de vista privilegiado, a situação apresentada pela teoria do elétron livre é irritante mas é improvável que ela venha a apresentar alguma inconsistência que não possa ser superada. Essa teoria coloca em dúvida a importância que se deve atribuir, ao se verificar a correção de uma teoria, a concordância que ela tem com a experiência. Já nos acostumamos a essas dúvidas. 

Ocorreria uma situação muito mais difícil e confusa se pudéssemos, algum dia, estabelecer uma teoria de fenômenos da consciência ou da biologia que fosse tão coerente e convincente como nossas atuais teorias do mundo inanimado. As leis de Mendel da hereditariedade e o trabalho subsequente em genes podem muito bem se tornar o começo dessa teoria no que se refere à biologia. Além disso, é muito possível que possa ser encontrado um argumento abstrato que mostre a existência de um conflito entre essa teoria e os princípios aceitos pela física. O argumento poderia ser de uma natureza tão abstrata que não permitisse resolver o conflito, através da experiência, em favor de uma das teorias. Tal situação traria um grande abalo na fé que temos em nossas teorias e na crença da realidade de nossas concepções. Traria também um profundo senso de frustração em nossa procura pelo que chamamos de “derradeira verdade”. O que faz com que essa situação seja concebível é o fato de, na realidade, não sabermos a razão pela qual nossas teorias funcionam tão bem. O fato de fornecerem resultados precisos não é prova de sua veracidade nem de sua consistência. Na realidade, o autor acredita que, se compararmos as atuais leis da hereditariedade e as da física, algo muito próximo da situação descrita acima ocorrerá. 

Permitam-me terminar num tom mais animador. O milagre da eficiência da linguagem matemática para formular as leis físicas é algo que nem merecemos nem entendemos. Deveríamos ser gratos por ele ocorrer e esperar que continue válido na pesquisa futura e que se estenda, para o bem ou para o mal, para o nosso prazer ou talvez para o nosso espanto, à amplas áreas do conhecimento. 

O autor deseja manifestar sua gratidão ao Dr. M. Polanyi que, muitos anos atrás, influenciou profundamente seu pensamento em problemas de epistemologia, e a V. Bargmann cuja amigável crítica foi importante para atingir a clareza que possa ter sido atingida. É também muito grato a A. Shimony por ter revisto o presente artigo e chamado sua atenção para os artigos de C. S. Peirce. 

Notas:

(1) A observação a ser citada foi feita a mim por F. Werner na época em que era estudante em Princeton.

(2) Essa afirmação foi retirada de W. Dubislav’s Die Philosophie der mathematik in der Gegenwart. Junker und Dunnhaupt Verlag, Berlin, 1932, pág. 1.

(3) M. Polanyi em seu Personal Knowledge, University of Chicago Press, 1958 diz: “Todas essas dificuldades não são nada além de consequências de nossa recusa em ver que a matemática não pode ser definida sem levar em conta sua mais óbvia característica: isto é, que ela é interessante,” (página 188). 

(4) O leitor pode estar interessado, com relação a isso, nas observações muito irritadas de Hilbert em relação ao intuicionismo “que procura fracionar e desfigurar a matemática”, Abh. Math. Sem. Univ. Hamburg, vol 157, 1922 ou Gesammelte Werke, Springer, Berlin, 1935, página 188.

(5) Veja a esse respeito, o ensaio gráfico de M. Deutsch, Daedalus, Vol. 87, 1958, pág. 86. A Shimony chamou minha atenção para uma passagem semelhante em C. S. Peirce’s Essays in the Philosophy of Science, The Liberal Arts Press, New York, 1957 (pág. 237). 

(6) E. Schroedinger, em What is Life, Cambridge University Press, 1945, diz que esse segundo milagre pode, muito bem, estar além da compreensão humana (pág. 31). 

(7) O autor está seguro de que é desnecessário mencionar que o teorema de Galileu, como foi abordado no texto, não exaure o conteúdo das observações de Galileu relativas às leis dos corpos em queda livre.

(8) Veja, por exemplo, E. Schroedinger, referência [1]. 

(9) Essa afirmação é atribuída a Galileu. 

(10) Veja, por exemplo, R. H. Dicke, American Scientist, Vol. 25, 1959.

(11) Essa passagem foi escrita após muita hesitação. O autor está convencido de que é útil, em discussões epistemológicas, abandonar a idealização de que o nível da inteligência humana tem uma posição singular numa escala absoluta. E em alguns casos, pode até mesmo ser útil considerar as realizações possíveis no nível de inteligência de outras espécies. No entanto, o autor tem consciência de que suas reflexões seguindo as linhas sugeridas pelo texto são muito breves e foram insuficientemente criticadas para serem confiáveis. 

The Unreasonable Effectiveness of Mathematics in the Natural Sciences,” in Communications in Pure and Applied Mathematics, vol. 13, No. I (February 1960). New York: John Wiley & Sons, Inc. Copyright © 1960 by John Wiley & Sons, Inc

Fonte: https://www.ime.usp.br/~pleite/pub/artigos/wigner/eficacia_da_matematica.pdf

Bilíngue: https://www.ime.usp.br/~pleite/pub/artigos/wigner/wigner_bilingue.pdf


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Para entender O Trivium, por José Monir Nasser

A Filosofia apresenta as sete Artes Liberais a Boécio (c. 1460-1470).
Iluminura atribuída ao Mestre Coëtivy (ativo entre 1450 e 1485).

Prefácio de José Monir Nasser ao ‘Trivium’, de Miriam Joseph

No Brasil, nunca se comemora em excesso o lançamento de uma obra fundacional como O Trivium, da irmã Miriam Joseph (1898-1982), já que não é todo dia que a indústria editorial nacional se arrisca a penetrar na pretensa selva escura do Medievo. O desprezo da intelectualidade nacional pelos assuntos da Idade Média é a razão da esquelética oferta por aqui de obras escolásticas, comparadas por Erwin Panofsky (1) às próprias catedrais góticas, e a explicação do nosso tímido vol d’oiseau por sobre os fundamentos civilizatórios do Ocidente, entre eles a própria ideia de educação no sentido de Paideia, de formação.

Curiosamente, nada deveria parecer mais enigmático ao cidadão brasileiro medianamente informado, que vive por aí a falar em idade das trevas, do que o escandaloso fiasco deste monstrengo chamado sistema nacional de ensino. No Brasil, depois de sequestrarmos as crianças de suas casas pelo menos cinco horas por dia e gastarmos com elas um quarto do orçamento, descobrimos, oito anos depois, atônitos, que a maioria não sabe ler… E isto apesar de todas as siglas atrás das quais se esconde a bilionária incompetência pública.

O enigma da baixíssima eficiência do ensino, que não é fenômeno exclusivamente brasileiro, foi em parte resolvido na década de 1970 pelo padre austríaco Ivan Illich (1926-2002), que propôs a sociedade sem escolas tout court. (2) A tese de Illich, cujo mérito avulta na proporção direta do fracasso educacional geral, é que o sistema de ensino não tem por objetivo realmente educar, mas somente distribuir socialmente os indivíduos, por meio do ritual de certificados e diplomas. A escola formal, esta que Illich deseja suprimir, não é um meio de educação, mas um meio de “promoção” social, fato que as pessoas humildes revelam perceber quando insistem com o Joãozinho: estude, meu filho, estude…

Como se vê, vamos decifrando o mistério à medida que desprezamos a falsa equação entre ensino e educação. O sistema de ensino não produz educação, porque está ocupado demais em produzir documentos. Educação terá de ser buscada preferencialmente alhures, fora do sistema. É claro, sempre haverá um professor ou outro que, valendo-se da apatia do sistema, dará, por sua própria conta, aulas magistrais e educará de fato, contanto que seus alunos o desejem, o que, obviamente, nem sempre é o caso.

Temos aí uma espécie de lei geral com correlação inversa: a capacidade de educar alguém é inversamente proporcional à oficialidade do ato e diretamente proporcional à liberdade de adesão do educando. A educação prospera mais quando é procurada livremente. Este é o sentido da palavra “liberal” (de liber, livre) nas Sete Artes “liberais” da Idade Média, que eram ensinadas ao homem livre, por oposição às artes “iliberais”, ensinadas ao homem “preso”, controlado por guildas. Estas corporações de ofícios faziam grosseiramente o papel do sistema de ensino moderno, regulando privilégios econômicos e sociais.

Não só não existiu na Idade Média nenhuma obrigação estatal de ir à escola para aprender as Sete Artes, como ninguém imaginava usar este conhecimento como alavanca para forçar os ferrolhos do mercado de trabalho. Para ficar mais claro, com a licença da comparação, a diferença entre o ensino e a educação é a mesma que há entre a polícia e o detetive particular do cinema. A primeira tem a obrigação de desvendar o crime, e por isso precisa parecer que o está resolvendo e, enquanto tem todo esse trabalho de fingir, só consegue esclarecer uns poucos casos pingados. O detetive resolve todos porque está aí para isso mesmo e vai até as últimas consequências, acabando sempre com o olho roxo.

Tamanha despretensão econômica certamente soa estranhíssima aos modernos, que julgam tudo sob o ponto de vista da quantidade e imaginam que entre a educação medieval e a moderna só exista uma diferença de quantum. Na verdade, a diferença é de tal dimensão qualitativa que, no contrapé desse engano, perdeu-se de vista a própria ideia de educação, hoje entendida como adestramento coletivo de modismos politicamente corretos (a tal da “escola cidadã”). Nos tempos das “trevas”, educação era simplesmente ex ducare, isto é, retirar o sujeito da gaiolinha em que está metido e apresentar-lhe o mundo. Como já se disse, nem sempre o que vem depois é melhor.

A primeira condição para entender O Trivium da irmã Miriam Joseph, editado pela primeira vez no Brasil na corajosa e esmerada tradução de Henrique Paul Dmyterko, é entender que ensinar retórica, gramática e lógica fazia parte de um verdadeiro projeto de educação de que não há nada equivalente no mundo moderno.

As Sete Artes Liberais da Idade Média, divididas em trivium (retórica, gramática e lógica) e quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), tomaram esta forma por volta do ano oitocentos, quando se inaugurou o império de Carlos Magno, primeira tentativa de reorganizar o Império Romano, e são o resultado de lenta maturação a partir de fontes pitagóricas e possivelmente anteriores, com decisivas influências platônicas, aristotélicas e agostinianas e complementações metodológicas de Marciano Capela (início do século V), Severino Boécio (480-524) e Flávio Cassiodoro (490-580), até chegar a Alcuíno (735-804), o organizador da escola carolíngia em Aix-en-Chapelle.

Como essas Sete Artes estão vinculadas a conhecimentos tradicionais, apresentam grandes simetrias com outros aspectos da estrutura da realidade, permitindo, por exemplo, analogia com o sentido simbólico dos planetas, relacionando a retórica com Vênus; a gramática com a Lua; a lógica com Mercúrio; a aritmética com o Sol; a música com Marte; a geometria com Júpiter e a astronomia com Saturno. Que ninguém pense, portanto, que haja arbitrariedade na concepção septenária do sistema. Simbolicamente, o sete representa, como ensina Mário Ferreira dos Santos, (3) “a graduação qualitativa do ser finito”, isto é, um salto qualitativo, uma libertação, como um sétimo dia de criação que abre um mundo de possibilidades. Como se poderia representar a educação melhor que por esse simbolismo?

O estudante das Artes começava a vida escolar aos quatorze anos (tardíssimo para os padrões modernos, mas não sem alguma sabedoria), participava de um regime de estudo flexível com grande liberdade individual e vencia em primeiro lugar os “três caminhos” do trivium, mais tarde descritos por Pedro Abelardo (1079-1142) como os três componentes da ciência da linguagem. Para Hugo de São Vítor (1096-1141), no Didascálicon, “a gramática é a ciência de falar sem erro. A dialética (4) é a disputa aguda que distingue o verdadeiro do falso. A retórica é a disciplina para persuadir sobre tudo o que for conveniente”. (5) A irmã Miriam Joseph, muito acertadamente, diz no primeiro capítulo que “o trivium inclui aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à mente, e quadrivium, aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à matéria”. No entanto, ninguém expressou com mais contundência o valor das Artes como Honório de Autun (ca. 1080-1156), com a famosa fórmula: “O exílio do homem é a ignorância, sua pátria a ciência (…) e chega-se a esta pátria através das artes liberais, que são igualmente cidades-etapas”. (6)

De fato, uma vez vencido o desafio da mente, o trivium, o estudante medieval passava ao quadrivium, o mundo das coisas, e, dele, lá pelos vinte anos, se pudesse e quisesse, para a educação liberal superior, que, na época, se resumia a teologia, direito canônico e medicina, as faculdades das universidades do século XIII. As profissões de ordem artesanal, como construção civil, não eram liberais, mas associadas a corporações de ofícios, como a dos mestres-construtores, às vezes com conotações iniciáticas (maçons).

O trivium, de fato, funcionava como a educação medieval, ensinando as artes da palavra (sermocinales), a partir das quais é possível tratar os assuntos associados às coisas e às artes superiores. A escolástica, o mais rigoroso método filosófico já concebido, e que floresceria sobretudo no século XII, foi construída sobre os alicerces do trivium: a gramática zela para que todos falem da mesma coisa, a dialética problematiza o objeto de discussão (disputatio), e a lógica é antídoto certo contra a verborragia vazia, o conhecido fumus sine flamma.

A expressão universitária americana master-of-Arts guarda, até hoje, resquícios dessa graduação inicial, base dos estudos superiores, que convergiam para o doutorado (no sentido medieval, não no sentido moderno). A faculdade de Artes liberais, frequentemente associada às universidades medievais, sem ser um curso superior propriamente dito, era o que lhe dava sustentação e de certo modo bastava-se a si própria. Explica Jacques Le Goff:

Lá (na faculdade de Artes) é que se tinha a formação de base, daquele meio é que nasciam as discussões mais apaixonadas, as curiosidades mais atrevidas, as trocas mais fecundas. Lá é que podiam ser encontrados os clérigos pobres que não chegaram até a licença, muito menos ao custoso doutorado, mas que animavam os debates com suas perguntas inquietantes. Lá é que se estava mais próximo do povo das cidades, do mundo exterior, que se ocupava menos em obter prebendas e em desagradar à hierarquia eclesiástica, que era mais vivo o espírito leigo, que se era mais livre. Lá é que o aristotelismo produziu todos os seus frutos. Lá é que se chorou como uma perda irreparável a morte de Tomás de Aquino. Foram os artistas que, numa carta comovedora, reclamaram da ordem dominicana os despojos mortais do grande doutor. (7)

Cada elemento do trivium contém potencialmente as habilidades filosóficas da vida intelectual madura. Esta é a razão pela qual o projeto educacional da irmã Miriam, profundamente influenciado pelo filósofo americano Mortimer Adler (1902-2001), foi concebido como preparação de estudantes para a vida universitária, fosse qual fosse o curso. Em 1935, quando incorporado ao currículo do Saint Mary’s College, o curso “The Trivium” era exigido de todos os calouros e durava dois semestres, com aulas cinco vezes por semana. Santo Agostinho (354-430), mil e seiscentos anos antes, havia feito, a seu modo, a mesma tentativa de preparação intelectual com sua "Doutrina Cristã" (8), uma espécie de iniciação intelectual para estudar as Escrituras.

Na prática e salvo engano, no mundo moderno a única tentativa de recuperar o espírito do trivium foi a parceria da irmã Miriam Joseph com Mortimer Adler. Este querendo restaurar a cultura clássica na universidade americana, e aquela preparando o aluno para poder debater os conteúdos dos grandes autores com precisão gramatical e coerência, concordando com Heráclito, (9) que pregava a seus alunos a impossibilidade da retórica sem a lógica.

O mundo moderno, Brasil incluído, hipnotizado pelo esquema do ensino universal, perdeu completamente de vista a conotação individual e “iniciática” que é a alma da verdadeira educação e a essência do trivium. Mesmo nos Estados Unidos, a experiência da irmã Miriam Joseph ficou restrita a pequeno grupo de universidades católicas. Por aqui, quase não há interlocutores capacitados para debater o assunto.

Mesmo sem pretender tratar aqui fenômeno tão complexo, registre-se que o sistema educacional tradicional entrou em declínio já no século XIV, lentamente minado por fora e por dentro, sob a orquestração do nascente “humanismo”, até desabar no Renascimento, pela mão do teólogo e místico tcheco Jean Amos Comenius (1592-1670), que, em sua principal obra, Magna Didactica, não apenas faz pouco das Sete Artes como estabelece as bases das pedagogias modernas, desenhadas para fins de ensino e não de educação. Entre outras coisas, Comenius inventou o jardim da infância. Na advertência ao leitor, que abre sua Magna Didactica, o teólogo rascunha o plano mestre de seu admirável mundo novo pedagógico:

Ouso prometer uma grande didática, uma arte universal que permita ensinar a todos com resultado infalível; ensinar rapidamente, sem preguiça ou aborrecimento para alunos e professores; ao contrário, com o mais vivo prazer. Dar um ensino sólido, sobretudo não superficial ou formal, o qual conduza os alunos à verdadeira ciência, aos modos gentis e à generosidade de coração. Enfim, eu demonstro tudo isso a priori, com base na natureza das coisas. Assim como de uma nascente correm os pequenos riachos que vão unir-se no fim num único rio, assim também estabeleci uma técnica universal que permite fundar escolas universais. (10)

Mesmo uma análise rápida desta declaração descobrirá nela o DNA da pedagogia moderna nas suas características estruturantes: triunfalismo, epicurismo, massificação do ensino, uniformização do conteúdo, automatização da aprendizagem e insensibilidade às individualidades. A Unesco, naturalmente, homenageia Comenius com sua maior condecoração. Se a miséria do ensino moderno tem pai, o seu nome é Comenius. E se alguma coisa vai na direção contrária do trivium é esta “natureza das coisas” de onde vêm estas “escolas universais” e cujo resultado até agora parece ter-se limitado a produzir milhões de indivíduos idiotizados.

Visto desta perspectiva histórica, O Trivium, este tesouro redescoberto pela irmã Miriam Joseph, é mais que um manual para desenvolver a inteligência, é uma luz brilhando na escuridão dos abismos em que atiramos a verdadeira educação.

José Monir Nasser (1957-2013 - In memoriam)
Professor, escrito e autor de O Brasil que Deu Certo e A Economia do Mais (Tríade Editora). Durante anos, ministrou no Espaço Cultural É Realizações suas "Expedições pelo Mundo da Cultura", umas seria de conferências sobre grandes livros da literatura ocidental, inspirado pelo modelo de educação liberal proposto por Mortimer Adler.

Referências:

(1) Erwin Panofsky, Arquitetura Gótica e Escolástica. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

(2) Ivan Illich, Sociedade sem Escolas. Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, Vozes, 1985.

(3) Mário Ferreira dos Santos, Tratado de Simbólica. São Paulo, É Realizações, 2007. p. 240

(4) Depois da redescoberta da “nova lógica” de Aristóteles, no séc. XII, passou a denominar-se lógica.

(5) Hugo de São Vítor, Didascálicon. Petrópolis, Vozes, 2001.

(6) Em Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro, José Olympio, 2003, p. 84.

(7) Ibid., p. 144-45.

(8) Santo Agostinho, A Doutrina Cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira, C.S.A. 2. Ed. São Paulo, Paulus, 2007. (Coleção Patrística)

(9) Ernesto Sábato, Heterodoxia. Campinas, Papirus, 1993, p. 120.

(10) Jean-Marc Berthoud, Jean Amos Comenius et les Sources de l’Idéologie Pédagogique. Tradução de José Monir Nasser.

Trecho extraído do livro "O Trivium - As artes liberais da lógica, da gramática e da retórica" da Irmã Miriam Joseph. Editora É Realizações, 2014. Pág 13-18.


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Sobre o quadrivium - Didascalicon de Hugo de São Vítor

 

Filosofia e As Sete Artes liberais.
De Herrad de Landsberg da
obra Hortus Deliciarum (século XII).
Sobre o quadrivium

Se, como foi dito acima, cabe propriamente à matemática ocupar-se da quantidade abstrata, convém investigar suas espécies distintas em cada parte em que se divide a quantidade. A quantidade abstrata não é outra coisa senão a forma visível segunda a dimensão linear impressa na mente; ela se fixa na imaginação e é dividida em duas partes: uma contínua, como a árvore ou a pedra, chamada magnitude; outra descontínua, como o rebanho e o povo, chamada multitude.

Na multitude, algumas quantidades existem por si mesmas, como três, quatro, ou qualquer outro número, e outro número, e outras existes em relação, como duplo, metade, um e meio, um e um terço, ou outra quantidade semelhante. Na magnitude, com efeito, algumas quantidades são móveis, como uma esfera do universo, outras são imóveis, como a Terra.

Em vista disso, a multitude que existe por si é chamada "aritmética", e aquela que existe em relação é chamada "música". A geometria trata do conhecimento da magnitude imóvel, e a astronomia, por fim, reinvidica o conhecimento da magnitude móvel. Sendo assim, a matemática é divida em aritmética, música, geometria e astronomia.

Sobre a palavra "aritmética"

Ares, em grego, é traduzido por virtus (força) em latim, e rithmus por numerus (número). Donde "aritmética" signifique "a força do número", e que a força do número consista em todas as coisas terem sido formadas à sua semelhança.

Sobre a palavra "música"

"Música" vem da palavra "água", porque nenhuma eufonia, isto é, uma boa sonoridade, é produzida sem umidade. (23)

Sobre a palavra "geometria"

"Geometria " significa "medida da terra", isto porque esta técnica foi descoberta primeiramente pelos egípcios, os quais, quando a inundação do Nilo cobria de lama suas margens e confundia seus limites, começaram a medir a terra com varas e cordas. A partir daí seu uso foi aplicado e expandido pelos sábios para medir também extensões no mar, no céu, na terra, e noutros corpos.

Sobre a palavra "astronomia"

A diferença entre astronomia e astrologia parece consistir nisso: a astronomia assume este nome por tratar da lei dos astros, e, do mesmo modo, a astrologia assim é chamada por tratar de um discurso sobre os astros, pois nomia significa "lei" e logos, "discurso". Assim, a astronomia é a ciência que disserta sobre a lei dos astros e o movimento do céu, investigando as regiões, as órbitas, cursos, a aurora e o ocaso dos astros e o porquê do nome de cada um. A astrologia, por sua vez, é a que considera os astros relacionando-os com a observação do nascimento e da morte e de quaisquer outros eventos, ela que é parte natural e parte supersticiosa. É natural enquanto relacionada à conformação dos corpos, que varia de acordo com o arranjo dos corpos superiores, como é a saúde e a doença, a tempestade e a calmaria, a fertilidade e a esterilidade. (24) E é supersticiosa enquanto relacionada às coisas contingentes ou que dependem do livre-arbítrio; e esta é a parte da qual tratam os matemáticos. (25)

Sobre a aritmética

A aritmética tem como matéria o número par e o ímpar. O número par é ou parmente par, ou parmente ímpar, ou imparmente par. (26) O número ímpar também também tem três espécies. A primeira é o número primo e não-composto; a segunda é o número segundo e composto; e a terceira é o número que, por si, é segundo e composto e que, comparado a outros, é primo e não-composto. (27)

Sobre a música

Existem três tipos de música: a do universo, a humana e a instrumental. A do universo é encontrada nos elementos, nos planetas e nos tempos. Nos elementos, ela está no peso, no número e na medida; nos planetas, está na posição, no movimento e na natureza; e nos tempos, está nos dias, segundo a alternância de luz e escuridão, nos meses, segundo o crescer e minguar da Lua, e nos anos, segundo a variação da primavera, verão, outono e inverno.

A música humana é encontrada no corpo, na alma e na conexão entre os dois. No corpo, ela está na potência vegetal, segundo a qual cresce e que pertence a todos aqueles que nascem; está nos humores, (28) cuja conformação proporciona a subsistência do corpo humano e é comum em todos os seres dotados de sentidos; e está nas atividades, que correspondem especialmente aos seres racionais, sobre as quais reina a mecânica e que são boas se não ultrapassam seu limite justo, para que assim a avareza não seja nutrida com aquilo que a frouxidão deveria ser curada, como expressa Lucano em seu elogio a Catão: 

Para ele os banquetes eram para que dominasse a fome,
qualquer teto era um palácio para se proteger da tempestade,
e uma toda grosseira sobre o corpo era uma preciosa veste,
como usaria um nobre cidadão romano para adornar-se. (29)

A música encontrada na alma está nas virtudes, como a justiça, a piedade e a temperança, e está nas potências, como a razão, a ira e a concupiscência. A música encontrada na conexão entre corpo e alma é aquela amizade natural na qual a alma está ligada ao corpo não por vínculos corporais, mas por certos vínculos afetivos, para dotar o próprio corpo de movimento e sensibilidade, "devido a esta amizade ninguém teve ódio de sua carne". (30) Esta música existe para que seja amada a carne, mas mais o espírito, e para que seja alimentado o corpo e não destruída a virtude.

A música instrumental é encontrada no pulso, como se dá nos tímpanos e nas cordas, no sopro, como se dá nas flautas e nos órgãos, e na voz, como se dá nas líricas e nas cantigas. Três também são os gêneros de músicos: os que compõem a lírica, os que tocam os instrumentos e os que julgam a lírica e a execução dos instrumentos. (31)

Sobre a geometria

A geometria tem três partes: planimetria, altimetria e cosmometria. A planimetria mede o plano, isto é, o comprimento e a largura, o que se estende para frente e para trás, para a direita e para esquerda. A altimetria mede a altura, o que se estende para cima e para baixo. Assim é dito que o mar é alto, isto é, profundo, e que a árvore é alta, isto é, elevada. Cosmos significa mundo, (32) e daí que se tem a cosmometria, isto é, a medida do mundo. Ela mede os corpos esféricos, isto é, os globulosos e redondos, assim como a bola e o ovo. E devido à excelência da esfera do mundo foi chamada de cosmometria, não porque se ocupe somente da medição do mundo, mas porque a esfera do mundo é de todas a mais digna.

Sobre a astronomia

Isto não é contrário ao fato de termos atribuído acima a magnitude imóvel à geometria e a móvel à astronomia, porque isso foi dito devido à primeira descoberta, segundo a qual recebeu o nome de "geometria", medida da terra. Além disso, podemos dizer que o que a geometria considera na esfera do mundo, isto é, a dimensão das regiões e dos círculos celestes, é imóvel, e, assim sendo, pertence ao estudo geométrico. A geometria, então, não considera o movimento, mas o espaço. Já a astronomia observa o que é móvel, isto é, o curso dos astros e seus intervalos de tempos. E assim dizemos universalmente que a magnitude imóvel está submetida à geometria e a móvel, à astronomia, pois ainda que ambas se ocupem do mesmo objeto, uma contempla o que permanece e a outra observa o que transita.

A definição de quadrivium

A aritmética, portanto, é a ciência dos números. A música consiste na divisão dos sons e na variedade das vozes. Do outro modo, a música ou a harmonia é a concórdia da multiplicidade dos diversos reduzida à unidade. A geometria é a disciplina da magnitude imóvel e a descrição contemplativa das formas, pela qual os limites de cada coisa costumam ser declarados. Dito de outra maneira, a geometria é "a fonte dos sentido e a origem da expressão verbal". (33) A astronomia é a disciplina que investiga os espaços, os movimentos e os giros dos corpos celestes em períodos determinados.

Notas:

(23) Aqui, Hugo de São Vítor tem como subentendidas algumas relações que saíram do nosso horizonte. A música, entre todas as artes, é aquela que tem a maior capacidade de conformar a alma de quem a recebem entendendo por alma o que está entre o corpo e o espírito, ou seja, o nosso psiquismo, no mesmo sentido que Hugo de São Vítor usou acima referindo-se às três potências da alma. Portanto, a músicas está vinculada diretamente aos sentimentos, que por sua vez estão relacionados às águas, ao mar, pela sua inconstância e mutabilidade, assim com a Lua, que também possui, no simbolismo medieval, relação direta com a água e os sentimentos. Sendo assim, para que a música alcance seu objetivo, é preciso que ela tenha umidade.

(24) Vale ressaltar que esta ciência em nada é supersticiosa, como acaba de dizer Hugo de São Vítor, levando em conta esta impregnação contemporânea de qualquer estudo astrológico é supersticioso ou questão de crença. A variação de casos de uma mesma doença repetida anualmente devido mudanças de estações, a maré dos mares, e o próprio ciclo menstrual da mulher, que é regido pelo ciclo lunar, são exemplos mais concretos da validade desta astrologia que Hugo de São Vítor chama de natural.

(25) Chamaríamos vulgarmente de "astrólogos", mas são especificamente aqueles que fazem predições.

(26) Parmente par é o número que pode ser dividido várias vezes em duas partes iguais até chegar a 1, são os múltiplos de 2 (2, 4, 8, 16, 32); parmente ímpar é o número que pode ser dividido uma só vez em duas partes iguais, tornando-se logo ímpar (6, 10, 14); imparmente par é o número que pode ser dividido várias vezes por 2, mas o resultado final dessas sucessivas divisões não é 1, e sim um outro número ímpar qualquer (24, 40, 56).

(27) Primo e não-composto é o número que pode ser dividido somente por 1 ou por si mesmo (3, 5, 7); segundo e composto é o número ímpar que pode ser dividido por outros números além de 1 (9, 15, 21). Este terceiro tipo se refere ao que hoje conhecemos, na Teoria dos Números, como números primos entre si, que se dá quando o único divisor comum de dois números é a unidade, donde resulta que o MDC (máximo divisor comum) entre esses dois números é o número 1 (por exemplo, o 9 em relação ao 8). Também neste trecho Hugo de São Vítor está se baseando nas Etymologiae de Isidoro. Para aprofundamento deste tema, pode-se ler A matemática de Isidoro de Sevilha e a educação medieval, de Jean Lauand, disponível em http://www.hottopos.com/videtur30/jean-isid.htm.

(28) A acepção de "humor" usada por Hugo de São Vítor é pouco utilizada e conhecida em português: "qualquer fluido líquido contido nos corpos organizados".

(29) Lucano, De Bello Civile.

(30) Ef 5, 29.

(31) Boécio, De musica.

(32) Aqui temos o substantivo mundus, que era usado para designar o firmamento ou todo o universo, além da própria Terra. E este universo a que se refere é percebido e concebido em camadas de órbitas cada vez mais abrangentes, nas quais alguns astros realizam suas trajetórias individuais, até chegar o céu das estrelas fixas, o cristalino e o empíreo; tudo isso está contemplado em mundus.

(33) Cassiodoro, Institutiones.

Trecho extraído do livro "Didascalicon sobre a arte de ler" de Hugo de São Vítor. Edições Kírion, 2018. Pág. 77 a 89.


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Aristotelismo e Filosofia da Matemática - por Deividi Pansera

Platão e Aristóteles na Escola
de Atenas (1509–1510),  fresco
de Rafael Sanzio,  na Stanza
della Segnatura, nos Museus Vaticanos
Platonismo, Nominalismo, Aristotelismo e Conceptualismo Divino

por Deividi Pansera

Matemática é essencial para a vida intelectual e estrutura do pensamento. Todo intelectual sério, até bem pouco tempo, sabia do que se tratava Os Elementos de Euclides e, mais ainda, sabia demonstrar teoremas nele presentes. Segundo uma tradição, na Academia de Platão existia uma inscrição que proibia a entrada de pessoas que não sabiam geometria. Ademais, ao longo da República, alguns argumentos em favor do aprendizado da matemática são dados. Aristóteles, no Órganon, em Primeiros Analíticos, utiliza a demonstração da irracionalidade de raiz de dois como um exemplo de um argumento Reductio ad Absurdum. Aliás, todo o pensamento filosófico grego está, de uma forma ou de outra, entrelaçado com o pensamento matemático e vice-versa.

Diversos foram os filósofos que estudaram, e alguns até desenvolveram, matemática. Platão, Aristóteles, Boécio, Hugo de São Vitor, Roberto Grosseteste, Thomas Bradwardine, Santo Alberto Magno, Santo Tomás de Aquino, Duns Scotus, Francisco Suárez, João de São Tomás, Descartes, Leibniz, Frege, Edmund Husserl, Alfred Whitehead, Henri Poincaré, Charles Peirce, Pascal, Hilary Putnam, Alfred Tarski, Bernard Lonergan, James Franklin etc.

Matemática e filosofia são duas disciplinas antigas e abstratas. Duas grandes conquistas do espírito humano. A matemática, porém, sempre foi um problema difícil para a filosofia ao mesmo tempo que a filosofia sempre colocou reflexões pertinentes sobre o fazer matemática. Como é possível que haja tanto conhecimento que seja alcançável pelo pensamento puro, apenas com lápis e papel? O que são (ontologicamente) “números”, “funções”, “variedades diferenciáveis” e “espaços de Hilbert”? Ou ainda, o que é um infinito quantitativo? Como é possível a aplicabilidade da matemática no mundo real?

A matemática é uma invenção da mente humana? Ela é trivial, tautológica ou uma manipulação puramente formal de símbolos a partir de um conjunto de inferências? Afinal, a matemática trata do quê?

Essas, e muitas outras, são questões que a filosofia da matemática tenta responder.

A dicotomia moderna

Na História, com exceção da Idade Média, período em que a escolástica, fortemente influenciada pelo pensamento de Aristóteles, prevaleceu, duas grandes correntes disputaram o troféu da Filosofia da Matemática. O platonismo e o nominalismo.

O nominalismo sustenta que os universais não são reais, que são apenas palavras, conceitos ou classes, e que as únicas realidades são coisas particulares. Na filosofia da matemática, o logicismo e o formalismo são teorias de tendência nominalista, pois consideram a matemática não como uma realidade externa ao matemático, mas uma questão de símbolos. O principal problema para o nominalismo é sua incapacidade de explicar por que diferentes indivíduos devem ser reunidos sob o mesmo nome (ou conceito ou classe), se os universais não forem admitidos. No “nominalismo de predicados”, por exemplo (isto é, o nominalismo que considera os universais como meras palavras), “a palavra «branco» se aplica corretamente a Sócrates” é anterior a “Sócrates é branco”. Isso parece contra-intuitivo, uma vez que parece que as coisas são brancas antes da linguagem existir. E nosso reconhecimento dessa semelhança, que é uma condição para aprendermos a aplicar a palavra corretamente, surge da capacidade de todas as coisas brancas nos afetarem da mesma maneira – «a causalidade é a marca do ser». Um outro problema é que os predicados ou conceitos usados pelos nominalistas para unir os particulares são eles próprios universais – a palavra “branco” não significa uma inscrição particular em uma determinada página, mas a palavra digitada “branco” em geral.

Uma tentativa séria de mostrar que a matemática pode ser feita sob a ótica nominalista é feita por Hartry Field.

O platonismo (pelo menos em sua versão extrema, que é a versão usualmente encontrada na filosofia da matemática) sustenta que existem universais, mas são Formas puras em um mundo abstrato, sendo os objetos do nosso mundo relacionados a eles por uma misteriosa relação de “participação” ou “aproximação”. Assim, o que une todas as coisas azuis é apenas sua relação com a Forma do azul, e o que une todos os pares é sua relação com o número abstrato 2. O uso irrefletido pelos matemáticos de nomes como “2”, “o contínuo” etc., como se eles nomeassem entidades particulares com as quais os matemáticos lidam, parece apoiar uma visão platônica de tais entes.

Um dos problemas para o platonismo é a dificuldade de explicar a natureza da relação de “participação” ou “aproximação”. Epistemologicamente também, o platonismo tem dificuldades por causa de sua natureza relacional. Ou há uma intuição semelhante à percepção no reino das Formas, ou temos conhecimento delas através de algum processo de inferência. Uma espécie de “intuição matemática” que permite o acesso a tais Formas — visão defendida, por exemplo, por Kurt Gödel.

Aristotelismo

A dicotomia platônico-nominalista, desde o fim da escolástica, é dominante na maior parte da filosofia da matemática. Entretanto, há um terceiro posicionamento que está ganhando cada vez mais adeptos e já fundou uma escola: The Sydney School, liderada pelo filósofo da matemática James Franklin e fortemente influenciada pelo trabalho de David M. Armstrong. Segundo essa escola, a matemática, assim como a biologia e a física, trata do mundo real e estão intimamente conectadas com as categorias aristotélicas da quantidade e da relação. Se o platonismo significa “há objetos abstratos” e o nominalismo significa “não há”, então pode parecer que platonismo e nominalismo são posições mutuamente exclusivas e exaustivas. No entanto, as palavras “abstrato” e “objeto” desviam a atenção da alternativa aristotélica: “abstrato” ao sugerir uma desconexão platônica do mundo físico e “objeto” ao sugerir a particularidade e talvez a simplicidade sem uma universalidade. O próprio conceito de “objeto abstrato”, que é tão comum em filosofia da matemática, é uma noção recente e, na verdade, obscura. Em particular, a noção é uma criação da conclusão de Frege (um platonista) de que, uma vez que os objetos da matemática não são concretos nem mentais, eles devem habitar algum “terceiro reino” do puramente abstrato.

Os aristotélicos não aceitam a dicotomia dos objetos matemáticos em abstrato e concreto, no sentido usado para falar de “objetos abstratos”. Uma propriedade como o azul não é um particular concreto, mas também não possui as características clássicas centrais de um “objeto abstrato”, ineficácia causal e separação do mundo físico. Ao contrário, a posse de um objeto concreto da propriedade azul é exatamente o que lhe confere eficácia causal (ser percebido como azul).

Assim, uma entidade de interesse para a filosofia da matemática – digamos, a razão entre duas alturas – poderia ser um habitante de um mundo não-causal e “abstrato” dos Números ou uma relação do mundo real entre comprimentos, ou nada. As três opções – platônica, aristotélica e nominalista – precisam ser mantidas distintas e sobre a mesa, ou a discussão será confusa desde o início.

O aristotelismo, a fim de explicar o conhecimento da matemática, fundamenta-se em uma teoria da abstração. Entretanto, enfrenta um problema sério. Não consegue explicar satisfatoriamente os universais não instanciados e o conhecimento que temos deles. Por exemplo, em teoria dos conjuntos, quando falamos de cardinais transfinitos. Ou ainda, números naturais extremamente grandes que não são instanciados. Como os conhecemos pela via abstrativa? Ou um Espaço de Hilbert de dimensão infinita?

A mente divina - conceptualismo divino

Uma das soluções para o problema dos universais não instanciados é a “platonização” de Aristóteles. Ou, como também é chamado, o realismo escolástico. Ou seja, os entes da matemática são alocados na mente divina.

Ao menos por enquanto, esse campo de pesquisa é, como Pierre Hoenen disse, “um campo de pesquisa para o escolasticismo”. Não há como escapar, nessa visão, de um tratamento sobre a natureza da abstração pelo intelecto humano, sobre o uso de signos (semiótica) e sobre alguma doutrina da analogia. Se os entes da matemática residem na mente de Deus, sendo alguns instanciados no nosso mundo e outros não, sustentando a doutrina da simplicidade divina (a idéia de que Deus é simples e, assim, n’Ele não há partes, fazendo com que Ele se identifique com cada um dos Seus atributos), comum ao Teísmo clássico, é necessário concluir que Deus é a matemática.

Mas se Deus é a matemática, então só podemos falar dela analogicamente. Em termos de teorias formais que expressam entes matemáticos, isso significa que as próprias teorias matemáticas devem ser interpretadas analogicamente. Os famosos teoremas da Incompletude de Kurt Gödel e, em menor escala, o teorema de Löwenheim-Skolem parecem dar suporte à tese do conceptualismo divino (tema para outro escrito).

O campo de pesquisa está aberto e é um convite às mentes curiosas. 

[1] James Franklin, An Aristotelian Realist Philosophy of Mathematics: Mathematics as the science of quantity and structure.

[2] E. Maziarz, The Philosophy of Mathematics.

[3] Armand Maurer, Thomists and Thomas Aquinas on the foundation of Mathematics, The review of Metaphysics (1993), 43–61.

Fonte: https://deividipansera.substack.com/p/aristotelismo-e-filosofia-da-matematica


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A Matemática de S. Isidoro de Sevilha e a Educação Medieval

por Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

Isidoro, o livro das Etimologias e a Matemática

Apresentamos ao leitor uma tradução do original latino [1] da Aritmética (capítulos 1 a 7 do Livro III) e da Geometria (capítulos 8 a 13 do Livro III) do Livro III: De Mathematica, do Etymologiarum libri XX de Isidoro de Sevilha. Santo Isidoro (c. 560-636), nascido em Sevilha na época visigoda, foi bispo nesta cidade de 600 a 636. Ele representa um dos grandes elos de transmissão da cultura clássica para a Idade Média. Sua obra Etimologias é uma espécie de enciclopédia, muitíssimo utilizada como tal ao longo de toda a Idade Média: mesmo em autores muito posteriores, como Tomás de Aquino, encontram-se inúmeras referências a esta obra. Ao examinar uma questão qualquer, o autor medieval costumava analisar a etimologia das palavras envolvidas na discussão. Não o fazia para ostentar erudição, mas por basear-se na convicção de que a origem da palavra podia conter em si informações sobre a própria realidade referida.

Etimologias é mais do que um livro sobre a linguagem: expressa todo um panorama da época e sua visão-de-mundo. Compõe-se de vinte livros, cada um elucidando palavras de um determinado campo do saber:

I. Gramática;

II. Retórica e Dialética;

III. Matemática (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia);

IV. Medicina;

V. As leis e os tempos;

VI. Os livros e os ofícios eclesiásticos;

VII. Deus, os anjos e os santos;

VIII. A Igreja e outras religiões;

IX. Línguas, povos, reinos, milícia, cidades e parentesco;

X. Etimologia de palavras diversas;

XI. O homem e os seres prodigiosos;

XII. Animais;

XIII. O mundo e suas partes (elementos, mares, ventos etc.);

XIV. A terra e suas partes (Geografia);

XV. Cidades, edifícios e o campo;

XVI. Pedras e metais;

XVII. Agricultura;

XVIII. Guerra, espetáculos e jogos;

XIX. Naves, edifícios e vestimentas;

XX. Comida, bebida e utensílios.

Nesses vinte livros (e internamente em cada livro) aparece uma original e surpreendente organização dos dados para consulta e esta é a razão pela qual Isidoro foi "candidato" a Padroeiro da Informática e da Internet.

O gosto que os autores medievais tinham pela etimologia [2] derivava de uma atitude com relação à linguagem bastante diferente da que, geralmente, temos nós hoje.

Na Idade Média, ansiava-se por saborear a transparência de cada palavra; para nós, pelo contrário, a linguagem é opaca e costuma ser considerada como mera convenção (e nem reparamos, por exemplo, em que: "coleira", "colar", "colarinho", "torcicolo" e "tiracolo" se relacionam com "colo", pescoço). Naturalmente, ao tratar da aritmética as análises etimológicas (sugestivas, embora tantas vezes falsas ou forçadas em Isidoro e nos autores medievais) não são tão importantes; mais decisivo é o conhecimento dessa disciplina, que terá na enciclopédia de Isidoro um dos principais referenciais de ensino para a Idade Média.

Referencial pobre (nem poderia ser diferente naqueles atribulados tempos), sobretudo no que se refere ao livro III, dedicado ao quadrivium, às quatro artes matemáticas: Aritmética, Geometria, Música e Astronomia. Em todo caso, mais do que aspectos "técnicos" da aritmética das Etimologias, interessa-nos aqui o uso pedagógico que o legado isidoriano propiciará à Idade Média. Isidoro não apresenta (nem pretende fazê-lo) inovações científicas; tudo o que quer é iluminar, na medida do possível, a época de trevas em que está instalado. Nessa "cultura de resumos" que é a transição do mundo antigo para o medieval, Isidoro apresenta os elementos que considera essenciais para sua "enciclopédia". Neste estudo introdutório, destacaremos alguns aspectos - sobretudo referentes à Aritmética - desse trabalho de ponte entre a cultura da Antigüidade e a da Idade Média, feita pela enciclopédia Etymologiarum.

Isidoro começa designando as matemáticas "doctrinalis scientia" ("Latine dicitur doctrinalis scientia"). Em II, 10 e ss., ele explica que há quem divida a Filosofia em duas partes: inspectiva e actualis. A inspectiva compreende três tipos: filosofia natural, filosofia doutrinal (é a Matemática, que considera abstratamente [3] a quantidade) e filosofia divina. A doutrinal por sua vez, se divide em quatro: Aritmética, Música, Geometria e Astronomia.

Aos fundadores da Matemática, está dedicado o capítulo 2 [4] .

No capítulo 3, apresenta a tradicional concepção de número como "multitude" (multitudo [5] ) e, assim, o um não é número, mas a origem do número, concepção euclidiana e aristotélica (p. ex. Metaph. 1088 a 6).

Nesta mesma linha, Tomás de Aquino, em seu tratado De Deo Uno, assim discute a unidade: "O um, que é princípio dos números, opõe-se à multitude, que é o número, como medida em relação ao medido. Pois o um tem o caráter de primeira medida, e o número é multitude medida pelo um, como fica claro pela Metafísica de Aristóteles". (Summa Theologica I, 11, 2).

Nos tópicos seguintes deste estudo destacaremos alguns aspectos pedagógicos (referentes ao cap. 4 de Isidoro) e aritméticos (dos cap. 4, 5 e 7) e comentários à Geometria em geral.

No capítulo 6, após estabelecer a divisão entre a consideração do número em si mesmo e em relação a outro, Isidoro - para tratar, de algum modo, de "frações" - define os números: superparticulares, superpartientes, múltiplos superparticulares, múltiplos superpartientes, subsuperparticulares, subsuperpartientes etc., que são muito utilizados no tratado de música de Boécio.

Ilustração da edição de Friedlein do De Musica de Boécio

Números superficiais

Diversos conceitos apresentados na Aritmética de Isidoro são recolhidos dos gregos (valendo-se de autores como Boécio [6] e Cassiodoro), como é o caso de:

Números triangulares (no arranjo tradicional pitagórico), como o 3, 6, 9 e 16:..




Números quadrados, como o 4, 9, 16, 25...



Números pentagonais, como o 5, 12, 22... 





Etc.

Menciona também os números piramidais.

O primeiro número piramidal (de tetrágono) é 1. O segundo número piramidal é 5, soma do vértice, 1, ao plano do número quadrado, 4. O terceiro é 14: 1 +5 +9. O quarto é 30. Etc.

o                 vértice

------

o o

o o              plano de 22





o o o

o o o           plano de 32     

o o o         

-----

o o o o

o o o o        plano de 42                     

o o o o

o o o o

Certamente, o uso desses conceitos na primeira Idade Média será muito restrito: faltam as articulações teórico-demonstrativas dos gregos: durante séculos os teoremas estarão praticamente ausentes. No caso dos números associados a figuras faltam em Isidoro até mesmo os resultados mais interessantes e fáceis, como o de que a soma dos n primeiros números ímpares é o número quadrado de lado n (a que é dedicado o capítulo II, 12 da Aritmética de Boécio):




1 + 3 + 5 + (2n-1) = n2

A aritmética como base da alegoria na pedagogia de Isidoro

A importância da aritmética para a educação é indicada pelo próprio Isidoro no capítulo 4: "A importância dos números" (III, 4). Como não podia deixar de ser, a aritmética serve também aos estudos de religião, o grande "tema transversal" na pedagogia medieval.

Na leitura profundamente alegórica que a Idade Média faz da Bíblia, a interpretação do "significado" dos números é de capital importância. O próprio Isidoro explicita: "Em muitas passagens da Sagrada Escritura se mostra quão profundo é o mistério que (os números) encerram. Não em vão, em louvor de Deus, diz a Escritura: 'Tudo fizeste com medida, número e peso' (Sab 11, 21)".

Esse princípio é - desde o fim da Antigüidade e ao longo da Idade Média - levado muito a sério. Se para um cristão de hoje os números na Bíblia têm, quando muito, uma importância genérica, a interpretação da Bíblia, na época, requer um conhecimento da Aritmética e do significado místico dos números.

Por exemplo, é necessário saber o que significa o número 153, quando o Evangelho diz que os apóstolos, na pesca milagrosa após a ressurreição de Cristo, apanharam 153 peixes. E vemos um S. Agostinho, repetidas vezes em seus sermões explicar esse 153, pois considera o simbolismo numérico um elemento importante para a compreensão da Revelação:

"Estes 153 são 17. 10 por quê? 7 por quê? 10 por causa da lei, 7 por causa do Espírito. A forma septenária é por causa da perfeição que se celebra nos dons do Espírito Santo. Descansará -diz o santo profeta Isaías- sobre ele, o Espírito Santo (Is 11,23) ... (com seus 7 dons) ...

Já a lei tem 10 mandamentos (...) Se ao 10 ajuntarmos o 7 temos 17. E este é o número em que está toda a multidão dos bem-aventurados. Como se chega, porém, aos 153? Como já vos expliquei outras vezes, já muitos me tomam a dianteira. Mas não posso deixar de vos expor cada ano este ponto. Muitos já o esqueceram, alguns nunca o ouviram. Os que já o ouviram e não o esqueceram tenham paciência para que os outros ou reavivem a memória ou recebam o ensino. Quando dois são companheiros no mesmo caminho, e um anda mais depressa e o outro mais devagar, está no poder do mais rápido não deixar o companheiro para trás. (...) Conta 17, começando por 1 até 17, de modo que faças a soma de todos os números, e chegarás ao 153. Por que estais à espera que o faça eu? Fazei vós a conta" [7]

Assim, não é de estranhar que num Rábano Mauro, discípulo de Alcuíno, encontremos todo um Tratado sobre o significado místico dos números [8] , discutindo, caso a caso, o significado dos números na Bíblia. O cristão de hoje sorri ao ler o autor medieval, munido de calçadeira, explicar que o número 120 é soma da progressão aritmética: 1+2+3...+14+15, e que isto representa misticamente aquelas passagens de Atos em que se descreve a vinda do Espírito Santo (At 2, 1) quando estava reunida a assembléia de 120 pessoas (At 1,15) "todos num mesmo lugar" (a soma simboliza essa reunião).

Precisamente nessas diferenças é que se capta a mentalidade da época. O homem medieval está seriamente convencido de que não há palavra ociosa na Sagrada Escritura e que tudo o que está revelado "é inspirado por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça" (II Tim 3, 16)."

Se a dimensão religiosa é essencial para a pedagogia de Isidoro, ele não descura os aspectos práticos (entre os quais se incluem a organização da vida pelas horas, introduzida por São Bento):

"Em alguma medida, nossa vida dá-se sob a ciência dos números: por ela sabemos as horas, acompanhamos o curso dos meses, sabemos quando retorna cada época do ano. Pelo número aprendemos a evitar enganos. Suprimido o número de todas as coisas, tudo perece. Se se tira o cômputo dos tempos, tudo ficará envolto na cega ignorância e o homem não se pode diferenciar dos animais, que ignoram os procedimentos de cálculo".

 

Um conceito: número perfeito

Na linha da aplicação dos estudos de aritmética à leitura da Bíblia, analisemos mais de perto um conceito: o de número perfeito. Isidoro exemplifica com o número 6, que evidencia a perfeição (dos seis dias) da criação do mundo. Recolhendo o critério antigo, Isidoro define como perfeito o número cuja soma de seus divisores o perfaz. Assim, um número perfeito - é um número n, tal que a soma de seus divisores (a menos do próprio n) dá n. Se essa soma for maior do que n, o número diz-se abundante; se menor, deficiente.

Isidoro sabe que 6, 28, 496 e 8128 são perfeitos. E conhece o critério para a geração de números perfeitos:

p = (2n - 1). 2n-1 será perfeito, se (2n - 1) for primo.

Assim,

6 = (22 - 1). 2(2-1) é perfeito, pois (22 - 1) = 3 é primo.

28 = (23 - 1). 2(3-1) é perfeito, pois (23 - 1) = 7 é primo.

496 = (25 - 1). 2(5-1) é perfeito, pois (25 - 1) = 31 é primo.

8128 = (27 - 1). 2(7-1) é perfeito, pois (27 - 1) = 127 é primo.

Essa equação recebe uma formulação equivalente em Boécio. Boécio começa o capítulo sobre a geração dos números perfeitos (Aritmética I, 20) da maneira mais medieval possível: observando a grande semelhança entre os números perfeitos (raros e bem ordenados) e as virtudes, e a dos números imperfeitos e os vícios, etc. A seguir, explica como se dá a "geração e procriação" dos números perfeitos: a partir da seqüência dos números parmente pares (isto é, as potências de 2):

1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128 ...

Somam-se os n primeiros. Se essa soma der um número primo, multiplica-se pelo maior somando, 2n-1, e obtém-se um número perfeito.

De fato, os 2 processos são equivalentes, pois:

1 + 2 + 4 + + 2n  = 2n - 1.

E, assim, a fórmula boeciana fica:  (2n - 1) . 2n-1, que é a fórmula que tínhamos enunciado originalmente.

Esses conceitos matemáticos, que Isidoro repassa - em formulação sumária - para a Idade Média, reaparecem, por exemplo, em torno do ano 1000, em outro importante momento pedagógico medieval: a peça Sabedoria, que marca a re-invenção - por Rosvita de Gandersheim [9] - da composição teatral no Ocidente.

Na peça, a autora, com claros propósitos didáticos, brinda-nos com uma aula de Matemática (em III, 31 e ss). Trata-se da cena em que Adriano, o imperador pagão, em meio ao interrogatório para demover de sua fé a nobre senhora cristã Sabedoria - e suas três filhinhas Fé, Esperança e Caridade (sempre, a alegoria) -, pergunta a idade das meninas. Sabedoria aproveita "a deixa" para desenvolver conceitos aritméticos expostos por Isidoro, como:

número parmente par - são as nossas potências de 2.

parmente ímpar - o dobro de um número ímpar.

imparmente par - produto de um ímpar por um parmente par.

número perfeito, número abundante, número deficiente. Etc.

SABEDORIA: Ó Imperador, se tu perguntas a idade das meninas: Caridade tem por idade um número deficiente que é parmente par; Esperança, também um número deficiente, mas parmente ímpar; e Fé, um número abundante mas imparmente par.

ADRIANO: Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números são!

SAB.: Não me admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos números e não há uma única resposta.

ADR.: Explica de modo mais claro, senão não entendo.

SAB.: Caridade já completou 2 olimpíadas; Esperança; 2 lustros; Fé, 3 olimpíadas.

ADR.: E por que o número 8, que é 2 olimpíadas, e o 10, que é 2 lustros, são números deficientes? E por que o 12, que perfaz 3 olimpíadas, se diz número abundante?

SAB.: Porque todo número, cuja soma de suas partes (isto é, seus divisores) dá menor do que esse número, chama-se deficiente, como é o caso de 8. Pois os divisores de 8 são: sua metade - 4, sua quarta parte - 2 e sua oitava parte - 1, que, somados, dão 7. Assim também o 10, cuja metade é 5, sua quinta parte é 2 e sua décima parte, 1. A soma das partes do 10 é portanto, 8, que é menor do que 10. Já, no caso contrário, o número diz-se abundante, como é o caso do 12. Pois sua metade é 6, sua terça parte, 4, sua quarta parte, 3, sua sexta parte, 2 e sua duodécima parte, 1. Somadas as partes, temos 16. Quando, porém, o número não é excedido nem inferado pela soma de suas diversas partes, então esse número é chamado número perfeito. É o caso do 6, cujas partes - 3, 2, e 1 - somadas, dão o próprio 6. Do mesmo modo, o 28, 496 e 8128 também são chamados números perfeitos.

ADR.: E quanto aos outros números?

SAB.: São todos abundantes ou deficientes.

ADR.: E o que é um número parmente par?

SAB.: É o que se pode dividir em duas partes iguais e essas partes em duas iguais, e assim por diante, até que não se possa mais dividir por 2, porque se atingiu o 1 indivisível. Por exemplo, 8 e 16 e todos que se obtenham a partir da multiplicação por 2, são parmente pares.

ADR.: E o que é parmente ímpar?

SAB.: É o que se pode dividir em partes iguais, mas essas partes já não admitem divisão (por 2). É o caso do 10 e de todos os que se obtêm, multiplicando um número ímpar por 2. Difere, pois, do tipo de número anterior, porque naquele caso, o termo menor da divisão é também divisível; neste, só o termo maior é apto para a divisão.

(...)

ADR.: E o que é imparmente par?

SAB.: É o que - tal como o parmente par - pode ser dividido não só uma vez, mas duas e, por vezes, até mais. No entanto, atinge a indivisibilidade (por 2) sem chegar ao 1.

ADR.: Oh! que minuciosa e complicada questão surgiu a partir da idade destas menininhas!

SAB.: Nisto deve-se louvar a supereminente sabedoria do Criador e a Ciência admirável do Artífice do mundo: pois, não só no princípio criou o mundo do nada, dispondo tudo com número, peso e medida, como também nos deu a capacidade de poder dispor de admirável conhecimento das artes liberais, até mesmo sobre o suceder do tempo e das idades dos homens.

Até um autor como Tomás de Aquino ainda discute "números perfeitos" e diversos critérios de perfeição numérica para a interpretação da Bíblia (pelos quais o 7, o 12 ou o 100 podem ser perfeitos). Note-se a elasticidade desses critérios em diversas passagens.

a) No Comentário às Sentenças, (d 15, q 3, a 1), Tomás lança a objeção de que Deus não pode ter consumado sua obra no sétimo dia, porque o número perfeito é 6. E responde considerando que o 6 é perfeito por causa de "suas partes", que somadas o perfazem. E trata-se de uma perfeição especial pois, no caso do 6, as partes - 1, 2 e 3 - sucedem-se de modo ordenado e contínuo (ordinatim et continue) e é essa perfeição que condiz com a dos 6 primeiros dias da criação.

b) Já em Comentário às Sentenças, (d 47, q 1, a 2), discutindo o número dos apóstolos, 12, diz: "o sete é o número da perfeição". Ora o 7 se compõe de 3 mais 4 e se multiplicarmos o 3 pelo 14, obteremos o 12, que é duas vezes o 6, que é número perfeito. Além do mais, na Catena Aurea in Matthaeum (cp 10 lc 1), a perfeição do 12 é atribuída à do 6 multiplicado por 2 (que representa os dois preceitos da caridade...).

c) Na Summa (II-II, 87, 1), o 10 aparece "de certo modo" (quodammodo) como número perfeito, pois é uma espécie de primeiro limite dos números, a partir do qual, ele retomam a ordem do um, dois etc.

d) Na Catena Aurea in Matthaeum (cp 8 lc 2), comentando a passagem do Evangelho do centurião, considera o 100 um número perfeito.

Como se vê, a importância de Isidoro projeta-se pelos séculos medievais e é abrangente e profunda.

A Geometria de Isidoro.

Particularmente a Geometria de Isidoro está recheada de passagens obscuras, de erros e imprecisões, que comentaremos em notas ao longo da tradução. O capítulo 8, apresenta as médias aritmética, geométrica e "musical" (harmônica). A partir do capítulo 10, começa propriamente a Geometria.


Sobre a Matemática - Aritmética e Geometria

Santo Isidoro de Sevilha

(trad. Jean Lauand)

Prefácio

Em latim, chama-se "ciência "doutrinal" à ciência que trata da quantidade abstrata. A quantidade é abstrata quando no intelecto a separamos da matéria ou de outros acidentes, como é o caso de "par" e "ímpar", que só são considerados pelo raciocínio.

Há quatro dessas disciplinas: aritmética, música, geometria e astronomia.

A aritmética é a disciplina da quantidade numerável em si mesma considerada.

A música é a disciplina que trata dos números que se encontram nos sons.

A geometria é a disciplina que trata da magnitude [10] e das formas.

A astronomia é a disciplina que trata do movimento [11] dos astros do céu e contempla as características das estrelas.

A seguir, exporemos um pouco mais amplamente essas disciplinas para que possamos adequadamente mostrar seus princípios.

1. Sobre a denominação da disciplina aritmética [12]

1. A aritmética é a disciplina dos números e os gregos chamam o número arithmós. Alguns autores profanos pretendem que ela seja a primeira entre as disciplinas matemáticas, pois não depende de nenhuma outra.

2. Já a música, a geometria e a astronomia seguem-se à aritmética: só com seu auxílio podem surgir e subsistir [13] .

2. Sobre seus autores

Afirma-se que, entre os gregos, Pitágoras foi o primeiro a escrever [14] sobre a disciplina do número e que, depois, Nicômaco ampliou esse trabalho, que, entre os latinos, foi traduzido primeiro por Apuleio [15] e depois por Boécio.

3. O que é o número

1. Número é uma multitude [16] constituída a partir de unidades, pois o um não é número, mas a origem do número. A palavra "número" procede de nummus (dinheiro), por seu uso freqüente. Um derivou seu nome do grego, pois o grego chama o um héna, tal como o dois e o três que eles chamam duo e tría.

2. O quatro tomou esse nome da figura quadrada. Já o cinco recebeu seu nome não segundo a natureza, mas pelo arbítrio da vontade de quem impôs nome aos números. O seis e o sete também procedem do grego.

3. Em muitas palavras que em grego começam por aspiração, nós a substituímos por um S. Assim, em vez de hex dizemos sex (seis) e septem (sete) em lugar de hepta, do mesmo modo que chamamos serpillum (serpilho) à erva herpillus. O oito foi trazido sem modificações; e o que é para eles ennéa, para nós é nove; e déka, dez.

4. Na etimologia grega, o dez é assim chamado porque ajunta e reúne os números que o antecedem: desmós significa em grego ajuntar ou reunir. Já viginti (vinte) é um dez duas vezes gerado (bis geniti), se trocarmos o B pelo V. Trinta (triginta) é um dez três vezes gerado e assim por diante, até o noventa.

5. O cem procede de cantho, círculo. Duzentos de dois centos e assim até mil. Mil deriva de multitude e daí também milícia, que é como "multitia"; e milhar, que os gregos, mudando uma letra, chamam de myriada.

4. A importância dos números

1. Não se deve desprezar a razão [17] que se encontra nos números. Em muitas passagens da Sagrada Escritura se mostra quão profundo é o mistério que encerram. Não em vão, em louvor de Deus, diz a Escritura: "Tudo fizeste com medida, número e peso" (Sab 11, 21).

2. Assim, o seis, que é um número perfeito - a soma de suas partes [18] o perfaz - evidencia a perfeição (dos seis dias) da criação do mundo. Assim também, sem o conhecimento dos números não se entende porque foram quarenta os dias em que Moisés, Elias e o próprio Senhor jejuaram.

3. E assim outros números aparecem também nas santas Escrituras cujo sentido figurado não se pode entender a não ser pelos que conhecem esta matéria. Em alguma medida, nossa vida dá-se sob a ciência dos números: por ela sabemos as horas, acompanhamos o curso dos meses, sabemos quando retorna cada época do ano.

4. Pelo número aprendemos a evitar enganos. Suprimido o número de todas as coisas, tudo perece. Se se tira o cômputo dos tempos, tudo ficará envolto na cega ignorância e o homem não se pode diferenciar dos animais, que ignoram os procedimentos de cálculo (rationem calculi).

5. Uma primeira divisão: números pares e ímpares

1. Os números se dividem em pares e ímpares. Os pares, por sua vez, se dividem em parmente pares, parmente impares e imparmente pares. Os números ímpares se dividem em: primos ou simples, segundos ou compostos e terceiros ou intermédios, que, de certo modo, são primos e não compostos e, de certo modo, são segundos e compostos.

2. Número par é o que se pode dividir em duas partes iguais, como o 2, o 4 e o 8. Já o ímpar não se deixa dividir em duas partes iguais, faltando ou sobrando 1 em uma delas. É o caso do 3, 5, 7, 9 etc.

3. Número parmente par é aquele que se pode dividir em partes iguais pares, sucessivamente, até atingir a indivisível unidade. Por exemplo, o 64, cuja metade é 32; a deste é 16; a deste é 8; a deste é 4; a deste é 2; a deste é 1, que é singular indivisível.

4. Número parmente ímpar é o que se deixa dividir em suas partes iguais, mas estas já não são divisíveis. É o caso do 6, do 10, do 38 e do 50. Assim que divides um desses números, obténs um número que não podes dividir.

5. Imparmente par é o número cujas partes podem ainda sofrer divisão, mas não a ponto de atingir a unidade. É o caso do 24, cuja metade é 12, que, por sua vez, tem por metade 6, cuja metade é 3, que não admite mais divisões e, assim, antes de atingir a unidade, chegamos a um termo que não se pode dividir.

6. Imparmente ímpar é um número que pode ser medido imparmente por número ímpar, como o 25 e o 49, ímpares que se dividem em partes ímpares: 49 é sete vezes sete e 25 é cinco vezes cinco.

Dos números ímpares, alguns são simples, outros compostos e outros médios.

7. São simples [19] os que não têm partes [20] exceto a unidade. Como o 3, o 5 e o 7. Estes só admitem uma parte [21] .

Os números compostos são os que não são medidos [22] só pela unidade, mas são obtidos também por outros números. É o caso do 9, do 15 e do 21, que são três vezes três, cinco vezes três e sete vezes três.

8. Números intermédios são os que, de certo modo, parecem primos e não compostos e, de outro modo, compostos. Como por exemplo o 9 em relação ao 25, é primo e não composto, pois não têm número [23] em comum, mas só a unidade (monadicum). Se comparamos, porém o 9 ao 15, ele é segundo e composto, porque têm número em comum além da unidade, o número 3 que mede o 9 em três vezes três e mede o 15 em três vezes cinco.

9. Dentre os números pares, por sua vez, há os que são abundantes, há os deficientes e há os perfeitos.

Os abundantes são os que, somando suas partes, excedem a sua própria plenitude. É o caso do 12, que tem cinco partes: a duodécima, que é 1; a sexta, 2; a quarta, 3; a terça, que é 4; e a metade, 6. Somando 1, 2 , 3, 4 e 6 obtém-se 16, que excede, em muito, o 12. E assim também muitos outros números como o 18 etc.

10. Números deficientes são aqueles que a soma de suas partes resulta menor do que esse número. Por exemplo, o dez, que tem três partes: a décima, 1; a quinta, 2; e a metade, 5. A soma de 1, 2 e 5 é 8 que, de longe, e menor do que 10. E o mesmo se dá com o 8 e com diversos outros números, cuja soma das partes é inferior ao próprio número.  

11. Número perfeito é o que se perfaz com suas partes, como o 6. O 6 tem três partes: a sexta, 1; a terça, 2; e a metade, 3. Essas partes - 1, 2 e 3 - somadas consumam e perfazem o 6. São números perfeitos: na primeira dezena, o 6; na primeira centena, o 28; no primeiro milhar, o 496.

6. Sobre a segunda divisão dos números em geral

1. Todo número pode ser considerado em si mesmo ou em relação a outro. No primeiro caso, eles podem ser: iguais ou desiguais; no segundo, maiores ou menores. Os maiores se classificam em: múltiplos, superparticulares, superpartientes, múltiplos superparticulares, múltiplos superpartientes. Os menores se classificam em: submúlti-plos, subsuperparticulares, subsuperpartientes, submúltiplos subsuperparticulares, submúltiplos subsuperpartientes.

2. O número considerado em si mesmo é considerado independentemente de relações com outro, como o 3, ou o 4, 5, 6 etc. O número considerado em relação a outro é examinado em comparação com outro. Como o 4 comparado ao 2 é dobro e múltiplo; e o mesmo se dá com o 6 em relação ao 3, o 8 em relação ao 4, o 10 em relação ao 5. Assim também o 3 é o triplo do 1; o 9 é triplo do 3 etc.

3. Dizem-se iguais os números que segundo a quantidade são iguais, como o 2 e o 2, o 3 e o 3, o 10 e o 10 e o 100 e o 100. São desiguais os números que, comparados, apontam para quantidades desiguais, como o 3 e o 2, o 5 e o 4, o 10 e o 6 e sempre um maior comparado a um menor ou um menor comparado a um maior dizem-se desiguais.

4. O número maior contém em si o menor ao qual é confrontado e algo mais; como por exemplo o 5 é mais que o 3, porque contém o três e outras duas partes mais. E assim também nos casos semelhantes.

5. O número menor está contido no maior ao qual é comparado, como o 3 em relação ao 5; que o contém e a duas partes. Múltiplo é um número que contém em si um menor duas, três, quatro ou mais vezes, como o 2 que é o dobro do 1, o três que é seu triplo, 4 seu quádruplo etc. 

6. Já o contrário é o numero submúltiplo, que está contido duas, três, quatro ou mais vezes no múltiplo como, por exemplo, o 1 no 2 duas vezes; no 3, três; no 4, quatro; no 5, cinco; etc.

7. Superparticular é o número que contém em si o número inferior ao qual é comparado e além disso uma parte mais, como o 3 e o 2, que, quando comparados, o 3 contém o 2 e também o 1, que é meia parte do 2; o 4 e o 3, o 4 contém o 3 e o 1, que é a terça parte do 3; o 5 e o 4, o 5 contém o 4 e o 1 sua quarta parte; etc.

8. Número superpartiente é o que contém em si a todo número inferior e, além disso, duas, três, quatro, cinco ou mais partes dele, como, por exemplo, o 5 comparado ao 3, contém o 3 e duas partes dele; o 9 comparado ao 5 contém o 5 e quatro partes dele.

9. O número subsuperpartiente é o que se contém no superpartiente com algumas - duas, três ou mais -  de suas partes, como, por exemplo, o 3 -com duas de suas partes- se contém no 5; e o 5 - com quatro de suas partes - se contem no 9. 

10. O número subsuperparticular é o número menor que, junto com alguma de suas partes - meia, terça, quarta, quinta... - se contém no maior. Por exemplo, o 2 em relação ao 3; o 3 em relação ao 4; o 4 em relação ao 5; etc.

11. Múltiplo superparticular é o número que comparado com outro menor, contém em si múltiplas vezes esse número inferior e mais alguma parte dele, como por exemplo, o 5 em relação ao 2, contém o 2 duas vezes - isto é, 4 - e mais uma parte; o 9 comparado ao 4, contém duas vezes o 4 - isto é, 8 - e mais uma parte dele. 

12. [Número submúltiplo [sub] subparticular é aquele que comparado a um maior, está contido nele múltiplas vezes e com uma parte sua. É o caso do 2 em relação ao 5: está duas vezes contido nele e mais uma parte sua]. O múltiplo superpartional é o número que, comparado com outro menor o contém múltiplas vezes e com outras partes dele. Por exemplo, o 8 em relação ao 3: o 8 contém o 3 duas vezes e mais duas partes dele. Eo 14 contém o 6 duas vezes e mais duas partes dele [ou o 16 contém o 7 duas vezes e mais duas partes dele e o 21 contém o 6 três vezes e mais três partes dele].

13. O número submúltiplo superpartional é aquele que comparado a um maior, está contido nele múltiplas vezes e com algumas partes suas. É o caso do 3 em relação ao 8: está duas vezes contido nele junto com duas parte suas. E o 4 está contido no 11 duas vezes junto com três partes suas.

7. Sobre a terceira divisão dos números em geral

1. Os números são discretos ou continentes. Neste caso, temos números lineares, superficiais e sólidos. Número discreto é o que está constituído por unidades discretas, como o 3, 4, 5, 6 etc.

2. Número continente é aquele que é constituído por unidades conexas, como por exemplo o 3 quando considerado em extensão, isto é, em linha, superfície ou corpo sólido. E o mesmo vale para o 4 ou o 5.

3. Número linear é aquele que começando com a unidade e seguindo uma linha vai até o infinito. Daí que seja designado por alfa, porque esta letra designa o 1 entre os gregos.

1--- 2 --- 3 --- 4 --- ...

4. O número superficial está contido não só por longitude mas também por latitude, como os números triangulares, quadrados, pentagonais ou circulares, assim como os que estão contidos no plano, isto é na superfície. E assim há números triangulares, quadrados e pentagonais (figuras abaixo).











5. É circular [24] o número que multiplicado por si mesmo começa em si e volta a si, como 5 vezes 5, que é 25. Número sólido é o que está contido por longitude, latitude e altura, como ocorre com as pirâmides que se elevam a modo de chama.





6. O cubo é como os dados.






A esfera possui uma redondez uniforme.






Número esférico é aquele que, multiplicado pelo circular, começa em si e volta a si. 5 vezes 5 é 25. Este círculo multiplicado por 5 de novo dá uma esfera, isto é 5 vezes 25 é 125.

8. Sobre a diferença entre aritmética, geometria e música

1. Entre aritmética, geometria e música há esta diferença: a determinação da média. Para obteres a média aritmética, soma os extremos, divida [por 2] e obterás o termo médio. Como, por exemplo, se os extremos são 6 e 12, a soma dá 18. Partindo-se ao meio o 18 dá 9, que é a proporção aritmética [25] , pois a média supera o primeiro termo nas mesmas unidades em que é superada pelo outro termo: 9 supera 6 em 3 unidades, tal como é superada por 12.

2. Para obter a média geométrica. A multiplicação dos extremos dá o mesmo que a dos termos médios; por exemplo: o produto de 6 por 12 é o mesmo que o de 8 por 9 [26] . Já a média musical supera o termo menor na mesma parte ["fração" deste] em que é superada pelo termo maior ["fração" deste] [27] . Por exemplo 6 e 8: o 8 supera o 6 em 2, que é um terço de 6 [ao mesmo tempo 8 é superado por 12 em 4, que é também um terço de 12] [28] .

9. São infinitos os números

1. É certíssimo que há infinitos números, pois a própria razão e a ciência dos números atestam que para qualquer número que considerasses ser o último, é possível, por grande, por avultado que seja - nem vou falar de somar-lhe uma unidade - pode não só ser duplicado, mas multiplicado.

2. Cada número está tão determinado por suas propriedades que nenhum deles pode ser identificado a outro. São, portanto, distintos e diferentes entre si; e sendo cada um deles finito, considerados em conjunto são infinitos.

10. Sobre os inventores da Geometria e do nome Geometria

1. Diz-se que a disciplina da Geometria começou com os egípcios, pois com as inundações do Nilo, apagavam-se com o lodo as demarcações das propriedades e deu-se início a esta arte - e daí o nome Geometria [29] - de delimitar as terras que deviam ser divididas, por linhas e medidas. Mais tarde, foi levada pelos sábios a uma altura tal que se mediam os espaços do mar, do céu e do ar.

2. Pois, atraídos pelo estudo, depois das dimensões da terra começaram a pesquisar os espaços do céu: quanto dista da terra a lua; quanto a lua do sol; e a medida da distância até o vértice do céu. E também calcularam, de modo provável, o número de estádios das distâncias do céu e o contorno do orbe.

3. Mas como essa disciplina surgiu com medição de terras, conservou o nome que teve em sua origem. Pois "Geometria" procede de "terra" e "medida", já que "terra", em grego, é ge e medida é metra. E a arte desta disciplina compreende linhas, distâncias, medidas e figuras; e nas figuras considera as dimensões e os números.  

11. Sobre a divisão da Geometria em quatro partes

1. A Geometria se divide em quatro partes: o plano, a magnitude numerável, a magnitude racional e as figuras sólidas.

2. As figuras planas são as que se configuram por longitude e latitude; segundo Platão são cinco. A magnitude numerável é a que pode ser dividida em números da Aritmética.

3. As magnitudes racionais são aquelas cujas medidas podemos conhecer; já das irracionais, não se dá medida conhecida.

12. Sobre as figuras da Geometria

1. As figuras sólidas são as que se configuram por comprimento, largura e altura, como é o caso do cubo. As figuras planas são de cinco tipos: a primeira é o círculo, que se chama circunduta [30] , no meio da qual está um ponto para o qual tudo converge, e em Geometria se chama centro; já os latinos o denominam "ponto do círculo" (ver figura).

2. O quadrilátero é uma figura quadrada no plano e é compreendida sob quatro linhas retas (ver figura). O dianatheton grammon é uma figura plana (ver figura). O orthogonium, que significa ângulo reto, é uma figura plana: é o triângulo que tem um ângulo reto (ver figura). O isopleuros é uma figura plana e reta (ver figura).

3. A esfera é uma figura de forma redonda, igual em todas suas partes (ver figura). O cubo é figura própria sólida que tem comprimento, largura e altura (ver figura).

4. O cilindro é uma figura quadrada, com um semicírculo acima (ver figura) [31] .

5. O cone é uma figura que vai do largo até terminar em estreito, tal como o triângulo retângulo (ver figura).

6. A pirâmide é figura, que tal como o fogo, vai do largo até um vértice. Fogo em grego é pyr (ver figura). 

7. Assim como todos os números estão abaixo do 10, assim também o círculo pode encerrar cada figura [32] (ver figura). A primeira figura da arte geométrica é o ponto, que não tem partes. A segunda é a linha, que tem comprimento além de largura. A linha reta jaz igualmente em seus pontos. Já a superfície, tem só comprimento e largura. As linhas são os limites das superfícies; não foram postas suas formas nas dez figuras anteriores, porque se encontram entre elas. 














13. Sobre os números da Geometria

Se queres os números de acordo com a Geometria, faze assim: a multiplicação dos extremos dá o mesmo que a dos meios; como por exemplo 6 multiplicado por 12 dá 72, que é o mesmo que 8 multiplicado por 9.


















[1] Seguimos o texto apresentado na edição de José OROZ RETA  San Isidoro de Sevilla - Etimologías, Madrid, BAC, 1982.

[2] Examino com mais detalhe a importância da etimologia para Isidoro e para os autores medievais em J. LAUAND (org.) Cultura e Educação Medievais, São Paulo, Martins Fontes, 1999.

[3]   Abstrato, para Isidoro, é o que foi separado, saído. Assim, por exemplo, falando dos dragões, Isidoro diz que eles freqüentemente provocam ciclones quando saem (abstractus) de suas cavernas: "Qui saepe ab speluncis abstractus fertur in aerem, concitaturque propter eum aer"(12, 4, 4).

[4] . Sobre o cap. 2, recolho a seguinte nota do Dr. Sérgio Nobre "Isidoro escreve que Pitágoras foi o primeiro grego a escrever sobre a ciência dos números e que posteriormente fora completado por Nicomachus, cuja obra foi traduzida para o latim primeiramente por Apuleio e em seguida por Boécio. As informações históricas contidas neste verbete são importantes contribuições para aqueles que posteriormente viriam a escrever sobre a história das origens das teorias numéricas. Isidoro ressalta a figura do personagem de nome Pitágoras (c.580-500) ligado à Ciência dos Números. Embora Isidoro não mencione a existência de documentos que comprovam a existência de Pitágoras, pois certamente ele também se apóia em outros autores que o citam, este é mais um documento histórico que confirma a ligação deste com a matemática e especificamente com temas ligados a teoria de números. Outra informação histórica importante que aparece neste pequeno verbete é a existência de um outro grego que continuou os estudos iniciados por Pitágoras, ou por membros da Escola Pitagórica. Isidoro cita Nicômaco de Gerasa (~100 A.D.), pitagórico que, além de escritos matemáticos, também teve uma grande produção em textos sobre teoria musical. Sobre a obra matemática de Nicômaco, Isidoro não menciona o título, certamente deve ser o seu texto mais conhecido Introdução à aritmética, mas explicita que esta obteve duas traduções para o latim. Com relação às traduções para o latim, Isidoro menciona que a obra de Nicômaco foi primeiramente traduzida por Apuleio e em seguida por Boécio. São duas informações importantes para a compreensão do desenvolvimento histórico relativo às traduções de textos gregos para o latim. Primeiramente é citado Apuleio de Madaura (c.125-171), um sofista e platônico provavelmente do século II da Era Cristã, do qual muito pouco se sabe, e muito menos sobre suas atividades relacionadas à matemática. Cabe ressaltar que dentre as poucas informações que se tem atualmente sobre Apuleio, algumas são originárias das menções feitas a ele por Cassiodoro e Isidoro. Caso fosse encontrada, certamente esta tradução da obra de Nicômaco feita por Apuleio teria sua dose de contribuição para a compreensão do pensamento romano-europeu no início da era Cristã. Um segundo autor citado por Isidoro como tradutor da obra de Nicômaco foi o erudito Anicius Boethius". S. NOBRE, "Isidoro de Sevilha", in Elementos historiográficos da Matemática presentes em enciclopédias universais. Dissertação de Livre-Docência em História da Matemática. Unesp - campus de Rio Claro, 2001.

[5] Numerus autem est multitudo. Preferimos a forma nova  multitude, pois multidão está demasiadamente associado a pessoas.

[6] Anicii Manlii Torquati Severini BOETII De Institutione Arithmetica libri duo. De Institutione Musica libri quinque. Edidit Godofredus Friedlein, Lipsiae, Teubner, 1867. Há ed. eletrônica em: http://cdl.library.cornell.edu/Hunter/hunter.pl?handle=cornell.library.math/cdl274&id=1

[7] . Sermão 250 in AGOSTINHO Sermões para a Páscoa, trad. de António Fazenda, Lisboa, Verbo, 1974.

[8] PL CXI, livro XVIII, cap. III do De Universo. Há tradução brasileira em J. LAUAND  O significado místico dos números, Curitiba-S. Paulo, PUC-PR - GRD, 1992.

[9] . PL 137, 1035 - 1042. Há tradução brasileira em J. LAUAND  Educação, Teatro e Matemática Medievais, São Paulo, Perspectiva, 2a. ed., 1990.

[10]   Em 3, 10, Isidoro lembrará que geo-metria tem que ver com medida.

[11] Se a Astronomia trata do movimento, a Geometria é "disciplina magnitudinis inmobilis" (II, 24, 15).

[12] Este parágrafo, como boa parte do que Isidoro diz sobre Aritmética, foi tomado (por vezes, literalmente de Cassiodoro "Sobre a Matemática" em Institutiones, que, por sua vez, apóia-se em Boécio.

mesmo modo, comenta Boécio, que só se pode falar em homem se antes se dispõe do conceito de animal, assim também a Geometria só pode falar em triângulo ou quadrado, pressupondo a Aritmética (op. cit. I, 1, 20 e ss.).

[13] Do mesmo modo, comenta Boécio, que só se pode falar em homem se antes se dispõe do conceito de animal, assim também a Geometria só pode falar em triângulo ou quadrado, pressupondo a Aritmética (op. cit. I, 1, 20 e ss.).

[14] Já Agostinho lembra que Pitágoras nunca escreveu nada: "Nam Pythagoras(...) non tantum de se, sed nec de ulla re aliquid scripsisse perhibetur". De consensu euangelistarum,1,7,12.

[15] Sabemos muito pouco sobre Nicômaco de Gerasa (entre 55 e 166 D.C.). Autor de várias obras que se perderam. A Introdução à Aritmética foi traduzida ao latim por Apuleio, segundo Cassiodoro (PL 70, 1208 B). Também essa tradução não chegou até nós, mas somente o De institutione arithmetica de Boécio, que é uma adaptação dessa obra (Nota da ed. de José Oroz).

[16] Numerus autem est multitudo. Preferimos a forma nova  multitude, pois multidão está demasiadamente associado a pessoas.

[17] ratio, isto é, as leis e princípios racionais que neles se encerram.

[18] As partes, isto é, os divisores distintos do proprio número.

[19] Primos.

[20] Divisores.

[21] Um divisor: o um. Por vezes, quando Isidoro fala de "parte" sem mais, refere-se ao um.

[22] Não são divisíveis.

[23] Divisor.

[24] Números circulares e esféricos coincidem, respectivamente, com os números quadrados e cúbicos.

[25] No orig.: quod est analogicum arithmeticae. Isidoro chama a média de analógico, pois como ele mesmo diz no livro I, 28, 1 "analogia" é a palavra grega que tem em latim correspondentes "conparatio" ou "proportio".

[26] Na verdade, Isidoro lida num sentido muito amplo com o conceito de média geométrica, que, a rigor, se aplicaria no exemplo: 4 é a média geométrica de 2 e 8, pois 2 x 8 = 4 x 4.

[27] Isidoro retoma obscuramente o conceito clássico de média harmônica: 8 é a média harmônica entre 6 e 12, porque supera 6 em 2 (que é 1/3 de 6) e é superado por 12 em 4 (que é 1/3 de 12). Em notação moderna, b é a média harmônica entre a e c, se (a-b) / (b-c) = a/c; ou o que é o mesmo: b = 2ac / (a +c).

[28] O original confusamente fala aqui em superatur ab ultima nona. Em III, 23, com mais propriedade, Isidoro retomará o tema.

[29] Geo-metria, significa, medição de terras.

[30] Sempre a preocupação etimológica de Isidoro: circumducta, conduzida circularmente.

[31] Entre tantas passagens obscuras, tantos erros e imprecisões, este chama a atenção especialmente. Talvez Isidoro tenha confundido a figura com sua representação plana.

[32] Talvez Isidoro queira dizer que toda figura pode ser inscrita num círculo...

Fonte: http://www.hottopos.com/videtur30/jean-isid.htm


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