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A Educação em Ilíada e Odisseia

A EDUCAÇÃO HOMÉRICA

É realmente de Homero que nossa história deve partir: é em Homero que começa, para não mais interromper-se, a tradição da cultura grega: seu testemunho é o mais antigo documento que podemos, proveitosamente, compulsar acerca da educação arcaica. O papel de primeiro plano, desempenhado por Homero na educação clássica, convida-nos, por outro lado, a determinar com precisão aquilo que podia já representar, para ele, a educação (1).

INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA DE HOMERO

Não é certamente sem precaução que o historiador pronunciará o nome Homero (2): ele não pode falar simplesmente da "época homérica": a Ilíada e a Odisséia apresentam-se-lhe como dois documentos de caráter complexo, e sua análise deve procurar discernir a herança de uma velha tradição legendária e poética, de um lado, e a contribuição própria do poeta, de outro; deve ela distinguir entre a composição de conjunto da obra e as modificações, inserções e conexões que o filólogo crê descobrir.

Na medida em que parece estabelecer-se um acordo sobre uma questão disputada exaustivamente (3), tende-se a admitir que nosso texto — aquele que, segundo se pensa, Hiparco teria levado, no fim do reinado de seu pai Pisístrato (528/7), da Jônia para Atenas, onde foi adotado oficialmente para o concurso de rapsodos das Panatenéias [1] — existia, substancialmente, desde o século VII. Partindo dessa data, fomos levados, aos poucos, a fixar a composição dos cantos essenciais da Ilíada (a Odisséia parece mais tardia) numa data “que não pode ser muito posterior aos meados do século VIII” (4). Supondo-se que essa redação deva ser considerada como obra de um só poeta — de um Homero real, antes que o resultado do esforço coletivo de várias gerações de aedos — ela exige a elaboração prévia de toda a tradição, bastante evoluída, suposta pela língua, o estilo, as lendas homéricas, à qual se deve conceder ao menos um século inteiro a título de margem, o que, entre tantas datas propostas pelos antigos (5) e pelos modernos, nos reconduz àquela em favor da qual se havia manifestado Heródoto que faz Homero (e Hesíodo) viver “quatro centenas de anos de mim, não mais [2]”, ou seja, por volta de 850.

Mas não basta ter feito remontar a epopéia inteira aos anos que medeiam entre 850 e 750: é necessário, ainda, determinar seu valor documental (6). Será útil não o esquecer, Homero é um poeta, não um historiador; e, ademais, dá livre vôo à sua imaginação criadora, uma vez que se propõe não a descrever cenas de costumes realistas, mas a evocar uma gesta heróica, projetada num passado prestigioso e longinquo, em que não somente os deuses mas também os animais falavam: recorde-se Xanto, um dos cavalos de Aquiles, dirigindo a seu dono palavras proféticas [3], à semelhança do cavalo de Roland, no Petit Roi de Galice: pois não se deve exagerar o caráter singelo e primitivo desta obra, herdeira de uma experiência já tão amadurecida. Mas não se pode, tampouco, fazer de Homero um Flaubert ou um Leconte de Lisle, refertos de escrúpulos arqueológicos: a sua imagem de uma idade heróica é uma imagem compósita, em que se superpõem reminiscências esfiadas durante quase um milênio de história (certos elementos remontam para além das sobrevivências micênicas, aos belos dias da grandeza minoana: assim, por exemplo, quando a Ilíada [4] evoca as danças da juventude de Cnossos e as acrobacias no “teatro” (χόρος) de Dédalo, destruído já por ocasião da catástrofe de 1400).

Entretanto, se essa imagem não contém muitos anacronismos, no conjunto deve tirar a maioria de seus elementos não precisamente talvez do período contemporâneo de “Homero” (a idade aristocrática das cidades da Jônia), mas daquele que o precedeu imediatamente, a idade medieva que sucede às invasões dóricas (1180-1000). Com a condição de proceder-se com prudência, eliminando tudo o que nele se possa mesclar de mais antigo ou se tenha introduzido de mais recente, é possível servir-se de Homero como uma fonte válida para estas idades obscuras.

CAVALHEIRISMO HOMÉRICO

Falaremos de uma “idade média homérica” não por tratar-se de um período pouco conhecido, inserto entre dois outros mais conhecidos, mas porque a estrutura política e social dessa sociedade arcaica apresenta analogias formais com a da nossa Idade Média ocidental (analogias que, obviamente, não cabe levar até um paralelismo paradoxal: na História não há retorno idêntico e omne simile claudicat: falo de um cavalheirismo homérico no sentido em que se diz “o feudalismo japonês”) (7). A comparação parece impor-se principalmente em relação à Idade Média primeva, aquela que vai da época merovíngia ao ano 1000: a sociedade homérica mostra-se bastante análoga ao pré-feudalismo carolíngio.

No vértice, o rei, cercado de uma aristocracia de guerreiros, de uma verdadeira corte que compreende, de uma parte, o conselho dos grandes vassalos, homens idosos (λέροντες), honrados como tais, e cuja experiência os torna. valiosos nos conselhos, a assessoria judiciária, e, de outra parte, o circulo dos fiéis, jovens guerreiros (κοῦροι) que formam a classe nobre, o λαός oposto à massa do δῆμος, dos plebeus, os θῆτες. Estes κοῦροι (que equivalem aos pueri vel vassalli de Hincmar) podem ser filhos de príncipes ou de chefes, que sirvam ao rei de sua pátria, como podem ser recrutados entre os peões e os aventureiros alienígenas perseguidos: essa sociedade da idade média helênica é ainda bastante instável e bem próxima do tempo das invasões. Vivem eles na corte (acaso não são companheiros do rei, ἔταἶροι?), alimentados à sua mesa com as contribuições ou tributos recebidos pelo soberano.

Essa vida de comunidade, essa confraria de guerreiros (cujas conseqüências para a história da educação e da moral logo veremos) dura até o dia em que, em recompensa por seus leais serviços, o súdito fiel é enfeudado, mediante a outorga de um domínio (τέμενος) provido dos rendeiros necessários ao seu usufruto e subtraído ao domínio público. Concessão a princípio precária, ou pelo menos transitória, antes de estabilizar-se e tornar-se hereditária. Parece que da Ilíada à Odisséia se processa uma evolução análoga aquela por que passou a sociedade carolíngia: a nobreza torna-se cada vez mais senhora de seus feudos, ao passo que o poder real se desintegra pouco a pouco ante a elevação desses domínios senhoriais à escala de pequenos burgos, os quais serão mais tarde aproximados e unidos para constituir a cidade clássica (os Côdridas aparecem-nos um pouco assim  como os Capetos da Ática).

A CULTURA CAVALHEIRESCA

Eis o fato fundamental que explicará as características originais da tradição educativa da Grécia clássica: a cultura grega foi, originariamente, privilégio de uma  aristocracia de guerreiros. Vemo-la aqui, essa cultura, em seu estado nascente. Pois estes heróis homéricos não são combatentes selvagens, guerreiros pré-históricos, como se compraziam em imaginá-los nossos predecessores românticos: em certo sentido, são já cavalheiros.

A sociedade homérica sucedera a uma velha civilização, da qual nem todos os refinamentos haviam desaparecido. Os jovens κοῦροι dispensam a seu suzerano o que se pode chamar propriamente um serviço de corte: como os donzéis da Idade Média, eles servem à mesa por ocasião dos festins reais: “os κοῦροι enchem as crateras até às bordas [5]”: verso tão característico de seu papel de copeiros que voltamos a encontrá-lo, repetido ou interpolado, em quatro outros episódios [6]; serviço nobre, bem diverso do dos simples domésticos (κήρυκες).

Participam também dos cortejos: sete jovens acompanharão Ulisses trazendo Briseida a Aquiles [7]; desempenham um papel nos sacrifícios, ao lado do sacerdote [8], não somente como trinchantes, mas porque “cantam o belo peã e com sua dança celebram o Preservador”,

καλὸν ἀείδοντες παιήονα κοῦροι  Ἀχαιῶν
μέλποντες Ἐκἀεργον [9].

Pátroclo veio refugiar-se na corte de Ftia, procedente de Opunte, sua pátria, depois de um assassínio involuntário. Seu próprio pai, Menécio, ali o apresenta ao rei Peleu; este o acolhe com afabilidade e o põe ao lado de seu filho Aquiles, ao qual prestará o serviço nobre de “escudeiro” (termo com que A. Mazon traduz, elegantemente, o θεἀπων de Homero [10]).

Juntamente com as cerimônias, os jogos constituíam o aspecto dominante da vida destes cavaleiros homéricos. Jogos ora livres e espontâneos, meros episódios da vida cotidiana (esta vida nobre é já uma vida de lazeres de bom gosto): como na festa promovida por Alcino [11]; jogos esportivos (8), divertimentos “musicais”: dança dos jovens feácios, dança da bola pelos filhos de Alcino, canto do aedo, dedilhar da lira: Aquiles, recolhido em sua tenda, disfarça sua pena cantando, somente para si mesmo, os feitos dos heróis, e acompanhando-se com a phorminx sonora [12]; possivelmente já, também, concursos de eloqüência e disputas verbais (9).

Outras vezes, ao contrário, constituem os jogos uma manifestação solene, organizada e regulamentada com diligência: que me baste lembrar, no canto Ψ da Ilíada, os jogos funerários em honra de Pátroclo: o boxe, tão caro já aos minoanos (10), a luta, a corrida, a justa, o arremesso de peso, o tiro de arco, o dardo e, especialmente e em primeiro lugar, o esporte que ficará sendo sempre o mais nobre, o mais estimado: a corrida de carros [13].

Sim, estes cavalheiros distinguem-se bastante de guerreiros bárbaros: sua vida é realmente uma vida de corte, já “cortês”: implica um refinamento notável de atitudes: considere-se a amabilidade que revela Aquiles em seu papel de organizador e de árbitro dos jogos [14], o espirito esportivo dos campeões e dos espectadores, seja do boxeador Epeio reerguendo seu adversário Euríalo após o duro golpe que acabava de pô-lo fora de combate [15], seja dos aqueus contendo Diomedes quando, sob seus golpes, a vida de Ájax está em perigo [16].

Essa polidez acompanha os heróis também no combate, até mesmo nos assaltos rituais de afrontas que preludiam a refrega. Subsiste ela em todas as circunstâncias: que refinamentos de cortesia nas relações entre Telêmaco e os pretendentes, relações no entanto tão tensas e transbordantes de ódio!

Essa atmosfera de polidez, pelo menos na Odisséia, que é mais recente, leva, como por seu florescimento normal, a uma grande delicadeza de atitude para com a mulher: como então esses mesmos pretendentes não respeitam Penélope? Do velho Laertes se diz que, para não despertar o ciúme de sua esposa, não se permitiu a si mesmo desfrutar da escrava Euricléia [17]. A mãe de família é, realmente, senhora da casa: atente-se para Arete, rainha dos feácios; atente-se para Helena em sua casa, em Esparta: é ela quem acolhe Telêmaco, quem dirige a conversação, quem “recebe”, na acepção mundana da palavra.

Cortesia, mas também habilidade (confluímos, aqui, na sabedoria oriental): como portar-se no mundo, como reagir ante circunstâncias imprevistas, como proceder e, antes de tudo, como falar: seja-me suficiente evocar Telêmaco em Pilos ou em Esparta, e Náusica diante de Ulisses náufrago.

Tal é, sumariamente esboçada, a imagem ideal do “perfeito cavalheiro” da epopéia homérica. Mas ninguém podia, espontaneamente, tornar-se um κοῦρος consumado: essa cultura, de conteúdo rico e complexo, supõe uma educação adequada. Ora, esta última não nos é desconhecida: Homero interessa-se pela psicologia de seus heróis na medida suficiente para que saibamos de que maneira foram eles educados, de que maneira puderam chegar a essa flor do cavalheirismo; a legenda heróica transmitia dados sobre a educação de Aquiles exatamente como os ciclos épicos da Idade Média, que consagravam, por exemplo, uma canção de gesta aos Enfances Vivien.

QUIRÃO E FÊNIX

A figura típica de educador é a de Quirão, “o sapientíssimo centauro [18]”; grande número de lendas parece ter-se apossado de seu nome: ele educou não somente Aquiles, mas ainda muitos outros heróis: Asclépio, o filho de Apolo [19], Actéon, Céfalos, Jasão, Melânio, Nestor...; Xenofonte [20] enumera, de enfiada, vinte e um nomes. Consideremos aqui sômente a educação de Aquiles. Quirão era amigo e conselheiro de Peleu (que lhe deve, entre outras coisas, a fortuna de suas núpcias com Tétis): é de modo bastante natural que este lhe confia o filho.

Grande número de monumentos literários e figurativos mostram (11) mostram Quirão ensinando a Aquiles os esportes e os exercícios cavalheirescos, caça, equitação, dardo, ou as artes corteses, como a lira, e mesmo (não reina ele sobre as planícies do Pelion, ricas em ervas medicinais?) a cirurgia e a farmacopéia [21]: curiosa tintura de saber enciclopédico, de sabor bem orientalizante (pensar-se-á na imagem da cultura de Salomão, evocada pelo autor alexandrino da Sabedoria [22]: não há dúvida de que se trata, aqui como lá, de uma imagem idealizada: o herói homérico deve. saber. tudo, mas é um herói; seria ingênuo imaginar que o cavalheiro homérico fosse também, normalmente, um feiticeiro curandeiro).

Este último traço é o único explicitamente mencionado por Homero, mas um episódio da Ilíada apresenta-nos [23] outro mestre de Aquiles cuja aparência, menos mítica que a de Quirão, tem a vantagem de permitir-nos entrever, de maneira realista, o que seria essa educação cavalheiresca: trata-se do episódio de Fênix (12). A fim de contribuir para o êxito de sua difícil embaixada junto a Aquiles, Nestor sabiamente reuniu, a Ulisses e Ájax, este bom velho que poderá comover o coração de seu antigo pupilo (e é realmente enternecido, com efeito, que Aquiles responderá a seu “velho bom papai”, como o chama: ἃττα γεραιέ [24]).

Para ser ouvido, Fênix julga que deve recordar a Aquiles toda a sua história, num longo discurso [25] cuja prolixidade um tanto senil é bastante instrutiva para nós: Fênix, fugindo à cólera de seu pai (estavam em conflito por causa de uma bela cativa), veio refugiar-se na corte de Peleu, que lhe outorgou um feudo nos Dólopes [26]. É a este vassalo querido que o rei vai confiar a educação de seu filho (não é este também um traço bastante “medieval"?): é-lhe entregue bem criança; vemos Fênix tomar Aquiles sobre os joelhos, cortar-lhe carne, fazê-lo comer, beber: “E quantas vezes me molhaste, de vinho, a túnica, no penoso tempo da infância! [27]"

“Fui eu quem fez de ti o que tu és!", declara com orgulho o velho preceptor [28], pois que sua assistência não se restringira à primeira infância: ainda a ele é confiado Aquiles por ocasião de sua partida para a guerra de Tróia, a fim de que venha em socorro de sua inexperiência. Nada mais notável que a dupla missão de que Peleu o investira nessa ocasião: “Não passavas de uma criança e nada sabias ainda da guerra, que a ninguém poupa, nem das assembléias onde os homens se fazem ilustres. E foi para isso que êle me havia enviado: para ensinar-te a ser, ao mesmo tempo, um bom conselheiro, um bom realizador de façanhas (μύθων τε ρητῆρ' ἕμεναι, πρηκτῆρά τε ἕργων) [29]”; fórmula em que se condensa o duplo ideal do perfeito cavalheiro: orador e guerreiro, capaz de prestar a seu suzerano tanto serviço judiciário como serviço de campanha. A Odisséia mostra-nos, da mesma maneira, Atena instruindo Telêmaco sob a inspiração dos exemplos de Mentes [30] ou de Mentor [31].

Encontramos assim, na origem da civilização grega, um tipo de educação nitidamente definido: aquele que o jovem nobre recebia dos conselhos e dos exemplos de um mais velho a quem tinha sido confiado, em vista de sua formação.

SOBREVIVÊNCIAS CAVALHEIRESCAS

Ora, durante longos séculos (pode-se dizer que quase até o termo de sua história), a educação antiga conservará muitos traços que lhe vinham desta origem aristocrática e cavalheiresca. Não me refiro ao fato de as sociedades antigas, inclusive as mais democráticas, permanecerem sempre, para nós modernos, sociedades aristocráticas em virtude do papel que nelas desempenha a escravatura, mas a um elemento mais intrínseco: mesmo quando pretendiam e se reputavam democráticas (como a Atenas do século IV, com sua política demagógica em matéria de cultura: θεωρικόν, arte ao alcance do povo, etc.), as sociedades antigas viviam sobre uma tradição de origem nobre: a cultura podia ser repartida igualitariamente, mas nem por isso conservava menos a marca dessa origem; estabelecer-se-á aqui, sem dificuldade, um paralelo com a evolução da civilização francesa. que progressivamente estendeu a todas as classes sociais e, de a1gum modo, vulgarizou uma cultura cuja origem e inspiração são nitidamente aristocráticas: não acabou de tomar sua Forma nos salões e na corte do século XVII? Todas as crianças da França descobrem a poesia e a literatura nas Fábulas de La Fontaine: este as havia dedicado ao Grão Delfim e (l. XII) ao duque de Borgonha!

Eis por que convém examinar um pouco mais de perto o conteúdo da educação homérica e seu destino. Nela se distinguirão, como em toda educação digna deste nome (a distinção encontra-se já em Platão [32]), dois os aspectos: uma técnica, pela qual a criança é preparada e progressivamente “iniciada em determinado modo de vida, e uma ética, algo mais que uma simples moral de preceitos: certo ideal da existência, um tipo ideal de homem a realizar (uma educação guerreira pode contentar-se em formar bárbaros eficazes ou, ao contrário, colimar um tipo refinado de “cavalheiros”).

O elemento técnico já nos é familiar: manejo de armas, esportes e jogos cavalheirescos, artes musicais (canto, lira, dança) e oratória; arte de bem viver, traquejo mundano; sabedoria. Todas estas técnicas se encontrarão de novo na educação da época clássica, não certamente sem passar por uma evolução no curso da qual veremos, particularmente, os elementos mais intelectuais desenvolverem-se em detrimento do elemento guerreiro: quase que somente em Esparta este último conservará seu lugar de primeiro plano, embora sobreviva, mesmo na pacífica e civil Atenas, no gosto do esporte e em certo estilo de vida realmente viril.

Importa, mais ainda, analisar a ética cavalheiresca, o ideal homérico do herói, e constatar-lhe a sobrevivência na época clássica.

HOMERO, EDUCADOR DA GRÉCIA

Tal sobrevivência parece, à primeira vista, explicar-se pelo fato de ter a educação literária grega conservado, durante toda a duração de sua história, Homero como texto de base, como centro de todos os estudos: fato considerável, do qual nós dificilmente conseguimos imaginar as conseqüências, porque, se temos clássicos, não temos (como os italianos têm Dante e os anglo-saxões Shakespeare) um clássico por excelência; e a dominação de Homero sobre a educação grega exerceu-se de maneira bem mais totalitária ainda do que, entre uns ou outros, a de Shakespeare ou a de Dante.

Como o disse Platão [33], Homero foi, no mais pleno sentido, o educador da Grécia (τν λλάδα πεπαίδευκεν). E o foi desde o princípio (ξ ρχς), como já salientava Xenófanes de Cólofon [34] no século VI: vede, no fim do século VIII, a profunda influência que, nesta Beócia ainda inteiramente campesina, exerce já sobre o estilo de Hesíodo (que começou sua carreira como rapsodo, recitador de Homero). E o será sempre: em plena Idade Média bizantina, no século XII, o arcebispo Eustácio de Tessalônica compilou seu grande comentário, acrescido de toda a contribuição da filologia helenística. Entre tantos testemunhos que atestam a presença de Homero à cabeceira de todo grego cultivado, como à de Alexandre em campanha, ressaltarei o do Banquete de Xenofonte [35], onde um personagem, Nicerato, nos diz: “Meu pai, desejando que eu me tornasse um homem completo (νρ γαθός), forçou-me a aprender Homero; e assim, até hoje, sou capaz de recitar de cor a Ilíada e a Odisséia

Em vista disso, deve-se admitir, o argumento se anula ou, pelo menos, serve a duas interpretações: porque a ética cavalheiresca permanecia no centro do ideal grego é que Homero, intérprete eminente desse ideal, foi escolhido e conservado como texto de base na educação. É necessário, com efeito, reagir contra uma apreciação puramente estética de sua longa primazia: não foi sobretudo por ser obra-prima literária que a epopéia foi estudada, mas porque seu conteúdo fazia dela um manual ético um tratado do ideal. Com efeito, como o veremos adiante, o conteúdo técnico da educação grega evoluiu profundamente, refletindo as transformações profundas de toda a civilização: somente a ética de Homero podia conservar, ao lado de seu valor estético imperecível, uma projeção permanente.

Não pretendo, obviamente, que, no curso de tão longa seqüência de séculos, essa projeção tenha sido, sempre, clara e exatamente compreendida. Na época helenística encontraremos pedagogos obtusos, que, com uma carência total de espirito histórico e subestimando a considerável diferenciação operada nos costumes, se esforçaram por descobrir em Homero todos os elementos de uma educação religiosa e moral válida para o tempo deles: com engenho freqüentemente cômico, esforçavam-se por tirar, dessa epopéia tão pouco sacerdotal e, no fundo, de espírito tão “laico” (13), algo equivalente a um verdadeiro catecismo, ensinando não somente (o que era legítimo [36]) a teogonia e a legenda dourada dos deuses e dos heróis, mas também uma teodicéia, e mesmo uma apologética, deveres para com os deuses e, mais que isso — todo um manual de moral prática, ensinando, através de exemplos, todos os preceitos, a começar pelos da civilidade pueril e virtuosa; melhor ainda: pela prática da exegese alegórica, Homero era utilizado para ilustrar a própria filosofia...

Mas isso não passava de tolices; o verdadeiro alcance educativo de Homero residia alhures: na atmosfera ética em que ele faz atuarem seus heróis, no estilo de vida destes. Desse clima, nenhum leitor assíduo podia, a longo prazo, deixar de impregnar-se. É com razão que se pode falar aqui, como apraz fazê-lo a Eustácio, de uma “educação homérica” (ὀμηρικὴ παιδεία): a educação que o jovem grego hauria em Homero era a mesma que o Poeta imprimia a seus heróis, aquela que vemos Aquiles receber da boca de Peleu ou de Fênix, e Telêmaco, da de Atena,

A ÉTICA HOMÉRICA

Ideal moral de natureza bastante complexa: de início compreende aquele, algo chocante para nós, do “homem das mil voltas” (πολὐτροπος ἀνήρ), que aos nossos olhos encarna a suspeita figura de aventureiro levantino que Ulisses reveste por um momento na epopéia marítima: a sabedoria de vida, a habilidade do herói homérico assimila-se aqui, como o notei de passagem, à sabedoria prática do escriba oriental; converte-se na arte de saber desvencilhar-se em qualquer circunstância. Nossa consciência, depurada por séculos de Cristianismo, perturba-se por um momento diante disto: pense-se na satisfação indulgente de Atena diante de uma mentira particularmente frutífera de seu querido Ulisses! [37]

Felizmente, porém, o essencial não está aí: muito mais do que o Ulisses do Regresso, é a nobre e impoluta figura de Aquiles que encarna o ideal moral do perfeito cavalheiro homérico; uma frase o define: uma moral heróica da honra, É a Homero, com efeito, que remonta, é em Homero que cada geração antiga reencontra aquilo que constitui o cerne fundamental desta ética aristocrática: o amor da glória.

A base sobre a qual repousa é esse pessimismo radical da alma helênica que o jovem Nietzsche tão profundamente meditou: a tristeza de Aquiles! (14) A vida breve, angústia da morte, pouca consolação a esperar da vida de além-túmulo: nada há ainda de bem firme, na idéia de uma sorte privilegiada que se possa receber nos Campos Eliseos, quanto ao destino comum das sombras, esta existência incerta e vaga, que escárneo! Sabemos como a julga o próprio Aquiles, na famosa apóstrofe que dirige, do Hades, a Ulisses, admirando a maneira pela qual as sombras vulgares se afastam, respeitosas, da sombra do herói: “Ah! Não tentes consolar-me de minha morte, ilustre Ulisses: eu preferiria, sendo lavrador, viver a serviço de um homem pobre, que não tivesse muitos bens, a reinar sobre estes mortos, sobre todo este povo extinto!” [38].

Esta vida tão breve, que seu destino de combatentes torna ainda mais precária, nossos heróis a amam ferozmente, com este coração tão terrestre, com este amor tão franco, sem segundo pensamento, que definem, a nossos olhos, certo clima da alma pagã. E, no entanto, esta vida cá embaixo, tão preciosa, não constitui a seus olhos o valor supremo. Estão dispostos — e com que decisão! — a sacrificá-la por algo mais elevado que ela própria; por isso a ética homérica é uma ética da honra (15).

Esse valor ideal, pelo qual a vida mesma é sacrificada, é a ἀρετή, palavra intraduzível, que não se pode exprimir, como o fazem nossos léxicos, por “virtude”, a menos que se enriqueça este vocábulo sem força de tudo aquilo que os contemporâneos de Maquiavel punham em sua virtù. A ἀρετή é, de modo muito geral, o valor, no sentido cavalheiresco da palavra, aquilo que faz do homem um bravo, um herói: “Ele tombou como um bravo que era (νρ γαθός γενόμενος ἀπέθανε)”, fórmula incessantemente repetida para saudar a morte do guerreiro, a morte em que se consagra verdadeiramente seu destino, no sacrifício supremo: o herói homérico vive e morre por encarnar em sua conduta certo ideal, certa qualidade da existência, que esta palavra ἀρετή simboliza.

Ora, a glória, o renome adquirido no meio competente dos bravos, é a moderação, o reconhecimento objetivo do valor, Donde este desejo apaixonado da glória, de ser proclamado o melhor, que é a mola fundamental dessa moral cavalheiresca. Foi Homero o primeiro a formulá-la; em Homero os antigos redescobriram, com entusiasmo, esta concepção da existência como uma competição esportiva em que se trata de excelir este “ideal agonístico da vida”, em que, desde as brilhantes análises de Jakob Burckhardt, é clássico apontar um dos aspectos mais significativos da alma grega (16). Sim, o herói homérico, como, a seu exemplo, o homem grego, não é verdadeiramente feliz senão quando se sente, quando se afirma como o primeiro em sua categoria, distinto e superior.

É essa uma idéia fundamental na epopéia que, por duas vezes, põe o mesmo preceito, formulado pelo mesmo verso, na boca de Hipóloco, dirigindo-se a seu filho Glauco, e na do prudente Nestor, reportando a Pátroclo os conselhos de Peleu a seu filho Aquiles: “Ser sempre o melhor e conservar-se superior aos outros!”

ἀιὲν ἀριστεύειν καί ὐπείροχον ἒμμεναι ἂλλων [39].

A figura de Aquiles recebe, desta tensão da alma inteira para esse fim único, aquilo que faz sua nobreza e sua grandeza trágicas: ele sabe (Tétis revelou-lho) que, uma vez vitorioso sobre Heitor, deverá morrer; no entanto, de cabeça erguida, avança ao encontro desse destino. Não se trata, para ele, de sacrificar-se pela pátria aqueana, nem de salvar a expedição ameaçada, mas somente de vingar Pátroclo, de subtrair-se ao opróbrio que o teria ameaçado. Avança unicamente por sua honra. Não vejo nisto nenhum individualismo romântico, embora este ideal seja terrivelmente pessoal: este amor de si mesmo (φιλαυτία), que Aristóteles analisará mais tarde, não é o amor do eu, mas do Si, da Beleza absoluta, do Valor perfeito que o herói procura encarnar numa Gesta que arrebatará a admiração da turba invejosa de seus pares.

Ofuscar, ser o primeiro, o vencedor, sobrepor-se, afirmar-se na competição, excluir um rival perante os juízes, realizar a façanha (ἀριστεία) que o classificará perante os homens, diante dos vivos, e talvez da posteridade, no primeiro plano: eis por que vive ele, e por que morre.

Sim, uma ética da honra, por vezes bastante estranha para uma alma cristã; implica na aceitação do orgulho (μεγαλοψυχία), que não é um vicio, mas o desejo elevado de quem aspira a ser grande, ou, no herói, a tomada de consciência de sua superioridade real; a aceitação da rivalidade, da inveja, esta nobre Ἒρις, inspiradora de grandes ações que Hesíodo celebrará [40], e com ela, do ódio, como o reconhecimento de uma superioridade manifestada: vede como Tucídides faz Péricles falar [41]: “O ódio e a hostilidade são sempre o que atraem, de imediato, aqueles que pretendem comandar os outros. Mas expor-se ao ódio por um fim nobre é bem inspirado!”

A IMITAÇÃO DO HERÓI

É em função desta alta idéia da glória que se define o papel próprio do poeta, que é de ordem educativa. O fim a que sua obra se subordina não é essencialmente de ordem estética, mas consiste em imortalizar o herói. O poeta, dirá Platão [42], “cobre de glória miríades de feitos dos antigos e assim faz a educação da posteridade”: sublinho este último traço, que parece fundamental.

Para compreender qual foi a influência educadora de Homero, basta lê-lo e ver como ele próprio procede, como ele concebe a educação de seus heróis. Faz-lhes propor, por seus conselheiros, grandes exemplos tirados à gesta legendária, exemplos que devem despertar neles o instinto agonístico, o desejo de rivalizar. Assim Fênix propõe a Aquiles, ao pregar-lhe a conciliação, o exemplo de Meleagro: “É exatamente isto o que nos ensinam os feitos dos antigos heróis... Recordo-me ainda desta gesta (τόδε ἒργον), uma história bem antiga... [43]”

Da mesma maneira Atena, querendo despertar afinal a vocação heróica nesse meninão irresoluto que é Telêmaco, opõe-lhe o exemplo de decisão viril de Orestes: “Deixa os brinquedos de criança, que não são mais para a tua idade. Vê o renome que entre os humanos conquistou o divino Orestes, quando matou o assassino de seu pai, esse astucioso Egisto [44]". O mesmo exemplo aparece ainda três vezes [45].

Tal é o segredo da pedagogia homérica: o exemplo heróico (παράδειγμα): Assim como à baixa Idade Media nos legou a Imitação de Cristo, a idade média helênica transmitiu à Grécia clássica, por meio de Homero, esta Imitação do Herói. É nesse sentido profundo que foi Homero o educador da Grécia: como Fênix, como Nestor ou Atena, continuamente apresenta, ao espirito de seu discípulo, modelos idealizados de ἀρετὴ heróica; ao mesmo tempo, pela perenidade sua obra, manifesta a realidade desta suprema recompensa que é a glória.

A História atesta o quanto suas lições foram ouvidas: o exemplo dos heróis freqüentou a alma dos gregos. Alexandre (como Pirro, depois dele) julgou-se, sonhou ser um novo Aquiles: quantos gregos aprenderam como ele, em Homero, “a subestimar uma vida longa e sem brilho por uma glória breve”, mas heróica!

Sem dúvida, não foi Homero o único educador que a Grécia ouviu: de século em século, os clássicos vieram completar o ideal moral da consciência helênica (vede como Hesíodo a enriquece já com suas noções tão preciosas de Direito, Justiça, Verdade); todavia, não é menos verdadeiro, por isso, que Homero representa a base fundamental de toda a tradição pedagógica clássica, e, quaisquer que tenham sido, aqui ou ali, as tentativas de sacudir sua influência tirânica, a continuidade dessa tradição manteve viva por séculos, na consciência de todos os gregos, sua ética feudal da façanha.


Notas Complementares

(1) A educação homérica: não há dúvida que sobre este tema se encontra, como sobre todos os temas possíveis, a Dissertação inaugural alemã de tipo clássico: R. F. KLÖTZER, Die Griechische Erziehung. Erziehung in Homers Iliad und Odyssee, ein Beitrag zur Geschichte der Erziehung im Altertum, diss. Leipzig, 1911; as páginas mais sugestivas que encontrei são, porém, as de W. JAEGER, Paideia, I, ps. 46-105 (ital). V. BENETTI-BRUNELLI, L'Educazione in Grecia, I. L'Educazione della Grecia eroica. Il problema (Publicazioni della Scuola di filosofia della R, Università di Roma, XIII), Florença, 1939, contém apenas prolegômenos e não versa a matéria anunciada.

(2) A questão homérica: seria abusivo, aqui, pretender orientar o leitor no dédalo da bibliografia; limito-me a remetê-lo a P. MAZON, Introduction à l'Iliade, Paris, 1942: obra recente, bem informada, bastante equilibrada e bem repousante, após as orgias conjecturais da erudição romântica, alemã sobretudo — da qual a Odyssée de V. BÉRARD, Paris, 1924, é ainda, de algum modo, uma bem curiosa herança.

(3) Jamais haverá consensus omnium em filologia: sempre haverá espíritos aventurosos a proporem hipóteses ousadas (equivalentes àquilo que os químicos chamam “experiências para ver”): mas não é necessário registrá-las, como tampouco refutá-las pormenorizadamente. Aqui, alude-se a Ed. SCHWARTZ (1924) e a U. VON WILAMOWITZ (1927), que pretendiam situar por volta de 550 as partes recentes da Odisséia: contrariamente, JAEGER, Paideia, I, p. 48.

(4) Sigo, citando-o, P. MAZON, Introduction à l'Iliade, p. 266.

(5) Relativamente à fixação desta data, os antigos hesitavam entre 1159 a.C. (Helanico) e 686 (Teopompo): PAULY-WISSOWA, VIII, c. 2207-2210, s. v. Homeros.

(6) Valor histórico do testemunho de Homero: ver um resumo das discussões a este respeito, ap. H. JEANMAIRE, Couroi et Courètes, essai sur l'Éducation spartiate et sur les Rites d'adolescence dans l'Antiquité hellénique, Travaux et Mémoires de l'Université de Lille, n.º 21, Lille, 1939, p. 12, n. 1; acrescentar MAZON, Introduction, ps. 288-292.

[7] Cavalaria homérica: adoto aqui as conclusões do primeiro capítulo (que tem este título) da tese, já citada, de H. JEANMAIRE, Couroi et Courètes, ps. 11-111.

(8) O esporte nos lazeres homéricos: cf. ainda B 773-775 (quando em inatividade, os guerreiros de Aquiles entretêm-se, na praia, no arremesso do disco ou do dardo, ou no exercício do arco).

(9) “Torneios de eloqüência? Pelo menos a aceitar-se (hesito, porém, em fazê-lo) a interpretação de H. JEANMAIRE, que toma em sentido forte os versos O 283-284, onde o poeta diz, de Thoas:

ἀγορῆ δὲ ἐ ραῦροι Ἀχαιῶν
νίκων, ὀππότε κοῦροι ἐρίσσειαν περὶ μύθων

“e na ágora poucos aqueus o sobrepujam quando os jovens guerreiros deblateram sobre os mitos”, — e não: “...discutem as opiniões na assembléia” (tese citada, p. 42).

(10) Pugilismo minoano: E. N. GARDNER, Athletics of the ancient world, ps. 11-14. Não posso senão levantar aqui o árduo problema das sobrevivências creto-micênias nos jogos gregos clássicos, esportivos ou musicais: cf. PAUS. XVIII, 4, 1; 23, 2; HES. Op., 655 (GARDINER, ibid. p. 30; W. D. RIDINGTON, The Minoan-Mycaenian background of Greek athletics, dissert. de Filadélfia, 1935).

(11) Quirão, educador de Aquiles: cf. V. SYBEL, s. v. Cheiron, ap. W. H. ROSCHER, Ausf. Lexikon der gr. u röm. Mythologie, I, c. 888-892; DE RONCHAUD, s. v. Chiron, ap. DAREMBERG-SAGLIO, I, 2, ps. 1105a- 1106a. Os textos mais interessantes são os de PÍNDARO, privilegiada testemunha da tradição aristocrática: Pyth., III, 1-5 (cf. IV, 101-115); VI, 20-27; Nom., III, 43-58. Entre os monumentos figurados, notar-se-ão um belo vaso de figuras vermelhas no Louvre, em que se vê Peleu conduzindo Aquiles pequeno até Quirão (C.V.A., Louvre, fasc. 2, III, 1 c, pl. 20, fig. D, uma pintura frequentemente reproduzida de Herculanum, no museu de Nápoles, Quirão ensinando a lira a Aquiles (O. ELIA, Pitture murali e mosaici nel Museo Nazionale di Napoli, Roma, 1932, n.º 25 (9019), fig. 5, p. 25) e os relevos da tensa capitolina, Quirão ensina a Aquiles a caça e o dardo (S. REINACH, RR.G.R., I, 377, II, a).

Existiu um poema arcaico, os Ensinamentos de Quirão (Χίρωνος  'Υροθῆκαι), do qual nos restam alguns fragmentos gnômicos, transmitidos sob o nome de Hesíodo. (ver, por exemplo, na edição Didot deste, ps. 61-69).

(12) Conjugar os papéis respectivos de Fênix e Quirão é tarefa que oferece algumas dificuldades. Os antigos (a julgar por LUCIANO, Dial. Mort., XV, 1) não viam malícia nisto, e falavam, simplesmente, “dos dois mestres” de Aquiles (τοῖν διδακάλοιν αμφοῖν). J. A. SCOTT, American Journal of Philology, XXXIII (1912), p. 76, esforça-se por mostrar que Aquiles teria tido Fênix por tutor durante sua primeira infância, antes de estudar com Quirão: mas Homero não reduz Fênix ao simples papel de “ama seca” (cf. 438 segs. 485). Para W. JAEGER, Paideia, I, ps. 60-65, Fênix é um correspondente humanizado do personagem mítico de Quirão, que o poeta não podia trazer judiciosamente à cena, em virtude do realismo de sua epopéia: o canto I pode ter sido composto à parte e acrescentado depois, mais ou menos tardiamente, e não sem certa discrepância, ao resto da Ilíada (cf. no mesmo sentido MAZON, Introduction, p. 178).

(13) Homero, como poeta não religioso, de espirito nobre, laico, anti-sacerdotal: cf. as fecundas observações de O. SPENGLER, Le Déclin de l'Occident, tradução francesa, II, II, p. 418 — este monumento de tenebrosos erros, entremeados de brilhantes lampejos. Em sentido contrário, a hipótese, bastante aventurosa e mal assentada, de C. AUTRAN, Homère et les Origines sacerdotales de l'Epopée grecque, t. I-III, Paris, 1938-1944; cf. também M. P. NILSSON e, contra, E. EHNMARK: ap. A, PASSERINI, IXe Congrès intern. des Sciences historiques, Paris, 1950, t. I, p. 125, n. 28; p. 126, a opinião do próprio Passerini.

(14) A tristeza de Aquiles: cf. o artigo, bastante falacioso, de resto, publicado sob este título por G. MÉAUTIS, ap. Revue des Études Grecques, XLIII (1930), ps. 9-20.

(15) A ética homérica: é aqui, principalmente, que faço eco do substancioso pensamento de W. JAEGER, Paideia, I, ps. 76 segs. Cf. também, secundariamente, P. MAZON, Introduction, ps. 296 segs.: “La morale de l'Iliade”, e uma bela página do padre A.-J. FESTUGIÈRE, L'Enfant d'Agrigente, ps. 13-14.

(16) O ideal agonístico: J. BURCKHARDT, Griechische Kulturgeschichte, pass. (assim II, ps. 365 segs.; IV, ps. 89 segs.) e, para uma sumária recapitulação, C. ANDLER, Nietzsche, I, ps. 299 segs.


Referências

[1] [PLATÃO] Hiparco, 228 b.

[2] Heródoto, História, II, 53.

[3] Homero, Ilíada, XIX, 404-423.

[4] Idem, XVIII, 590-605.

[5] Idem, I, 463; 470. 

[6] Idem, IX, 175; Odisséia, 1, 148; III, 339; XXI, 271.

[7] Ilíada, XIX, 238 a.

[8] Idem, I, 463 s.

[9] Idem, I 473-474.

[10] Idem, XXIII, 90.

[11] Odisséia, VIII, 104 a.

[12] Ilíada, IX, 186 s. 

[13] Idem, XXIII, 261-897.

[14] Idem, 257 s.

[15] Idem, 694.

[16] Idem, 822. 

[17] Odisséia, 1, 433.

[18] Ilíada, XI, 832.

[19] Idem, 219.

[20] XENOFONTE, Sobre a Caça I.

[21] Homero, Ilíada, XI, 831-2; IV, 219.

[22] Sabedoria de Salomão (Antigo Testamento grego), 7, 17-20. 

[23] Homero, Ilíada, IX, 434 s.

[24] Idem, 607. 

[25] Idem, 434-605.

[26] Idem, 480 s.

[27] Idem, 488-491.

[28] Idem, 485. 

[29] Idem, 442.

[30] Odisséia, I, 80 s.

[31] Idem, II, 267 s.

[32] PLATÃO, As Leis, I, 643a-644a.

[33] A República, X. 606e; cf. Protágoras, 339a.

[34] XENÓFANES DE CÓLOFON, frag. 10 (ed. Dils).

[35] Xenofonte, O Banquete, III, 5.

[36] Heródoto, História, II, 53.

[37] Homero, Odisséia, XIII, 287 s.

[38] Idem, XI, 488 a.

[39] Ilíada, VI, 208 - XI, 784.

[40] HESÍODO, Os Trabalhos e os Dias, 17 s.

[41] TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, II, 64. 

[42] PLATÃO, Fedro, 245a.

[43] HOMERO, Ilíada, IX, 524 s.

[44] Odisséia, 1, 206 s.

[45] Idem, 1, 30, 40; III, 306.

***

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas em 2017).


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Galileu Galilei, a Ciência e a Igreja

Retrato de Galileu Galilei explicando suas
teorias na Universidade de Pádua - Félix Parra
A Igreja e a ciência

Terá sido apenas coincidência que a ciência moderna se desenvolvesse em um ambiente em ampla medida católico, ou houve coisa coisa no princípio catolicismo que possibilitou o seu progresso? O simples fato de levantarmos esta questão já significa transgredir as fronteiras da opinião em voga. No entanto, são cada vez em maior número os estudiosos que a levantam, e as suas respostas podem surpreender-nos.
Não é um assunto secundário. Na mentalidade popular, a alegada hostilidade da Igreja Católica para com a ciência talvez constitua o seu principal ponto fraco. O caso Galileu, na versão deturpada com a qual a maior parte das pessoas está familiarizada, é largamente responsável pela crença tão difundida de que a Igreja obstruiu o avanço da pesquisa científica. Porém, ainda que esse caso tenha sido bem menos ruim do que as pessoas pensam, o cardeal John Henry Newman, famoso converso do anglicanismo do século XIX, achou revelador que seja esse praticamente o único exemplo que sempre acode à mente das pessoas quando se pensa na relação entre a Igreja e ciência.

Galileu

A controvérsia de Galileu centrou-se em torno do trabalho do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543). Alguns estudiosos modernos de Copérnico afirmam que era padre, mas não existe nenhuma evidência direta de que tivesse chegado a receber as ordens maiores, embora tivesse sido nomeado cônego do cabido de Frauenburg no final da década de 1490, Fosse qual fosse o seu estado estado clerical, porém, o certo é que nasceu e se criou em uma família profundamente religiosa, na qual todos pertenciam à Ordem Terceira de São Domingos, a associação de fiéis vinculada à Ordem que estendera aos leigos a oportunidade de participar da espiritualidade e da tradição dominicanas [1].

Como cientista, Copérnico era uma figura de renome nos meios eclesiásticos, tendo sido consultado pelo V Concílio de Latrão (1512-1517) sobre a reforma do calendário. A pedido dos amigos, de colegas acadêmicos e de vários prelados, que o instalavam a publicar o seu trabalho, Copérnico acabou e publicou Seis Livros sobre as Revoluções das Órbitas Celestes, que dedicou ao papa Paulo III, em 1543. Antes ainda, em 1531, tinha redigido para os amigos um sumário do seu sistema heliocêntrico que viria a atrair as atenções até do papa Clemente VII; este convidaria o humanista e advogado Johann Albert Widmanstadt a dar uma conferência pública no Vaticano sobre o tema, ficando muito bem impressionado com o que ouviu [2].

No seu trabalho, Copérnico conservou muito da astronomia convencional da sua época, a qual se devia quase por completo a Aristóteles e, acima de tudo, a Ptolomeu (87-150 d.C.), um brilhante astrônomo grego para quem o universo era geocêntrico. A astronomia copernicana partilhou com a dos seus precursores gregos alguns aspectos, tais como a perfeita esfericidade dos corpos celestes, as órbitas circulares e a velocidade constante dos planetas. Mas introduziu uma diferença significativa ao situar o Sol, ao invés da Terra, no centro do sistema; no seu modelo, a Terra e os outros planetas moviam-se em torno do Sol.

Apesar do feroz ataque dos protestantes, que viam no sistema copernicano uma frontal oposição à Sagrada Escritura, esse sistema não foi objeto de uma censura católica formal até que surgiu o caso Galileu.

Galileu Galilei (1564-1642), além dos seus trabalhos no campo da física, fez com o seu telescópio algumas observações astronômicas importantes que contribuíram para abalar o sistema ptolomaico. Observou montanhas na lua, com o que derrubava a velha certeza de que os corpos celestes eram perfeitamente esféricos. Descobriu as quatro luas que orbitam em torno de Júpiter, demonstrando não só a presença de fenômenos celestes que Ptolomeu e os antecessores não haviam percebido, mas também que um planeta, movendo-se na sua órbita, não deixa para trás os satélites. (Um dos argumentos contrários ao movimento da Terra era o de que a Lua seria deixada para trás). A descoberta das fases de Vênus foi outra peça de evidência em favor do sistema copernicano.

Inicialmente, Galileu e a sua obra foram bem acolhidos e festejados por eminentes eclesiásticos. Em fins de 1610, o pe. Cristóvão Clavius [3] comunicava por carta a Galileu que os seus amigos astrônomos jesuítas haviam confirmados suas descobertas. Quando foi a Roma no ano seguinte, o astrônomo foi saudado com entusiasmo tanto pelos religiosos como por personalidades leigas. Escreveu a um amigo: <<Tenho sido recebido e favorecido por muitos cardeais ilustres, prelados e príncipes desta cidade>>. O papa Paulo V concedeu-lhe uma longa audiência e os jesuítas do Colégio Romano organizaram um dia de atividades em homenagem às suas descobertas.

Galileu estava encantado: perante uma audiência de cardeais, matemáticos e líderes civis, alguns dos pes. Grienberger [4] e Clavius discorreram sobre as descobertas do astrônomos. Tudo parecia favorecê-lo. Quando, em 1612, publicou o seu História e demonstrações em torno das marchas solares e dos seus acidentes, em que pela primeira vez aderia publicamente ao sistema copernicano, uma das muitas e entusiásticas cartas de congratulação que recebeu veio de ninguém menos que o cardeal Maffeo Barberini, futuro papa Urbano VIII [5].

A Igreja não fazia objeção ao uso do sistema copernicano como um modelo teórico, como uma hipótese cuja verdade literal não tinha sido comprovada [6], pois efetivamente explica os fenômenos celestes de maneira mais elegante e precisa que o sistema ptolomaico. Pensava-se que não havia nenhum mal em apresentá-lo e usá-lo como um sistema hipotético.

Galileu, porém, acreditava que o sistema copernicano era literalmente verdadeiro, e não uma simples hipótese que fornecesse previsões precisas, mas não dispunha de evidências adequadas que respaldassem a sua crença. Assim, por exemplo, argumentava que o movimento das marés constituía uma prova do movimento da Terra, argumento que hoje, curiosamente, os cientistas consideram ridículo. Não era capaz de responder à objeção dos geocentristas -- que vinha de Aristóteles -- de que, se a Terra se movia, então deveria ser possível observar uma mudança de paralaxe quando observássemos as estrelas, coisas que não acontecia [7]. No entanto, apesar da falta de provas estritamente científicas, Galileu insistiu na verdade literal do sistema copernicano e recusou-se a aceitar um compromisso pelo qual o copernicanismo deveria ser ensinado como hipótese até que pudesse apoiar-se em evidências conclusivas. Quando foi mais longe ainda e sugeriu que, pelo contrário, eram os versículos da Sagrada Escrituras que deviam ser reinterpretados, passou a ser visto como alguém que usurpara a autoridade dos teólogos.

Jerome Langford, um dos mais judiciosos estudiosos modernos deste assunto, fornece-nos um sumário muito útil da posição de Galileu:

<<Galileu estava convencido de possuir a verdade, mas não tinha provas objetivas para convencer os homens de mente aberta. É uma completa injustiça afirmar, como fazem alguns historiadores, que ninguém ouvia os seus argumentos e que nunca  teve uma oportunidade. Os astrônomos jesuítas tinham confirmado as suas descobertas e esperavam ansiosamente por provas ulteriores para poderem abandonar o sistema de Tycho [8] e passarem a apoiar com segurança o copernicanismo. Muitos eclesiásticos influentes acreditavam que Galileu devia estar certo, mas tinham de esperar por mais provas>>.

<<Como é evidente, não é inteiramente correto pintar Galileu como uma vítima inocente do preconceito e da ignorância do mundo", acrescenta Langford. "Parte da culpa dos acontecimentos subsequentes deve ser atribuída ao próprio Galileu, que recusou qualquer ressalva e, sem provas suficientes, fez derivar o debate para o terreno próprio dos teólogos>> [9]

Foi, portanto, a insistência de Galileu sobre a verdade literal do copernicanismo que causou a dificuldade, uma vez que, aparentemente, o modelo heliocêntrico parecia contradizer certas passagens da Escritura. A Igreja, sensível às acusações protestantes de que os católicos não faziam muito caso da Bíblia, hesitou em acolher a sugestão de que se pusesse de lado o sentido literal da Escritura -- que, às vezes, parecia implicar na ausência de movimento da Terra -- para acomodar uma teoria científica sem provas [10]. Mesmo assim, aqui a Igreja não foi inflexível. Como comentou na época o célebre cardeal Roberto Belarmino,

<<Se houvesse uma verdadeira prova de que o Sol é o centro do universo, de que a Terra está no terceiro céu e de que o Sol não gira em torno da Terra, mas a Terra torno do Sol, então deveríamos agir com grande circunspeção ao explicar passagens da Escritura que parecem narrar o contrário, e admitir que não as havíamos entendido, em vez de declarar como falsa uma opinião que se prova verdadeira. Mas eu mesmo não devo acreditar que existam tais provas enquanto não me sejam mostradas>> [11].

A abertura de princípio do cardeal Belarmino a novas interpretações da Escritura à luz dos acréscimos feitos ao universo do conhecimento humano não era nada de novo. Santo Alberto Magno era do mesmo parecer: <<Acontece com frequência>>, escreveu certa vez, <<que surge alguma questão sobre a terra, o céu ou outros elementos deste mundo, a respeito da qual um não-cristão possui conhecimentos derivados dos mais acurados raciocínios ou observações. Neste caso, deve-se evitar cuidadosamente, porque seria muito desonroso e prejudicial para fé, que um cristão, ao falar dessas matérias de acordo com o que pensa que dizem as Sagradas Escrituras, seja ouvido por um não-crente a dizer tais tolices que esse não-crente -- percebendo que o outro está tão afastado da realidade como o leste o está do oeste -- quase não conseguisse conter o riso>> [12]. Também São Tomás de Aquino advertiu sobre as consequências de se querer sustentar uma determinada interpretação da Sagrada Escritura a respeito da qual tivessem surgido sérios motivos para pensar que não era correta:

<<Primeiro, é preciso crer que a verdade da Escritura é inviolável. Segundo, quando há diferentes maneiras de explicar um texto da Escritura, nenhuma das interpretações particulares deve ser sustentada com tanta rigidez que, se argumentos convincentes mostrarem que é falsa, alguém ouse insistir em que, mesmo assim, esse ainda é o sentido correto do texto. Caso contrário, os não-crentes desprezarão a Sagrada Escritura e o caminho da fé se fechará para eles>> [13].

Em 1616, depois de ter ensinado pública e insistentemente a teoria copernicana, Galileu foi avisado pelas autoridades da Igreja de que devia parar de sustentá-la como verdade, embora fosse livre para apresentá-la como hipótese. Galileu concordou e prosseguiu com os seus trabalhos.

Em 1624, fez outra viagem a Roma, onde foi novamente recebido com grande entusiasmo e procurado por influentes cardeais desejosos de discutir com ele questões científicas. O papa Urbano VIII deu-lhe muitos presentes valiosos e emitiu um breve de recomendação ao grão-duque da Toscana em que o reconhecia como um homem “cuja fama brilha no céu e se espalha por todo o mundo". Comentou com ele, em particular, que a Igreja não tinha declarado herético o copernicanismo e que nunca o faria.

No entanto, o Diálogo sobre os dois grandes sistemas do mundo, que Galileu publicou em 1632 e fora escrito a pedido do papa, ignorou a instrução de que o copernicanismo devia ser tratado como hipótese e não como verdade estabelecida [14]. Para sua infelicidade, em 1633 o astrônomo foi declarado suspeito de heresia e proibido de publicar escritos sobre o tema. Continuou a produzir outras obras, aliás ainda melhores e mais importantes, particularmente os seus Discursos e demonstrações matemáticas em torno de duas novas ciências (1635). Mas essa censura insensata machucou por muito tempo a reputação da Igreja.

É importante, porém, não exagerar o que aconteceu. Como explica J.L Heilbron:

<<Os contemporâneos bem informados foram da opinião de que a alusão à heresia no caso de Galileu ou Copérnico não tinha nenhum alcance geral ou teológico. Em 1642, Gassendi observou que a decisão dos cardeais, embora importante para os fiéis, não teve a categoria de um artigo de fé; em 1651, Riccioli afirmou que o heliocentrismo não era uma heresia; em 1675, Mengoli declarou que as interpretações da Escritura só podem obrigar os católicos se forem aprovadas em um concílio geral; e em 1678, Baldigiani acrescentou que não havia ninguém que não soubesse disso” [15].

O certo é que os cientistas católicos, muitos deles jesuítas ou membros de outras Ordens religiosas, continuaram a fazer suas pesquisas sem nenhum tipo de entraves, cuidando apenas de tratar como hipótese o movimento da terra, como aliás já o tinha recomendado o decreto da Santa Sé de 1616. Um decreto de 1633, pouco posterior ao processo, excluiu das discussões acadêmicas qualquer menção ao movimento da terra; no entanto, cientistas como o pe. Rogério Boscovich continua a usar nas suas obras a ideia de uma terra em movimento, por isso os historiadores especulam que se tratava apenas de um reforço da censura original e era <<dirigido a Galileu Galilei pessoalmente>>, não aos cientistas católicos como um todo [16].

De qualquer modo, a condenação de Galileu, mesmo que enquadrada no seu contexto, tão distante da colocação exagerada e sensacionalista da mídia, criou embaraços à Igreja e deu origem ao mito de que ela seria hostil à ciência [17].


Notas:

[1] Cf. por exemplo J.G. Hagen, <<Nicolaus Copernicus>>, em Catholic Encyclopedia.

[2] Jerome J. Langford OP, Galileo, Science and the Church, Desclée, New York, 1966, pág. 35.

[3] O pe. Cristóvão Clavius (1538-1612), um dos grandes matemáticos do seu tempo, havia chefiado a comissão encarregada de elaborar o calendário gregoriano, que entrou em vigor em 1582, eliminando as imprecisões que afetavam o antigo calendário juliano. Os seus cálculos em relação à duração do ano solar e ao número de dias necessários para manter o calendário ajustado ao ano solar -- saltar noventa e sete dias a cada quatrocentos anos -- foram de tal precisão que até hoje os estudiosos não sabem como conseguiu realizá-los (cf. Joseph E. MacDonnell, Jesuit Geometers, pág. 19).

[4] O pe. Cristoph Grienberger (1531-1636), que comprovou pessoalmente a descoberta das luas de Júpiter por Galileu, era um competente astrônomo, inventor da montagem equatorial, que fazia girar um telescópio sobre um eixo paralelo ao da Terra. Também contribuiu para o desenvolvimento do telescópio de refração que se utiliza hoje em dia (ibid.).

[5] Cf. Jerome J. Langford, Galileo, Science and the Church, págs. 45 a 52.

[6] É precisamente o que era na época. A rotação da terra e o heliocentrismo só vieram a ser comprovados experimentalmente em 1851, com o pêndulo que Léon Folcault pendurou do ápice do domo do Panteão de Paris (N. do E.).

[7] Paralaxe é o deslocamento aparente que se deveria observar na posição de umas estrelas em relação às outras por causa da mudança de posição do observador. O argumento diz que, se a Terra se move em torno do Sol, as estrelas (não os planetas) deveriam aparecer em posições diferentes ao longo do ano, à medida que o nosso ponto de observação delas mudasse com o deslocamento da Terra, e isso não acontece. Na realidade, até a época de Galileu não se podia observar nenhuma mudança de paralaxe porque os instrumentos de que se dispunha -- ou o olho humano -- não eram precisos o suficiente; além disso, a distância das estrelas fixas mais próximas é enorme, de maneira que a paralaxe é extremamente pequena (N. do E.).

[8] Tycho Brahe (1546-1601) propôs um sistema astronômico que se situava mais ou menos entre o geocentrismo ptolomaico e o heliocentrismo copernicano. Nesse sistema, todos os planetas, com exceção da Terra, giravam em todo do Sol, mas o Sol girava em todo da Terra, que permanecia estacionária. 

[9] Cf. Jerome J. Langford, Galileo, Science and the Church, págs. 68-69.

[10] Cf. Jacques Barzun, From Dawn to Decadence, Harper Collins, New York, 2001, pág. 40; um bom resumo deste assunto aparece em H.W Crocker III, Triumph, Prima, Roseville, California, 2001, pág. 309-11

[11] James Brodrick, The Life and Work of Blessed Robert Francis Cardinal Bellarmine, SJ, 1542-1621, vol. 2. Burns, Oates and Washbourne, Londres, 1928, pág. 359.

[12] James J. Walsh, The Popes and Science, Fordham University Press, New York, 1911, págs. 296-97.

[13] Cit. por Edward Grant, “Science and Technology in the Middle Ages”, em David C. Lindberg e Ronald L. Numbers, eds., God and Nature: Historical Essays on the Encounter Between Christianity and Science, University of California Press, Berkeley, 1986, pág. 63.

[14] Anos mais tarde, o pe. Griemberger comentou que, se Galileu tivesse tratado as suas conclusões como hipóteses, poderia ter escrito qualquer coisa que quisesse (cfr. Joseph MacDonnel, Jesuit Geometers, Apêndice 1, 6-7).

[15] J.L Heilbron, The Sun in the Church, pág. 203.

[16] Zdenek Kopal, “The Contribution of Boscovich to Astronomy and Geodesy”, em Lancelot Law Whyte, ed., Roger Joseph Boscovich, S.J, F. R.S., 1711-1787, Fordham University Press, New York, 1961, pág. 175.

[17] Para uma narrativa mais completa da vida de Galileu e uma análise mais detalhada da condenação, pode-se ver Jorge Pimentel Cintra, Galileu, 2ª. ed. , Quadrante, São Paulo, 1995 (N do E.).

***

Trecho retirado do livro Como a Igreja construiu a civilização ocidentalThomas E. Woods, Jr. Quadrante, 2008.

Leia mais em Galileu Galilei à luz da História e da Astronomia.

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A Educação no Brasil - por Ruy de Ayres Bello

A Primeira Missa no Brasil,
quadro de Victor Meirelles (1860)

1. A EDUCAÇÃO NO BRASIL-COLÔNIA

A história da educação no Brasil começa com o ato de D. João III determinando a vinda dos padres jesuítas para a catequese dos primitivos habitantes do país. Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil com o governador Tomé de Sousa, em 1549, tendo como superior o padre Manuel da Nóbrega. Foram eles os padres Leonardo Nunes, Antônio. Pires, João Aspicuelta Navarro e os noviços Vicente Rodrigues e Diogo Jácome. Em 1550 vieram os padres Afonso Brás, Francisco Pires, Salvador Rodrigues e Manuel Paiva. Com esses novos elementos, pôde o padre Nóbrega fundar a primeira escola jesuíta do Brasil, um orfanato, localizado na Bahia e que se denominou de “Colégio dos Meninos de Jesus”. A este se seguiu, em 1553, o “Colégio dos Meninos de Jesus de S. Vicente”.

Numerosos estabelecimentos da mesma natureza foram, em breve, criados nos centros mais populosos da colônia.

Primitivamente, as condições materiais desses estabelecimentos eram as mais rudimentares (1). A matéria de ensino constava de catecismo, leitura escrita e cálculo. Material didático não existia. As lições eram preparadas em retalhos de papel que se distribuíam entre os alunos.

Como os índios não mandavam espontaneamente os seus “curumis” para a escola, os padres eram obrigados a caminhar grandes distância para recrutar alunos por entre as aldeias indígenas.

A finalidade da Companhia de Jesus não era, porém, o ensino primário, sim o secundário. Por essa razão, o “Colégio dos meninos de Jesus”, da Bahia, foi, em 1556, elevado a colégio secundário, de acordo com o plano pedagógico da Companhia, passando a denominar-se “Colégio de Jesus”. Dentro em breve, o mesmo aconteceu a todos os outros colégios jesuítas.

Pedagogos realistas, adotavam os jesuítas práticas educativas de acordo com a mentalidade dos índios e as realidades ambientes. Assim, foi que utilizaram. a música, o teatro, as festas pomposas e barulhentas, tão do gosto dos indígenas (2), como meios pedagógicos.

Apesar das necessidades encontradas, o trabalho educativo dos jesuítas produziu os melhores resultados. Segundo Afrânio Peixoto, decorridos vinte anos da vinda dos jesuítas, já havia nos seus colégios de S. Paulo, Rio, Bahia e Pernambuco “lentes que lêem gramática, lógica, latim e até uma hora de poesia do 2º livro da “Eneida”. Escrevendo para seus superiores do reino, podia Anchieta informar que os seus discípulos brasileiros sabiam melhor o vernáculo e o latim, de que muitos portugueses (3).

À proporção que a Colônia se desenvolvia, a obra da educação que, durante dois séculos ficou quase que exclusivamente a cargo dos jesuítas, “o elemento moral da colónia”, no testemunho autorizado de João Ribeiro (4), se foi intensificando e irradiando. Muitos colégios se fundaram, cada vez mais aperfeiçoados, com melhores instalações, o currículo mais vasto e aprofundado.

Toda essa obra educacional foi lançada por terra quando, em 1759, o Marquês de Pombal determinou a expulsão dos jesuítas, justificando o seu ato iníquo com alegações caluniosas contra os padres de Companhia e suas atividades catequéticas pedagógicas. Foram extintas todas as escolas e as missões de catequese deixaram de existir.

Para substituir o ensino jesuíta, foi instituído o ensino público, mantido graças a um imposto especial, o chamado “subsídio literário”. Mas as novas escolas, sem a autoridade moral dos padres da Companhia, logo se mostraram inteiramente ineficazes. Tamanha era a indisciplina, devida à incapacidade dos mestres improvisados, que houve necessidade várias vezes, de se apelar para a polícia, com o fim de se manter a ordem nas escolas. A decadência do ensino chegou a tal ponto que, segundo Pedro Calmon, em 1777, só existiam em toda a Bahia dois professores, havendo províncias, como Santa Catarina, em que não existia uma só escola pública. Em 1828, vemos os deputados à primeira Constituinte do Império, que deveriam estar bastante informados sobre o assunto, denunciando descalabros de nossa educação do fim da era colonial: Sousa França clama contra o “ensino sem escolas e sem mestres”; Carneiro Campos lamenta a “situação de miséria” dos poucos professores existentes; Duarte Silva protesta contra o fato de não existir uma só cadeira pública em Santa Catarina. E assim por diante.

A única exceção nesse estado de coisas era constituída pelos seminários católicos, que, desde os tempos coloniais, exerceram uma enorme influência na vida intelectual do Brasil. Na época da Independência, já existiam os seguintes seminários: Nossa Senhora da Lapa, São José, São Joaquim, no Rio; Nossa Senhora da Lapa, em Campos; de Itu, em Santana; Nossa Senhora da Glória, em São Paulo; o Seminário Episcopal e o dos Órfãos, na Bahia; o de Olinda, em Pernambuco, e o de Pará, na capital dessa província. A influência desses educandários na vida social e intelectual do Brasil foi muito grande. Do Seminário de Olinda, por exemplo, disse Oliveira Lima que “transformou as condições do ensino e, com estas, as condições intelectuais do Brasil” (5) e Capistrano de Abreu afirma que esse seminário exerceu uma “extraordinária influência na mentalidade pátria” (6). 

Com a vinda da família real, em 1808, verificou-se um certo interesse do governo em relação ao ensino superior, instituindo-se na Corte, a Escola Médico-Cirúrgica, O Liceu de Artes e a Academia de Marinha. Foi, também, criada a Biblioteca real. Entretanto, em relação ao ensino primário, e secundário, não se registrou qualquer iniciativa do governo.

2. A EDUCAÇÃO NO BRASIL, DURANTE O PRIMEIRO REINADO

Depois da Independência, verificou-se uma certa preocupação com os problemas educacionais de nossa. gente. Tanto que o primeiro projeto de Constituição, em 1823, estabelecia que deveria haver escolas primárias em cada termo, ginásios em cada comarca e universidades nos mais apropriados locais. A experiência veio mostrar quanto isso era a inexequível, pois ainda hoje, muito mais de um século decorrido, aquela grandiosa aspiração está longe de ser realizada.

A Constituição outorgada pelo imperador era mais modesta em matéria de educação, apenas. estabelecendo a gratuidade da instrução primária e atribuindo a qualquer cidadão o direito de abrir escola, sem qualquer exigência quanto à idoneidade profissional.

Nesse tempo, para suprir a falta de professores, foi adotado o sistema do ensino mútuo, de Lancaster, que consiste em dividir os alunos em classe de dez, ou decúria, ficando cada classe sob a responsabilidade de um aluno dos mais capazes. Mas esse sistema que, naquele tempo, era uma panacéia universal, não produziu os resultados esperados.

A 15 de novembro de 1827 foi promulgada a nossa, primeira lei orgânica do ensino, que entre outras coisas, estabelecia o seguinte: “Em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos haverá escolas de primeiras letras que forem necessárias”... “Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações da aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da, língua nacional, os princípios da moral cristã e da doutrina católico, apostólica, romana, proporcionadas à compreensão dos meninos, preferindo para o ensino de leitura a Constituição do Império e a História do Brasil"... “Os que pretenderem ser providos nas cadeiras, serão examinados publicamente perante o presidente da Província, em conselho, e estes provarão os que forem julgados mais dignos e darão parte ao governo para sua nomeação legal”... “Só serão admitidos à posição e examinados os cidadãos brasileiros que estiverem no gozo de seus direitos civis e políticos, sem nota de culpa na regularidade da conduta.”... “Haverá escolas de meninas nas cidades, vilas e lugares mais populosos em que os presidentes das províncias, em conselho, julgarem conveniente este estabelecimento.”... Na província em que estiver à Corte, pertence ao Ministro do Império o que nas outras se incumbe aos presidentes”.

É claro que a maioria desses dispositivos ficaram só no papel, por serem impraticáveis, sobretudo por não haver professores que pudessem satisfazer as condições estatuídas pela lei, pois os mestres existentes eram apenas capazes de ensinar a ler, escrever e contar, sendo em geral, ignorantes das outras matérias do currículo.

Ainda no primeiro reinado, deve ser assinalada, como acontecimento dos mais notáveis na história da educação brasileira, a instituição dos “primeiros cursos jurídicos, criados pelo decreto de 11 de agosto de 1827, um em S. Paulo e outro em Olinda. Dois anos antes, havia sido criado um curso dessa natureza, na capital do Império, mas que não chegou à funcionar, sendo, depois substituído pelos de S. Paulo e Olinda.

Constavam esses cursos de 9 cadeiras, sendo de 5 anos a sua duração. Como condição para a matrícula, exigia-se à idade de 15 anos, no mínimo e a aprovação nos exames de língua francesa e latina, retórica, filosofia racional e moral, e geometria (7).

3. A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO SEGUNDO REINADO

Durante a Regência, foi, pelo ato adicional de 1834, transferida às províncias a administração do ensino primário, ficando com o poder central o ensino médio, em geral, e o superior, na Corte. Essa medida não trouxe nenhuma vantagem. Ao contrário, estando as províncias em condições ainda mais desfavoráveis de que o poder central, em face do problema da educação, este ainda mais se agravou com à descentralização administrativa. Em 1867 o conselheiro Liberato Barroso assim se refere aos resultados da descentralização: “as idéias descentralizadoras deram origem a esta disposição da qual até hoje o país não conheceu vantagem alguma. As Assembléias provinciais não têm cuidado dos importantes interesses da instrução pública: o ensino oficial oferece ainda hoje este espetáculo de anomalia e desordem que assusta os espíritos, porque nele se contemplam o descalabro e a ruína moral do país”.

Ainda durante a Regência deve ser registrada a primeira experiência do ensino normal, no Brasil. Em 1835, foi instalada no Rio uma escola destinada à formação dos professores. O corpo docente se resumia no próprio diretor, ao qual a lei atribuía função de ministrar todos os ensinamentos do curso, que eram: leitura e escrita, quatro operações de aritmética, quebrados, decimais e proporções; noções gerais de geometria prática; gramática da língua nacional; elementos de geografia e princípios de moral cristã. Os candidatos à matrícula deveriam ser cidadãos brasileiros, alfabetizados, maiores de 18 anos, tendo “boa morigeração”. Em 1846 o presidente da Província, Pedreira de Couto Ferraz suprimia a escola por falta de frequência. (8) Em 1859, foi restaurada a Escola Normal, do Rio de Janeiro, já então em bases mais sólidas e com mais favoráveis condições de eficiência. As cadeiras que constituíam a nova escola, cuja provisão deveria ser feita mediante concurso, eram as seguintes: 1 — língua nacional, caligrafia, doutrina cristã e pedagogia, 2 — aritmética, inclusive metrologia, álgebra até equação do 2º grau, noções gerais de geometria teórica e prática; 3 — elementos de geografia e história, principalmente do Brasil.

Um ano depois, foi fundada outra escola normal na Bahia, a qual foi reorganizada em 1862. Em 1864, foi fundada a de Pernambuco, seguindo-se no mesmo ano a da Paraíba; em 1869, a do Rio Grande do Sul e a do Espirito Santo; em 1871 a do Pará; em 1873, a do Amazonas; em 1874 as do Rio eram de do Norte e Paraná e em 1875 a de São Paulo.

Também no período regencial foi oficializado o ensino secundário, com a criação do Colégio Pedro II. Depois da expulsão dos jesuítas, o ensino secundário ficara reduzido às aulas avulsas criadas pela reforma do Marquês de Pombal e alguns raros institutos mantidos pelas províncias, entre estes o Liceu Provincial de Pernambuco, criado em. 1825 atual Colégio Estadual de Pernambuco. Em 2 de dezembro de 1837, o) governo regencial converteu em colégio secundário o seminário de S. Joaquim, dando-lhe a denominação de Colégio Pedro II. O currículo desse colégio constava de línguas latina, grega e francesa, retórica, botânica, química, física, álgebra, geometria e astronomia, não incluindo, porém a língua portuguesa... Em 1837 foi expedido o regulamento do colégio (9). 

Em 1854 foi reformada a instrução pública na Corte, sendo estabelecidas condições para o exercício do magistério particular, passou a ser fiscalizado pelo governo, Foram também cominadas penalidades para os pais que não mandassem os filhos à escola. Outras reformas foram, ainda feitas, mas sem maior importância.

Em 1879, verificou-se outra reforma do ensino, a reforma Leôncio de Carvalho, que visava, sobretudo, a conceder uma maior liberdade à iniciativa particular, no domínio da educação, para que, por esse meio, se incrementasse a abertura de escolas, que viessem remediar a situação de verdadeiro descalabro do ensino, naquela época, quando as estatísticas revelavam não ser superior a 2% da população do país o número de crianças matriculadas nas escolas.

No artigo 1.º, rezava o decreto de reforma: "É completamente livre o ensino primário e secundário no município da Corte, e o ensino superior em todo o império, salvo a inspeção necessária para garantir as condições de moralidade e higiene". Além disso, estabelecia o decreto a obrigatoriedade do ensino primário, para toda criança entre 7 e 14 anos; regulava o currículo da escola primária do 1.º e 2.º graus, de 6 e 2 anos, respectivamente; determinava que o governo subvencionaria o ensino particular e criaria escolas normais na Corte e nas províncias, como também, escolas profissionais; organizava o plano de estudos das escolas normais; criava normas para os exames vestibulares ao curso superior, estabelecendo que das comissões julgadoras deveria, sempre que possível, participar um membro do magistério oficial, sendo esses exames fiscalizados pelo governo; criava seis lugares de inspetores de alunos, como auxiliares do inspetor geral do ensino primário e secundário, na Corte; reorganizava o Conselho Diretor da Instrução Pública; dispensava a freqüência nas escolas oficiais, podendo os alunos comparecer, apenas para os exames; por fim, estabelecia o decreto aludido que, qualquer escola de iniciativa privada de grau superior, que, durante sete anos tivesse pelo menos 40 alunos concluintes, poderia ser considerada Faculdade Livre, equiparada para todos os feitos às oficiais.

Foi essa reforma que deu ensejo aos famosos pareceres sobre a instrução pública, de autoria de Rui Barbosa, pareceres de centenas de páginas, em que se abordam com inteira proficiência os mais diversos problemas de educação, desde a organização do ensino, à Metodologia, à Psicologia Educacional, à Biologia, à Sociologia da educação etc. Pode muito bem esse documento ser considerado, não só em ordem de antiguidade, como pela sua excepcional importância, como um dos mais completos tratados de Pedagogia geral que já se escreveram no Brasil

4. A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO REGIME REPUBLICANO

A primeira Constituição republicana apenas tratou de educação para definir atribuições, nisso se conformando com o dispositivo do Ato Adicional, que atribuía às províncias a manutenção do ensino primário e superior, ficando a cargo do governo central apenas o ensino secundário nacional e o ensino superior na, capital do país. Além disso, estabeleceu a Constituição a laicidade do ensino Oficial, dispositivo que, indevidamente interpretado, baniu da escola brasileira qualquer influência religiosa, tornando-a assim incapaz de atingir sua finalidade, principalmente em relação à formação da consciência e dos caracteres.

No regime republicano, inúmeras reformas tem sofrido o ensino oficial no Brasil, principalmente o ensino secundário, a cargo do governo federal. Dentre essas, citaremos as mais importantes.

Em 1890, vários decretos do governo provisório estabeleceram, entre outras medidas, a liberdade de freqüência e a faculdade dos exames cumulativos, resultando disso a maior prodigalidade na distribuição dos diplomas do curso superior, na capital do país. Em 1911, a lei Rivadávia Correia desoficializou o ensino, reservando-se o governo apenas “uma função fiscalizadora e orientadora. Foi criado o Conselho Superior do Ensino para fiscalizar e orientar o funcionamento das escolas. Outras reformas se sucederam, mas sem alterar substancialmente a situação: Apenas a lei Maximiliano, de 1915, modificou os dispositivos da lei anterior, referente ao exercício do magistério, estabelecendo exigências relativas à idoneidade profissional dos professores, coisa de que não cogitava a lei antiga. Além disso, foi estabelecido o regime de concurso para o provimento das cadeiras das escolas oficiais e fixadas condições para o reconhecimento do ensino particular. Essa lei trouxe ainda uma inovação: a dos exames preparatórios parcelados, permitindo-se que o curso secundário fosse feito em parcelas, por matérias escolhidas cada ano pelo estudante, independente da frequência escolar. Na lei Maximiliano havia um dispositivo que merece ser ressaltado, porque deu origens à instituição do regime universitário no Brasil. Nesse dispositivo se estabelecia que, quando julgasse oportuno, poderia O governo federal reunir em Universidade as Faculdades de Medicina e de Direito e à Escola Politécnica, mantidas pelo poder público na Capital Federal.

Em 1920 foi criada a Universidade do Rio de Janeiro, depois, Universidade do Brasil.

Em 1945, a reforma Rocha Vaz, entre outras medidas, instituiu o Departamento Nacional do Ensino.

Depois da revolução de 1930, veio a reforma Francisco de Campos que reorganizou quase completamente o curso secundário. Modificou-se o currículo, com a inclusão de novas matérias, criou-se o curso complementar, intermediário entre o ginasial e o superior, alterou-se o sistema de exames etc. Além disso, foi regularizado o exercício do magistério secundário, com o registro obrigatório dos professores, mediante certas. condições, e se reformou o Conselho Nacional do Ensino, que passou à denominar-se Conselho Nacional de Educação. 

Pelo decreto de 30 de abril de 1931, foi abolida a laicidade compulsória de ensino, permitindo-se, em caráter facultativo, o ensino religioso nas escolas, com o que se atendeu aos reclamos da consciência nacional, traduzidos num movimento de opinião que empolgou o país inteiro, e se abriram novas perspectivas para a educação do Brasil. Nesse mesmo ano, foi promulgada a lei orgânica das universidades brasileiras.

A última reforma do curso secundário, que estabeleceu o regime atual, foi devida ao Ministro Gustavo Capanema. Essa reforma não alterou substancialmente a organização do ensino estabelecida na lei Francisco de Campos.

Em 1937 foi instituída a primeira Faculdade de Filosofia, no Brasil, com sede no Rio de Janeiro, de iniciativa do governo federal.

RESUMO

A EDUCAÇÃO NO BRASIL-COLÔNIA. — Começou com à vinda dos jesuítas em 1549, os quais, fundaram, em 1550, o “Colégio dos meninos de Jesus”, na Bahia, ao qual se seguiram o de São Vicente e muitos outros. Essas escolas eram primárias passando, depois, a secundárias. Com a expulsão dos jesuítas, em 1759, a educação brasileira ficou completamente ao abandono, sendo os seminários católicos as quase únicas escolas existentes. Com a vinda da família real em 1808, tomaram-se algumas medidas em prol do ensino superior.

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO PRIMEIRO REINO. — Em 1827, foi promulgada a primeira lei orgânica do ensino, e nesse mesmo ano era instalados os primeiros cursos jurídicos, um em São Paulo, outro em Olinda.

NO SEGUNDO REINADO. — Durante a Regência, foi descentralizado o ensino primário, medida que não trouxe nenhum benefício. Em 1835, foi feita a primeira experiência de ensino normal. Em 1837, foi oficializado o ensino secundário, com a criação do Colégio Pedro II. Em 1859, foi criada, definitivamente a primeira escola normal, no Rio, seguindo-se a da Bahia, a de Pernambuco, a da Paraíba, a do Rio Grande do Sul e várias outras.

NO REGIME REPUBLICANO. — O ensino primário continuou descentralizado, a cargo dos Estados. O ensino secundário e superior tem sofrido repetidas reformas, como as de Rivadávia Correia (1911) desoficializando o ensino e criando o Conselho Superior de Ensino; a de Maximiliano (1915), que permitiu os preparatórios parcelados, e permitiu a instituição de uma universidade. Em 1920, criou-se a Universidade do Rio de Janeiro, depois do Brasil. Em 1931, veio a reforma Francisco de Campos, que estabeleceu o curso secundário atual, apenas com as modificações da lei Capanema. Em 1931, foi revogada a laicidade obrigatória do ensino e em 1937, foi criada a primeira Faculdade de Filosofia.


Bibliografia

Almeida, Pires de, — “L'instructión publique au Brésil”. Rio de Janeiro, 1949.

Barbosa, Rui, — “Pareceres sôbre a reforma do ensino secundário e superior". Obras completas, vols, IX e X.

Calógeras, Pandiá. — “Formação histórica do Brasil”. Companhia Editora Nacional, 1935.

    — “Os jesuítas e o ensino”. Imprensa Nacional, Rio, 1911.

Calmon, Pedro. — “História social do Brasil”. Companhia Editora Nacional, 1937.

Filho, Lourenço. — “A pedagogia de Rui Barbosa”, Edições Melhoramentos 1956.

Leite, Serafim, S. J. — “História da Companhia de Jesus no Brasil”. Lisboa, 1938.

Moacir, Primitivo. — “A instrução primária e secundária no município da Corte, na Regência e maioridade”. Imprensa Nacional, Rio, 1924.

Morais, José Mariz de. — “Nóbrega o primeiro jesuíta do Brasil”, Imprensa Nacional, Rio, 1940.

Norton, Luís. — “A Corte de Portugal no Brasil”, Companhia Editora Nacional, 1938.

Peixoto, Afrânio. — “Noções de História da Educação”. Companhia Editora Nacional, 1933.

Prado, Paulo, — “Retrato do Brasil. F. Briguet & Cia. Rio, 1931.

Santos, Teobaldo de Miranda. — “Noções de História da Educação”. Companhia Editora Nacional, 1945.

Viana, Oliveira. — “Evolução do Povo Brasileiro”, Companhia Editora Nacional 1933.


Notas:

(1) Numa carta a Santo Inácio, assim descreve Anchieta uma dessas escolas: “Aqui estamos às vezes mais de vinte dos nossos, numa barraquinha de caniço e barro, coberta de palha, longa de catorze pés, larga de dez. É isto a escola, a enfermaria, dormitório, refeitório, cozinha e dispensa. Quando a fumaça da cozinha incomoda professores e alunos, a lição prossegue ao ar livre, porque é preferível sofrer o incômodo do frio, lá fora, do que o fumo aqui dentro”.

(2) Os nossos índios eram, como diz José Mariz de Morais, (“Nóbrega, o primeiro jesuíta do Brasil”, Imprensa Nacional, Rio, 1940) "Festeiros inveterados e doidos por música".

(3) João Ribeiro, “História do Brasil”, 11ª. edição, Livraria Francisco Alves, Rio.

(4) Vide Afrânio Peixoto, “Noções de História da Educação” Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1933.

(5) “A revolução de Pernambuco em 1817”.

(6) Apud Clóvis Beviláqua, “História da Faculdade de Direito do Recife”.

(7) Era o seguinte o currículo desses primeiros cursos jurídicos: 1º Ano, — Primeira Cadeira: — Direito Natural, análise da Constituição do Império, Direito das Gentes e Diplomacia; 2º Ano — Primeira Cadeiras — Continuação das matérias do ano anterior; Segunda Cadeira: — Direito Público eclesiástico; 3º Ano — Primeira Cadeira: — Direito Pátrio Civil; Segunda Cadeira: — Direito Pátrio Criminal, com teoria do processo criminal; 4º Ano — Primeira Cadeira: — Continuação do Direito Pátrio Civil; Segunda Cadeira: — Direito Mercantil e Marítimo; 5º Ano — Primeira Cadeira: — Economia Política; Segunda Cadeira: — Teoria e prática do processo adotadas pelas leis do Império.

(8) Justificando o seu ato, alegava Couto Ferraz que a Escola havia falhado quase completamente, apenas tendo formado, nos seus 10 anos de funcionamento, 4 ou 5 professores, não conseguindo criar nos alunos “os hábitos de mediania, de retiro e de ordem, que são necessários para o seu viver medíocre, nas freguesias do Interior, não lhes dando educação prática, isto é, educação adequada à vida que devem seguir”. Argumentos valiosos, mas que se prevalecessem hoje, justificariam o fechamento de muita Escola Normal da atualidade...

(9) Desse regulamento constava o seguinte: Atribuições dos professores: "ensinar aos seus alunos as letras e ciências, na parte que lhes couber, como, também, quando se oferecer ocasião, lembrar-lhes seus deveres para com Deus, para com seus pais, pátria e governo; entregar cada sábado ao vice-reitor um mapa sobre o procedimento e trabalho dos alunos; entrarem nas aulas vestidos decentemente, nas horas prescritas, imediatamente antes da entrada dos alunos; é-lhes proibido aceitar dos alunos retribuição ou presente de qualquer natureza que seja”. Condições de matrícula: idade pelo menos de 8 anos e de 12 quando muito; saber ler, escrever e as quatro operações da aritmética; atestado de bom comportamento e de vacina. Disciplina: privação de recreio, de passeio, de saída, trabalho extraordinários, prisão, privação de férias, vestir roupas às avessas, expulsão.

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Trecho retirado de Pequena História da Educação, Ruy de Ayres Bello, Editora do Brasil, 1969.


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