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Matemática e Teologia


Sobre a imagem acimaDeus criador do Universo. Observe que Ele, muito atento, manuseia cuidadosamente um imenso compasso (representação da Geometria, arte do Quadrivium, e do puro pensamento matemático do Criador) na circular “massa informe e vazia” para que, como disse Teodorico de Chartres, com amor e bondade, Deus, que é a Sabedoria, ordenasse a desordem e fosse a causa formal e eficiente do mundo, e assim as coisas criadas fossem partícipes de Sua felicidade através de Seu amor. Bíblia moralizante (séc. XIII), cód. 1779, folio 1v (Gênesis), Biblioteca Nacional da Áustria. In: Las biblias más bellas. Taschen, 2008, p. 215.


A ESCOLA DE CHARTRES E A TRADIÇÃO DO QUADRIVIUM

por Jorge Filipe N. S. Teixeira Lopes (*)

Cuestiones Teológicas, Vol. 41, No. 96 (julio - diciembre, 2014)

INTRODUÇÃO

Quando a obra Ars Fidei Catholicae foi oferecida ao papa Clemente III, entre 1187 e 1191, por Alain de Lille ou Nicolau de Amiens – os estudiosos modernos não são unânimes [1] – o seu autor procurara demonstrar como o ensino da teologia se tornara uma forma elevada da aritmética, com um modus operandi próprio na estruturação do pensamento. Esta oferenda evidenciava o progresso da teologia nesse século que findava. Entre outros subsídios, este progresso tinha passado pela intenção de explicar o mundo de forma racional, através de relações numéricas com as quais se pretendia revelar não só as leis da natureza, mas inclusive a própria essência divina. Nesse contexto, é de se realçar a abstração que o quadrivium permitira, ao longo da Idade Média, no conhecimento das coisas, e a importância que tivera na formação do homem medieval. De facto, essas quatro artes permitiriam ao homem conhecer as realidades celestes, ao mesmo tempo que o afastavam das coisas terrestres, conforme nos é relatado num trecho de um manuscrito anónimo (Per hoc quadrivium scimus caelestium contemplationem, terrestrium abiectionem) (Ghellinck, 1948, p. 16).

Cerca de meio século antes, por volta de 1141, o chanceler da escola de Chartres, Thierry de Chartres tinha escrito uma obra que ficaria conhecida como a ‘bíblia das artes liberais’, Heptateuchon, onde exprimira a sua concepção do saber e o papel das artes liberales no processo de conhecimento humano. O título da obra, alusivo ao número sete (επτά), fazia uma analogia entre as artes liberalesTrivium (Gramática, Dialética, Retórica) e Quadrivium (Astronomia, Música, Geometria, Aritmética) e os sete primeiros livros da Escritura (Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué e Juízes) (Jeauneau, 2009, pp. 67-68). No prólogo, Thierry afirmava que os dois instrumentos básicos do filosofar eram a reflexão – ou compreensão intelectual – e a expressão adequada. A reflexão intelectual seria proporcionada pelo quadrivium, que deveria iluminar o intelecto; o trivium, por sua vez, seria o meio pelo qual se permitiria a manifestação conveniente do pensamento (Jeauneau 1954, p. 174) [2]. Esta era, sem dúvida, a clássica divisão das ciências que fazia parte substancial do curriculum medieval das sete artes liberales.

O QUADRIVIUM COMO FORMA DE ABORDAR A NATUREZA

O desenvolvimento expositivo destes homens do século XII, que ficariam conhecidos como os primeiros ‘intelectuais’ do ocidente (LE GOFF 1951), denota um esforço em alinhavar argumentos claros e coerentes, apoiados em dados obtidos a partir da natureza. Para o pensamento chartriano, esta era chamada por ‘universo das coisas’ (rerum universitas) (Maccagnolo, 1976), pois englobava todo o universo criado, desde os coros angélicos até ao universo físico. As disciplinas das artes liberales proporcionavam ao intelectual a objetividade necessária, não somente na forma de abordar as ciências experimentais, mas também no processo lógico-argumentativo, a fim de melhor sustentar a clareza expositiva e organizar a sequência dos raciocínios.

O escopo do pensamento chartriano era provar que a ordenação do mundo criado exigiria um Criador. Essa preocupação já S. Agostinho tivera quando procurara dar uma noção filosófica de ordem (ordo) e procurado entender de que modo o nosso universo está sapiencialmente ordenado. Que instrumentos terá Deus utilizado para o conceber? Por vias do neoplatonismo agostiniano, uma tradição promovida pouco mais tarde em Boécio dizia que quatro eram as vias da sabedoria e quatro eram também os meios de estudar o universo: Astronomia, Música, Geometria e Aritmética. Seria, portanto, pelo quadrivium, isto é, pelas quatro disciplinas que proporcionam o estudo intelectual da natureza, que o homem poderia chegar até Deus.

Está claro então que, para a escola de Chartres, o universo das coisas (rerum universitas) é motivo para uma procura racional dos princípios em que a fé cristã acredita. Mas, além desse aspecto, cumpre compreender que estudar o cosmos pelo quadrivium é estudar a ciência do número, isto é, da aritmética combinada com as considerações metafísicas ensinadas pelos antigos e transmitidas ao mundo latino em grande medida por Boécio. Por exemplo, as arithmeticae probationes aplicadas por Thierry de Chartres à teologia no Tractatus de sex dierum operibus, são prova disso, bem como, em certo modo, a especulações teológicas da Dialectica, de Pedro Abelardo. Portanto, para se entender a importância destas scientiae rerum, deve-se proceder a uma análise histórica e, digamos assim, genealógica do quadrivium, em busca das fontes do pensamento chartriano para um estudo racional acerca do mundo.

O quadrivium nas fontes da tradição neoplatônica

Foi nas fontes do neoplatonismo latino que o chamado ‘pensamento racional’ ou ‘pensamento científico’ dos homens de Chartres se foi abeberar. E se a escola de Chartres foi um dos maiores bolsões de intelectualidade no século XII, sem embargo, a sua apreensão do cognoscível não deixa de passar pela ‘linguagem sagrada’ dos símbolos. Ela situa-se numa transição entre a visão simbólica e alegórica, patente em toda a alta Idade Média, e o pensamento científico da Alta Escolástica do século XIII. Como indicou o Prof. Gonzalo Soto (1999), o simbolismo é a inquirição in vestigium ire, isto é, a procura das marcas de Deus, e, portanto, o ponto onde se dá o encontro dos dois aspectos chave do conhecimento medieval: primeiro, a busca da semelhança, que lhe serve de configuração mental; depois o símbolo, que é o motor próprio dessa busca (pp.131-132). Há, portanto, toda uma variedade e gama de simbolismos que faz parte do misticismo medieval, e é nesse prisma que convém perceber a noção platónica de um universo racional, e, por conseguinte, os meios empreendidos para estudá-lo. Quer dizer, os seus métodos e ferramentas de estudo são repletos de pensamento religioso e mítico, que fazem-no interpretar o mundo de uma forma completamente distinta da do homem moderno.

Voltando ao nosso tema, foi em De musica de S. Agostinho que se evidenciou o carácter científico das artes liberais, o qual teria grande importância nos curricula da formação medieval. Já em De Ordine, o bispo de Hipona Agostinho traçara-lhes uma genealogia racional, solidificando-as numa unidade e denunciado a presença de proporção e harmonia nestas disciplinas, razão pela qual podiam ser concebidas como scientias. As artes do trivium e quadrivium, podiam levar a razão à busca da Verdade, do corpóreo (corporea), a uma ordem superior, acima do meramente sensível (incorporea). Nesse contexto, a música tinha um especial papel, pois dividia a sua função com a gramática através do som (sonus), e podia ser submetida a uma medida e ordem de acordo com proporções e números, dada a sua correspondência direta com as proporções aritméticas (Correa, 2009, pp. 148-150).

A razão humana capta a unidade, ordem e simetria, ou, segundo expressão do mestre de Hipona, a modulação (modulatio) proporcionada das coisas que existem. É, portanto, através das matemáticas que a razão pode aceder do sensível ao inteligível e contemplar o esplendor da verdade divina refletida no mundo visível. A ciência das artes liberais prepara, portanto, a alma para a consideração das harmonias e proporções do universo (Correa, 2009, p. 151).

No século VI, Boécio insistiu também no quadrivium, como as quatro disciplinas que abarcavam o estudo da natureza e como quádrupla via rumo à sabedoria. Denominando-as artes reais (artes reales) – referentes às coisas da natureza (res) – as ciências matemáticas eram a luz para os olhos da alma, desempenhando uma função propedêutica em relação à teologia (Kijewska, 2003). Era por intermédio delas que a alma se podia abrir para uma hierarquia de abstração, por onde podia aceder das percepções sensíveis à pura razão, a um conhecimento em harmonia com a mente divina.

Boécio distinguiu dois tipos de quantidade nestas quatro disciplinas das coisas: quantidade discreta - daquilo que é contável, relativo, portanto, aos números – e quantidade contínua - relativo a linhas no espaço - como segue (Boethius, II 1) [3]:

Aritmética (estuda a quantidade discreta estática)
Música (estuda a quantidade discreta em movimento)
Geometria (estuda as grandezas estacionárias)
Astronomia (estuda as grandezas dinâmicas em movimento)

É de realçar que o pensamento boeciano teve um papel único no século XII, não sendo por acaso que Marie-Dominique Chenu chamou a este tempo de aetas boetiana (pp.142-158). Relevante indício da sua larga influência é o facto do místico Hugo de São Victor, da abadia homónima, ao escrever Didascalicon, um livro que é um autêntico compêndio das artes liberales, definir as disciplinas do quadrivium com a mesma terminologia de Boécio:

Um tipo de magnitude é móvel, como as esferas celestiais, outro, imóvel, como a Terra. Ora, a quantidade que permanece em si é examinada pela Aritmética, enquanto aquilo que está em relação a outra quantidade é observada pela Música. A Geometria toma conhecimento da magnitude imóvel, enquanto a Astronomia toma conhecimento daquilo que é móvel. A Matemática, por conseguinte, está dividida em aritmética, música, geometria e astronomia (Hugonis ST. Victore 755C) [4].

Mas, além de Boécio e Agostinho, outros autores há que também merecem ser destacados no âmbito do estudo das artes liberales, genericamente falando, ao longo da Idade Média: numa abordagem cronológica, temos, em primeiro lugar, Vitruvius, que em De Architectura destacou a necessidade de formação em geometria, música e no conhecimento das proporções celestes, facultado pela astronomia; mais tarde S. Isidoro de Sevilha, em Etymologiarum, verdadeira enciclopédia do saber medieval, lembrou o papel das artes liberales, e a importância dos números na demarcação da música, geometria e aritmética. Mais tarde, no século IX, o irlandês John Scott Eurigena, seguindo o pensamento agostiniano, considera as artes liberales como uma via para apreender a verdade da Revelação. Nos seus comentários às Institutiones gramaticae de Prisciliano, ele diz que elas brilham com a luz da sabedoria (sapientiae luce praefulgens) (O’Meara, 1992, p. 178).

No entanto, a maior influência nesta área foi a obra De Nuptiis Mercurii et Philologiae, de Martianus Capella, retórico do século V. Nela representam-se alegoricamente as artes liberais, como sete virgens que oferecem seus presentes no casamento entre Filologia e Mercúrio. A obra foi encontrada em muitos mosteiros e catedrais nos séculos XI, XII e XIII, e sabe-se que toda a personificação das artes liberais ao longo da Idade Média é-lhe conforme (Mâle, 2000, p. 79). Por exemplo, em Anticlaudianus, obra escrita por volta de 1180, Alain de Lille imagina a figura da sabedoria (philosophiae) tendo diante de si as sete artes liberales que, sobre uma carruagem, vão em busca de Deus (Alanus Ab Insulis, pp. 505-521).

De Nuptiis Mercurii et Philologiae foi indubitavelmente o compêndio de artes liberales mais popular da Idade Média. E é curioso que, apesar de não conhecer Euclides nem Ptolomeu, Capella tenha abordado cientificamente tanto a Geometria tanto como a Astronomia. Para ter sido levado tão a sério pelos medievais, tenha-se em conta o facto da obra ter sido escrita em tom alegórico, o que fazia convidar o espírito a contemplar temas tão difíceis como as ciências dos astros e a aritmética de forma fantasiosa.

Mas outras duas obras são de vivo interesse, pois foram bastante lidas no tempo de Chartres: são elas o Timaeus de Platão, traduzido e comentado por Calcidius no século IV, e o comentário in Somnium Scipionis, de Cícero, por Macrobius, provavelmente no início do século V. No seu comentário Macrobius trata largamente de temas científicos, abordando desde a natureza do número e sua presença no universo, à astronomia e geografia, escrevendo até sobre a vida humana. Repleto de descrições astronómicas, a obra serviu de base para a cosmologia do período carolíngio até ao século XII.

O quadrivium entre o período carolíngeo e o século XII

A divisão das artes em trivium e quadrivium era já usada no começo do século IX. Vários escolásticos pretenderam ver a sua utilização como fundamento para um perfeito conhecimento de Deus, como Alcuinus de York, na escola palatina de Aix-la-Chapelle, no tempo da corte de Carlos Magno. Em De vera philosophia, que constitui o início da sua Grammatica, Alcuinus apresenta o caminho rumo à sabedoria com sucessivas graduações, fazendo notar que em Provérbios IX, 1, a sabedoria ao construir a sua casa, fê-lo sobre sete pilares que não são senão as sete artes liberais (p.853) [5].

São de salientar nessa época os diagramas planetários baseados em vários autores latinos, como os já mencionados Martianus Capella e Macrobius, mas também Plínio o Velho (séc. I), Calcidius, na sua tradução e comentários do Timaeus de Platão. Entre eles, destaca-se o trabalho de Calcidius que ofereceu pela primeira vez um universo racional, geométrico e filosoficamente coerente (Eastwood, 2007, pp. 26-29):

As sete artes liberais

Trivium
(scientiae vocis)
Gramatica (Lua) - Linguagem
Dialectica (Mercúrio) - Lógica
Rethorica (Vénus) - Arte de falar
Quadrivium
(scientiae rerum)
Aritmethica (Sol) - Número
Musica (Marte) - Harmonia
Geometria (Júpiter) - Espaço
Astronomia (Saturno) - Movimento   


As sete artes liberales tinham uma relação com os sete planetas. As relações entre ambos remontam a tempos longínquos e seriam imortalizadas por Dante (1265-1361), no Livro II da Divina Comédia, “il Convivio”, onde se estabelece uma analogia entre as esferas celestes da cosmologia medieval e as ciências. Segundo Dante, envolvendo a Terra esférica, as sete esferas dos planetas, começando pela Lua até Saturno, podem ser comparadas com as sete ciências. Assim, a Gramática correspondia à Lua, Dialética a Mercúrio, Retórica a Vénus, Geometria a Júpiter, Música a Marte, Astronomia a Saturno e a Aritmética ao Sol. A oitava esfera, a do Firmamento, associava-se à Física e à Metafísica. Dante afirma, por exemplo, que o sol relaciona-se com a aritmética da seguinte maneira: primeiro, ele é fonte de luz para todas as outras estrelas. Segundo, o olho não pode olhar a luz pela sua luminosidade. Por analogia, a aritmética – o estudo das propriedades numéricas – é o fundamento de todas as outras ciências analíticas, pois apesar dos números serem infinitos e imateriais, o intelecto humano pode ver e compreender seus princípios fundamentais (Lansing, 2000, p. 736).

Pelo fato de trabalhar com números e proporções, o quadrivium seria o melhor meio de compreender a ordem do universo, enquanto obra primorosa concebida pelo divino arquiteto, pois acreditava-se que as distâncias entre os planetas – bem como seus movimentos espaciais – estavam ordenados matematicamente. Portanto, estudar o universo seria tarefa não só da astronomia, mas também da ciência geométrica que estudava as leis imutáveis do espaço dispostas harmonicamente por Deus, segundo as proporções aritméticas e os padrões da harmonia musical.

Entre os séculos X e XI, em Reims, Gerbert d’Aurillac (930-1003), futuro Papa Silvestre II, aprofunda as artes do quadrivium. Desde o norte da França à abadia de Ripoll, da Catalunha à Itália, Gerbert ensina música, astronomia e geometria. Conhecem-se pelo menos duas obras redigidas sob sua inspiração, nomeadamente De Geometrica e De Astrolabio, que fazem transparecer a trajetória dos seus ensinamentos e o objetivo dos seus estudos: o aprofundamento das ciências naturais e práticas. Dando primazia à astronomia, Gerbert considera contudo que a geometria não é uma ciência que se reduz somente à resolução de problemas práticos, mas constitui uma forma sapiencial de pensar e apreender o Universo (Levet, 1997, p. 3).

Conhecido como o “papa matemático”, Gerbert não estudou somente o quadrivium, mas foi profundamente influenciado pelas ciências árabes, tendo reintroduzido na Europa o ábaco, como o demonstram as Regulae de numerorum abaci rationibus, e a esfera armilar. Dentre os seus alunos encontram-se figuras eminentes como Adalberon de Laon, João de Auxerre e o futuro fundador da escola de Chartres, São Fulberto de Chartres (c. 960-1028). Este último chega a Chartres por volta de 990, depois de ter estudado em Reims com Gerbert e tido por tutor Odon de Cluny, o qual fora aluno de Remigius de Auxerre. Mais tarde, torna-se mestre e chanceler, dirigindo as escolas da catedral que ele próprio manda reconstruir, após ser eleito bispo em 1006. Até à sua morte em 1028, Fulberto foi o grande impulsionador do estudo da filosofia, e quase todos os homens cultivados do seu século tiveram-no como mestre. Os ensinamentos dele situam o conhecimento do mundo não na percepção sensorial mas nas ideias; quer dizer, saber não significa um conhecimento ou mera classificação do universo, mas estudar sobretudo os seus princípios aparentes, isto é, as leis que o compõem (Brown, 2008, p. 237).

Entre os estudos de aprofundamento do quadrivium pelos seguidores de Gerbert, salienta-se a troca de oito cartas, cerca de 1025, entre Ragimbold de Colónia e Radolf de Liège – ambos alunos de Fulberto – que versam sobre uma questão de Boécio extraída das Categorias de Aristóteles, acerca de problemas de geometria. Apesar dessa troca de carteio revelar o diminuto e muito fragmentado conhecimento de ambos em Geometria,– além do que não conheciam nem grego nem as matemáticas árabes – é notável, sem dúvida, este vivo interesse por questões científicas e pelas obras antigas, o que viria a ter correspondência, um século mais tarde, na filosofia natural do Timaeus de Platão praticada pela escola de Chartres (Grant, 1977, pp.14-15).

O QUADRIVIUM NA ESCOLA DE CHARTRES

Se a cidade de Paris do século XII se tornou famosa pelos estudos de filosofia e teologia, as ciências, enquanto estudo da natureza e do que hoje chamamos comumente de ciências naturais, teve seu início com a escola de Chartres. Thierry de Chartres, por exemplo, ao interpretar o Génesis, propõe fazê-lo segundo as leis dos físicos (secundum rationem physicorum) (Häring, 1971, p. 562). Este modo racional de abordar a Criação reflete-se em outras obras suas: no prólogo do já mencionado Heptateucon, Thierry relaciona a sabedoria (sapientia) com a ciência das coisas (quadrivium); e no seu comentário ao De Trinitate de Boécio, faz um paralelo entre a sabedoria e a matemática, sublinhando que o costume dos antigos era aprender primeiro a matemática, de modo a poder aceder ao conhecimento de Deus ([…] quia mathematicam solebant prius antiqui discere ut ad divinitatis intelligentiam possent pervenire) (Häring, 1971, p. 62) [6]. O seu conceito de sabedoria está, portanto, relacionado com as artes do quadrivium, pelas quais, afirma ele, o universo pode ser estudado. Ter sabedoria significa compreender a racionalidade interna da natureza, que é alcançada por intermédio das ciências matemáticas, os quatro meios de ascender ao Deus criador (quattuor genera rationum ad cognitionem Creatoris), como o próprio Thierry afirma:

Assim, pois, existem quatro tipos de razões que levam o homem ao conhecimento do Criador, a saber: as provas aritméticas, musicais, geométricas e astronómicas. Nesta teologia devem-se empregar com prontidão ditas ferramentas, de maneira que se veja nas coisas a maestria do Criador e se manifeste racionalmente o que foi exposto (Häring, 1971, p. 568).

Na sua hermenêutica da Criação, Thierry tenta coadunar a narração evangélica com a experiência sensível e constatável pelas leis naturais, tentando fazer coincidir a exposição do autor sagrado com as exigências da ordem da natureza (ordo naturalis), nos momentos primeiros do mundo (Häring, 1971, p. 559). Na mesma linha, o seu contemporâneo e também mestre da mesma escola, Bernardo de Chartres, procurou fazer uma autêntica lectio physica da Criação, pois, na sua Glosae super Timaeus, obra na qual procura compreender a origem e ordem do universo, mostra como é possível inteligir as causas naturais através das ciências do quadrivium, pois é por intermédio dos números que se encontra a perfeição da ciência (scientia quadrivii […] est perfectio scientiae per numeros) (Dutton, 1991, p. 178).

Cabe aqui fazer uma indicação importante: existia na época uma concepção de que Deus governava o mundo através de uma lei, não no sentido moderno, mas a que chamavam alma do mundo (anima mundi), através da qual Deus mantinha ab extra todos os seres na sua devida ordem dentro do universo dos seres, ao mesmo tempo que lhes proporcionava as leis ab intra, que os faziam desenvolver conforme sua natureza. Vários chegaram inclusive a relacioná-la com o Espírito Santo, como Pedro Abelardo, que teve nesse assunto mais um motivo para a sua posterior condenação. De fato, era difícil distinguir entre o que era poder de Deus e lei da natureza, a qual ainda não se concebia enquanto tal. Sob esse aspecto, Thierry de Chartres, no seu comentário sobre a Criação, afirma que

em virtude daquele poder que opera sobre a matéria, existem todas as coisas que são ou podem ver-se no céu ou na terra. Com efeito, porque a própria matéria é por si mesma informe, não pode de modo algum obter a sua forma senão pelo poder do artífice que a trabalha e a ordena. (Häring, 1971, p. 566)

É pelo “espírito” de Deus, portanto que são governadas todas as espécies do mundo, cada qual segundo a natureza que Deus lhe conferiu (Häring, 1971, p. 566).

Seguindo a tradição neoplatônica, Thierry chama a essa força de (hyle), que é, em última análise, o mundo enquanto receptáculo de todas as coisas existentes, sejam as que se movem como as que vivem, e lembra que foi Platão, no Timaeus, que lhe chamou de anima mundi. Estas expressões filosóficas são depois relacionadas e justificadas com a frase do autor sagrado quando afirma no Génesis que “o Espírito do Senhor pairava sobre as águas” (Häring, 1971, pp. 566-567). Face à dificuldade de entender a origem e significado deste “poder”, o último dos grandes mestres de Chartres do século XII, João de Salisbury, deixou uma explicação sucinta mas clara sobre o seu significado:

O espírito criado [a anima mundi], isto é, o universal e natural movimento, toma uma forma que é em si mesma invisível numa matéria de si invisível, de uma tal maneira que o que é composto delas é transformado num género de substância atual e visível. O espírito é um movimento natural e universal, que contém os quatro elementos como se fossem ligados à matéria [hyle], e espalhados no firmamento pelas estrelas, no mundo sublunar pelo fogo, ar, água e terra, e em todas as outras coisas que naturalmente movem-se no mundo. A este movimento Mercúrio [Hermes] chama natureza, Platão chama de anima mundi, outros chamam destino e os teólogos chamam de providência divina. (Joannes Saresberiensis, 961D-962A)

Este poder da natureza foi o objeto principal do estudo de Chartres. Por isso se explica como era possível a crença de Bernardo de Chartres numa possibilidade de conhecer a ordem do universo através do quadrivium, e como ela se prendia ao facto de que a estabilidade do cosmos lhe fosse propiciada pela rigidez de leis métricas e por proporções matemáticas. Bernardo crê que esta firmeza e solidez do universo tem origem nos números 1, 2, 3 e 4, que são os que constituem a anima mundi, e, é importante recordar, são os mesmos da harmonia musical.

Com efeito, recorde-se que o medieval acreditava que a harmonia do mundo só podia existir porque era fundamentada na harmonia – do grego [ἁρμονία], que significava o princípio máximo de perfeição - das proporções musicais, isto é, da distâncias entre vários tons. Daí o fato, anteriormente mencionado, de se crer que os planetas estavam ordenados matematicamente segundo as tonalidades da escala musical. Razão pela qual eram capazes de produzir harmonias belíssimas ao movimentarem-se, que contudo não podiam ser captadas pelo ouvidos dos mortais – noção esta, de origem pitagórica, que ficou conhecida por teoria das esferas celestes. Para confirmar que o estudo da ordem do universo se faz pela música e por cálculos aritméticos, Bernardo lembra que Platão ensinara que a estrutura, ou a “sinfonia” do mundo partia dessa harmonia (Quibus simphoniis mundi fabricam constructam esse docebit) (Dutton, 1991, p. 146) [ver imagem 1].


IMAGEM 1. Escultura de Pitágoras (inferior esq.) tendo acima de si a Música (detalhe do Portal Royal de Chartres). À sua direita está Donato (ou Prisciano) que tem acima de si a Gramática.

Fonte: https://nibiryukov.narod.ru/nb_pinacoteca/nb_pinacoteca_sculpture/nb_sculpture_unknown_french_xii_chartres_cathedral_portal_statuettes.jpg


Essa ideia é largamente explorada pelos autores do século XII, como o inglês Adelard de Bath, que foi muito provavelmente um aluno de Thierry de Chartres. Em De eodem et diverso, recordando a Pitágoras, considerado o pai das matemáticas, Adelard ressalta a atração que a música exerce sobre homens e animais e lembra que isso se deve ao fato de que a harmonia da alma do mundo está presente em todos os seres do universo “o mesmo filósofo [Pitágoras] disse que a alma do mundo foi unificada destas consonâncias […] pois ela está em harmonia consigo mesma e alegre de colocar essa mesma harmonia nos corpos” (Burnett, 1998, p.54).

O estudo da música teve um papel fundamental nos mosteiros, ao longo da Idade Média. Na abadia de Cluny, que tinha na liturgia o centro gravitacional das suas atividades, a música estava no âmago da vida dos monges. Por isso, ao recitar o ofício, eles pretendiam entrar em consonância com a ordem do universo, que tinha na sua harmonia o mais belo hino de louvor da criação em relação ao seu Criador. Por isso, não é de admirar que o abade Hugo de Cluny tenha colocado nos capitéis do coro da basílica de Cluny uma representação dos tons musicais. Marie Thérèse D’Alverny deixou-nos um artigo bem significativo dessa mentalidade, que data de inicíos do século XII e reflete as influências de Calcidius, Capella, Macrobius e Boécio nas percepções musicais dos religiosos. Nele, ela comenta um curioso manuscrito intitulado De VII planetis et VIII musis, através do qual o autor - um anónimo monge - tenta suavizar os ensinamentos científicos com a arte poética. Para esse efeito, o método de ensino dos astros é dado através da leitura de uma prosa, que deve ser ao mesmo tempo cantada, e que faz corresponder para cada um dos sete tons da escala musical, um dos sete planetas (D’Alverny, 1964, pp. 7-20).

Como a música, as disciplinas que compõem o quadrivium são as scientiae princeps do estudo da natureza, ou seja, um modo científico que permite estudar o mundo criado, num caminho ascensional rumo ao Criador, como afirma Guilherme de Conches (100D) [7]. Uma edição de um tratado de autor anónimo Tractatus quidam de philosophia et partibus eius, publicado por Gilbert Dahan, revela bem como o homem platônico do século XII abordava os temas da natureza com base no quadrivium, dando-lhe um carácter científico (Dahan, 1983). Dahan é da hipótese do autor do texto ter sido discípulo de Guilherme de Conches. Este controverso mestre de Chartres compôs também uma Glosa super Platonem, onde seguiu os princípios geométricos e aritméticos dados por Boécio ao interpretar a ordem do mundo. Guilherme propõe uma autêntica ‘teologia musical’, pois para ele a anima mundi contém em si a harmonia arquetípica, que se reflete em todos os seres criados. E por isso os fenômenos que se podem contemplar na natureza têm leis próprias e inalteráveis. Essas leis Guilherme tentou explicar e interpretar nos três tratados filosóficos que nos chegaram: Glosae super Platonem, Philosophia mundi e Dragmaticon philosophiae.

É importante considerar como há na escola de Chartres um veio de busca sapiencial das causas da ordem do mundo criado, que suscita uma sinonímia entre scientia, sapientia e philosophia, isto é, entre aqueles que são considerados os instrumentos aptos para uma verdadeira interpretação da ordem do universo (Meirinhos, p. 4; Evans, 1993, pp. 7-8). Na verdade, a sabedoria é o fim último da filosofia (philosophia ergo est studium sapientiae), segundo Thierry de Chartres (Häring, 1971, p. 68), e a filosofia tem como instrumentos da sua análise as scientiae rerum, isto é, as ciências que estudam a verdade das coisas na imutabilidade dos números, como foi antes visto. Por isso, em Chartres, ciência e filosofia são os meios válidos, e porventura os únicos, para se alcançar a sabedoria. A imagem que mais bem expressa esse género de pensamento, e talvez também a mais bela, relacionando as artes liberales com a sabedoria, encontra-se no diagrama da filosofia da obra Hortus deliciarum, da mística Herrad de Landsberg, escrito após 1176 [ver imagem 2].

IMAGEM 2. A dama Philosophia tendo abaixo de si Sócrates e Platão e rodeada pelas sete artes liberais (as artes poéticas estão fora do círculo das ciências) © Strasbourg, Bibliothèque Municipale, (ms. perdido) Herrad de Hohenbourg, Hortus Deliciarum, f. 32r


CONCLUSÃO

Como foi visto, no século XII, a escola de Chartres pretendeu unir a teologia com as ciências matemáticas. Fruto de uma teologia de pendor platónico, desenvolvida sobretudo com base nos autores latinos dos séculos IV a VI, Chartres reúne e trabalha o pensamento físico e metafísico platónico - imbuído ainda de uma boa dose de matemáticas pitagóricas - que se encontra no Timaeus. No auge desta escola, estas teorias serviram tanto para a especulação teológica chartriana – de pendor naturalista - como para algumas aplicações científicas e práticas. Por isso, Winthrop Wetherbee afirmou que o século XII soube utilizar ferramentas na sua busca pelas causae e pelos principia, por onde é possível vislumbrar um gênero de pensamento que se poderia classificar como “ciência platónica” (Wetherbee, 1988, p. 26).

O seu pensamento teológico volta-se mais para a descoberta da natureza, afastando-se assim do ideal místico de sabedoria que perdurara ao longo da Idade Média, a imitatio christi. O pensamento chartriano demonstra um novo ideal que se traduz num esforço por compreender a estrutura matemática do universo, estabelecendo uma relação entre a teologia - mãe de todas as ciências - e o quadrivium.

A escola de Chartres criou métodos de estudo das universitas rerum, que são a base da sua particular cosmologia, isto é, da sua forma de fazer teologia e de conceber a Criação. Por isso, Thierry de Chartres, por exemplo, relaciona tão facilmente conceitos como sapientia e quadrivium, devido à semelhante imutabilidade que existe entre o Criador e a exatidão das ciências matemáticas. Pretende-se então fazer desta sabedoria uma teologia, isto é, unir razão e revelação, no intuito de encontrar nas universitas rerum aquilo que elas têm de mais verdadeiro pela vinculação com o Criador. E não é, portanto, de surpreender que uma das duas primeiras personificações em pedra das sete artes liberais, encontra-se no portail royal da catedral de Chartres, datado de cerca de 1150; era o momento em que a escola chartriana estava em pleno florescimento e Thierry de Chartres era seu chanceler [ver imagem 3].


IMAGEM 3. Portal Royal de Chartres

FONTE: https://employees.oneonta.edu/farberas/arth/Images/arth212images/gothic/Chartres/royport.jpg


REFERÊNCIAS

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A escola de Chartres e a tradição do quadrivium 

Artículo recibido el 25 enero de 2014 y aprobado para su publicación el 1 de julio de 2014

Resumo

A escola de Chartres foi um importante pólo do conhecimento no século XII. O pensamento chartriano ficou conhecido devido ao seu veio científico que procurou estudar as leis da natureza baseando-se nas scientiae rerum, isto é, no quadrivium. Era por intermédio das ciências matemáticas que o homem poderia, fazendo uso da abstração, intelectualizar os fenómenos que via na natureza e interpretar as leis que discernia no universo. Este artigo procura fazer um elenco das principais fontes neoplatónicas desse pensamento por meio de um apanhado histórico e hermenêutico – num périplo que abarca desde os autores latinos neoplatónicos aos mestres do renascimento carolíngeo – no intuito de perceber como, por meio dessas quatro ciências das coisas (scientiae res), Chartres se tornaria um dos mais importantes centros de estudo das artes liberales e uma percursora das modernas ciências da natureza.

Palavras-chave

Escola de Chartres, Matemáticas, Quadrivium, Ciência, Idade Média.


La escuela de Chartres y la tradición del Quadrivium

Resumen

La Escuela de Chartres fue un importante centro de conocimiento en el siglo XII. El pensamiento chartriano quedó conocido por su intención científica de estudiar las leyes de la naturaleza, con base en las scientiae rerum, es decir, en el quadrivium. A través de las ciencias matemáticas, el hombre podía, con el uso de la abstracción, intelectualizar los fenómenos que veía en la naturaleza e interpretar las leyes que discernía en el universo. Este artículo procura hacer un elenco de las principales fuentes de este pensamiento neoplatónico a través de un recorrido histórico y hermenéutico -en un recorrido que abarca desde los autores latinos neoplatónicos a los maestros del renacimiento Carolingio- con el objeto de comprender cómo, a través de estas cuatro ciencias de las cosas (scientiae res), Chartres se convirtió en uno de los centros más importantes para el estudio de las artes liberales y una precursora de las modernas ciencias de la naturaleza.

Palabras clave:

Escuela de Chartres, Matemáticas, Quadrivium, Ciencia, Edad Media.


The School of Chartres and Quadrivium’s Tradition

Abstract

The school of Chartres was a relevant center of knowledge in the 12th century. Chartrian thought became renowned due to its scientific scope which aimed for the study of the laws of nature based on the scientiae rerum, i.e., the quadrivium. Through mathematical sciences and by making use of abstraction, men could intellectualize the phenomena they saw in nature and interpret the laws they observed in the universe. Following a historical and hermeneutical approach, the paper aims to list the main sources of such a neoplatonic thought, which range from Latin neoplatonic authors to Carolingian renaissance masters, in order to understand how, through these four sciences of things (scientiae res), Chartres became one of the most important centers for the study of the liberal arts and a forefather of modern nature sciences.

Key words

School of Chartres, Mathematics, Quadrivium, Science, Middle Ages.


Notas:

(*) Doctor Canónico en Filosofía (2012) por la Universidad Pontificia Bolivariana (Medellín, Colombia). Es sacerdote de la Sociedad Clerical de Vida Apostólica Virgo Flos Carmeli y miembro de la Asociación Internacional de Derecho Pontificio Heraldos del Evangelio. Correo electrónico: p.jorgefilipe.ep@gmail.com.

[1] Sobre esta problemática, veja-se D’Alverny, 1964, pp. 68-69.

[2] “Nam, cum sint duo praecipua phylosophandi instrumenta, intellectus eiusque interpretatio, intellectum autem quadruvium illuminet, eis vero interpretationem elegantem, rationabilem, ornatam trivium subministret, manifestum est heptatheucon totius phylosophiae unicum ac singulare esse instrumentum”.

[3] “Sed inmobilis magnitudinis geometria speculationem tenet, mobilis vero scientiam astronomia persequitur, per se vero discretae quantitatis arithmetica auctor est, ad aliquid vero relatae musica probatur obtinere peritiam”.

[4] “magnitudinis vero alia sunt mobilia, ut sphaera mundi, alia immobilia, ut terra. multitudinem ergo quae per se est arithmetica speculatur, illam autem quae ad aliquid est, musica. immobilis magnitudinis geometria pollicetur notitiam. mobilis vero scientiam astronomicae disciplinae peritia vindicat. mathematica igitur dividitur in arithmeticam, musicam, geometriam, astronomiam”.

[5] “Sapientia aedificavit sibi domum, excidit columnas septem […]. Divina praeveniente etiam et perficiente gratia faciam quod rogastis, vobisque ad videndum ostendam septem philosophiae gradus”.

[6] Ver em Guilherme de Conches. Glosae super Platonem (Jeauneau 1965 p. 61): [Mathematica vero quadrivium continent]. Também In Consolationem, I, pr. 1 (Nauta 1999 p. 34): [[…] per mathematicam et phisicam, usque ad caelestia; deinde ad contemplationem incorporeorum usque ad creatorem per theologiam. Et hic est ordo philosophiae].

[7] “[…] ad studium philosophiae debemus accedere. Cujus hic ordo est, ut prius in quadrivio, id est ipsa prius arithmetica, secundus in música, tertius in geometría, quartus in astronomía. Deinde in pagina divina. Quippe cum per cognitionem creaturae ad cognitionem Creatoris perveniamus”.

***

Artigo disponível aqui: link.


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A Educação Doméstica no século XIX


A educação doméstica no Brasil de oitocentos

Maria Celi Chaves Vasconcelos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Universidade Católica de Petrópolis

Resumo

O presente artigo é uma reflexão a partir do livro A Casa e os seus Mestres: a educação no Brasil de Oitocentos (VASCONCELOS, 2005), no qual é apresentada a trajetória da educação doméstica, sistema utilizado pelas elites para a educação de seus filhos no século XIX. Este artigo pretende demonstrar como a educação realizada em casa foi uma modalidade reconhecida de educação durante o Oitocentos e, de que forma, nesse mesmo período a escola estatal vai adquirindo sua oficialidade e se tornando obrigatória, destituindo a educação doméstica do seu lugar reconhecido de formação e instrução. São abordados ainda, aspectos da prática da educação nas casas, como as características de seus agentes, a configuração dos espaços utilizados e os métodos de ensino adotados.

Palavras-chave: Educação doméstica. Escola estatal. Mestres. Professores particulares. Preceptores. Elites. Brasil oitocentista.

The home education at home in Brazil of the 19th century

Abstract

This article is a reflection about the book The House and its Masters: the education in Brazil of the Eighteen (VASCONCELOS, 2005), in which is presented the trajectory of the education at home, system used by the elites to educate their children in the 19th century. The text intends to demonstrate how the education held at home was a recognized meaning of education during the 18th century and, in which way, in this same period the state school goes acquiring its official task and become obligatory, dismissing the education at home of its recognized place of children’s formation and instruction. The article also addresses to aspects of the educational practice in the houses, as the characteristics of its agents, the configuration of the used spaces and the adopted methods of education are still approached.

Keywords: Education at home. State school. Masters. Teachers and tutors private. Elites. Brazil of the 18th century.


Introdução

A partir do século XVIII, na Europa Ocidental, a educação doméstica realizada nas camadas abastadas da população vai deixando de ser privilégio apenas das crianças nobres para se tornar uma prática recorrente entre ricos comerciantes, altos funcionários e famílias de elite que se espelhavam nos hábitos da aristocracia. Esse movimento pela educação das crianças — a fim de que se preparassem melhor para a vida adulta ou, no caso dos meninos, para a ocupação das funções prioritárias na sociedade — converte-se em estatuto de progresso e ascensão social, ultrapassando os desígnios apenas das elites e surgindo como aspiração de outros extratos da população.

No Brasil, tais práticas vão se afirmar durante o Oitocentos, fazendo com que as classes mais favorecidas, que podiam prover a educação de seus filhos, utilizassem a educação doméstica não só para a educação elementar, ou seja, para o ensino da leitura, escrita e contas mas também para a continuidade da formação dos jovens, com conhecimentos específicos. Dessa forma, a educação era dirigida pelo poder privado e estava sob sua estrita responsabilidade.

Tendo em vista a importância que a educação assume no Brasil, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, o Estado Imperial, diante das perspectivas de ampliação da educação formal advindas da influência dos modelos europeus, inicia a sistematização da escolarização, há muito praticada pelas ordens religiosas que, porém, atuavam num universo reduzido, direcionando seus colégios para um público definido.

Sob a tutela do Estado Imperial, a educação escolar se dá na esfera pública em contraponto à educação doméstica que, aplicada à esfera privada, permanece nas elites como forma de resistência à inferência do Estado na educação e como diferencial ao projeto de escolarização das classes populares, evidenciando a divergência entre as expectativas de educação desses segmentos. Se a educação popular estava sob a tutela estatal, a das elites iria se diferenciar na medida em que se conserva distante desta intervenção.

No entanto, essa forma pacífica e generalista, organizada por classes, que o texto parece sugerir, estava marcada pelas especificidades de cada lugar, e na realidade, no Brasil, encontrava-se como um movimento efervescente que suscitava inúmeras discussões.

Os rígidos padrões morais da população, as dificuldades de acesso às poucas escolas existentes — por vezes, colocadas pelo próprio Estado — aliadas às limitadas expectativas da população e às necessidades de sobrevivência no Brasil Oitocentista, essencialmente rural, cujas terras eram divididas entre grandes proprietários, faziam com que grande parte da população desconhecesse a escola, não alimentando qualquer perspectiva quanto a ela ou qualquer interesse pelo seu “saber”. A realidade vivida pelas classes menos favorecidas era extremamente rude e precária, constituindo-se em uma luta diária pela sobrevivência, impedindo que se empreendessem meios de freqüência à escola.

Além disso, havia muitas restrições às idéias de democratização do ensino e elas confrontavam os limites políticos e culturais típicos de uma sociedade escravista, autoritária e baseada nas desigualdades sociais. O Estado Imperial tinha presença muito pequena no que tange à instrução, até porque a própria escola não havia se firmado detentora de um lugar social legítimo. Eram contestáveis a sua existência e necessidade.

Algumas províncias, já na primeira metade do século XIX, estabeleceram leis que tornavam obrigatória a freqüência da população livre à escola. Porém, eram muitos os limites enfrentados para a concretização de tais ordenamentos legais. Aos obstáculos culturais, políticos e sociais relacionados à sociedade escravista e desigual se somavam a falta de orçamento nas províncias para um investimento que demandava amplos recursos para a concretização da universalização da instrução e que, ainda, teria de acarretar profundas mudanças nos hábitos na população.

Nesse contexto, favoreceu-se a educação doméstica, para a qual se voltaram os pais desejosos de garantir a instrução de seus filhos. Tratavam de aplicá-la eles mesmos, ou se socorriam dos préstimos de algum parente ou do capelão da paróquia local. As famílias mais abastadas podiam contratar mestres para lhes ensinar, especialmente as primeiras letras. Villalta sinaliza que:

A instrução na Colônia processava-se, assim, em grande parte, no âmbito do privado, preenchendo o vazio da escola pública e semipública inexistente ou escassa; quando se ultrapassavam os domínios da informalidade, estabelecendo-se vínculos formais entre professor e aprendizes, criava-se um ambiente se não tipicamente escolar, ao menos muito próximo de sê-lo. (VILLALTA, 1997, p. 357).

Para Faria Filho (2000, p. 138), há indícios de que a rede de escolarização doméstica atendia a um número de pessoas bem superior ao da rede pública: “Essas escolas, às vezes chamadas de particulares, outras vezes de domésticas, ao que tudo indica, superavam em número, até bem avançado o século XIX, aquelas cujos professores mantinham um vínculo direto com o Estado.”

Apesar da fragilidade e precariedade dos dados estatísticos, que, de forma muito precária, quase sempre se referem à instrução primária mantida pelo Estado, deixando de lado um significativo número de escolas sem nenhuma ligação com o mesmo, tais dados, bem como a crescente instituição de estruturas administrativas, dão-nos mostras de que em várias províncias do Império existiam significativas redes de escolas públicas, privadas ou domésticas. (FARIA FILHO, 2000, p. 138).

O autor acrescenta que “[...] a instituição escolar não surge no vazio deixado por outras instituições [...]” mas enfrentando outras formas tradicionais de educação que eram praticadas. (FARIA FILHO, 2000, p. 136).

Nesse sentido, constata-se — desde a Colônia, avançando por todo o século XIX — a importância da educação doméstica, pela quais crianças e jovens, filhos, parentes e agregados de famílias abastadas, como os cafeicultores do Vale do Paraíba fluminense recebiam educação nas suas próprias casas, com a contratação de mestres, professores particulares, preceptores ou até mesmo por parentes que habitavam na mesma casa.

Tais práticas podem-se afirmar com base em inúmeras fontes relativas ao período indicado, foram majoritárias na educação de crianças e jovens das elites durante a primeira metade do século XIX e permaneceram como uma forma reconhecida de educação até o limiar da República. Mesmo à medida que a escola se instituía e se afirmava em sua legitimidade, a educação doméstica continuava como um diferencial das classes mais favorecidas.

Os agentes da educação doméstica

Segundo Vasconcelos (2005), não havendo um estatuto formal e não podendo ser tratada como uma prática uniforme, a educação doméstica, como modalidade de educação, pode ser caracterizada conforme a atuação de seus agentes, levando em conta que suas práticas ora se mesclavam, ora se encontravam casos isolados que não se situam em nenhuma das formas descritas, ou até aproximam-se de todas.

Os professores particulares, também chamados de mestres particulares ou mestres que davam lições “por casas”, eram mestres específicos de primeiras letras, gramática, línguas, música, piano, artes e outros conhecimentos, que visitavam as casas ou fazendas sistematicamente, ministrando aulas a alunos membros da família, ou agregados, individualmente. Não habitavam nas casas, mas compareciam, para ministrar as aulas, em dias e horários pré-estabelecidos. Eram pagos pela família pelos cursos que ministravam.

Os preceptores eram mestres ou mestras que moravam na residência da família, às vezes, estrangeiros, contratados para a educação das crianças e jovens da casa (filhos, sobrinhos, irmãos menores). Os mestres preceptores caracterizavam-se pelo fato de viverem na mesma casa de seus alunos, constituindo-se, assim, dentro da realidade da educação doméstica, naqueles que parecem ter tido o maior custo para as famílias, sendo encontrados nas classes mais abastadas.

Havia, ainda, encarregados da educação doméstica, membros da própria família, mãe, pai, tios, tias, avós, ou até mesmo o padre capelão, que ministravam aulas no espaço da própria casa, não tendo custo algum e atendendo apenas às crianças daquela família ou parentela.

Apesar da nomenclatura e das circunstâncias diferenciadas de educação, todos eram tratados por “mestres”.

Homens e mulheres podem ser encontrados tanto como professores particulares como preceptores, entretanto, a preceptoria, por sua característica de moradia na casa dos alunos, era comumente exercida por mulheres, especialmente estrangeiras, que, por vezes, já vinham para o Brasil com a finalidade de exercer tais funções.

Nas Casas da aristocracia brasileira, a posição de mestres de meninos e meninas, durante a primeira metade do século XIX, gozava de uma relativa importância social, que se referia, na maioria das vezes, à condição da família em que atuavam e as habilidades que podiam ensinar.

Essa importância atribuída ao lugar de professores particulares ou de preceptores pode ser demonstrada, entre outros, pelo hábito observado em muitos anúncios dos jornais da época, especialmente até o final da década de 1860, nos quais os indivíduos que ofereciam seus préstimos, tanto homens como mulheres, indicavam o seu nome e a sua morada, tornando pública a sua ocupação.

A posição vantajosa ocupada pelos mestres das Casas, aumentava, assim como o seu reconhecimento e privilégios eram maiores, conforme a posição social e a fortuna que seus patrões possuíssem. Portanto, era contada como uma excelente referência do professor particular ou preceptor, a posição dos patrões para os quais já haviam trabalhado. Dessa forma, era um diferencial dentro das funções de mestres das Casas, trabalhar como professor particular ou preceptor em uma família nobre ou ainda ter educado filhos de personalidades destacadas no cenário político e econômico do Império.

As funções de professores particulares e preceptores também estavam submetidas a determinados critérios, sendo que nem todos os candidatos que se ofereciam, poderiam ser considerados aptos a educar os filhos das famílias abastadas. Nesse sentido, muitas vezes, eram solicitadas aos candidatos inúmeras referências pessoais, que iam desde a aparência física até a condição social em que se encontravam.

Empregando-se para “educar” meninas e meninos, dominando os diversificados conhecimentos exigidos para tal e ocupando um cargo ambicionado por estrangeiros que vinham para o Brasil, os professores particulares e os preceptores não poderiam ser desprovidos de um lugar representado como privilegiado nas estruturas sociais existentes. Entretanto, havia um limiar muito tênue entre o respeito e reconhecimento a sua posição social e à condição de empregados das elites, tratados como tal.

Nesse sentido, podem ser observadas preocupações por parte dos agentes da educação doméstica, principalmente as preceptoras, pois eram aquelas que mais ficavam submetidas à casa e aos patrões, levando-as a certificar-se do lugar que ocupariam e do tratamento que receberiam dos seus senhores.

À elite, a educação doméstica parece ter sido uma prática imprescindível, considerando-se, nesse período, um diferencial social, a educação passar pela casa. Dessa forma, mesmo aqueles cujos filhos freqüentavam algum colégio, ou aqueles que educavam, eles próprios, os filhos, em determinado momento, necessitavam dos serviços de professores particulares ou preceptores, seja para completar a educação recebida ou para a aprendizagem de alguma atividade específica.

Os agentes da educação doméstica também funcionavam como solução para aqueles que, por escolha ou por custos, tendo optado pelo colégio, não haviam conseguido dele os resultados esperados, vendo-se obrigados a recorrer aos serviços dos mestres das casas.

Tornando-se populares na Corte, ao longo do século XIX, os professores particulares, por vezes, eram bastante conhecidos, principalmente considerando-se que mesmo a cidade do Rio de Janeiro, durante o Oitocentos, tinha ares provinciais e conservava traços característicos dos vilarejos e aldeias do interior, com tipos caricatos, bem ilustrados na literatura, entre os quais, provavelmente, figurava o mestre ou professor.

O tempo na função de mestre das Casas parece ter sido, ainda, um atrativo que se constituía como uma distinção entre os sujeitos que atuavam na educação doméstica. Desse modo, a idade era um diferencial para a escolha dos pretendentes ao cargo de professores particulares ou preceptores das famílias, pois considerava-se que, quanto mais idosos, mais adequados os sujeitos a essa função. Cabe observar que a faixa etária a partir dos 30 anos, já era vista como de “meia-idade.” (ANÚNCIOS, 1869).

A partir do final da década de 1870, observa-se um princípio de concorrência explícita entre os anúncios de professores particulares e preceptores, provavelmente, causada pelo grande número existente de pessoas dedicadas à educação doméstica. Assim o preço dos serviços prestados de educação nas casas, passam a ser informados, como também os aspectos valorizados anteriormente.

Além das vantagens da educação doméstica ser praticada nas casas a um número reduzido de alunos, sem intermediações relativas ao pagamento, os serviços eram melhor remunerados se analisados na proporção das possibilidades de ganho, já que, na educação doméstica, os professores particulares, poderiam, por exemplo, ensinar em várias casas. Quanto aos preceptores, além de receberem um valor maior anual, podiam residir na casa de seus alunos, reduzindo as suas despesas pessoais.

Na educação doméstica, quanto mais diversificadas as matérias ensinadas pelo professor, maiores eram as chances de ser contratado pelas famílias, principalmente aquelas que utilizavam preceptores, bem como mais vantajosa a remuneração pelos serviços.

Em relação aos conhecimentos ensinados na educação doméstica, algumas vezes, eram encarregados diferentes professores particulares, atendendo aos desejos da família que os contratava, pois eram os pais que escolhiam, entre as matérias consideradas importantes, aquelas mais adequadas aos seus interesses, para que fossem ministradas aos seus filhos e, a partir daí, procediam à colocação de anúncios solicitando professores habilitados para tal, ou então, selecionavam, entre os anúncios existentes, aqueles que lhes pareciam mais apropriados a seus filhos, tratando da contratação dos mestres.

Assim, são oferecidos para a educação doméstica, além de “primeiras letras” e “instrução primária” —, caracterizadas como o ensino da escrita, leitura e contas —, ensinamentos de português e francês prioritariamente, seguidos de latim, inglês, alemão, italiano, espanhol, caligrafia, literatura, composição, religião, música, piano, solfejo, canto, rabeca, gramática portuguesa, latina, francesa e inglesa, lógica, matemática, geometria, aritmética, álgebra, contabilidade, escrituração mercantil, física, botânica, história universal, história do Brasil, geografia, desenho, pintura e aquarela.

Para as meninas, havia conhecimentos específicos a serem aprendidos como bordar, coser, marcar, cortar, dançar, trabalhos de agulha, caia a ouro, prata, matiz e escama de peixe, tricot, filot, flores, obras de fantasia, recortar estofos, veludos e outros trabalhos manuais, que eram oferecidos para serem ministrados por professores particulares e preceptores, juntamente com algumas das demais matérias citadas.

Espaços utilizados: a arquitetura da educação doméstica

No modelo de religiosidade que imperava no Brasil, atribuía-se um santo protetor a todos os ofícios, o que sugere que a análise dos padroeiros pode ser indicativa das atividades comumente exercidas nesse período.

Assim, encontramos em Villalta (1997, p. 358) referência a Sant’Ana como “[...] modelo inspirador das mães-mestras, particularmente comuns numa colônia em que escasseavam os professores de primeiras letras.”

Dessa forma, nas salas, onde ocorriam as lições, era comum que houvesse uma imagem de Sant’Ana, que, além do simbolismo da educação virtuosa dada a Maria, ainda demonstrava uma constante vigilância das atitudes de alunos e mestres.

Como a educação se dava na casa, principalmente em se tratando de fazendas distantes, as salas de lições, muitas vezes, possuíam a organização e decoração de um espaço físico doméstico para a leitura, ensinamentos e o armazenamento de livros e manuscritos.

Ao descrever as bibliotecas privadas, seus ambientes específicos e volumes armazenados, Villalta (1997) aponta a existência desses espaços, desde o Período Colonial, nas casas das elites econômicas e intelectuais, cujas salas de leitura e guarda de livros, possivelmente, eram também utilizadas para ensinamentos. Além de espaços de leitura e escrita, que vão tomando forma e mobília, algumas casas contavam com objetos para esse fim, como lupas, cavaletes, estantes, tinteiros, penas, papeleiros, escrivaninhas, com as paredes, por vezes, decoradas com mapas ou outros desenhos para estudos ou ilustração.

As casas possuíam ainda seus próprios instrumentos de castigos, que eram oferecidos ao professor ou preceptor, para quando sua utilização fosse necessária, ficando expostos nas salas onde se davam as lições, para depois serem guardados numa pequena dispensa junto aos aparelhos de tortura dos escravos, formando o arsenal com que a Casa impunha o seu poder aos seus habitantes. Entre esses eram bastante utilizados a “[...] ‘palmatória de pão’, a ‘palmatória de balêa’, o ‘azorrague’, as ‘corrêas’, as ‘cordas’, ‘a vara de marmeleiro’.” (VASCONCELOS, 2005, p. 87).

Os métodos de ensino

A educação doméstica, bem como a escola estatal emergente, utilizavam o método de ensino individual, que consistia no atendimento específico a cada aluno, mesmo quando o professor tinha vários alunos na classe.

O método individual foi, sem dúvida, o mais usado na educação de Oitocentos, e como não poderia deixar de ser, o mais adequado à educação doméstica. Nele cada aluno era atendido individualmente pelo professor, não só no que tange a conhecimentos ensinados, mas também na observação de seus progressos e recuos, bem como, na aplicação das “sabatinas” e “tomadas de lição ou ponto.” (VASCONCELOS, 2005, p. 91).

Em dezembro de 1855, o jornal A Semana publicava, em sua parte literária, uma exposição dos métodos de ensino mais conhecidos no Brasil para o Ensino Primário, fazendo uma análise da aplicação do método individual:

O método individual tem muitas vantagens preciosas. Por via dele o preceptor, ou professor contrai um íntimo conhecimento das disposições, do gênio, do caráter, das inclinações e da vocação do aluno; e por conseqüência acha-se habilitado para formar-lhe o coração, e dirigir-lhe a inteligência. Mas tem este método dois grandes inconvenientes. Carecia, que houvesse, como no Emilio de Rousseau um professor para cada discípulo; e este discípulo assim isolado, seria de um caráter insociável; e o seu saber seria como o ouro do usurário, que só aproveita à grosseira cobiça de quem o aferrolha. (METHODO MENEMONICO. LER, ESCREVER E CONTAR. EXPOSIÇÃO DE METHODOS, 1855, p. 4).

Faria Filho (2000) também descreve essa prática utilizada durante muito tempo, mesmo depois da instituição da escola formal:

Na verdade, era o método por excelência da instrução doméstica, aquela que ocorria em casa, onde a mãe ensinava aos filhos e às filhas, ou os irmãos que sabiam alguma coisa ensinavam àqueles que nada sabiam. O método individual caracterizava-se, pois, pelo fato de os alunos ficarem muito tempo sem o contato direto com o professor, fazendo com que a perda de tempo fosse grande e a indisciplina um problema sempre presente. Certa ocasião, um professor fez as contas e chegou à conclusão de que com uma jornada de 4 horas diárias de aula, mesmo [...] supondo uma multidão de circunstâncias favoráveis, que nunca jamais se podem encontrar, temos que, no sistema individual, cada aluno tem por dia 4 ½ minutos de lição de leitura, 3 de escrita e ½ de cálculo. (FARIA FILHO, 2000, p. 140).

No entanto, quando se trata de educação doméstica, podemos afirmar que não havia homogeneidade nos métodos de ensino, pois cada professor, cada preceptor tinha a sua escolha particular, o seu próprio método, o qual, por vezes, era criado pelo mesmo e anunciado para ser avaliado pelos pais.

Além da não uniformidade nos métodos utilizados, também, os compêndios e manuais utilizados eram de livre escolha dos mestres e das famílias, especialmente, porque durante muito tempo não havia compêndios brasileiros, pois “[...] são todos os compêndios em língua estrangeira [...]” (INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1861, p. 2), o que fazia com que os alunos precisassem inicialmente dominar a língua em que liam, para depois compreender as lições e regras escritas.

Os estrangeiros também traziam de seus países de origem os métodos utilizados. Entretanto, algumas vezes, tais métodos não produziam o efeito desejado, especialmente pelas diferenças culturais existentes entre mestres e discípulos. É o que relata a preceptora Ina Von Binzer (1980), em uma de suas cartas:

Não consigo habituar-me a este ensino superficial; mas, quando começo a profundar-me ainda é pior: fico completamente desanimada. A respeito da disciplina então! Só essa palavra já me faz subir o sangue à cabeça. Imagine isto: outro dia, ao entrar na classe, achei-a muito irrequieta e barulhenta e na minha confusão recorri ao Bormann. Quando obtive silêncio para poder ser ouvida, ordenei: ‘Levantar, sentar’, cinco vezes seguidas, o que no nosso país nunca deixa de ser considerado vergonhoso para uma classe. Mas, aqui — oh! Santa Simplicitas! —, quando cheguei a fazer-lhes compreender o que delas esperava, as crianças estavam tão longe de imaginar que aquilo representasse um castigo, que julgaram tratar-se de uma boa brincadeira e pulavam perpendicularmente como um prumo, para cima e para baixo, feito autômatos, divertindo-se regiamente. Grete, desde então o Borman está definitivamente descartado, para mim, aqui no Brasil. Reconheço ser indispensável adotar-se uma pedagogia aqui, mas ela deve ser brasileira e não alemã, calcada sobre moldes brasileiros e adaptada ao caráter do povo e às condições de sua vida doméstica. As crianças brasileiras, em absoluto, não devem ser educadas por alemães; é trabalho perdido, pois o enxerto de planta estrangeira que se faz à juventude daqui não pegará. (BINZER, 1980, p. 87).

Independente do método utilizado, as lições dadas aos alunos seguiam um ritual que pode ser resumido da seguinte forma:

[o professor] indica ao menino as páginas de um livro para objeto da lição quer seja de gramática ou leitura, quer seja de aritmética ou catecismo. Os mais zelosos mestres interrogam os alunos no fim do tempo da aula, e usando da fórmula — adiante! adiante! adiante! nos casos de hesitação nas respostas chegam ao termo da argumentação ou sabatina ou interrogação ou que melhor nome tenha com a consciência tranqüila de haverem cumprido um dever regulamentar. (O ENSINO PRIMÁRIO, 1872, p. 34).

A educação nas casas, quando se tratava do ensino elementar, tinha como objetivos gerais ensinar “de cór” todas as regras de gramática, encaminhar a leitura de textos clássicos, conhecer as quatro espécies de operações de aritmética e ensinar todas as orações do catecismo.

Baseados no ensino pela memória, grande parte dos métodos utilizados no Brasil em Oitocentos tinha como subsídio principal a memorização do que estava sendo ensinado. Assim, durante até 8 horas por dia, as crianças e jovens fixavam os olhos sobre as páginas dos livros, realizavam inúmeros exercícios semelhantes, cópias, declamações, respondiam a sabatinas, argüições e eram corrigidos naqueles que eram considerados os “defeitos principais dos meninos”: “[...] distração, orgulho, sensualidade, preguiça, ambição, perversidade e egoísmo [...]”, assim como eram estimulados naquelas que eram consideradas as “principais qualidades a criar-se”: “[...] franqueza, ordem, pudor, atividade, civilidade, obediência e exatidão.” (PRELECÇÕES PEDAGOGICAS, 1887, p. 422 e 424).

Uma vez que eram os pais que decidiam mandar ensinar a seus filhos certos conhecimentos em detrimento de outros, baseados em preconceitos, em um gosto, ou, simplesmente, tendo como guia a “rotina”, também eles participavam na escolha dos métodos de ensino, considerando, na maioria das vezes, aqueles mais apreciados à época, ou simplesmente entregando ao mestre a decisão do que era melhor para o ensinamento de seus filhos.

Sujeitos a professores particulares e preceptores, essas crianças e jovens encontravam no contexto em que viviam fora das aulas ou lições um dia-a-dia repleto de adultos, de outras crianças, espaços e “muleques” filhos de escravos que não tendo que se submeter à educação, como era entendida e trabalhada, guardadas as devidas proporções, eram mais livres que os próprios pequenos senhores e juntos aprendiam, no cotidiano doméstico, aquilo que os mestres, mesmo das casas, desconsideravam: a infância.

A educação doméstica e a escola estatal

Com o fortalecimento do Estado Imperial e com as discussões cada vez mais acirradas acerca da importância da instrução escolar, uma das preocupações iniciais é a de construção de espaços específicos para a escola estatal, a fim de comprovar sua ação mais eficaz junto às crianças, para êxito daqueles que defendiam sua superioridade frente às demais formas de educação.

O processo de apropriação pelo Estado da instrução pública e a própria concepção dos aspectos que englobariam o projeto centralizador têm como primeira tarefa, então, o distanciamento da educação dos sujeitos das práticas exercidas até esse momento nas casas, sob a exclusiva escolha e vigilância dos familiares e voltadas para aprendizagens e compromissos bem mais restritos do que aqueles aos que o Estado aspirava.

Romper com esse monopólio e isolamento das famílias em relação à formação de seus filhos é uma tarefa que vai exigir do Estado Imperial fundamentação e demonstração de legitimidade na condução de tal pleito.

Inicialmente, é na afirmação da instrução pública como empreendimento hercúleo e unicamente capaz de colocar a nação em condição de igualdade aos países tomados como referência que o projeto do Estado ganha adeptos, por vezes, convictos de que o ideal da instrução pública se destinava, de fato, a uma perspectiva de progresso e de distribuição do conhecimento a toda a população.

Apesar de a idéia de instrução pública parecer carregada de tais pretensões, a realidade de sua implantação caminhava em sentido oposto, pois ao questionar e desestabilizar a educação dada na casa aos seus senhores, expondo suas dificuldades e obstáculos, a instrução pública se propunha, então, apenas a substituí-la.

Nesse sentido, era preciso conciliar a instrução pública e as aspirações das elites acerca do Estado como patrocinador do projeto educativo e, nessas pretensões, aspirava-se à manutenção de privilégios e de diferenciações entre aqueles que eram pensados como cidadãos participantes do projeto de nação e aqueles que não sendo pensados como cidadãos, provavelmente, também não eram pensados como usuários da instrução pública.

Para delimitar os espaços de educação doméstica e de instrução pública se fazia necessária, ainda, a diferenciação dos sistemas de ensino, começando pelo local de atuação. Se a educação doméstica realizada na casa acompanhava esse cotidiano, à instrução pública se propunha a construção de espaços específicos que, considerados neutros, estivessem mais adequados às perspectivas do Estado e marcassem, definitivamente, a diferença entre a educação privada realizada na casa e a instrução pública tutelada pelo Estado Imperial.

A ambição da construção de escolas caracterizadas como locais adequados à instrução pública vai, progressivamente, incorporando-se ao próprio conceito de educação e destituindo do lugar de instrução todos os outros espaços, entre eles as casas e os ambientes domésticos utilizados para educação de crianças e jovens que, não assemelhados à escola, confrontavam a sua legitimidade e a sua exclusividade como instituição de educação.

Dessa forma, a instrução pública passa a ser demonstrada como uma dimensão exclusiva das escolas, caracterizadas como instituições educativas do Estado ou subordinadas a ele em suas licenças, autorizações e certificações.

Todavia, a difusão de tais idéias não foi suficiente para a mobilização da população para essa perspectiva de educação e escolarização, principalmente, nas classes que já usufruíam a educação nas casas.

O Estado, diante da resistência à escolarização e, conseqüentemente, ao projeto de instrução pública propagado em suas idéias e em seus projetos, vê-se na impossibilidade de colocar em prática suas disposições e realizar seus intentos. Para reverter tais circunstâncias é encaminhada aquela que parecia ser a possibilidade cabível de convencimento da população, o estabelecimento da obrigatoriedade do ensino por intermédio do instrumento de que o Estado dispunha, a imposição da legislação.

Apesar de contar com o apoio de educadores — que viam em tais medidas legais um estímulo à freqüência dos espaços escolares — e de a conjuntura política ser favorável à implantação de idéias que parecessem progressistas e voltadas para o atendimento das populações até então desassistidas, a obrigatoriedade do ensino, articulada à instrução pública, demonstrava uma interferência sem precedentes do Estado na educação, iniciando aquele que seria, mais tarde, o resultado do processo de estatização dos sistemas educacionais: a escolarização obrigatória.

Contudo, a afirmação da escolarização estatal gratuita e obrigatória se constituiu em um processo lento que suscitou avanços e recuos que perpassaram a própria história das instituições educativas no País.

Nas casas, muitos entendiam estar na sua vontade dar ou não instrução aos filhos, especialmente, quando a idéia de instrução pública estava identificada com a freqüência a uma escola estatal. A escola estatal não era vista como um lugar apropriado, seja por suas instalações deficientes seja pela diversidade de crianças e jovens que a freqüentavam ou, ainda, pelo temor dos efeitos à moralidade que poderia ocasionar tal reunião de meninos e, principalmente, de meninas.

O Estado se posicionava diante das críticas a seus projetos de unificação dos espaços de educação e de propagação de uma concepção de educação acessível a “todos” tutelada por ele, afirmando que a instrução e a educação dos filhos não constituíam um “direito do pátrio poder”, cujo exercício dependeria da vontade do pai, mas se caracterizaria como um ônus e um dever, cujo cumprimento cabia ao Estado exigir, como “[...] a primeira condição de progresso e da ordem social.” (ENSINO OBRIGATÓRIO, 1873, p. 171-172).

Além disso, o Estado, por meio de seus agentes, declarava “repugnante” e contraditório à natureza da família, às leis do progresso e à ordem social, esse pretendido direito de privar os filhos do desenvolvimento intelectual que, posto em prática, tornaria a família uma instituição bárbara e a distinguiria de seu verdadeiro papel de “base das sociedades cristãs” e “princípio de toda a civilização”.

Segundo os articulistas do Estado, a obrigação de instruir e educar os filhos tinha sanção legal nos Códigos Civis de todas as nações civilizadas e somente o Estado, pelo processo de escolarização, o qual se propunha a desenvolver, poderia exigir o cumprimento dessa obrigação, admitindo, porém, a possibilidade da educação privada sob as normas estatais, quando assim fosse o desejo dos pais, mas exigindo a instrução pública para todos os outros que não dispusessem de tais meios.

Na tentativa de seduzir adeptos a suas idéias, o Estado expunha ainda os aspectos econômicos de seu empreendimento educacional, demonstrando como a criação de um sistema público de ensino seria o mais fecundo em proveitosos resultados e o mais econômico, uma vez que reuniria para “dar educação em comum aos meninos e jovens pobres e aos meninos e jovens ricos.”

Tais argumentos, entretanto, desconsideravam aquele que se caracterizava como um dos maiores obstáculos ao projeto estatal: uma escola que reuniria classes sociais diferentes, perspectivas de cidadania distintas e formações que se pretendiam diferenciadas.

A escola estatal, porém, em sua constituição definitiva, estabelece-se, inicialmente, com ideais de socialização e difusão da educação pública para, posteriormente, em suas ações efetivas, adaptar-se às intenções e às expectativas das classes que podiam freqüentá-la.

No entanto, à medida que a escola estatal vai afirmando seu papel, as outras formas de educação não tuteladas pelo Estado, como a educação doméstica, vão sendo questionadas em sua legitimidade, limitando-se, no primeiro momento dessa fase de transição, à esfera da educação primária e, posteriormente, rendendo-se à educação estatal. Nesse percurso, bastante conflituoso, a educação doméstica não perece sem oferecer resistência, principalmente, à intervenção do Estado nos espaços de formação, mas, ao contrário, permanece ainda por muito tempo concomitante ao ensino oficial, como diferencial de posição social e expectativas educacionais.

Considerações finais

A educação doméstica foi durante muito tempo considerada pela historiografia da educação como uma prática de menor importância, baseando-se na hipótese de que se restringia a uma camada específica da população e que sua amplitude teria alcançado apenas alguns períodos e locais, onde a escola ainda não havia se afirmado. No entanto, pesquisas acerca do cotidiano sociocultural, principalmente do século XIX, demonstram que as lacunas de ensinamentos deixadas pela falta de escolarização da população, eram preenchidas pela educação doméstica, não só na aristocracia, mas nas camadas sociais emergentes que se inspiravam nos hábitos das classes mais favorecidas e aspiravam a dar a educação considerada apropriada, na época, aos seus filhos.

Nessa perspectiva, muitos foram aqueles que, durante o Oitocentos, tiveram educação nas casas, talvez até em maior número do que os que freqüentaram instituições escolares.

Mesmo quando a escola estatal emergente passa a ser uma demanda reconhecida pela população, pode-se afirmar que ela se destinava a um grupo social diferente daquele que já recebia educação. No entanto, é inegável que, sob a chancela do Estado, ela altera sensivelmente as formas de educação instituídas, como a educação doméstica, que se fragiliza pela impossibilidade de evoluir e por métodos e posturas constantemente criticados tanto por aqueles que dela usufruíam, como por aqueles que viam na intervenção estatal uma forma de integrar a nação e implantar critérios uniformes de se fazer ensino e educação.


Referências

ANÚNCIOS. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 04 jan. 1869.

BINZER, Ina Von. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora no Brasil. Tradução de Alice Rossi e Luisita da Gama Cerqueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

ENSINO OBRIGATÓRIO. Jornal A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 22, p. 171-172, 1873.

FARIA FILHO, Luciano Mendes. Instrução elementar no século XIX. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. (Org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

INSTRUCÇÃO PÚBLICA. Àlbum litterario, periódico instructivo e recreativo, Rio de Janeiro, 15 mar. 1861, v. 2, n. 16, p. 2.

METHODO MENEMONICO. LER, ESCREVER E CONTAR. EXPOSIÇÃO DE METHODOS. A Semana, Jornal Litterario Scientifico e Noticioso, Rio de Janeiro, 08 dez. 1855, v.1, n.1, p. 4.

O ENSINO PRIMÁRIO. Jornal A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, 12 maio 1872, v. 1, n. 5, p. 34.

PRELECÇÕES PEDAGOGICAS. Jornal A Instrucção Publica, Rio de Janeiro, v. 5. n. 48, p. 422-424, 1887.

VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e os seus mestres. A educação no Brasil de Oitocentos. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005.

VILLALTA. Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA, Laura de Mello e Souza. (Org.) História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


Profa. Dra. Maria Celi Chaves Vasconcelos
Faculdade de Educação
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Programa de Mestrado da Faculdade de Educação da Universidade
Católica de Petrópolis
Pesquisadora nas áreas de Políticas Públicas e História da Educação

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O presente artigo foi publicado na Revista Educação em Questão, Natal, v. 28, n. 14, p. 24-41, jan./jun. 2007 e se encontra disponível aqui: artigo.

A dissertação citada está disponível nesse LINK.


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O ensino de Cálculo no Ensino Médio

por Geraldo Ávila IMECC/UNICAMP

O texto O ensino do Cálculo no 2º grau foi retirado da Revista do Professor de Matemática (RPM), da Sociedade Brasileira de Matemática, nº 18 - 1º Semestre de 1991, disponível no site: LINK.

Ensinar Cálculo no 2.° grau?

Por que não ensinamos Cálculo na escola de 2° grau [atual Ensino Médio]? Será que é um assunto muito difícil? Foi sempre assim no passado, ou já houve época em que o Cálculo era ensinado na escola secundária? E nos outros países, como é a situação? É ou não conveniente introduzir o Cálculo no ensino? Por quê? Como fazer isso?

Estas são as questões que serão tratadas aqui. O tema é importante e deve merecer a atenção de quem se ocupa do ensino de 2.° grau, direta ou indiretamente.

Muita gente talvez não saiba - afinal, já são passados trinta anos! - mas no final dos anos 50 e começo dos anos 60, houve uma mudança significativa no ensino da Matemática no Brasil (em conseqüência do que então acontecia no exterior, diga-se de passagem). O nome do movimento era Matemática Moderna, pois, como propalavam seus defensores, era preciso modernizar esse ensino. A tônica dessa modernização foi uma ênfase excessiva no rigor e no formalismo das apresentações, à custa, inclusive, de retirar dos antigos programas tópicos importantes no ensino, como a Geometria e o Cálculo.

O Cálculo? Sim, o Cálculo! Pois fazia parte do programa da 3.ª série do chamado curso científico o ensino da derivada e aplicações a problemas de máximos e mínimos, além de outros tópicos como o polinômio de Taylor. Isso desde 1943, quando foi instituída uma reforma do ensino secundário que ficou conhecida pelo nome do ministro da educação na época, o sr. Gustavo Capanema. Mas mesmo antes da Reforma Capanema, quando o que hoje chamamos de 5.ª à 8.ª série [6º ao 9º ano atual] mais o 2.° grau era o curso ginasial de 5 anos, seguido por dois anos de pré-universitário, já o Cálculo fazia parte do programa no pré das escolas de engenharia.

Em outros países o Cálculo é ensinado na escola secundária. E às vezes até em quantidade substancial, como acontece nos Estados Unidos. Lá o sistema de ensino, embora varie de Estado para Estado, e mesmo nos diferentes distritos educacionais de um mesmo Estado, é organizado de maneira a ter maior flexibilidade nos anos finais, que formam o chamado senior high-school, correspondendo aproximadamente ao que aqui chamamos de 2.° grau. Assim, um aluno no senior high pode preferir estudar mais Matemática, mais Ciências ou mais Humanidades. Na primeira hipótese, ele terá à sua disposição cursos substanciais de Álgebra (incluindo Trigonometria e Geometria Analítica), Geometria, e Cálculo. E, geralmente, o aluno que faz Cálculo no senior high, quando entra na universidade, apresenta um certificado de proficiência que o dispensa do curso de Cálculo do primeiro semestre e, às vezes, do ano todo, dependendo do quanto de Cálculo ele estudou no senior high. Resultado: ele entra na universidade e já vai cursando disciplinas mais avançadas de Cálculo, Análise, Física, etc.

Por que o Cálculo foi excluído?

Se até 1960 o Cálculo era ensinado na escola secundária, por que então ele não foi incluído nos programas do novo sistema que criou o 2.° grau? De um lado, os reformistas valorizavam mais outros tópicos, que melhor se prestavam àquelas apresentações que eles consideravam modernas. De outro lado, não haveria mesmo espaço para tanta coisa nos programas, já que o rigor e o formalismo exigiam o ensino da teoria dos conjuntos (sic) e vários detalhamentos axiomáticos que tomam tempo. Foi precisamente por isso que o ensino da Geometria ficou tão prejudicado. Afinal, uma apresentação rigorosa da Geometria é tarefa difícil e demorada, que exige cinco grupos diferentes de axiomas. E o que pode motivar o aluno para isso é uma familiaridade preliminar com a própria Geometria com os problemas que surgem na organização das demonstrações, familiaridade com os fatos geométricos em primeiro lugar. Em outras palavras, para bem entender e apreciar uma apresentação rigorosa da Geometria, é preciso primeiro fazer um bom curso de Geometria, um curso de resultados. (Há um livro de Geometria, de Moise e Downs, escrito no espírito da Matemática Moderna, onde o Teorema de Pitágoras só vai aparecer na página 345, pois o autor tem de concentrar seu esforço na axiomática e no rigor! Como pode uma coisa assim?) Com essa excessiva preocupação com o rigor, o ensino do Cálculo exigiria agora um estudo detalhado dos números reais, coisa que tomaria no mínimo todo um semestre, por isto mesmo totalmente inviável...

O porquê do Cálculo

Os reformistas do ensino falavam em modernizar, criticavam o ensino por se limitar à Matemática que terminava no ano de 1700. Ora, o irônico é que descartaram o Cálculo, cujas idéias surgiram antes desse ano de 1700, e que são o que de mais moderno começava a surgir na Matemática. E desde então o Cálculo vem desempenhando um papel de grande relevância em todo o desenvolvimento científico-tecnológico. Portanto, descartá-lo no ensino é grave, porque deixa de lado uma componente significativa e certamente a mais relevante da Matemática para a formação do aluno num contexto de ensino moderno e atual. Incorreram os reformistas naquele erro de recusar a pedra angular, aquela que seria a mais importante na construção do edifício...

O Cálculo é moderno porque traz ideias novas, diferentes do que o aluno de 2.° grau encontra nas outras coisas que aprende em Aritmética, Álgebra, Geometria, Trigonometria e Geometria Analítica. Não apenas novas, mas idéias que têm grande relevância numa variedade de aplicações científicas no mundo moderno. Ora, o objetivo principal do ensino não é outro senão preparar o jovem para se integrar mais adequadamente à sociedade. Não se visa, com o ensino da Matemática no 2.° grau, formar especialistas no assunto. Ensina-se Matemática porque esta é uma disciplina que faz parte significativa da experiência humana ao longo dos séculos, porque ela continua sendo hoje, com intensidade ainda maior do que no passado, um instrumento eficaz e indispensável para os outros ramos do conhecimento.

O que ensinar

Mas - dirá alguém - será mesmo possível incluir o ensino do Cálculo em nossos programas já tão alentados? Queremos mostrar que sim, que é uma questão de arrumar os programas adequadamente. Ademais, o Cálculo, desde que apresentado convenientemente, ao contrário de ser difícil, é muito gratificante pelas idéias novas que traz e pelo poder e alcance de seus métodos. É perfeitamente possível, em uma única aula, introduzir a noção de reta tangente a uma curva e a de derivada de uma função, como já tivemos oportunidade de fazer em palestras para professores de 2.° grau. Para maiores esclarecimentos remetemos o leitor ao nosso livro de Cálculo [1], especialmente a parte que vai da seção 3.4 até o final do capítulo 3.

Ensina-se Matemática porque esta é uma disciplina que faz parte significativa da experiência humana ao longo dos séculos, porque ela continua sendo hoje, com intensidade ainda maior do que no passado, um instrumento eficaz e indispensável para os outros ramos do conhecimento.

É claro que a introdução da derivada deve ser acompanhada de várias de suas aplicações. Uma delas, tão útil e necessária nos cursos de Física, diz respeito à Cinemática. Não há dificuldades no estudo do movimento uniforme, ou seja, com velocidade constante. Mas ao passar adiante, desassistido da noção de derivada, o professor de Física faz uma ginástica complicada para apresentar o movimento uniformemente, variado. E as coisas seriam bem mais simples para ele e muito mais compreensíveis para o aluno se esse ensino fosse feito à luz da noção de derivada, interpretada como velocidade instantânea.

Uma vez aprendido que a derivada é o declive da reta tangente, o aluno entenderá facilmente, com apelo à intuição geométrica, que uma função é constante se sua derivada é zero. Daí segue que funções que tenham a mesma derivada diferem por uma constante, ou seja, uma é igual à outra mais uma constante. Isso permite obter facilmente a equação da velocidade a partir do dado de que a aceleração é constante; e também a equação horária do movimento, fazendo raciocínio análogo sobre a equação da velocidade.

A derivada tem inúmeras outras utilidades para o professor de Física, na introdução de conceitos como pressão, densidade de massa, densidade de carga elétrica, etc. E claro que isto suscita o problema de bem situar o ensino da derivada, que deve preceder ou ser feito simultaneamente ao da Cinemática na Física.

Uma aplicação importante da derivada na própria Matemática, e de muita atualidade nesta época de cálculos numéricos com auxílio de computadores eletrônicos, já foi apresentada nesta Revista; trata-se do método de Newton no cálculo numérico, em particular do cálculo de raízes n-ésimas pelo método das aproximações sucessivas; (Veja o artigo de Zanoni Carvalho da Silva, RPM 4, pp. 25 a 27.) Há interessantes aplicações da derivada a problemas de máximos e mínimos, da função exponencial a problemas de crescimento de populações, decaimento radioativo e outros mais (veja [1], seçs. 5.3 e 5.6), que cabem muito bem num curso introdutório e que têm alto poder de estímulo e gratificação, para o professor e para o aluno.

Outras aplicações que certamente estimularão o interesse e a curiosidade dos alunos requerem uma introdução à integral. Mas isto também pode ser feito de maneira intuitiva, sempre com ênfase nas idéias, nas técnicas e nas aplicações.

A idéia de que os programas de Matemática são extensos e não comportariam a inclusão do Cálculo é um equívoco. Os atuais programas estão, isto sim, mal estruturados.

Cabe aqui uma observação sobre livros. Estamos citando nosso livro de Cálculo porque ele reflete nosso modo de ver o ensino dessa disciplina. Embora escrito para a universidade, muitas de suas partes podem ser adequadas ao 2.° grau, com pequenas adaptações. Outros dois livros que tratam do Cálculo e que me chamaram a atenção são o 3.° volume da obra dos Profs. Trotta, Imenes e Jakubovic [5], onde o Cálculo (diferencial) ocupa todo o capítulo 2, e o livro do Prof. Nilson José Machado [4], todo ele dedicado ao Cálculo. A meu ver, os dois estão bem escritos, fazem bastante apelo à intuição geométrica e enfatizam as idéias em apresentações claras, sem excessos de formalismo. O primeiro deles foi até resenhado na RPM 1, pp. 18 e 19, pela Profa. Nilza Bertoni. Infelizmente está esgotado É de lamentar, porque, juntamente com os outros dois volumes da coleção, constitui-se numa das melhores obras já escritas para as três séries do 2.° grau. O livro do Professor Nilson cobre mais do que eu imagino deva integrar o currículo do 2.° grau. O autor vai razoavelmente longe numa apresentação bem equilibrada do Cálculo, incluindo também a integral.

Como introduzir Cálculo no ensino

A idéia de que os programas de Matemática são extensos e não comportariam a inclusão do Cálculo é um equívoco. Os atuais programas estão, isto sim, mal estruturados. A reforma dos anos 60 introduziu nos programas um pesado e excessivo formalismo. Não obstante as modificações que têm sido feitas nos últimos dez ou quinze anos, num esforço de melhoria do ensino, muito desse formalismo persiste em muitos livros e é responsável pelo inchaço desnecessário dos programas.

O exemplo mais evidente disso está no ensino das funções. Gasta-se muito tempo para introduzir uma extensa nomenclatura - contradomínio, função inversa, função composta, função injetiva, sobrejetiva - num esforço de poucos resultados práticos. É antipedagógico introduzir conceitos que não estejam sendo solicitados no desenvolvimento da disciplina. E se o professor seguir esta salutar orientação, ele não precisará, por bom tempo, de nenhum dos conceitos mencionados. Para que o conceito de contradomínio, por exemplo? A idéia de função inversa no Cálculo só vai aparecer significativamente quando desejamos calcular a derivada de uma função que possa ser interpretada como a inversa de outra cuja derivada já conhecemos. É este o caso da função arco-seno, inversa da função seno. A função composta só vai aparecer quando necessitarmos da regra de derivação em cadeia. Ora, muito antes de se lidar com essas coisas, há outras mais interessantes a apresentar aos alunos, tópicos substantivos, como o problema de definir e determinar a reta tangente. E para fazer isso não é preciso falar em contradomínio ou função injetiva; sequer necessitamos nos preocupar com o conceito de domínio. (Veja também o livro do Prof. Nilson [4], onde a apresentação inicial do conceito de função é rápida e direta.)

Infelizmente, o ensino das funções vem sendo feito com a introdução de muitas noções novas, como já dissemos, apresentação essa que é entremeada de exercícios pouco estimulantes, como determinar domínio e contradomínio de funções dadas, achar a inversa, compor funções, verificar que certas funções são injetivas, outras não, enfim, uma série de coisas que por si sós não estimulam a curiosidade do aluno. E para agravar ainda mais essa situação, as apresentações de funções geralmente são feitas com uma insistência no conceito mais geral de função, como caso particular de uma relação. Isto é um desatino! Já o seria se a insistência fosse apenas na situação mais particular de lei de correspondência que leva elementos de um conjunto - o domínio - em elementos de outro conjunto - o contradomínio. Não há por que preocupar-se com definição tão geral quando só serão usados exemplos simples de funções numéricas, como os polinômios, as funções racionais mais elementares e alguma raiz quadrada. (Veja-se, a este respeito, a seção 3.1 do nosso livro [1], uma aula apenas para generalidades sobre funções.) Não é de estranhar, depois de todo esse desacerto, que o aluno não goste de Matemática!...

Descartar o Cálculo no ensino é grave, porque deixa de lado uma componente significativa e certamente a mais relevante da Matemática para a formação do aluno num contexto de ensino moderno e atual.

Os matemáticos só conseguiram chegar ao conceito de função, tal como o entendemos hoje, depois de um longo período de evolução do Cálculo, cerca de século e meio. As funções iam aparecendo na formulação e tratamento dos problemas; primeiro funções simples, como os polinômios ou as que deles se obtêm por operações algébricas, depois a função logarítmica, a exponencial, as funções trigonométricas, etc. Aos poucos funções mais complicadas, dadas por séries ou integrais, também apareceram naturalmente, na tentativa de resolver equações diferenciais surgidas na formulação de problemas de Mecânica, condução do calor, em Mecânica Celeste, etc. Foi ao longo dessa lenta maturação que se foi reconhecendo a importância do conceito de função. É importante justamente porque com ele era possível formular e resolver problemas, o que exigia derivar e integrar funções, desenvolvê-las em séries infinitas, etc. (A respeito dessa evolução veja [2].)

Portanto, para podermos mostrar ao aluno a importância do conceito de função, temos de ensinar-lhe os conceitos de derivada e integral e para que servem esses conceitos. A medida que vamos avançando com a apresentação de idéias, com o desenvolvimento de métodos relevantes no tratamento de problemas significativos, aí sim, vão surgindo, a cada passo, gradativamente, a necessidade de definições novas, e dessa maneira o ensino pode tornar-se interessante, o aluno se sentirá estimulado porque entende a razão de ser do que está aprendendo.

Seria muito mais proveitoso que todo o tempo que hoje se gasta, no 2° grau, ensinando formalismo e longa terminologia sobre funções, que todo esse tempo fosse utilizado com o ensino das noções básicas do Cálculo e suas aplicações. Então, ao longo desse desenvolvimento, o ensino das funções seria feito no contexto apropriado, de maneira espontânea, progressiva e proveitosa.

Como se vê, o problema não é encontrar mais espaço nos atuais programas; trata-se, isto sim, de bem utilizar o espaço já disponível, com uma melhor distribuição e apresentação dos diferentes tópicos.

A estrutura dos programas

O que acabamos de escrever leva-nos naturalmente a considerar a estrutura dos atuais programas de Matemática. Hoje em dia vários tópicos desses programas são apresentados isoladamente uns dos outros, quando deveria haver maior articulação entre eles, para dar aquela tão desejada organicidade ao ensino. Esse fenômeno é conseqüência de sucessivas reformas; elas foram introduzindo mudanças, mas deixando certas coisas intocadas, as quais, depois de muito tempo, passaram a ser verdadeiros esqueletos no armário. Exemplo disto é o ensino de razões e proporções, de que tratamos em artigos publicados nas RPMs 8 e 9. Esse ensino não se modernizou e guarda resquícios de coisas muito antigas e de há muito ultrapassadas. (Veja, em particular, os comentários que fizemos nas pp. 1 e 2 da RPM 8.) O certo seria aproveitar o ensino de razões e proporções para dar início ao estudo de funções, enfatizando a interdependência das grandezas envolvidas e os gráficos. (O Prof. Nilson mostra como fazer isso em [4], p. 13 e seguintes.) Mais tarde, no estudo das equações lineares e da equação do 2.° grau, há oportunidade natural de voltar a enfatizar o aspecto de dependência funcional e utilizar gráficos. Por que não introduzir a noção de reta tangente e derivada no estudo do trinômio do 2.° grau, de seus extremos de máximo ou mínimo? Assim, a noção de função vai aparecendo aos poucos, em vários lugares onde é efetivamente utilizada, tecendo uma costura de harmonia entre as diferentes partes dos programas.

Outro tópico cujo tratamento já está defasado no tempo é o logaritmo. Se até há algumas décadas o logaritmo era um poderoso instrumento do cálculo numérico, isto já não é mais verdade há pelo menos vinte anos. Hoje em dia, com os computadores e as minicalculadoras, não há por que preocupar-se com tábuas de logaritmos e seu uso. Gastava-se muito tempo com isso, treinando os alunos na resolução de triângulos e em outros cálculos envolvendo tabelas de logaritmos de funções trigonométricas. Eis aí um espaço a ser preenchido com outras coisas. Não que descartemos o logaritmo. Ele continua sendo muito importante, não mais para o cálculo numérico, mas como função logarítmica. Sua inversa, a função exponencial, é talvez a função mais importante de toda a Matemática, com muitas aplicações interessantes, como já mencionamos. O natural, como se vê, é levar o logaritmo para o contexto do Cálculo. Definido como área sob uma hipérbole ([1], sec. 4.10; veja também [3] e p. 27 desta RPM), ele é um interessante prelúdio ao Cálculo Integral.

Como se vê, não é que falte espaço para o Cálculo nos programas. É preciso, isto sim, reestruturar esses programas, eliminar o que neles há de arcaico, introduzir novos tópicos e modernizar as apresentações, tudo isto feito de maneira que as diferentes partes fiquem bem articuladas entre si e o conjunto apresente organicidade.


Referências Bibliográficas:

[1]  Ávila, Geraldo. Cálculo 1. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora, 4* edição, 1981.

[2] Ávila, Geraldo. Evolução dos Conceitos de Função e de Integral. Revista Matemática Universitária, n.°1. Sociedade Brasileira de Matemática, 1985.

[3] Lima, Elon L. Logaritmos. Coleção Fundamentos da Matemática Elementar. Sociedade Brasileira de Matemática, 1985.

[4]  Machado, Nilson José. Noções de Cálculo. São Paulo, Editora Scipione, 1989.

[5]  Trotta, Imenes,  Jaknbovic. Matemática Aplicada. São Paulo, Editora Moderna, 1980.

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O que é o Trivium? - por Roberto Helguera

Transcrevemos abaixo trechos do vídeo O que é o Trivium? que foi traduzido pela própria Sacros*. O vídeo original está disponível neste link.

... e ordena o pensamento e ordena as paixões 
ordena o pensamento com lógica 
e ordena as paixões com a retórica.

Porque é a educação 
que prepara a mente para ser absoluta 
e totalmente livre de ideologias 
e para reconhecer a ordem das coisas,

são a sala de entrada da filosofia.


Olá. Como está você? Mais uma vez, quero falar com você sobre, obviamente, uma das questões de educação que eu mencionei para você. Você se lembra que no último vídeo falamos sobre as artes liberais, também falei sobre os três estágios do aprendizado das crianças, o estágio gramatical, o estágio lógico e o estágio retórico?

O que isso significa? Essas são três das artes tradicionais ou as artes liberais. A educação moderna inclui essas artes, mas as inclui dentro das matérias. Para falar a verdade é uma longa discussão, mas se tornou racionalista, iluminista e se esqueceu de fazer as coisas do modo como costumava fazê-las. O homem de antes, que para mim parece muito mais simples, mais fácil e melhor.

O que são as artes liberais? Hoje vou falar com você sobre o trivium especificamente dentro das artes liberais. As artes liberais são aquelas artes que o homem considera desde o homem da Grécia, Roma e o homem medieval, incluindo o Renascimento e, de fato, incluindo a boa educação que muitos de nossos de nossos heróis patrióticos tiveram, mas que a modernidade substituiu pela científica. São as artes da gramática, lógica e retórica ou trivium, cujo objeto é a palavra. Por quê? Porque como o homem aprende? O homem aprende observando a realidade, entendendo que essa realidade é externa a ele. Dar um nome a cada objeto, nomeando cada objeto, e logo depois unindo esses nomes por conexões lógicas, vamos dizer assim, e comunicando isso aos nossos iguais. Ou seja, como somos pessoas com inteligência e vontade, o que fazemos é olhar para a coisa, nomear a coisa e, ao nomear, recebemos os sons e nomes por nossos semelhantes, nossos pais, nossas mães, aqueles que nos precederam. Internalizar o nome da coisa que estamos vendo e depois comunicar. Então, é assim: eu penso, dou um nome e comunico verbalmente para outra pessoa. Das sete artes, estas são as três que têm como objeto a palavra. Então, o que são essas coisas que eu nomeio? São todas coisas externas a mim, em sua maior parte.

Depois vem o quadrivium: artes da aritmética, que é a arte de calcular a quantidade, porque é a categoria mais fácil para o homem.  Geometria, que lida com magnitude bem como a quantidade. A música, e aqui você pode pensar nas notas musicais depois cálculo, número; magnitude e tempo, ou seja, um ritmo e um tempo. Mas a música para os gregos também era tudo o que pertence às nove musas. Portanto, incluía as histórias épicas, incluía poesia, incluía as narrativas, as tragédias, as comédias, tudo o que fosse inspirado, música coral, música litúrgica, música lírica, isto é, tudo o que pertence às nove musas, música. Mas, acima de tudo, também um senso profundamente matemático da relação entre as coisas que geravam um som. Esse som harmônico era musical. Para isso, se você quiser, leia o diálogo: O Timeu de Platão, que é um diálogo que fala precisamente sobre música. E, finalmente, astronomia. Por que astronomia? Porque o ser humano não criou a si mesmo, senão que foi criado. E os planetas, por assim dizer para a antiguidade, eram os seres celestiais, eles eram os seres mais divinos ou mais semelhantes à divindade. Por quê? Porque eles eram aparentemente eternos, perfeitos, Vamos considerar a lua em sua forma redonda, cíclica, eles têm uma circularidade, por assim dizer, e o círculo para os antigos, mas também para nós, é o símbolo do infinito, porque é uma linha contínua que não começa e não termina. Então, de certa forma os corpos celestes e sua ordem eterna é a coisa mais próxima ao estudo de Deus, por assim dizer. Portanto, a astronomia fazia parte das antigas artes liberais. Mas também podemos substituir, se preferir, em um currículo moderno, a astronomia, deveria estar, pelo menos poeticamente, até que se tenha a matemática suficiente para entendê-la. Poderíamos substituí-la pelo que chamo de ciências naturais, que seria a observação de nosso ambiente e tentar entendê-lo a partir de suas causas. Mas vamos deixar o quadrivium, que são essas quatro artes liberais da aritmética, geometria, música e astronomia em um segundo momento. 

E hoje vamos falar sobre o trivium. Essas artes são chamadas de liberais, por quê? Porque elas são as artes que tornam o homem livre. São as artes que permitem que ao homem pensar de maneira adequada ser capaz de corresponder ou adaptar seu intelecto à realidade, que o cerca e, dessa forma exercer bem a virtude da prudência. Porque se eu enxergar a realidade como ela é, posso colocar em prática os meios apropriados e me comportar com sabedoria e lidar com tudo de acordo com sua natureza, ou seja, exercer justiça também de acordo com sua natureza. E, por fim, para entender por que eu devo ser forte e moderado. Então as virtudes cardeais são bem exercidas se eu entender bem a realidade e, para entender bem a realidade, preciso do trivium e do quadrivium, isto é, eles são a sala de entrada da filosofia. O filósofo é aquele que pode olhar para a realidade e entendê-la a partir de suas causas e a filosofia existe para nos levar, como diria Marechal, através da beleza, em até a teologia.  

As artes liberais libertam o homem por meio da verdade. As artes liberais liberam o homem por meio da verdade e permitem que ele se autodirecione. A inteligência é a parte mais elevada do homem. Por isso se a inteligência é usada para servir o corpo isso significa usar a parte superior ao serviço da mais baixa, é escravizante ou servil. Pensemos na modernidade de hoje em dia. Muito disso está acontecendo, não é mesmo? Inteligência, por outro lado, ao compreender ou entender, é livre, porque essa compreensão, esse mesmo entender é seu próprio bem. É por isso que com um Viktor Frankl ou com qualquer pessoa que tenha sido aprisionada ou que tenha sido detida injustamente, sabemos que esse homem em seu íntimo, em sua inteligência, é absoluta e totalmente livre e é impossível de ser aprisionado. Eis que surge a dificuldade e o perigo das ideologias quando elas impedem o homem de ver a realidade e escravizam a inteligência, mas liberam seu corpo. 

Veja isso. Então é por isso que você que estão assistindo a este vídeo, muitos de vocês podem ter decidido deixar as escolas para educar seus filhos, porque vocês perceberam que, embora seus filhos estejam cada vez mais livres fisicamente, ou seja, eles lhes dão educação sexual e lhe prometem liberdade absoluta e total, o que, na verdade, não é liberdade mas sim libertinagem, é escravidão às paixões. Eles estão invertendo a ordem e estão colocando a inteligência a serviço do corpo, liberando o corpo e escravizando a inteligência com uma ideologia que os impede de de ver a realidade cada vez mais. Não é à toa que Cristo diz que o único pecado que não é perdoável é o pecado contra o Espírito Santo. Por quê? Porque é o pecado em que não se pede perdão, porque não se reconhece mais o que é certo e o que é errado, porque se desvirtuou a inteligência, e a perverteu. Portanto, o aprendizado do trivium é fundamental.

Se compreender é libertador, entender as coisas mais elevadas é sempre o melhor. É por isso que nós vamos almejar nosso objetivo final. Por que estou sendo educado? Para que eu tenho o trivium de gramática, lógica e retórica? Porque eu quero chegar através do Verbo, da Palavra, aquele Verbo que no princípio era o Verbo e o Verbo era Deus. O Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Sem o Verbo nada foi criado. Então eu quero por meio dessa palavra, entender as coisas mais elevadas. Para isso, tenho que começar com o primeiro estágio e ir subindo degraus até chegar à teologia como eu lhe disse.

Então, as artes liberais são esse começo, para que então você possa fazer filosofia para que então você possa chegar à teologia. Essa é a pirâmide clássica do homem, até que chegarmos ao Iluminismo e à modernidade, onde é tudo substituído por uma pseudociência. Eu digo pseudociência porque não é uma ciência de fato, mas é uma parte da ciência. A ciência da medição, de contar. Isso vem desde Descartes até hoje, mas falaremos sobre isso em outro momento. Portanto, a educação que prepara homem para esse tipo de conhecimento ou que lhe ensina esse tipo de conhecimento do trivium e do quadrivium é realmente chamada de liberal, Pois é a educação que prepara a mente para ser absoluta e totalmente livre de ideologia e para reconhecer a ordem das coisas, para se adequar a essa ordem e, portanto, nunca ser surpreendido, ser livre, poder saber quais são minhas opções. Porque a liberdade não é ter todas as opções. Liberdade é saber quais não são as minhas escolhas. Eu não sou livre para voar. Preciso de um avião, preciso construir algo para voar porque eu sou um ser humano e não tenho asas. Um pássaro é livre para voar, mas não para pensar como eu penso. Sou livre para pensar e fazer as coisas que são próprias de minha natureza. O que os limites determinam é liberador, paradoxalmente. 

Como as artes liberais contribuem? A arte de forma genérica, São Tomás explica que é simplesmente um método eficiente de fazer as coisas. Então, se a palavra é meu principal modo de comunicação e é ela que faz a política, que é a ciência mais elevada da cidade. É o que faz todas as minhas relações com os seres humanos. O método efetivo de usar a palavra é muito importante e essa é uma parte essencial que deve estar na sua educação, na sua formação de seus filhos, caso você não tenha tido isso formalmente ou se sentir que está desordenado em seu pensamento, você pode estudar gramática, lógica e retórica. Podemos falar sobre esse assunto também. A prova do artista não está na vontade que ele coloca em seu trabalho, mas na excelência do trabalho que ele produz. Quero dizer, você pode se esforçar muito com gramática, lógica, retórica, mas produzir textos ruins, por assim dizer, ou pensamento de baixa qualidade, como acontece.

Os grandes oradores demagógicos são muito convincentes, mas não dizem nada. Tudo o que você precisa fazer é olhar para não apenas os debates presidenciais, você pode olhar para os jornalistas. Eles dizem um monte de coisas, mas não dizem nada. A excelência do trabalho que se produz é o que mede a qualidade do artista. Então temos essas artes, podemos usá-las para alguma coisa ou as tornamos servis. Por exemplo, podemos orientá-las para bens corpóreos e não liberais. Também existem as belas artes, que são as artes que visam satisfazer os sentidos, refrescar a alma. As artes liberais preparam a mente para a compreensão a partir das causas elas a aperfeiçoam especialmente nas ciências especulativas. Especulativas significa as ciências que apontam ao conhecimento pelo conhecimento, não para usá-lo de alguma forma. Quando eu descubro um buraco negro e que existe um buraco negro no espaço ou coisas que eu nunca vou tocar ou ver e assim por diante, estou fazendo isso para me fascinar com a ordem das coisas. Não porque eu vou construir uma nave espacial para chegar até o buraco negro. O importante é que são artes que eu preciso. Essas três artes do trivium preparam a inteligência para se adequar à realidade e, assim, permitem que atue livremente de acordo com o que é. Portanto, o trivium, tem como objeto a palavra. Já dissemos isso, e a palavra ordenada, a fala ou a palavra é o instrumento imediato da razão, é a maneira pela qual podemos raciocinar e expressar como raciocinamos. O quadrivium (tem como) objeto, a matéria que tem a quantidade, magnitude, tempo e espaço.

Deixamos isso de lado, voltamos ao trivium. A mente precisa da ferramenta da fala. Nós já dissemos isso, para entender objetos mais difíceis precisamos ter o domínio dessa ferramenta, porque a fala vai se tornando cada vez mais complexa quando vamos crescendo. É por isso que muitos jovens, por terem sido mal formados no trivium, chegam à universidade sem saber como ler e escrever ou entender o que lêem e como escrever. A lógica aqui tem uma certa preeminência, mas obviamente não é estudada formalmente até a idade da adolescência. Por quê? Porque dá método à cabeça, para que a mente seja capaz de usar a palavra de uma maneira apropriada. A primeira coisa que o trivium faz é ele nos dá a capacidade de significar. Essa é a gramática.

O que significa «significar»? «Significar» significa dar o símbolo ao significado como um sinal que aponta desde o grafema e o fonema que usamos para o objeto que ele representa. Ele é ordenado ao significado de algo. Temos dois tipos de de reação em relação a esse algo: o pensamento e a paixão. Paixão ou utilidade para mover a vontade de alguém. Isso seria retórica. Quando eu quero a utilidade ou convencer alguém do bom e do verdadeiro, tento mover e uso o significado das palavras para mover essa vontade. Esse é o meu objetivo e essa é a retórica. Por exemplo, para mover as paixões aponto o belo e a imaginação também, você tem que pensar sobre a fotografia, nos filmes, nas fotos nos filmes, nessa beleza. Se você já viu os filmes do Studio Ghibli, por exemplo, os japoneses ou se você já viu os filmes com excelente cinematografia, você verá que a beleza move as paixões. A música e fotografia fazem isso. As imagens movem as paixões para que o diretor, se for habilidoso, nos leve a sentir o que ele quer que sintamos naquele exato momento, para que fiquem satisfeitos e possam repousar. O mesmo faz a poesia. Isso é poesia, quando as paixões ficam satisfeitas e podem descansar. E você começa a ver que não apenas é só para entender e nos mover, mas quando começamos a descansar na beleza, começamos a ter uma experiência do céu, por assim dizer. Quando a palavra é ordenada apenas ao pensamento, ao bem em si mesmo, ao quê e ao porquê da lógica, nós estaremos usando a palavra não para um propósito utilitário, e sim para entender as coisas, principalmente a partir das causas. 

Então, até aqui eu disse a você que o trivium que é composto de gramática, lógica e retórica, tem a capacidade, ou seja, ordena a fala, porque a fala é o instrumento que a razão usa para se comunicar e pensar, e que a fala tem a capacidade de significar com grafemas e fonemas algo que existe fora de nosso intelecto, fora de nós e permite que o intelecto se adeque a esse algo, a essa realidade, e ordena o pensamento e ordena as paixões. Ordena o pensamento com lógica e ordena as paixões com a retórica. E com essa poesia ou essa beleza que mencionei na fotografia e na música, como exemplo, nos filmes. Mas além disso, podemos pensar na lógica, que é a ordem do pensamento. 

A lógica tem três movimentos. O primeiro, que é gramatical, digamos assim, que é o nome das coisas. Que nome eu dou às coisas? O segundo movimento do intelecto na lógica seria se eu disser que aquela coisa que nomeei ela é ou não é, ela sempre é, às vezes ou nunca, ou seja, é verdadeiro ou é falso. Eu lhe dou um sim ou não. A essa premissa,  que se chama assim quando menciono uma palavra, quero dizer, primeiro eu tenho o nome logo eu digo que é falsa ou verdadeira, que ela existe ou não existe, sempre ou as vezes, isso é uma premissa. Eu faço uma união dessas premissas em um terceiro ato do intelecto, que já seria o silogismo, que seria a junção de duas premissas com um termo médio um termo comum que seria a mesma palavra usada em uma premissa específica, uma premissa universal para chegar a uma nova conclusão. E assim estou construindo conhecimento.

Isso é, em poucas palavras, a lógica. Essa lógica, obviamente, quando parte de premissas evidentes que não precisam ser provadas, como, por exemplo, uma coisa não pode ser e não ser outra ao mesmo tempo no mesmo sentido, ou o inteiro é maior do que a parte ou o que quer que seja por definição em si, e vai avançando a partir dessa premissa se chama conhecimento científico mas na maioria das vezes, a discussão é outra quando as premissas são baseadas no que você acredita ou no que eu acredito.

Isso é chamado de dialética ou diálogo que começa com o que você acha que é verdade e parte daí vai com uma série de argumentações para me convencer de que isso é verdade, não é verdade, é falso, às vezes, e assim por diante. E assim o homem constrói o conhecimento e a fala. E essa é, se você preferir, a maneira em que essa dialética acontece, e tem diferentes tipos de discursos, se são forenses e discursos para estabelecer os fatos. E isso é feito no tempo passado, na retórica. Para estabelecer a moralidade ou o que é certo ou errado. E isso é feito no tempo presente, ou o político ou o possível, o futuro. E isso é feito no tempo futuro. Essas três razões para expressar todo esse conhecimento gramatical e lógico é expresso na retórica com os três modos retóricos de discurso. O forense, o moral, por assim dizer, e o político. E isso também requer uma pessoa que tenha seriedade, uma capacidade que demonstre que ela é capaz, que tem autoridade para falar dessa forma e que sabe como convencer. É por isso que a retórica inclui a beleza. A rainha do trivium é a retórica. Alguns dizem que é lógica porque é o que é necessário, mas eu acho que é a retórica porque é ela que incorpora toda a gramática e toda a lógica em um convencer o outro a mover sua vontade, para fazer o bem ou para fazer o mal. Mas a verdadeira retórica é aquela que embarca, que convence o outro, que move a vontade do outro e as paixões do outro para o bem, o belo e o verdadeiro. 

Isso é tudo sobre o trivium e é isso que eu queria dizer a você hoje. A primeira metade de uma boa educação explicado se você quiser um pouco mais filosoficamente. Espero que você tenha gostado, Espero que seja útil para você, caso contrário, aguarde a próxima semana Vou lhe falar sobre o quadrivium** e depois passaremos para outros e maiores horizontes.

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* Para saber mais sobre a Sacros clique aqui.

** O texto referido sobre o Quadrivium se encontra aqui.


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