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Sobre as Geometrias Não-Euclidianas e Não-Arquimédicas

Um triângulo nas geometrias elíptica, hiperbólica e euclidiana

APÊNDICE II

NOTAS METAFÍSICAS ACERCA DE HILBERT 
E SEUS ESTUDOS SOBRE AS GEOMETRIAS
NÃO-EUCLIDIANAS E NÃO-ARQUIMÉDICAS [1]

Por Carlos Augusto Casanova

Em sua obra grundlagen der geometrie (Fundamentos da Geometria), David Hilbert tentou provar a independência dos axiomas da geometria mediante a análise de geometrias que prescindissem de um axioma ou outro. Desta maneira, queria estabelecer que os axiomas não se deduzem uns dos outros [2]. Por exemplo, “o axioma III 5 [de congruência de triângulos] não pode ser deduzido dos outros axiomas I [de incidência], II [de ordem], III 1-4 [de congruência], IV [das paralelas] e V [de continuidade] por inferência lógica”[3]. Como sabe disso? Porque mostra que é possível uma definição de construção de segmentos tal que a partir dela se possa elaborar uma geometria completa, coerente, na qual não tenha força o axioma III 5, mas sim todos os demais [4]. Nestas notas examinaremos algumas das passagens em que Hilbert realiza esse mesmo trabalho com respeito ao axioma das paralelas (IV) e ao axioma de Arquimedes (V 1, junto a III 5, tomado apenas de modo restrito), e veremos que, ao menos numa construção geométrica particular, a omissão do axioma de Arquimedes (V 1) deixa sem aplicação o princípio de que o todo é maior que a parte.

O objetivo que perseguimos é refletir, à luz dos trabalhos mencionados, concernentes aos axiomas IV e V 1, se essa estratégia de Hilbert implica, como alguns crêem, (a) que as matemáticas são um puro “construto”, do qual os princípios podem ser escolhidos de modo arbitrário; e (b) que a inteligência pode evoluir de modo a deixar “superados” os axiomas tidos tradicionalmente como mais sólidos ou construções geométricas inteiras, como a euclidiana, com seus axiomas e teoremas por igual.

Neste artigo consideraremos sobretudo os Grundlagen der Geometrie e outras obras contemporâneas de Hilbert. Deixaremos de lado, de modo especial, o difícil problema de como os trabalhos de Hilbert sobre a Teoria da Relatividade afetaram o modo como ele concebia a relação entre a geometria euclidiana e o espaço de nossa experiência [5]. Todavia, algumas de nossas observações lançarão luz sobre o mui kantiano intento de Hilbert de transformar a física numa disciplina plenamente matemática.

O presente apêndice está dividido em três partes: (I) observações preliminares, (II) geometrias não-euclidianas, e (III) geometrias não-arquimédicas.

I. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

A força e a verdade dos princípios ou axiomas não podem ser provadas. O único que faremos, portanto, será refletir sobre a atividade de um matemático que tenta desentranhar seu significado. Deste modo, talvez se mostre, à mente daquele que se admira ante o caráter de aparência abstrusa e arbitrária desta atividade, que os axiomas não são arbitrários, que são evidentes e que se impõem por si mesmos quando as naturezas às que se referem seus termos estão em jogo e se manifestam à nossa mente.

A não-arbitrariedade dos axiomas matemáticos pode manifestar-se de duas maneiras. Em primeiro lugar, como diz Leo Corry, somente alguns sistemas axiomáticos resultam ser relevantes para a matemática [6]: apenas os axiomas que respondam à natureza do tipo particular de espaço e quantidade (discreta ou contínua) que estejam em jogo em uma construção qualquer sobreviverão a um exame racional. Em segundo lugar, de acordo com o que Hilbert em pessoa ensina:

O edifício da ciência não se constrói como uma habitação, na qual tem-se primeiro que estabelecer as fundações firmes para depois poder levantar e alargar os aposentos. A ciência prefere fazer o quanto antes confortáveis espaços por onde se possa passear com folga, e é somente depois, quando os primeiros sinais aparecem aqui e ali, que as instáveis fundações não são capazes de sustentar a expansão dos dormitórios, que ela se dispõe a repará-los e fortificá-los. Isto não é sinal de debilidade, mas, outrossim, é a via correta para seu bom desenvolvimento [7].

Em geral, o que Hilbert busca “é o sistema adequado a cada uma das teorias conhecidas e suficientemente elaboradas, e não o contrário” [8]. Todavia, como dissemos, no caso da obra Grundlagen der Geometrie, também pretende mostrar que alguns axiomas não podem ser derivados de outros e, para isso, utiliza a estratégia de construir sistemas axiomáticos nos quais não postula um deles, o qual, por isso mesmo, fica excluído do sistema, pois não se pode derivá-lo dos outros. Em tais construções, ele usa postulados convencio­nais ou outros arbitrários, mas com o propósito de estudar axiomas bem estabelecidos e suas relações. Ter em mente esta segunda tarefa nos será de ajuda para explicar alguns dos paradoxos que encontraremos em sua obra [9].

Hilbert sempre pensou não apenas que os axiomas não são arbitrários, mas também que existia uma relação entre o sistema axiomático da geometria e a realidade física. Entretanto, ao tentar explicar tal relação, incorreu em numerosas inexatidões e, inclusive, contradições.

Ao tratar da origem dos axiomas da física e da matemática, Hilbert fala da “observação” e da “intuição”. Essas ações têm verdadeiramente um lugar na origem dos princípios. Mas o modo como Hilbert as entendeu não lhe permitiu compreender a relação entre esses princípios e o real. Daí que a noção mesma de “verdade” se tornasse um quebra-cabeças para Hilbert, que a fazia seguir de um sinal de interrogação em carta dirigida a Frege, em 29 de setembro de 1899 [10]. Com efeito, Hilbert pensava que os axiomas teriam sua origem na experiência e na intuição, mas, uma vez formulados, seus conceitos se separariam daquelas [11], de tal maneira que seria difícil estabelecer sua relação com a realidade. Nessa mesma carta, ele parece pensar que os axiomas pudessem ser totalmente arbitrários, e que a verdade e o próprio existir significariam exclusivamente consistência [lógica] [12]. Em outras passagens, aponta que os axiomas podem ser aplicados a diversas realidades, sempre que elas satisfaçam tais axiomas, mas que se tiverem sido desenvolvidos suficientemente como a teoria de Maxwell da eletricidade, somente muita má vontade poderia pretender aplicá-los a outros fenômenos [13].

A que se deve que Hilbert não possa explicar suficientemente essa experiência básica da disciplina que praticou durante toda a vida, a correspondência entre a realidade e os axiomas? A resposta está sem dúvida conectada a vários fatos. Primeiro, ele desconhecia a distinção entre física e matemática. Ademais, não cabe aos matemáticos enquanto tais nem aos físicos enquanto tais a reflexão metafísica sobre a correspondência entre a realidade e as fórmulas de suas respectivas ciências, e Hilbert foi sempre sobretudo um matemático [14]. Até o século XVIII, os cientistas europeus gozavam de uma sólida educação clássica que os capacitava para a reflexão metafísica sobre sua disciplina. Mas desde o final do século XVIII esta tradição foi interrompida quase de todo. Talvez tenhamos que situar aqui a causa principal das perplexidades de Hilbert em torno dos fundamentos da ciência [15]: ele estava tentando restaurar a unidade do conhecimento, mas tal unidade se havia rompido há muito e no seu tempo a tarefa estava longe de ser fácil [16]. Por último, ele se encontrava sob a influência da filosofia de Kant.

Enquanto Huygens e Newton sabiam bem que a física (incluindo a física matemática) e a matemática (incluindo a geometria) não podem usar o mesmo método, Hilbert parece ignorá-lo de todo. Ele quer abarcar as ciências matemáticas e as ciências físicas, e, para isso, tenta conferir às ciências físicas uma abstração axiomática e uma segurança de resultados semelhante à da geometria, ao mesmo tempo que concebe a geometria como se fosse uma ciência natural [17]. Desconhece, assim, este ensinamento básico contido na Summa Theologiae (q. 32, a. 1, ad 2m), referente à física construída sobre hipóteses matematizadas:

De outro modo aduz-se uma razão que não prova suficientemente a raiz [a proposição que se quer provar, que não se demonstra por suas causas], senão que se mostra que uns efeitos concordam com a raiz já postulada: como em astrologia se postula a razão das excêntricas e dos epiciclos [próprios do sistema ptolemaico, que estava mais matematizado que o aristotélico e, por isso mesmo, repousava mais em hipóteses] porque, feita essa postulação, podem salvar-se os fenômenos sensí­veis acerca dos movimentos celestes. Mas esta razão não é suficientemente probante, porque talvez também com outra hipótese se possam salvar os fenômenos [18].

Em geometria, verdadeiras demonstrações podem ser construídas, mas na física matemática isso é impossível. A geometria deriva seus teoremas a partir dos axiomas de maneira dedutiva. A física matemática apenas imagina hipó­teses com as quais trata de “salvar os fenômenos” e as quais submete à prova na experimentação. Huygens conhecia um aspecto dessa limitação da física matemática: afirmava, por isso, no prefácio de seu Traité de la Lumière, que sua teoria da luz tentava mostrar os princípios hipotéticos a partir de suas conseqüências, e, por isso, não podia ser tão segura quanto a geometria [19]. Kant, em contrapartida, perde esta distinção por conceber a mecânica como uma ciência a priori e o espa­ço euclidiano como o espaço de nossas percepções sensíveis (organizadas pelas formas da sensibilidade) [20].

Por outro lado, talvez pela ampla influência de Kant no ambiente acadêmico alemão, Hilbert não fez o devido uso das finas distinções aristotélicas sobre a origem dos princípios e o modo de usá-los na física e na matemática [21]. Kant tinha razão, desde logo, ao apontar que a mente humana desempenha um papel ativo na obtenção dos axiomas. Estes não são “dados” à razão pelos sentidos. Mas devemos notar, como já disse num trabalho prévio incluído aqui como Apêndice I, que o caráter ativo de nossa mente pode ser melhor explicado com a noção aristotélica do intelecto agente do que com a noção kantiana das formas a priori da sensibilidade [22]. De acordo com o Estagirita, eles são possuídos pelo hábito do intelecto e nascem da análise das noções básicas de ambas as disciplinas, a quantidade contínua ou discreta ou as essências sensíveis. Tais noções se originam na indução, na experiência sensorial de seus respectivos gêneros sujeitos, iluminados pelo intelecto agente e captados pelo intelecto possível [23]. Não obstante, a origem comum destes axiomas na experiência sensível adota formas um tanto diversas em cada disciplina: na matemática, resultam da abstração da forma da quantidade; e na física, da abstração do todo com respeito à matéria concreta [24]. A física deve sempre estar apegada à experiência, a matemática pode proceder de modo mais abstrato, com um estilo peculiar, do qual falaremos mais tarde neste artigo [25]. A nenhuma das duas cabe a reflexão sobre em que sentido suas noções e juízos correspondem à realidade, porque nenhuma delas faz uma reflexão sobre o que é seu gênero sujeito. Isso cabe à filosofia primeira ou metafísica. 

Apesar de todas as suas perplexidades, e fora do calor da discussão epistolar com Frege, a opinião predominante de Hilbert ainda em 1919 é a seguinte:

[A matemática] nada tem que ver com a arbitrariedade. Em nenhum sentido a matemática é como um jogo, em que certas tarefas se determinam por regras estabelecidas arbitrariamente. Outrossim, ela é um sistema conceitual guiado por uma necessidade interna, que só pode ser assim e nunca de outra maneira [26].

Mais ainda. De acordo com Hilbert, [ao menos uma parte de] a matemática pura, ainda que alcance verdades necessárias, procede da experiência, da observação e da descrição dos objetos concretos da aritmética finita ou da geometria [27]. Podemos usar as palavras que empregou o próprio Hilbert:

[...] quando está trabalhando o poder criador da razão pura, o mundo exterior volta a entrar em jogo, nos força a considerar novas questões da experiência atual, abre novos ramos da matemática [que abarcaria a física, segundo Hilbert], e ao tempo que tentamos conquistar novos campos de conhecimento para incorporá-los ao reino do pensamento puro, amiúde encontramos a solução de velhos problemas não resolvidos e assim fazemos progredir mui exitosamente as velhas teorias. E me parece que as numerosas e surpreendentes analogias e essa harmonia em aparência pré-estabelecida, que o matemático freqüentemente percebe nas questões, métodos e idéias dos vários ramos desta ciência, têm sua origem no sempre recorrente intercâmbio entre pensamento e experiência [28].

Estas observações preliminares são suficientes para se ver que devemos introduzir algumas mudanças no modo como Hilbert considera a geometria desde o ponto de vista filosófico, se queremos dar conta da realidade ou veracidade dos axiomas. Com respeito às geometrias não-euclidianas, é preciso abandonar a crença de que a geometria euclidiana é a única que corresponde ao espaço de nossas percepções, e temos que conservar em mente que, ainda que os axiomas da geometria tenham sua origem na experiência, o caráter abstrato da matemática dá lugar a diferentes maneiras de analisar a experiência. Com relação ao caso particular da geometria não-arquimédica que estudaremos, deverá ficar claro que a pretensão (ao menos aparente) de Hilbert, segundo a qual o princípio de que “o todo é maior que a parte” pode ser superado, esquece o fato de que, para que um axioma seja aplicável a uma matéria dada, é preciso que as naturezas significadas nos termos do axioma estejam presentes nesta matéria. Deste modo, vemo-nos obrigados a tentar, desde uma perspectiva filosófica, uma explicação distinta acerca da realidade ou veracidade dos axiomas e das geometrias euclidianas e não-euclidianas. Temos a esperança de ajudar a estabelecer precisamente as verdades que o próprio Hilbert entreviu.

II. GEOMETRIAS NÃO-EUCLIDIANAS

Quando, na seção § 10 de seus Grundlagen der Geometrie, aplicando seu método, Hilbert deixa de lado o axioma das paralelas para construir uma geometria não-euclidiana, alude a um espaço claramente real, um espaço esférico. Este fato isolado resulta ser, à primeira vista, surpreendente. Como poderíamos suspender um axioma sobre o espaço, aplicar essa “suspensão” a um espaço real e obter ainda uma geometria “verdadeira”? Será que a geometria não tem a ver com a realidade e constitui, outrossim, uma pura construção mental? Tudo parece indicar que sim, porque até o venerável edifício euclidiano estava construído sobre um axioma do qual podemos prescindir de uma maneira completamente artificial.

Sabemos, contudo, que Hilbert não pensava ser a geometria puramente artificial, mas defendia, ao contrário, que ela fosse uma certa descrição ou compreensão do mundo físico [29]. Como explicar, pois, o aparente paradoxo? 

Poderíamos tentar uma primeira explicação dizendo que a esfera cujo espaço é analisado numa geometria não-euclidiana é concebida como incluída num espaço euclidiano mais amplo, uma espécie de “espaço absoluto”, newtoniano ou kantiano. E que a geometria não-euclidiana pode fazer sentido porque suas proposições podem ser transformadas e, deste modo, compreendidas por ou na geometria euclidiana.

Se refletirmos sobre as concepções aristotélica e leibniziana do espaço, contudo, vemos que não é necessária uma explicação tão artificiosa. O espaço não é uma entidade absoluta, mas um conjunto de relações - reais ou de razão - entre os extremos dos corpos [30]. Não existe um espaço absoluto em que se encontre uma esfera, mas diversos espaços que podem ser resolvidos em seus elementos de diversas maneiras. 

Se consideramos uma superfície esférica e definimos cada um dos pontos sobre ela como os dois extremos de cada diâ­metro que se podem traçar em cada um dos círculos maiores ou equadores que se encontram na esfera, e se cada linha é o perímetro de um desses círculos maiores, não pode haver nenhuma paralela que passe por um ponto externo a uma linha. Qualquer linha que passasse por um ponto externo interceptaria em um ponto (tal como foi definido) a primeira linha dada. Deste modo, não seria aplicável o axioma euclidiano das paralelas, identificado por Hilbert como IV: “Seja uma linha a e um ponto A que não se encontra nela. Então existe somente uma linha no plano, determinada por a e A, que passa por A e não intercepta a a” [31].

A geometria euclidiana, então, é verdadeira, apesar de existirem geometrias não-euclidianas também verdadeiras [32]. Euclides alcançou demonstrações propriamente ditas e, desde logo, elas são verdadeiras. Como se pode explicar que diversas geometrias sejam verdadeiras?

A geometria é abstrata, de acordo com Aristóteles e Sto. Tomás. A noção de “quantidade” (contínua ou discreta) chegou à nossa mente por experiência, mas foi abstraída ainda quando éramos apenas crianças. Por isso pode acontecer de nos esquecermos de sua origem e pensarmos que seja inata, como fizeram Platão, Leibniz e Kant. Nas demonstrações matemáticas, temos que supor como sujeito das “paixões” ou predicados que se demonstram, algumas noções básicas encerradas dentro do gênero da quantidade, tais como a unidade, o ponto, a linha, a superfície, o espaço, etc. Supostas estas e os significados dos substantivos com que se identificam, logo construímos outras coisas, como triângulos ou quadrados, e mais tarde buscamos por demonstração ainda outras coisas, como “os ângulos internos do triângulo somam 180º”, ou “a diagonal é incomensurável com os lados do quadrado”, etc. Cada passo nos dá o sujeito dos seguintes passos (pois uma vez construído o triângulo, pode-se provar deste, por exemplo, que seus ângulos internos somam 180º), e todos supõem que as noções básicas são e o que se significa com as palavras com que as nomeamos. Mas essas noções básicas e o gênero “quantidade” a que pertencem não existem em si mesmos, sendo senão apenas na substância, que a matemática não considera [33]

Por causa de seu caráter abstrato, não cabe à matemática investigar em que sentido a investigação matemática é real. Pela mesma razão, ademais, pode parecer que a matemática constitui um construto, “porque suas demonstrações se dizem como se fossem operativas, como aquela: Sobre uma linha reta dada, construa-se um triângulo eqüilátero"? [34]. Por isso mesmo, finalmente, as demonstrações podem tomar diversos caminhos. Mas isso não quer dizer que não respondam a algo real e que sejam inteiramente arbitrárias [35]. As demonstrações de Euclides são tão firmes hoje como sempre o foram, ainda que saibamos agora que não esgotam a explicação das realidades extensas e contínuas. E são firmes precisamente porque, como qualquer verdadeira demonstração, elas explicam o efeito como conseqüência necessária de causas [formais] bem conhecidas [36].

Nisto, nossa perspectiva para compreender a natureza da matemática é melhor que a de Newton ou Kant, porque, devido ao desenvolvimento da física e da matemática nos séculos XIX e XX , mais facilmente podemos considerar as relações entre a experiência e as matemáticas. Também entendemos mais facilmente - com Aristóteles e Leibniz - que o espaço é relativo. Podemos ver também, finalmente - dentro do espírito da filosofia tomista da matemática, mas para além de sua letra - , que são possíveis construções da geometria alternativas à de Euclides.

Para entender como podem ser verdadeiras ao mesmo tempo geometrias euclidianas e não-euclidianas, temos de considerar que o axioma das paralelas entra em jogo quando o tipo de espaço de que se está falando é “plano” ou é analisado como se fosse plano. Se estamos falando de outro tipo de espaço ou outra análise, esse princípio não tem validade. Como qualquer outro axioma, está condicionado a que seus termos precisos (evitada a recorrente equivocidade da linguagem, origem de tantas objeções sofísticas [37]) estejam em jogo nas demonstrações de que estamos tratando.

No artigo “Sobre as hipóteses que jazem na base da geometria” de Riemann, encontram-se reflexões que com muita força ratificam o que temos afirmado nos parágrafos anteriores. A geometria assume como coisas dadas a noção de espa­ço e os primeiros princípios de construção nele, enquanto fornece definições meramente nominais de todas as noções primitivas. Deixa, portanto, na obscuridade, as relações entre estes pressupostos e o problema de serem necessários ou mesmo possíveis. Ainda que se possa construir matematicamente uma magnitude estendida de mais de três dimensões, o espaço é uma magnitude estendida apenas em três. Por isso a geometria deve manter uma relação com a experiência. Temos que descobrir os “fatos” mais simples com os quais construir as relações de medida do espaço, mas nessa tarefa não existe apenas um caminho possível, porque os “fatos” bastantes para determinar as relações de medida podem ser organizados em vários sistemas diferentes, dos quais o mais importante é o que Euclides deixou estabelecido como uma fundação da geometria. Esses “fatos”, portanto, são assumidos como hipóteses [38].

Neste ponto, as reflexões “metamatemáticas” de Hilbert foram insuficientes, novamente talvez por influência de Kant. Por isso, ainda que deixando claro que o assunto passa para além das investigações lógico-matemáticas, ele chegou a dizer que apenas a geometria euclidiana corresponde à nossa experiência do espaço. As não-euclidianas e as não-arquimédicas seriam criadas arbitrariamente e constituiriam uma extensão do termo “geometria”, semelhante à constituída pelos números complexos na aritmética. Existiriam, contudo, alguns objetos que “se comportariam” de modo conforme a um tipo ou outro de geometria. Na exposição de Corry não há referência senão aos objetos que se comportam conforme à geometria não-euclidiana, como os caminhos da luz [39]. No que se refere às geometrias não-euclidianas de três dimensões, pensamos que Hilbert se equivocou. No que se refere às geometrias não-arquimédicas, talvez tenha razão, como veremos.

Contudo, apesar de nosso desacordo, há uma observa­ção que Hilbert faz em 1905 que diz referir-se aos axiomas geométricos em geral, mas que, de fato, se refere sobretudo aos das geometrias não-euclidianas e que confirma o que temos dito aqui. Os axiomas podem ser escolhidos mais ou menos arbitrariamente. Podemos começar definindo as entidades ponto, linha, plano. Mas poderíamos começar definindo outras. Não quaisquer entidades, contudo, nem com a única restrição da consistência. Não se pode começar, aponta Corry em sua exposição dos ensinamentos de Hilbert, definindo cadeiras, mesas e jarros, senão, como ensina explicitamente Hilbert, tem-se que começar por definir os seres próximos aos fatos intuitivos da geometria, tais como círculos e esferas, a partir dos quais se formulem os axiomas adequados que não contradigam a geometria intuitiva usual [40].

III. GEOMETRIAS NÃO-ARQUIMÉDICAS

As geometrias não-arquimédicas são aquelas nas quais as regras fundamentais excluem o axioma de Arquimedes (V 1): “Se AB e CD são segmentos quaisquer, então existe um número n tal que n segmentos CD construídos contiguamente desde A até B passarão além do ponto B” [41]. Elas se referem, pois, a um objeto de investigação que não é contínuo.

No Apêndice II do Grundlagen der Geometrie, “O teorema da igualdade dos ângulos da base de um triângulo isósceles”, encontramos um caso de geometria não-arquimédica [42]. Ali temos uma construção geométrica que: a) usa todos os axiomas I-IV com exceção do axioma III 5 de congruência de triângulos (que se aplica de modo restringido: apenas triângulos equiposicionados serão congruentes[43]), b) exclui o teorema de Arquimedes [44] e c) define arbitrariamente a ordem de um conjunto de números e de um conjunto de representações gráficas, de rotações, ou mapeamentos ou projeções e de comparação ou medida de segmentos (um segmento é girado sobre o outro para levar a cabo a comparação) [45]. Para estabelecer os axiomas e regras a) e c), Hilbert usou noções tais como “ponto”, “linha”, “plano”, “ângulo”, “tri­ângulo”, “paralela”, etc. Não obstante, a restrição do axioma III 5, a exclusão do axioma V 1 e o uso das definições, uma vez aplicados, faz que se dê lugar a um objeto de investigação que é diferente da área ou do volume. De fato, com estes postulados, “o conceito de área perde seu sentido”[46]. Quer dizer, o objeto que se pode estudar com tal sistema axiomático não é mais uma magnitude estendida em três dimensões que alguns chamam “espaço” ou “corpos” e suas relações posicionais. Neste objeto de investigação, a versão plena do axioma III 5 não pode ser demonstrada. Isto deu a Hilbert uma melhor noção da independência dos axiomas e da “conexão lógica do teorema do triângulo isósceles com os outros teoremas elementares da geometria plana, em particular com a teoria da área” [47]. Neste objeto de investigação, ademais, o teorema 29, proposição 39 do Livro I dos Elementos de Euclides e o axioma segundo o qual o todo é maior que a parte não são válidos.

Vejamos rapidamente qual o conteúdo do teorema 29, proposição 39 do Livro I dos Elementos de Euclides, como Hilbert mostrou que ele não podia ser demonstrado nesta particular geometria não-arquimédica que ele construiu, e as implicações que ele pretende derivar de que seja possível construir uma geometria na que tal teorema não seja válido.

Tal teorema estabelece que dois triângulos iguais construídos sobre a mesma base e em direção ao mesmo lado dessa base estão contidos entre duas paralelas ou, de acordo com Hilbert, possuem a mesma altura [48]. Na demonstração, Euclides usa o princípio de que o todo é maior que a parte. Eis aqui o teorema:

Sejam dois triângulos ABC e DBC, sobre a mesma base BC e construídos em direção às mesmas partes.
Digo que eles estão constituídos entre as mesmas paralelas, isto é, que a reta AD é paralela a BC. Pois, se não for, trace-se uma linha F desde A , paralela a BC, que passe ou por cima de AD ou por baixo.
Suponhamos primeiro que passa por cima, com o segmento AE , onde E seria o ponto de interseção da linha BD com a linha F, e tracemos então a reta EC. Assim, porque são paralelas AE e BC [já que dois triângulos com a mesma base entre duas paralelas são iguais, como já se demonstrara antes], a) o triângulo ABC seria igual ao triângulo EBC. Mas o triângulo DBC é igual ao ABC por hipótese. Por conseguinte, b) os triângulos DBC e EBC serão iguais, a parte e o todo, o que é absurdo.
Mas se a paralela traçada desde A cai abaixo de AD, como é o segmento AE [onde a linha F intercepta a linha BD], levada a reta EC, pelo mesmo raciocínio, serão iguais os triângulos BEC e BDC, a parte e o todo, o que é absurdo. Sendo assim, AD será paralela a BC. Por que os triângulos iguais sobre a mesma base, etc. Que é o que queríamos demonstrar [49] (ver ilustração a seguir).

No corpo de sua obra [50], muito antes das passagens nas quais a geometria não-arquimédica que estamos estudando fosse construída, diz Hilbert que é possível construir uma geometria com os axiomas I-IV, com exceção do axioma III 5 (que se toma de um modo restringido), na qual o teorema 48 (equivalente ao transcrito de Euclides) são seja válido, e nem, portanto, “a proposição ‘O todo é maior que qualquer de suas partes' ”. E logo remete ao Apêndice II, a partir da página 127.

Neste último lugar, Hilbert aplica a geometria do apêndice ao seguinte exemplo [51]: se temos um triângulo retângulo OQP e outro triângulo retângulo com a mesma base OQ e um terceiro vértice R que constitui uma projeção especular de P com relação à linha OQ (quer dizer, se encontra na perpendicular a OQ, na que se encontra P, à mesma distância de OQ, que P), deveria ocorrer que tivessem o mesmo tamanho OP e OR. Mas na verdade, e na geometria definida no Apêndice II, isso não ocorre. Para comparar ambos os segmentos, de acordo com as regras definidas no apêndice, gira-se OP sobre o eixo x (em que jaz o segmento OQ, cujo ponto O está na origem), e sua extensão será a do raio que vai da origem O ao novo ponto, e se faz o mesmo com a linha OR, para comprovar que as linhas não coincidem. Daí se conclui que “são diferentes as hipotenusas de dois triângulos retângulos de catetos iguais e situados simetricamente, e, por isso, as imagens de segmentos que se formam através de uma reta por reflexão não necessariamente são iguais aos segmentos da figura original” [52] (ver ilustração a seguir).


Hilbert afirmou que, em sua geometria não-arquimédica, o Teorema de Pitágoras era válido porque Euclides usou apenas triângulos equiposicionados para demonstrá-lo, de modo que, aplicando a versão restringida do axioma III 5, isso pode ser demonstrado [53]. Se aplicamos então tal teorema a esses triângulos, acerca dos quais acabamos de falar (OQR e OQP), podemos ver que com as hipotenusas de ambos os triângulos podemos formar retângulos de lados iguais (quadrados) que sejam equicomplementares, porque podemos transladar um sobre o outro por meio de “mapeamentos congruentes”. Mas porque as hipotenusas não são iguais, não é valido o teorema segundo o qual um retângulo decomposto em triângulos não pode ser preenchido de novo se se omite um dos triângulos [54]. Assim, os conceitos de equicomplementaridade e igual área não são equivalentes no contexto do Apêndice II. “Equicomplementaridade” significa precisamente uma relação entre duas figuras tal que elas podem ser preenchidas pelas mesmas figuras geométricas [menores], Mas neste novo contexto do Apêndice II se diz que as figuras são equicomplementares se uma pode ser colocada sobre a outra por meio de mapeamentos congruentes. Assim, o quadrado construído sobre OP seria equicomplementável ao construído sobre OR, mesmo que o segundo [por ser menor] pudesse ser encaixado no primeiro [55].

O teorema 29 de Euclides é provado na página 68, mostrando que se dois triângulos equicomplementáveis (quer dizer, neste contexto, dois triângulos com a mesma área) possuem a mesma base, têm também a mesma altura. Mas, no contexto do Apêndice II, retângulos e triângulos com diferentes lados ou bases e alturas podem ser equicomplementáveis. O teorema 29 de Euclides é provado na página 68 "usando o conceito de área" [56], um conceito que agora fica excluído, que "sem a forma mais ampla (III 5) do axioma de congruência de triângulos perde seu significado" [57], porque um e o mesmo triangulo pode ter áreas diferentes se para seu cálculo se escolhe um lado diferente como sua base. Isso pode ser visto no triângulo de nosso exemplo, OQR, e seguindo as regras estabelecidas neste apêndice para calcular a magnitude dos segmentos [58]. Deste modo, o teorema 29 de Euclides não seria válido precisamente porque o conceito de área perdeu seu significado, e sem tal conceito não podemos aplicar o princípio de que o todo é maior que as partes. 

Contudo, será possível estender a conclusão anterior até o ponto de sustentar que nossa mente pode se livrar de um princípio que sempre foi visto como fundamental, e que parece suposto em qualquer compreensão da área extensa? Por outro lado, podemos dizer que a geometria pode ser construída de um modo inteiramente arbitrário, até o ponto de abandonarmos alguns de seus axiomas básicos? Para responder a estas perguntas, à luz dos trabalhos de Hilbert, devemos considerar o propósito que movia o autor a escrever estas páginas do apêndice, a aplicabilidade desta geometria à realidade física ou sua recepção matemática, e também o significado interno do que ele fez.

Quanto ao propósito de Hilbert, podemos afirmar seja múltiplo. Por um lado, tenta mostrar que, ainda que se suponha a forma restringida, a forma ampla do axioma da congruência de triângulos não pode ser provada sem os axiomas de continuidade (V 1 e V 3). Ao menos implicitamente, ele tenta estabelecer também que o axioma da continuidade é independente dos outros, não podendo ser derivado deles se não o postulamos de modo expresso [59]. Pretende o autor, por último, "lançar nova luz sobre a conexão lógica do teorema [da igualdade dos ângulos da base] do triângulo isósceles com os outros teoremas elementares da geometria plana, em particular, com a teoria da área" [60].

As definições arbitrárias, desenhadas com todos esses propósitos, portanto, não nos devem levar a pensar que a geometria é ou possa ser puramente convencional. Hilbert pretendia extrair conhecimento, "em retrospectiva", acerca de "entes matemáticos bem estabelecidos e elaborados" [61]. No exemplo do Apêndice II, seu objetivo não era mostrar "finfe é o mesmo que rabate" ou "canecas de cerveja o que mesmo que cadeiras", mas era precisamente mostrar as relações entre axiomas e teoremas bem estabelecidos em teorias aceitas. As convenções, pois, cumpriram um fim relevante para a geometria, ainda no caso de que não pudessem ser incorporadas numa teoria matemática ou física aceita.

Em alguns lugares, como já vimos, Hilbert afirma que as geometrias não-arquimédicas constituem uma extensão da geometria (no caso que nos ocupa, já sabemos que nos leva a deixar de lado as áreas, por meio de um sistema de convenções). Algo semelhante ocorre com os números complexos, diz ele, que ultrapassaram a seu tempo a axiomática da aritmética. De certo modo, tal também se passou, podemos acrescentar, com os números negativos. A análise das noções elementares pode levar a postular novas noções, que servem para compreender melhor o gênero sujeito a estudo. Com os números negativos, o significado parece claro, igual que sua diversa aplicabilidade a diversas entidades físicas ou morais, como as dívidas. Em outros casos, o significado pode não ser tão claro. A aplicabilidade a entes reais (não de pura razão), não obstante, nos leva a pensar que as novas noções têm algo de realidade, ao menos no sentido de constituírem entes de razão que nos permitem conhecer ou expressar melhor a realidade, como as preposições na linguagem natural. Na exposição de Corry, entretanto, ainda que sejam fornecidos exemplos de aplicação da geometria não-euclidiana, não se fornecem exemplos de aplicação de geometrias não-arquimédicas. Claro, tampouco as dá o Apêndice II.

Desconheço se esta geometria do Apêndice II teve alguma verdadeira recepção na teoria matemática. Sei, não obstante, que o próprio Hilbert pensava que o axioma de Arquimedes é necessário para aplicar a matemática a qualquer medição de quantidades físicas, pois sem tal axioma as quantidades não seriam comparáveis entre si. A astronomia se baseia precisamente na comensurabilidade das dimensões celestes com as terrestres, e a física atômica na aplicabilidade das divisões de nossas medidas macroscópicas ao mundo microscópico. Sei também que Hilbert pensava que esta necessidade podia ser conhecida como fruto de suas investigações, que haviam demonstrado a independência do axioma da continuidade, e, portanto, seu caráter central nas teorias tanto matemáti­cas como físicas, que não podiam substitui-lo com o Teorema da Congruência dos Triângulos [62].

O que dissemos nos permite fazer um breve parêntese. Uma teoria matemática, se relevante, se responde realmente ao gênero sujeito à ciência, pode encontrar aplicações não previstas no momento de sua formulação. Por quê? Por uma razão que havia assinalado Aristóteles: a quantidade é o acidente pelo qual inerem todos os demais acidentes na substância sensível. Seu caráter fundamental faz com que até as qualidades dos seres sensíveis tenham dimensões quantitativas que podem se prestar ao estudo físico-matemático [63]. Aristóteles e Sto. Tomás sabiam claramente deste fato nos casos da astronomia, da ótica, da música, da mecânica (eles buscaram, no entanto, compreender as essências na medida possível às forças humanas, e não somente a expressão quantitativa de algumas de suas propriedades [64]). Com a concep­ção aristotélico-tomista, então, é fácil entender o “sempre recorrente intercâmbio entre pensamento e experiência”, como diz Hilbert [65], ou a aplicabilidade da álgebra à física.

Em todo caso, se a geometria do apêndice chegou a ser objeto de atenção dos matemáticos, se responde a algum tipo de quantidade discreta, não dá margem para pensar que a mente humana possa se ver livre do axioma de que uma extensão total deve ser maior que uma parcial, a não ser apenas para afirmar que todo e qualquer axioma somente pode ser aplicado quando o significado dos termos que constituem seu conteúdo está presente na matéria estudada [66]: se não estamos falando de área extensa propriamente dita, pode ser que o axioma não se aplique. Com efeito, não se compara, no Apêndice II de Grundlagen der Geometrie, um todo com sua parte, mas segmentos ou figuras geomé­tricas com o resultado de “mapeamentos” ou “rotações” que se fazem deles; nem tampouco se compara uma área de um triângulo com a área [menor] do mesmo triângulo, mas a multiplicação de quantidades que, de acordo com conven­ções mais ou menos arbitrárias, correspondem ao valor da base ou da altura de um triângulo. Compara-se também um segmento (OR) com outro (OP) através de uma rotação, e conclui-se que dois segmentos que no contexto de uma área deveriam possuir a mesma magnitude, no contexto dessa geometria especial não o têm, porque a noção mesma de área é rompida por definições arbitrárias de regras de rota­ção e ordenação dos números [67].

Por outro lado, não se deve perder de vista que a definição das regras que nos levam a falar de uma realidade distinta, por se usarem conceitos que, sim, têm que ver com a área extensa (ainda que precisamente para apontar a um novo tipo de realidade abstrata), estamos supondo o axioma de que o todo é maior que a parte e talvez até o axioma da continuidade. Com efeito, sem estes axiomas, não poderíamos entender as expressões “número”, “igual”, “adicionado”, “subtraído”, “multiplicado”, “dividido”, “maior”, “menor”, “seno”, “cosseno”, “ponto”, “reta”, etc., usadas nas páginas 115-116 para estabelecer o sistema não-arquimédico do Apêndice II. Essa observação não ataca a independência dos axiomas: o que Hilbert quer provar fica provado, quer dizer, que não se pode obter o axioma da continuidade se não o postulamos como axioma, e sem o axioma da continuidade não se pode provar o axioma da congruência de triângulos. Creio que estas ou análogas reflexões filosóficas seriam aplicáveis às outras geometrias não-pitagóricas de que trata Hilbert em sua obra Grundlagen der Geometrie [68].


Notas:

[1] Publicado originalmente como artigo, em inglês, na revista Teorema, Vol. XXV/2 (2006), pp. 73-93.

[2] Cf. Foundations of Geometry. Open Court Classics. La Salle-Illinois, 1992, p. 32. Esta é uma tradução da décima edição alemã.

[3] P. 39. Vejamos alguns exemplos: I- Axiomas de incidência. 1- “Para todos os pontos A, B existe uma reta a que contém cada um dos pontos A, B” (p. 3). II- Axiomas de ordem. 1- “Se um ponto B jaz entre um ponto A e um ponto C, então os três pontos A, B, C são pontos distintos de uma reta, e B jaz também entre C e A” (p. 5). III- Axiomas de congruência. 1 - “Se A e B são dois pontos em uma reta a, e A’ é outro ponto na mesma reta ou em outra reta a' então sempre é possível encontrar um ponto B’ em um lado da reta a através de A’, tal que o segmento AB é congruente ao segmento A’B’.” (p. 10). 5- “Se dois lados de um triângulo são iguais a dois lados de outro triângulo e são iguais os respectivos ângulos que formam esses lados, então os outros ângulos de cada um desses triângulos são também iguais aos do outro triângulo” (p. 12). IV- Axioma das paralelas, que se explicará no texto. V- Axioma de continuidade. 1- “Se AB e CD são segmentos quaisquer, então existe um número tal que n segmentos CD construídos contiguamente desde A até B passarão além do ponto B ” (p. 26).

[4] Foundations of Geometry (cit.), pp. 39-41 (n. 11).

[5] Devo a Don Howard e Katherine Brading, da Universidade de Notre Dame, o me haver dado conta de que este aspecto da obra de Hilbert poderia ter importância para os problemas que aqui exploro.

[6] Cf. “Hilbert y su filosofia empirista de la matemática”, p. 31. Boletín de la Asociación Matemática Venezolana. Volume IX , N° 1, Caracas, 2002, pp. 27-43. Cf., também, Aleksandrov, Kolmogorov e Lavrent’ev, editores, Mathematics, Its Content, Methods, and Meaning, traduzido por S. H. Gould e T. Bartha. M IT Press. Cambridge, Massachussets, 1965, pp. 264-265.

[7] Manuscrito de curso dado em Göttingen em 1905, citado por Leo Corry, “Hilbert and the Axiomatization of Physics, (1894-1905)”, p. 130, em Arquive for History of Exact Sciences. Vol. 51, N° 2, Springer, 4 de agosto de 1997, pp. 83-198. Uso a tradução feita pelo próprio Corry em sua obra escrita em castelhano e já citada.

[8] L. Corry, “Hilbert y su filosofia empirista de la geometría” (cit.), p. 39. No mesmo sentido, pode-se ver Stephan Körner, The Philosophy of Mathematics. An Introductory Essay. Hutchinson University Library. Londres, 1960, pp. 85-87. Aí mesmo se mostra que o formalismo estrito que às vezes se atribui a Hilbert foi na realidade obra de H. B. Curry, o qual converteu os sistemas formais no objeto da matemática.

[9] Como observa Stephan Körner, outro objetivo de Hilbert é mostrar a consistência do sistema axiomático da geometria (cf. The Philosophy of Mathematics (cit.), pp. 75-84). Este objetivo foi gravemente afetado pelos trabalhos de Gödel. O segundo teorema deste, por exemplo, demonstra que a consistência de um sistema não pode ser provada dentro do sistema, pois a afirmação segundo a qual um sistema é consistente não é parte deste sistema (cf. ibidem, p. 95).

[10] Cf. Gottlob Freges Briefwechsel mit D. Hilbert, E. Husserl, B. Russell, sowie ausgewählte Einzelbriefe Freges. Felix Meiner Verlag. Hamburg, 1980, pp. 11-13 . Nesta vacilação em torno da noção de verdade se manifesta novamente, talvez, a influência kantiana.

[11] Cf. manuscrito do curso de 1905, nn. 36-37, citado por Corry, “Hilbert and the Axiomatization of Physics”, p. 127. Ver também David Hilbert, Foundations of Geometry (cit.), p. 2, onde o autor sustenta que os axiomas geométricos estão conectados à nossa intuição espacial. Ainda que seu autor não tenha suspeitado, esses textos guardam uma grande semelhança com a teoria aristotélica da filosofia da ciência: as matemáticas, de acordo com tal teoria, são fruto de intuições relativas a uma forma (a quantidade) abstraída da experiência. Somos capazes de refletir sobre tal experiência por meio da formulação, como hipóteses, das noções fundamentais com o objetivo de construir as diversas partes da geometria. Essa construção, ademais, pode ser realizada de modo inventivo, por meio da dialética, ou de modo sistemático, como fez Euclides depois de Aristóteles. Sabemos bem, sobretudo depois de Gödel, que nem todas as verdades podem ser reduzidas totalmente aos axiomas. Nunca podemos alcançar um sistema fechado.

[12] Cf. a mesma carta, p. 12.

[13] Cf. a mesma carta, p. 13.

[14] Um cientista pode ser muito competente em sua disciplina particular e um mal filósofo desta mesma ciência.

[15] Stephan Körner, em seu The Philosophy of Mathematics (cit.), também assinala o ar de paradoxo que rodeia o trabalho de Hilbert no que se refere à origem dos axiomas. Cf. pp. 98-106, especialmente p. 98.

[16] Uma afirmação contemporânea de Max Weber mostra que a situação era muito semelhante nas ciências do espírito e nas ciências sociais: cf. Arthur Mitzman, The Iron Cage: An Historical Interpretation of Max Weber. Alfred A. Knopf, Inc., NY, 1972, p. 209.

[17] Cf. Leo Corry, “Hilbert and the Axiomatization of Physics” (cit.), especialmente pp. 104-109.

[18] Devo o haver reparado neste texto a A. C. Crombie, Medieval and Early Modern Science. Doubleday and Company INC., Garden City, 1959. Volume I, p. 89.

[19] Cf. A. C. Crombie, Medieval and Early Modem Science (cit.), Volume II, pp. 326-327.

[20] Stephan Körner, The Philosophy of Mathematics (cit.), pp. 29, 138-139 e 140-141.

[21] Sobre a influência de Kant em Hilbert, cf. Stephan Körner, The Philosophy of Mathematics (cit.), pp. 72-74. Em carta a Schumacher de 1 de novembro de 1844, com razão Gauss alude a Aristóteles como o único filósofo capaz de dar definições apropriadas à ciência. Entre os que dão definições inadequadas ele inclui Kant, por quem, contudo, conservou sempre certo respeito (mas não pelos idealistas posteriores a Kant, entre os quais se encontra Hegel, cuja filosofia qualificou de insana, em carta a Schumacher).

[22] Cf. “Sobre la realidad de las matemáticas”, Areté XV, Nº 1 (2003), pp. 35-62. Gauss sabia, por exemplo, que a noção de espaço dos geômetras tem a ver com a experi­ência, ainda que não seja uma imagem especular do mundo. Por este motivo, tinha apreço à Crítica da razão pura. No entanto, ele pensava que a teoria kantiana do espaço era muito errônea. Cf., sobre a opinião de Gauss acerca dos filósofos e fragmentos de suas cartas, Waldo Dunnington, Carl Friedrich Gauss: Titan of Science. Exposition Press, NY, 1955, pp. 313 -317.

[23] Cf. De Anima III 4-6, Analíticos posteriores II 19 e Ética a Nicômaco VI 6.

[24] Uso livremente as observações de Sto. Tomás, baseadas no Capítulo 1 da Metafísica Épsilon, contidas no comentário ao De Trinitate de Boécio. (Opuscula Theologica II. Marietti. Turim-Roma, 1972. Lição II, q. 1, a . 1).

[25] Cf. Ética a Nicômaco VI 8 , 1142a.

[26] Natur und Mathematischcs Erkennen: Vorlesungen, gehalten 1919-1920 in Göttingen. Nach der Ausarbeitung von Paul Bernays (Edited and with an English introduction by David E. Rowe), Basel, Birkhäuser, p. 14. Uso a tradução feita para o inglês por Leo Corry desta passagem em seu “Hilbert and the Axiomatization of Physics” p. 116 , mas comparando-a ao original alemão.

[27] Stephan Körner, The Philosophy of Mathematics (cit.), pp. 72-74 e 98. A outra parte procederia da análise das Idéias [kantianas] da aritmética transfinita. Seria possível provar, ademais, por meio da construção de sistemas formais, que ambas as partes da matemática, finita e transfinita, seriam consistentes.

[28] “Mathematical Problems”, p. 440. Leo Corry (“Hilbert and the Axiomatization of Physics” p. 120) alega que nesta passagem Hilbert defende a harmonia pré-estabelecida de Leibniz. Penso que o texto o nega claramente. Acerca deste ponto, em conexão com a aplicação da matemática à física de acordo com Hilbert, cf. Stephan Körner, The Philosophy of Mathematics (cit.), p. 88.

[29] Cf., por exemplo, além da citada passagem de Stephan Körner (nota 26), Leo Corry, “Hilbert y su filosofia empirista de la matemática” (of. cit.), p. 35.

[30] Acerca da concepção aristotélica, cf. Física IV 1-9. Acerca da concepção lebniziana, cf. sua correspondência com Clark: “Second Ecrit de Mr. Leibniz”, “Troisième Ecrit de Mr. Leibniz”, “Quatrième Ecrit de Mr. Leibniz” e “Cinquième Ecrit de Mr. Leibniz”, em Logica et Metaphysica, vol. 2 de G. W. Leibniz Opera Omnia. Georg Olms Verlag. NY, 1989, pp. 114-115, 120-121, 128-134 e 165-166.

[31] Cf. Hilbert, The Foundations of Geometry (cit.), p. 25.

[32] Note-se que estamos nos referindo apenas a geometrias que são não-euclidianas por não serem planas, e que não estamos considerando-as como não-euclidianas por conterem mais de três dimensões. Como já mostramos previamente, no Apêndice I, estas geometrias são extensões metafóricas a relações não espaciais do mundo real. Jacques Maritain, citando Sto. Tomás, que por sua vez cita Ptolomeu, mostrou que as dimensões reais são determinadas pelo número de perpendiculares que podem encontrar a uma linha em um ponto determinado do espaço físico. Ver The Degrees of Knowledge (cit.), p. 43.

[33] Cf. Sto. Tomás de Aquino, In Aristotelis Libros Perhemeneias et Posteriorum Analyticorum Expositio. Marietti. Turim, 1955 .Analíticos Posteriores I, Lição II, nn. 17-19 . Em concordância com Metafísica Epsilon 1. Sei que em matemática se podem fazer demonstrações não construtivas, porém, desde logo, estas sempre procedem desde um contexto que já tenha sido “construído”.

[34] Cf. ibidem, n. 17.

[35] A explicação que acabamos de dar no presente parágrafo e no anterior responde exatamente os problemas que suscitam as “proposições de existência” segundo Stephan Körner (op. cit. pp. 174-176), e o fazem desde uma concepção realista, aristotélica, da matemática.

[36] No caso da geometria euclidiana, desde logo, as causas são apenas formais. Quando a relatividade fundiu física e geometria, construiu um sistema conceitual com o que se podem salvar os fenômenos. Tal sistema, contudo, se encontra longe tanto das entidades físicas quanto das geométricas. Saunders Mac Lane argumenta, como nós, que a geometria não é a priori. Argumenta também que a geometria é abstrata e por essa razão a geometria euclidiana não foi afetada pelo desvio dos raios de luz. Cf. Mathematics, Form and Function. Springer Verlag. NY, 1986, p. 411.

[37] Cf., de Aristóteles, Refutações sofísticas I.

[38] Cf. “On the Hipotheses which lie at the Bases of Geometry”, pp. 107-108. Publicado em C. W. Kilmister, General Theory of Relativity. Pergamon Press. NY, 1973, pp. 107-122.

[39] Cf. “Hilbert and the Axiomatization of Physics” pp. 128-129.

[40] Cf. Manuscrito do curso de 1905, n. 39, citado por Corry em “Hilbert and the Axiomatization of Physics” p. 128. À luz dessas considerações e de outras feitas previamente, pode-se captar que a exposição e a crítica feitas por A. D’Abro a respeito de Hilbert (cf. The Rise of the New Physics, cit.) estava errada ou superficial em muitos pontos, mas talvez os textos publicados por Hilbert fossem confusos o bastante para dar margem a esse tipo de leitura. Assim, 1) D'Abro afirma que, segundo Hilbert, os axiomas não definem seus termos e, portanto, podem ser aplicados a qualquer realidade, porque a matemática não se refere a nenhuma realidade particular, mas a relações. Essa seria a razão pela qual ela pode ser aplicada à física e pela qual Hilbert encontrou a equivalência entre a geometria e a aritmética (cf. p. 197). Contra D’Abro, (a) mantemos que a aplicação da geometria à física não supõe que os axiomas geométricos se refiram a meras relações em lugar de referirem-se à quantidade abstrata, como estabeleceremos no texto. Ademais, (b) o próprio Hilbert tinha a geometria, e não a aritmética, como uma ciência natural. 2) D’Abro opõe demasiado Poincaré a Hilbert, como se este não afirmasse que a intuição tem um lugar na matemática ou que a axiomatização é apenas um exercício posterior à descoberta de verdades matemáticas (pp. 191-213, em especial 198 e 202-204). Chega a destacar tanto a oposição que termina por concluir que os físicos teóricos não têm que se ocupar da natureza da matemática, apesar de eles basearem suas investigações num esquema matemático, porque se trata de um assunto obscuro (cf. p. 212). Em relação a estas outras afirmações de D'Abro, temos de afirmar que elas simplesmente confirmam que estes assuntos concernentes à natureza da matemática e às relações entre a física c a matemática correspondem à filosofia, não à física.

[41] Foundations of Geometry, p. 26.

[42] Foundations of Geometry, pp. 113-132.

[43] Isso significa que o triângulo ABC não seria igual ao triângulo CAB. Cf. loc. cit., p. 113.

[44] Cf. pp. 114-115.

[45] Cf. pp. 115-120.

[46] Cf. p. 127.

[47] P. 115.

[48] P. 128.

[49] Ao dar minha versão em castelhano, tive à vista: The Elements of Euclid. Every Man's Library. Londres-NY, 1948, p. 42. Também a edição grega de Thomas L. Heath. Euclid in Greek. Cambridge University Press. Cambridge, 19 20 ,1, pp. 94-95.

[50] Foundations of Geometry, nota à p. 64 (§ 19).

[51] O exemplo foi construído nas pp. 125-126 , mas as conseqüências relevantes para a exposição presente são mostradas nas pp. 127-128.

[52] P. 126. A figura é tomada da p. 125.

[53] P. 127.

[54] Cf. p. 220, suplemento V 1 escrito por Bernays.

[55] Cf. ibidem, suplemento V 1 escrito por P. Bernays, 219 (sinceramente, não entendo como isso pode ser verdade, de acordo com o que disse Hilbert nas pp. 121-122, porque OP e OR não são congruentes. Mas isso não afeta meu raciocínio, porque se houvesse um erro nas projeções de Hilbert e Bernays, minhas conclusões continuariam válidas e até mais fortes. O princípio de que uma extensão total é maior que uma parcial entra em jogo quando se está falando de área extensa).

[56] Foundations of Geometry, p. 128. 

[57] Foundations of Geometry, p. 127. 

[58] Foundations of Geometry, p. 127.

[59] Foundations of Geometry, p. 41.

[60] Foundations of Geometry, pp. 114-115.

[61] Cf. Leo Corry, "Hilbert and the Axiomatization of Physics" (cit.), p. 115.

[62] Hilbert também pensava, não obstante, que se devia confirmar experimentalmente o axioma de continuidade da mesma maneira que Gauss havia comprovado o teorema da soma dos ângulos internos de um triângulo. Cf. manuscrito do curso de 1905, citado por Corry em “Hilbert and the Axiomatization o f Physics” (cit.), pp. 125-126 . Na realidade, devido à abstração da geometria, o teorema dos ângulos internos de um triângulo não pode ser provado experimentalmente, a não ser pela análise do espaço plano. Se tivermos outro tipo de espaço, deveremos analisá-lo de outra maneira. E se esse é o caso da astronomia, então esta terá de usar a geometria que analisa outros tipos de espaço. Penso que Hilbert se equivocava também no que se refere à comprovação física do Teorema da Continuidade, pois a continuidade é uma noção prévia à da soma dos ângulos internos de um triângulo, e a experiência comum, tal como foi analisada pelos gregos na esteira dos paradoxos de Zenão, parece suficiente para convencer-nos da solidez do axioma.

[63] Cf. “In Libros Posteriorum Analyticorum Expositio”, em In Libros Peri Hemreneias et Posteriorum Analyticorum Expositio (Marietti Editori Ltd. Turim, 1955), Livro I, lição 2, n. 17. Summa Theologiae III, q. 77, a. 2, c. Cfr., também, J. Maritain, The Degrees of Knowledge, p. 152. Até o ser de um mamífero, por exemplo, depende num certo sentido da dilatação e contração de uma pequena quantidade de extensão sensível a que chamamos “coração”. Na filosofia moderna, a quantidade se converteu na res extensa de Descartes, nas qualidades primárias de Locke ou no espaço de Kant, que é a res extensa cartesiana mas sem a res. Cf. Immanuel Kant, Prolegomena to Any Future Metaphysics, traduzidos por James W. Ellington. Hackett Publishing Company. Indianapolis-Cambridge, 2001, p. 30. Gottlob Frege, como bem se sabe, sustentou uma visão alternativa acerca do objeto das matemáticas. Mas ele também afirmou que não tinha objeções ao modo como Newton o concebeu (cf. The Foundations of Arithmetic. A Logico-Mathematical Enquiry into the Concept of Number, traduzido por J.L. Austin-Evanston, Northwestern University. Illinois, 1968, pp. 25-26), e o modo newtoniano, ao menos na aritmética, coincide exatamente com o aristotélico.

[64] Penso que se despojarmos de neopitagorismo as afirmações de Niels Bohr acerca da complementaridade de métodos de aproximação à realidade biológica (por exemplo), veremos que os diferentes métodos, o que reduz os processos biológicos a seus componentes físico-matemáticos e o que considera a relação entre tais processos e o ser vivo como um todo, são compatíveis e até se necessitam mutuamente. Porque sem uma visão do todo, do ser vivo, a análise físico-matemática de um desses processos perderia seu sentido.

[65] Cf. “Mathematical Problems”. Bulletin of the American Mathematical Society 8 (1902), p. 440.

[66] Aristóteles e Sto. Tomás conheciam este pré-requisito para a aplicação dos axiomas. Tal aparece implícito em Metafísica IV 3, 1005 b 15-16. O conhecimento de qualquer ser implica a presença na alma do princípio de não-contradição. Também está implícito nos Analíticos Posteriores I 1 e 7; e II 19. Aí, a captação do [termo] universal é causa da formação do princípio em nossa mente.

[67] Assim ocorre em todos os casos que pude examinar de uma suposta superação de um princípio fundamental pela física ou matemática modernas: ou bem se tratava de um pseudo-princípio (como o kantiano ou laplaciano de causalidade), ou bem não se havia entendido corretamente o princípio ou o contexto ao qual se pretendia aplicá-lo. A) Assim, por exemplo, quando se diz que um infinito contido em outro é igual ao continente (de modo que o todo não será maior que a parte), não se percebe que na noção mesma de infinito está que não possa ser “parte” de outro, ainda que se possa dizer que existam infinitos maiores que outros. É óbvio que entre o inteiro 1 e o inteiro 2 existem infinitos números racionais ou irracionais e que, não obstante, esse infinito se encontra em outro infinito (o da totalidade dos números), se bem que não se possa dizer que o primeiro seja “parte” do segundo, como tampouco se pode dizer que um ponto seja parte da linha em que se encontra, como mostra Aristóteles no Livro VI da Física. B) De modo semelhante, a suposta violação do princípio do terceiro excluso pela mecânica quântica segundo Weizsäcker se refere a uma concepção nada aristotélica da realidade; em uma concepção aristotélica é perfeitamente possível um meio termo do tipo ao qual se refere. Entre ser em ato uma estátua de Hermes e não sê-lo, pode haver outro estado, ser em potência uma estátua de Hermes ou de Zeus. Aí não há violação do princípio do terceiro excluso. Isto coincide com a descrição que faz Heisenberg da ontologia que subjaz à lógica de Weizsäcker: “[...] Se consideramos a palavra ‘estado’ como descrevendo uma certa ‘potencialidade’ - então o conceito de 'potencialidades coexistentes’ é de todo plausível, posto que uma potencialidade pode entranhar ou solapar-se com outras potencialidades” (cf. Physics and Philosophy. Harper and Row Publishers. NY, 1962, p. 185). Quine acrescentaria, em 1970 e 1986, que, quando se afirma que um princípio da lógica clássica foi superado, como o princípio do terceiro excluso, o que ocorre é que a pessoa “troca de assunto” (changes the subject), modificando o significado dos conectores lógicos (conjunções, disjunções, negações,...); e para alcançar um objetivo (na mecânica quântica ou na matemática intuicionista) que pode na verdade ser alcançado conservando as significações tradicionais (cf. Philosophy of Logic. Harvard University Press. Cambridge, 1986, pp. 80-86. Tomei conhecimento do texto graças a Martin Curd e J. A. Cover em seu Philosophy of Science. The Central Issues. WW Norton and Company. NY, 1988, pp. 380-381, onde se referem à edição de 1970.) Esta mudança de assunto a que se refere Quine é o que afirmamos ocorrer com “o todo é maior que a parte” em Hilbert: depois das definições do Apêndice II, o conceito de área já não é o objeto desta investigação matemática. Donald Gillies coincide com Quine em que a “lógica quântica” não foi exitosa na solução dos problemas da microfísica: cf. “The Duhem Thesis and the Quine Thesis”, p. 317, em Philosophy of Science. The Central Issues. (cit.), p. 319. Mas Gillies supõe poder haver outros casos em que seja útil esta mudança de lógica, e dá como exemplo as lógicas não monótonas da inteligência artificial, como se fossem uma violação da lógica aristotélica, quando, na verdade, em muitos sentidos, são uma aproximação à tópica aristotélica.

[68] A geometria do Apêndice II é, em certo sentido, pitagórica (porque se aceita o teorema de Pitágoras pela razão apontada), e em certo sentido não, porque não necessariamente a soma dos dois lados de um triângulo seria maior que o terceiro lado (cf. Foundations of Geometry, p. 128).

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Artigo retirado do Apêndice II do livro Física e Realidade - Reflexões metafísicas sobre a ciência natural, Vide Editorial, 2013. 

Sobre o autor: Carlos Augusto Casanova nasceu em Caracas em 1966. Formou-se advogado em 1988 na Universidad Católica Andrés Bello. Doutor em filosofia (1995) pela Universidad de Navarra, tornou-se professor de Filosofia da Universidade Simón Bolívar, mas teve que abandonar a Venezuela por razões políticas. Foi Visiting Scholar na Boston University e Senior Research Associate no Maritain Center da Notre Dame University. Foi diretor da Academia Internacional de Filosofia do Principado de Liechtenstein. Atualmente é professor da Faculdade de Direito da Pontificia Universidad Católica de Chile e da Universidad Bernardo O'Higgins. Publicou vários livros, entre eles: Verdad escatológica y acción intramundanaLa teoría política de Eric Voegelin (1997); Racionalidad y justiciaEncrucijadas políticas y culturales (2004); El ser, Dios y la ciencia según Aristóteles (2007); El hombre, frontera entre lo inteligible y lo sensible (2010).

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Educação e Formação da Personalidade

Texto retirado do Prefácio do livro A Formação da PersonalidadeP. Leonel Franca. Edições Hugo de São Vitor, 1ª edição, 2019. também publicado pela Agir Editora, em 1938 e Edições Kírion em 2019.

Personalidade humana: a pessoa como sujeito de perfeições

por Sidney Silveira

A INTELIGÊNCIA NO CENTRO DA PERSONALIDADE

Tratar do tema da personalidade sem passar pelo conceito de pessoa seria mais ou menos como explicar um axioma da geometria euclidiana sem dominar conceitos básicos desta ciência, como reta, curva, ponto, intermediação, congruência, superfície, ângulo, etc. Desgraçadamente, em psicologia, assim como em pedagogia, isto é mais comum do que o vulgo imagina: estudiosos da alma humana adeptos de escolas diversas discorrem de maneira temerária sobre questões relativas à personalidade, negligenciando definições e postulados elementares [1]. Em regra, o resultado do seu trabalho é uma babel terminológica e conceitual - e, como diz Santo Tomás de Aquino seguindo as pegadas de Aristóteles, parvus error in principio magnus est in fine [2].

O grave problema da formação da personalidade requer que partamos de definições precisas, como as aludidas acima. A primeira delas é a que nos deixou Boécio:

"Pessoa é substância individual de natureza racional" [3].

Ao deparar com esta acepção, que em linhas gerais aceita, Tomás de Aquino comenta na Suma Teológica o seguinte: nela, o termo "substância" tem significado genérico (communiter), pois não se define se se trata de uma natureza abstrata - como ocorre com o termo "humanidade" -, ao passo que o termo "individual" se refere a uma substância concreta (substantia prima), ou seja, a "este homem" [4]. O Aquinate vai além e diz-nos que os indivíduos racionais se encontram no gênero da substância quoddam specialiori et perfectiori [5], ou seja, de modo especial e perfeito em relação às substâncias desprovidas de potências para descortinar a realidade compondo e dividindo raciocínios.

Para Santo Tomás, a definição de Boécio indica que "pessoa" é uma substância primeira, ou seja, o suppositum do indivíduo concreto, e tal suposto se distingue de todos os demais - na ordem do ser - pela diferença específica "racional". Pessoa é, portanto, um indivíduo especial do gênero da substância, e com o termo "substância" se exclui que os acidentes sejam pessoa [6]. Mas o Aquinate vai além e frisa o seguinte: (...) persona est aliquid distinctum subsistens in natura intellectuali [7]. Como se pode deduzir, uma personalidade em que o intelecto não desempenhe papel central é, para o Doutor Angélico, algo absolutamente insustentável [8] - pois a inteligência é a nota distintiva da pessoa [9].

Pessoa é o núcleo ontológico do indivíduo humano, o substrato inalienável do seu ato de ser. Nesta ordem de considerações, Tomás de Aquino chega a dizer que, dentre todas as coisas existentes, pessoa é maximamente indivíduo, pois (dadas as suas potências intelectiva e volitiva) se governa a si mesma, opera de modo especial movida por forças intrínsecas e não por algo que lhe seja extrínseco [10]. A individualidade pessoal encerra um sentido de unidade perfeitíssimo; seria aquela em relação à qual todas as demais individualidades são analógicas, em graus decrescentes de perfeição.

Podemos dizer que o "eu" é um sujeito subsistente ao qual costumamos chamar pessoa [11]. Em breves palavras, o eu, ou ego, não é um aspecto isolado da psique humana; ele é a própria pessoa em relação consigo mesma, com o mundo à sua volta e, por fim, com Deus. Em tal estrutura ontológica, o intelecto [12] governa a personalidade. Expliquemo-nos: as potências sensitivas integrantes da alma humana, as quais têm por objeto algo singular concreto, subordinam-se metafisicamente à inteligência [13], que tem por objeto o conceito universal [14]. Tal subordinação só é perceptível para filosofias que tenham a clara noção da hierarquia existente entre as potências da alma humana.

Isto faz toda a diferença no tocante ao tema da formação da personalidade, pois a educação da pessoa humana dependerá do conceito que desta se tiver [15]. Assim, se o motor dos atos psíquicos forem as pulsões do inconsciente, a educação será uma; se forem os movimentos do apetite sensitivo (entre os quais se enumera a imaginação como potência sensitiva interna), será outra; se forem os atos da inteligência e da vontade [16], será outra bastante distinta.

A mente é a parte principal da personalidade humana, na medida em que o intelecto tem refluência decisiva não apenas sobre a vontade, mas também sobre a afetividade [17]. No complexo dinamismo da nossa psique, o intelecto é capaz de ordenar as paixões e fazer com que a pessoa não se prenda ao aqui e agora de maneira patológica, enredando-se em medos irrazoáveis que, muitas vezes, beiram o delírio; em idéias-fixas capazes de se transformar em monomanias incuráveis; em desejos impossíveis de realizar; etc. [18]

Para o Padre Leonel Franca, formar a personalidade tem como pressuposto - ora implícito, ora explícito nos seus textos - que a excelência humana se atualiza pelas potências superiores da inteligência (cujo objeto é a verdade) e da vontade (cujo objeto é o bem). Não por outro motivo, o filósofo e teólogo brasileiro diz, nas primeiras páginas do livro que o leitor tem em mãos, que a formação da personalidade é o problema dos problemas humanos.

INSTRUIR E EDUCAR, REALIDADES DISTINTAS

A Formação da Personalidade reúne conferências ministradas por Leonel Franca em momentos diversos, entre as décadas de 20 e 30 do século passado. Quem porventura contemplar o conjunto destas exposições pode estranhar a diversidade temática da obra: ciência política, pedagogia, relações Igreja-Estado, direito, Idade Média, Idade Moderna, socialismo, física, biologia, história, educação sexual, políticas educacionais, Catecismo, ensino religioso, filosofia moral, laicismo, formação da imaginação, Ação Católica, moral leiga, etc. Mas ninguém se engane: há um fio condutor, ao modo de premissa fundamental, que garante o sentido de unidade por trás dessa multiplicidade: o homem é pessoa. Trata-se, em suma, de um ser dotado de inteligência e vontade, capaz de aperfeiçoar-se moral e intelectualmente no decurso de sua vida.

Formar a personalidade de maneira sã, neste contexto, é educar tendo em vista a perfectibilidade inerente à condição humana. Mas como se pode dizer que uma pessoa atinge maior nível de perfeição? A resposta do nosso autor é duma simplicidade desconcertante: melhorando o padrão de conhecimento e adquirindo critérios para realizar escolhas responsáveis. Tal idéia está presente em diferentes obras de Franca, como por exemplo no magnífico A Psicologia da Fé, onde se lê o seguinte:

"Na variedade das nossas certezas, algumas há determinadas por uma evidência fulgurante que se impõe ao espírito com esplendor irresistível. (...) A influência das paixões e das más inclinações pode sobrevalorizar os sofismas, obnubilar a luz demonstrativa dos argumentos e impedir a serena visão da realidade" [19].

Essa "serena visão da realidade" implica a chegada a um grau de perfeição moral decorrente da melhora do padrão de entendimento das coisas. Sem isto não existe decisão livre, em sentido estrito, pois a inteligência humana acaba por indisciplinar-se devido à influência perturbadora de paixões desordenadas. A vontade é, então, afetada de maneira direta, tornando-se tendente a realizar escolhas não iluminadas pela reta razão, o que, de acordo com Leonel Franca, a fez perder o dinamismo, o equilíbrio próprio das vontades regidas pela clara visão da verdade, em vários planos [20]. A boa educação por cujo intermédio a personalidade humana deve ser formada é aquela que facilita à inteligência a visão dos primeiros princípios da razão prática.

Esta antropologia filosófica preconiza que a liberdade é exercida por escolhas voluntárias não pressionadas por desordens afetivas. Em tal horizonte de considerações, o padre Franca ressalta que "instrução" e "educação" não são palavras unívocas:

"O primeiro [tópico a destacar] é a diferença essencial entre instrução e educação. Comumente se distinguem estes dois termos atribuindo o de instrução à cultura da inteligência e o de educação à cultura moral. Não é perfeitamente exato: há também uma instrução moral e uma educação intelectual. Peçamos luzes à etimologia. Instruir é primitivamente edificar, construir, e em significação mais estrita é prover, mobiliar, subministrar; educar é primitivamente tirar para fora o que se acha dentro, derivadamente atuar o que se achava em estado de potência, transformar em realidade, em hábitos, as disposições que se encontram latentes e em germe na natureza. Como vedes, a instrução subministra conhecimentos à inteligência; a educação eleva toda a alma; a instrução dirige-se a uma das nossas faculdades à qual propõe o seu objeto, a educação desenvolve-as todas harmonicamente" [21].

Neste longo trecho do seu A Formação da Personalidade, Leonel Franca aponta para o fato de que a educação apresenta-se num vetor de totalidade, de perfeição, de acabamento, ao passo que a instrução cultiva certas funções humanas, mas não integralmente.

"É instruído quem possui muitos conhecimentos, quem sabe o que dizem os livros sobre um determinado assunto; mas é educado intelectualmente quem tem a inteligência desenvolvida, quem sabe fazer análises, sínteses, raciocínios seguros, críticas exatas, numa palavra, quem é capaz de pensar pessoalmente. Um erudito pode ter lido muitas filosofias e não ser filósofo; pode ser versado em muitas literaturas e não saber dar a suas idéias a elegância ática de uma bela expressão literária. A educação tem, pois, um caráter de interioridade, de desenvolvimento vital que falta à instrução" [22].

Pressupostos metafísicos, gnosiológicos, catequéticos, psicológicos e teológicos estão correlacionados neste A Formação da Personalidade, cuja conclusão geral é um acinte para a mentalidade laicista e liberal dos nossos dias: NÃO HÁ EDUCAÇÃO SEM RELIGIÃO.

Citemos o padre Franca ipsis litteris, uma vez mais:

"Não há, pois, educar sem educar religiosamente. A razão humana feita para a plenitude da luz descansa no conhecimento das verdades contingentes e particulares; o coração humano, infinito na sua capacidade de amor, não se satisfaz com o amor efêmero das criaturas; para os heroísmos do sacrifício precisamos das energias mais fortes que as que nos podem dar os exemplos e as relações sociais. (...) Durante o nosso curriculum vitae, Deus, o grande e primeiro educador, o grande artista das almas, continua a trabalhar na perfeição das suas obras-primas" [23].

O espírito arquitetônico de Leonel Franca o faz conceber um plano de estudos bastante amplo com o intuito de formar a personalidade: a) no ensino das disciplinas: sociologia, filosofia, matemáticas, física, geografia, história e literatura; b) na organização escolar: organização social na sala de aula, exigência de disciplina, self-government e enumeração de algumas cautelas práticas a seu ver necessárias à boa formação. Também é salientada a importância da personalidade do mestre, que serve de exemplo para alunos e discípulos, assim como a circunstância de que a etapa propedêutica pavimenta a formação espiritual, fim inescapável da formação da personalidade.

Neste livro, a quantidade de autores cuja memória começa a perder-se na poeira do tempo é imensa - muitos deles foram grandes referências intelectuais do século XIX, para o bem e para o mal. Também neste sentido, a reedição de A Formação da Personalidade é um serviço prestado, na medida em que inúmeros jovens passarão a travar contato com filósofos, escritores e poetas dos quais quase já não se fala.

Convidamos o leitor a enveredar por estas páginas advertido que está a travar contato com um autor que não tergiversa, quando o assunto é ensinamento católico. Sirvam-lhe, pois, de aperitivo as seguintes palavras de um texto da presente obra intitulado "Unidade e Dispersão em Pedagogia":

"A pedagogia laicista é dispersiva, fragmentária e estruturalmente desarticulada na incoerência dos seus elementos. Não é difícil, remontando o curso das idéias e dos acontecimentos, encontrar a primeira origem deste vício fundamental. A ruptura da unidade viva que lamentamos nos sistemas de educação é apenas reflexo de um desequilíbrio interior não menos funesto que sofre o homem moderno em toda a sua vida espiritual".

A história dessa perda do sentido de unidade no âmbito da pedagogia - ou seja, do ensino da verdade - tem início no Ocidente, segundo Leonel Franca, com a revolta à qual os historiadores dão o nome de Reforma Protestante, e impulso vital com a Revolução Francesa, quando o Estado começa a agigantar-se a pretexto de defender a liberdade dos indivíduos.

Boa leitura.


Notas:

[1] Aos interessados em conhecer de maneira mais aprofundada algumas dessas escolas, indicamos a leitura do livro Corrientes de Psicología Contemporánea, de Martín F. Echavarría. [Esta obra foi publicada em português: Correntes de Psicologia Contemporânea em 2021 pela Editora CDB].

[2] "Um pequeno erro no princípio torna-se grande no fim". SANTO TOMÁS DE AQUINO, De Ente et Essentia, Proêmio.

[3] "Persona est rationalis naturae individua substantia". BOÉCIO, De duabus naturis et una Persona Christi, Cap. 3.

[4] Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, I, q. 29, art. 1.

[5] SANTO TOMÁS DE AQUINO, Op. cit.

[6] Cf. FORMENT, Eudaldo, Ser y persona, Publicacions Edicions Universitat de Barcelona. Barcelona (ESP): 1983, p. 18.

[7] "Pessoa é algo de distinto subsistente na natureza intelectual". Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, In IV Libros Sententiarum, d. XXII, solutio.

[8] A propósito, uma das críticas do psicólogo e filósofo tomista Martín F. Echavarría a Freud é que, na obra deste, o termo mens (mente) é praticamente inexistente.

[9] Inteligência que, no caso humano, é abstrativa e se vale de raciocínios, pois não temos a intuição direta dos inteligíveis.

[10] Cf. ECHAVARRÍA, Martín, La praxis de la Psicologia y sus niveles epistemológicos según Santo Tomás de Aquino, Documenta Universitaria - Universitat Abat Oliba CEU. Barcelona: 2005, p. 186. [Esta obra foi publicada em português: A Práxis da Psicologia e seus níveis epistemológicos segundo Santo Tomás de Aquino em 2021 pela Editora CDB].

[11] Um eu impessoal seria nada menos que uma contradictio in terminis.

[12] Que, como vimos, é o traço característico da pessoa.

[13] E, derivativamente, também à vontade, que é apetite intelectivo do bem. 

[14] Cf. ECHAVARRÍA, Martín, Op. cit., p. 146.

[15] Diz Leonel Franca na página 111 da presente edição: "A pessoa é um indivíduo de natureza espiritual. Inteligência e vontade caracterizam-na essencialmente. A pessoa é ao mesmo tempo individuo e sujeito. Como sujeito, isto é, como ser dotado de conhecimento e de conhecimento intelectivo, relaciona-se com um mundo de objetos, com um sistema de valores distintos de si, mas cuja realização lhe condiciona o aperfeiçoamento. A pessoa é portadora de valores morais

[16] Como em verdade são.

[17] Cf. ECHAVARRÍA, Martín, Op. cit., p. 308.

[18] É no seguinte sentido que devem ser entendidas as críticas feitas pelo padre Franca, em vários de seus livros, a Immanuel Kant: para o jesuíta brasileiro, o mau feitio psíquico do filósofo de Königsberg está intimamente relacionado às imprecisões que o levaram àquilo que Franca chama de individualismo pedagógico.

[19] FRANCA, Leonel. A Psicologia da Fé - O Problema de Deus. Edições Loyola, São Paulo: 2001, p. 39. [Ambas as obras também foram publicadas pela Calvariae Editorial em 2019].

[20] Neste ponto, convém salientar o seguinte: não se trata de dizer que uma vida psiquicamente saudável é prerrogativa de gente intelectualizada, mas sim de afirmar que o intelecto não deve ser tolhido em seus movimentos naturais.

[21] Página 37 da presente edição.

[22] Páginas 38 da presente edição.

[23] Páginas 42 da presente edição.

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A Pedagogia Medieval

 

Saltério de Eadwinus. Inglaterra,
séc. XII. Monge copista.
Trinity College, Cambridge
Trecho retirado Introdução do livro Educação, Teatro e Matemática Medievais de Luiz Jean Lauand, 1986. Editora Perspectiva.

Atualidade da Pedagogia Medieval

Régine Pernoud, a conhecida medievalista francesa, comparou certa vez, a possibilidade de abertura proporcionada pelo genuíno estudo de história com a que se pode obter pelas viagens: em ambos os casos nos deparamos com "o outro", distante de nós no tempo ou no espaço.

E esse encontro nos coloca em situação de reparar em tantos aspectos do nosso modo de ser e de ver o mundo que julgávamos universais mas que para nossa surpresa -- mostram-se próprios de nosso meio ou época. Como também, com igual surpresa, deparamo-nos com experiências humanas que por coincidirem com as nossas (mutatis mutandis, é claro) nos revelam que não somos tão originais como pensávamos.

E assim, viajando ou estudando história, temos a possibilidade de abrir-nos, de superar um pouco os limites mais ou menos estreitos de nosso "bairro" de espaço e tempo, a possibilidade de enriquecer-nos como homens através de uma melhor compreensão da realidade do mundo e também de nós mesmos. Claro que nos referimos a uma possibilidade, pois, de per si, nem as viagens nem os estudos históricos podem realizar essa abertura. Para tanto requer-se além disso, e, principalmente, uma atitude interior de compreensão e acolhimento.

Pois pode acontecer, que o efeito desse contato com o "outro" seja até mesmo um maior fechamento e provincianismo. Todos conhecem algum exemplo: o novo-rico que volta da Europa e ao projetar os slides para os amigos vai manifestando sua indignação ante aquelas "velharias caindo aos pedaços".

Algo semelhante ao que se passa com tantos turistas, pode dar-se também quando se trata do contato com o "outro" no tempo, com o estudo de história: embotamento, superficialidade e incapacidade de compreensão (o que pode perfeitamente ocorrer também com eruditos estudiosos).

No caso da história, o "outro" é ainda menos visível e os cicerones -- no caso, livros e professores -- nem sempre sabem dirigir a atenção àquilo que realmente interessa, conduzindo-nos antes a apressadas correrias superficiais pelos estereotipados "pontos turísticos" da história sem que captemos nada de significativo. Ou, ainda pior, levando-nos a lojas com ele aconchavadas e onde a mercadoria é falsificada e o preço exorbitante.

Todos esses empecilhos que ameaçam comprometer o estudo de qualquer período histórico, parecem manifestar-se mais acentuadamente quando se trata da Idade Média. O medieval é -- assim se expressa o preconceito -- a obscuridade, a ignorância, o desprezível. Por isto, procuraremos lembrar alguns aspectos ligados aos primeiros séculos medievais e que o estudioso da história da cultura e da educação da época deve ter em conta.

Alguns poucos aspectos que nos farão por um lado apreciar as diferenças daqueles séculos em relação ao nosso e, por outro (o que poderá surpreender a muitos...!), as semelhanças da problemática educacional medieval com a brasileira contemporânea.

Primeiramente, as diferenças. Aí é especialmente importante a tarefa de abrir-se ao outro, procurar apreendê-lo tal qual é e não como se tivesse de agir, pensar e ver o mundo com critérios que hoje nos são conaturais. 

Assim, antes de emitirmos juízos sumários sobre por exemplo a ciência medieval devemos procurar compreender os condicionamentos, mentalidade e motivações próprias da época.

Superando por exemplo nossa errada tendência a só dar valor a inovações e progressos técnicos sofisticados que nos impressionam: computadores, raio laser etc...

A propósito dessa distorção, consideremos algo para nós tão corriqueiro e irrelevante como efetuar uma conta de divisão. Por exemplo, dividir 3 878 por 88. Valendo-nos do algoritmo usual (para não falar em calculadoras...) é questão de segundos: dá 44 e resto 6.

3 878 |88
   358   44
       6

Contudo, sem os nossos algarismos chamados arábicos, qual a viabilidade de se fazer o mesmo: comportam os algarismos romanos algum algoritmo para as operações?

MMMDCCCLXXVIII |LXXXVIII,

tem algum sentido isto?

Para nós, hoje, com imprensa, xerox etc., pode não ser imediatamente evidente a descomunal importância da letra minúscula que permite a escrita cursiva; ou o significado do paciente trabalho de cópia nos mosteiros medievais; ou ainda, o imenso alívio que representou a introdução do nosso atual sistema de algarismos.

Tenha-se em conta também que, no caso da evolução da cultura, não contam só os fatores ligados a recursos técnicos, mas também, e principalmente, a mentalidade: que atitude terão uns bárbaros analfabetos instalados no espaço do ex-Império Romano? Que farão eles por exemplo com os livros?

E não se trata só do que farão, mas do que podem fazer. Que acesso físico (obter o livro), motivacional, de língua etc., têm ostrogodos e visigodos à cultura clássica?

Este é o ponto em que a problemática pedagógica medieval se revela de plena atualidade. Pois, quem contempla hoje a situação educacional brasileira, repara imediatamente que o ostrogodo é uma realidade atual, atualíssima.

O risco hoje, tal como no século VI, é o do desaparecimento da cultura que tem suas origens na Grécia e em Roma e que plasmou o Ocidente. Quem lê hoje Platão, Virgílio, Dante, Cervantes, Shakespeare? Quem estuda Geometria, os teoremas de Geometria?

No caso da experiência medieval, a cultura antiga salvou-se. Graças a um trabalho de imenso valor mas que nós hoje não sabemos apreciar. Um trabalho humilde (e, necessariamente, pouco original) de aprendizado elementar. Um trabalho de preservação, de salvação da cultura antiga, conservando-a sob a forma de "minúsculas sementes que iriam sofrer longo e demorado pro- cesso germinativo em solo novo" (Pieper). E graças à disposição de aprender não totalmente ausente nos ostrogodos.

E graças ainda a educadores com grande visão pedagógica. A título de exemplo consideremos o caso de Boécio.

Boécio elabora essas sementes para a Idade Média. Boécio é um romano que conhece a fundo a cultura grega e que percebe que o esplendor cultural do mundo antigo passou: a realidade agora são os ostrogodos!

Para se compreender a situação de Boécio no reino ostrogodo de Teodorico no início do século VI, imagine-se, hoje, um brilhante scholar europeu, destacado em todas as áreas do pensamento, tendo que lecionar num supletivo de 1.º grau em Cochabamba.

Boécio, no entanto, percebe o que deve ser feito: só se pode salvar a cultura em épocas de crise como a que ele viveu adaptando-a às condições dos bárbaros.

E ele assume a tarefa de selecionar, traduzir, dar em forma de bê-a-bá os grandes tesouros culturais da Antiguidade. Por exemplo, parte explícita de seu projeto era a tradução de todas as obras de Platão e Aristóteles, projeto interrompido pela trágica morte.

Escreveu tratados de Música, Aritmética e Geometria (De Institutione Geometrica), entre outros.

No caso exemplar da Geometria, ainda que o original boeciano se tenha perdido, resta-nos o Ars Geometrica (durante muito tempo atribuído a Boécio e que provavelmente é pouco posterior ao De Institutione e nele se apoia), que, seja como for, reflete sem dúvida o espírito (e talvez a letra) do "último romano e primeiro escolástico"

Trata-se de uma resumo das definições e proposições de Euclides em tradução latina. No começo do livro II, encontramos uma sentença que sintetiza maravilhosamente todo o projeto de salvação cultural boeciano: "Quamvis succincte tamen dicta sunt", isto é, apresentei-vos a Geometria de modo sucinto e facilitado, mas a apresentei.

São as tais sementes secas: a gloriosa Geometria de Euclides, maltratada, resumida, exposta sem sua parte mais nobre, as demonstrações: precisamente o que Boécio mais prezava! Mas, graças a isso, precisamente por isso, salva-se no Ocidente a própria Geometria: não havia outra opção de salvação!

Quem pensa na situação do próprio ensino de Geometria hoje, no Brasil, ou na do de Literatura ou História etc., se tiver um pouco de amor a essas matérias, sentir-se-á imediatamente muito próximo de Boécio, irmanado com ele. E talvez o imagine sorrindo diante de projetos pedagógicos contemporâneos como o dos Great Books, ou o dos concertos populares em Shopping Centers.

Pelo menos Boécio como ele mesmo diz - traduzia à risca e selecionava o melhor que os seus bárbaros alunos podiam assimilar. Há neste sentido a curiosa passagem do Ars Geometrica -- que apresentamos em onde se vê claramente emergir o espírito do 3.1 Boécio "grego": um parágrafo onde, como num desabafo, o autor pede licença aos ostrogodos leitores para fazer demonstrações de teoremas, três apenas, e dos mais fáceis (as três primeiras proposições do livro I de Euclides) a fim de não deixá-los numa treva tão total e, algum dia, as sementes poderem florescer: que se saiba pelo menos o que é demonstrar um teorema e que isso é belo, importante e formativo.

Graças a esse trabalho humilde e sacrificado, assumido conscientemente por quem tinha talento para muito mais, a Matemática preservou-se no Ocidente e pôde manter-se até o século X, quando recebe novo impulso com Gerberto e, a partir dos séculos seguintes, desenvolver-se mais e mais.

Considerando isso, é o caso de perguntarmo-nos se não haverá na história da educação medieval (da qual destacamos aqui apenas mínimos aspectos) muita matéria de reflexão quando se a capta autenticamente.

Mas para isso é necessário abrir-se, captar o "outro", como um viajante que chega a uma terra distante com os olhos abertos para aprender, com a mesma diligência com que procuramos captar e compreender detalhes do modo de ser de uma pessoa a quem amamos.

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Matemática e Teologia


Sobre a imagem acimaDeus criador do Universo. Observe que Ele, muito atento, manuseia cuidadosamente um imenso compasso (representação da Geometria, arte do Quadrivium, e do puro pensamento matemático do Criador) na circular “massa informe e vazia” para que, como disse Teodorico de Chartres, com amor e bondade, Deus, que é a Sabedoria, ordenasse a desordem e fosse a causa formal e eficiente do mundo, e assim as coisas criadas fossem partícipes de Sua felicidade através de Seu amor. Bíblia moralizante (séc. XIII), cód. 1779, folio 1v (Gênesis), Biblioteca Nacional da Áustria. In: Las biblias más bellas. Taschen, 2008, p. 215.


A ESCOLA DE CHARTRES E A TRADIÇÃO DO QUADRIVIUM

por Jorge Filipe N. S. Teixeira Lopes (*)

Cuestiones Teológicas, Vol. 41, No. 96 (julio - diciembre, 2014)

INTRODUÇÃO

Quando a obra Ars Fidei Catholicae foi oferecida ao papa Clemente III, entre 1187 e 1191, por Alain de Lille ou Nicolau de Amiens – os estudiosos modernos não são unânimes [1] – o seu autor procurara demonstrar como o ensino da teologia se tornara uma forma elevada da aritmética, com um modus operandi próprio na estruturação do pensamento. Esta oferenda evidenciava o progresso da teologia nesse século que findava. Entre outros subsídios, este progresso tinha passado pela intenção de explicar o mundo de forma racional, através de relações numéricas com as quais se pretendia revelar não só as leis da natureza, mas inclusive a própria essência divina. Nesse contexto, é de se realçar a abstração que o quadrivium permitira, ao longo da Idade Média, no conhecimento das coisas, e a importância que tivera na formação do homem medieval. De facto, essas quatro artes permitiriam ao homem conhecer as realidades celestes, ao mesmo tempo que o afastavam das coisas terrestres, conforme nos é relatado num trecho de um manuscrito anónimo (Per hoc quadrivium scimus caelestium contemplationem, terrestrium abiectionem) (Ghellinck, 1948, p. 16).

Cerca de meio século antes, por volta de 1141, o chanceler da escola de Chartres, Thierry de Chartres tinha escrito uma obra que ficaria conhecida como a ‘bíblia das artes liberais’, Heptateuchon, onde exprimira a sua concepção do saber e o papel das artes liberales no processo de conhecimento humano. O título da obra, alusivo ao número sete (επτά), fazia uma analogia entre as artes liberalesTrivium (Gramática, Dialética, Retórica) e Quadrivium (Astronomia, Música, Geometria, Aritmética) e os sete primeiros livros da Escritura (Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué e Juízes) (Jeauneau, 2009, pp. 67-68). No prólogo, Thierry afirmava que os dois instrumentos básicos do filosofar eram a reflexão – ou compreensão intelectual – e a expressão adequada. A reflexão intelectual seria proporcionada pelo quadrivium, que deveria iluminar o intelecto; o trivium, por sua vez, seria o meio pelo qual se permitiria a manifestação conveniente do pensamento (Jeauneau 1954, p. 174) [2]. Esta era, sem dúvida, a clássica divisão das ciências que fazia parte substancial do curriculum medieval das sete artes liberales.

O QUADRIVIUM COMO FORMA DE ABORDAR A NATUREZA

O desenvolvimento expositivo destes homens do século XII, que ficariam conhecidos como os primeiros ‘intelectuais’ do ocidente (LE GOFF 1951), denota um esforço em alinhavar argumentos claros e coerentes, apoiados em dados obtidos a partir da natureza. Para o pensamento chartriano, esta era chamada por ‘universo das coisas’ (rerum universitas) (Maccagnolo, 1976), pois englobava todo o universo criado, desde os coros angélicos até ao universo físico. As disciplinas das artes liberales proporcionavam ao intelectual a objetividade necessária, não somente na forma de abordar as ciências experimentais, mas também no processo lógico-argumentativo, a fim de melhor sustentar a clareza expositiva e organizar a sequência dos raciocínios.

O escopo do pensamento chartriano era provar que a ordenação do mundo criado exigiria um Criador. Essa preocupação já S. Agostinho tivera quando procurara dar uma noção filosófica de ordem (ordo) e procurado entender de que modo o nosso universo está sapiencialmente ordenado. Que instrumentos terá Deus utilizado para o conceber? Por vias do neoplatonismo agostiniano, uma tradição promovida pouco mais tarde em Boécio dizia que quatro eram as vias da sabedoria e quatro eram também os meios de estudar o universo: Astronomia, Música, Geometria e Aritmética. Seria, portanto, pelo quadrivium, isto é, pelas quatro disciplinas que proporcionam o estudo intelectual da natureza, que o homem poderia chegar até Deus.

Está claro então que, para a escola de Chartres, o universo das coisas (rerum universitas) é motivo para uma procura racional dos princípios em que a fé cristã acredita. Mas, além desse aspecto, cumpre compreender que estudar o cosmos pelo quadrivium é estudar a ciência do número, isto é, da aritmética combinada com as considerações metafísicas ensinadas pelos antigos e transmitidas ao mundo latino em grande medida por Boécio. Por exemplo, as arithmeticae probationes aplicadas por Thierry de Chartres à teologia no Tractatus de sex dierum operibus, são prova disso, bem como, em certo modo, a especulações teológicas da Dialectica, de Pedro Abelardo. Portanto, para se entender a importância destas scientiae rerum, deve-se proceder a uma análise histórica e, digamos assim, genealógica do quadrivium, em busca das fontes do pensamento chartriano para um estudo racional acerca do mundo.

O quadrivium nas fontes da tradição neoplatônica

Foi nas fontes do neoplatonismo latino que o chamado ‘pensamento racional’ ou ‘pensamento científico’ dos homens de Chartres se foi abeberar. E se a escola de Chartres foi um dos maiores bolsões de intelectualidade no século XII, sem embargo, a sua apreensão do cognoscível não deixa de passar pela ‘linguagem sagrada’ dos símbolos. Ela situa-se numa transição entre a visão simbólica e alegórica, patente em toda a alta Idade Média, e o pensamento científico da Alta Escolástica do século XIII. Como indicou o Prof. Gonzalo Soto (1999), o simbolismo é a inquirição in vestigium ire, isto é, a procura das marcas de Deus, e, portanto, o ponto onde se dá o encontro dos dois aspectos chave do conhecimento medieval: primeiro, a busca da semelhança, que lhe serve de configuração mental; depois o símbolo, que é o motor próprio dessa busca (pp.131-132). Há, portanto, toda uma variedade e gama de simbolismos que faz parte do misticismo medieval, e é nesse prisma que convém perceber a noção platónica de um universo racional, e, por conseguinte, os meios empreendidos para estudá-lo. Quer dizer, os seus métodos e ferramentas de estudo são repletos de pensamento religioso e mítico, que fazem-no interpretar o mundo de uma forma completamente distinta da do homem moderno.

Voltando ao nosso tema, foi em De musica de S. Agostinho que se evidenciou o carácter científico das artes liberais, o qual teria grande importância nos curricula da formação medieval. Já em De Ordine, o bispo de Hipona Agostinho traçara-lhes uma genealogia racional, solidificando-as numa unidade e denunciado a presença de proporção e harmonia nestas disciplinas, razão pela qual podiam ser concebidas como scientias. As artes do trivium e quadrivium, podiam levar a razão à busca da Verdade, do corpóreo (corporea), a uma ordem superior, acima do meramente sensível (incorporea). Nesse contexto, a música tinha um especial papel, pois dividia a sua função com a gramática através do som (sonus), e podia ser submetida a uma medida e ordem de acordo com proporções e números, dada a sua correspondência direta com as proporções aritméticas (Correa, 2009, pp. 148-150).

A razão humana capta a unidade, ordem e simetria, ou, segundo expressão do mestre de Hipona, a modulação (modulatio) proporcionada das coisas que existem. É, portanto, através das matemáticas que a razão pode aceder do sensível ao inteligível e contemplar o esplendor da verdade divina refletida no mundo visível. A ciência das artes liberais prepara, portanto, a alma para a consideração das harmonias e proporções do universo (Correa, 2009, p. 151).

No século VI, Boécio insistiu também no quadrivium, como as quatro disciplinas que abarcavam o estudo da natureza e como quádrupla via rumo à sabedoria. Denominando-as artes reais (artes reales) – referentes às coisas da natureza (res) – as ciências matemáticas eram a luz para os olhos da alma, desempenhando uma função propedêutica em relação à teologia (Kijewska, 2003). Era por intermédio delas que a alma se podia abrir para uma hierarquia de abstração, por onde podia aceder das percepções sensíveis à pura razão, a um conhecimento em harmonia com a mente divina.

Boécio distinguiu dois tipos de quantidade nestas quatro disciplinas das coisas: quantidade discreta - daquilo que é contável, relativo, portanto, aos números – e quantidade contínua - relativo a linhas no espaço - como segue (Boethius, II 1) [3]:

Aritmética (estuda a quantidade discreta estática)
Música (estuda a quantidade discreta em movimento)
Geometria (estuda as grandezas estacionárias)
Astronomia (estuda as grandezas dinâmicas em movimento)

É de realçar que o pensamento boeciano teve um papel único no século XII, não sendo por acaso que Marie-Dominique Chenu chamou a este tempo de aetas boetiana (pp.142-158). Relevante indício da sua larga influência é o facto do místico Hugo de São Victor, da abadia homónima, ao escrever Didascalicon, um livro que é um autêntico compêndio das artes liberales, definir as disciplinas do quadrivium com a mesma terminologia de Boécio:

Um tipo de magnitude é móvel, como as esferas celestiais, outro, imóvel, como a Terra. Ora, a quantidade que permanece em si é examinada pela Aritmética, enquanto aquilo que está em relação a outra quantidade é observada pela Música. A Geometria toma conhecimento da magnitude imóvel, enquanto a Astronomia toma conhecimento daquilo que é móvel. A Matemática, por conseguinte, está dividida em aritmética, música, geometria e astronomia (Hugonis ST. Victore 755C) [4].

Mas, além de Boécio e Agostinho, outros autores há que também merecem ser destacados no âmbito do estudo das artes liberales, genericamente falando, ao longo da Idade Média: numa abordagem cronológica, temos, em primeiro lugar, Vitruvius, que em De Architectura destacou a necessidade de formação em geometria, música e no conhecimento das proporções celestes, facultado pela astronomia; mais tarde S. Isidoro de Sevilha, em Etymologiarum, verdadeira enciclopédia do saber medieval, lembrou o papel das artes liberales, e a importância dos números na demarcação da música, geometria e aritmética. Mais tarde, no século IX, o irlandês John Scott Eurigena, seguindo o pensamento agostiniano, considera as artes liberales como uma via para apreender a verdade da Revelação. Nos seus comentários às Institutiones gramaticae de Prisciliano, ele diz que elas brilham com a luz da sabedoria (sapientiae luce praefulgens) (O’Meara, 1992, p. 178).

No entanto, a maior influência nesta área foi a obra De Nuptiis Mercurii et Philologiae, de Martianus Capella, retórico do século V. Nela representam-se alegoricamente as artes liberais, como sete virgens que oferecem seus presentes no casamento entre Filologia e Mercúrio. A obra foi encontrada em muitos mosteiros e catedrais nos séculos XI, XII e XIII, e sabe-se que toda a personificação das artes liberais ao longo da Idade Média é-lhe conforme (Mâle, 2000, p. 79). Por exemplo, em Anticlaudianus, obra escrita por volta de 1180, Alain de Lille imagina a figura da sabedoria (philosophiae) tendo diante de si as sete artes liberales que, sobre uma carruagem, vão em busca de Deus (Alanus Ab Insulis, pp. 505-521).

De Nuptiis Mercurii et Philologiae foi indubitavelmente o compêndio de artes liberales mais popular da Idade Média. E é curioso que, apesar de não conhecer Euclides nem Ptolomeu, Capella tenha abordado cientificamente tanto a Geometria tanto como a Astronomia. Para ter sido levado tão a sério pelos medievais, tenha-se em conta o facto da obra ter sido escrita em tom alegórico, o que fazia convidar o espírito a contemplar temas tão difíceis como as ciências dos astros e a aritmética de forma fantasiosa.

Mas outras duas obras são de vivo interesse, pois foram bastante lidas no tempo de Chartres: são elas o Timaeus de Platão, traduzido e comentado por Calcidius no século IV, e o comentário in Somnium Scipionis, de Cícero, por Macrobius, provavelmente no início do século V. No seu comentário Macrobius trata largamente de temas científicos, abordando desde a natureza do número e sua presença no universo, à astronomia e geografia, escrevendo até sobre a vida humana. Repleto de descrições astronómicas, a obra serviu de base para a cosmologia do período carolíngio até ao século XII.

O quadrivium entre o período carolíngeo e o século XII

A divisão das artes em trivium e quadrivium era já usada no começo do século IX. Vários escolásticos pretenderam ver a sua utilização como fundamento para um perfeito conhecimento de Deus, como Alcuinus de York, na escola palatina de Aix-la-Chapelle, no tempo da corte de Carlos Magno. Em De vera philosophia, que constitui o início da sua Grammatica, Alcuinus apresenta o caminho rumo à sabedoria com sucessivas graduações, fazendo notar que em Provérbios IX, 1, a sabedoria ao construir a sua casa, fê-lo sobre sete pilares que não são senão as sete artes liberais (p.853) [5].

São de salientar nessa época os diagramas planetários baseados em vários autores latinos, como os já mencionados Martianus Capella e Macrobius, mas também Plínio o Velho (séc. I), Calcidius, na sua tradução e comentários do Timaeus de Platão. Entre eles, destaca-se o trabalho de Calcidius que ofereceu pela primeira vez um universo racional, geométrico e filosoficamente coerente (Eastwood, 2007, pp. 26-29):

As sete artes liberais

Trivium
(scientiae vocis)
Gramatica (Lua) - Linguagem
Dialectica (Mercúrio) - Lógica
Rethorica (Vénus) - Arte de falar
Quadrivium
(scientiae rerum)
Aritmethica (Sol) - Número
Musica (Marte) - Harmonia
Geometria (Júpiter) - Espaço
Astronomia (Saturno) - Movimento   


As sete artes liberales tinham uma relação com os sete planetas. As relações entre ambos remontam a tempos longínquos e seriam imortalizadas por Dante (1265-1361), no Livro II da Divina Comédia, “il Convivio”, onde se estabelece uma analogia entre as esferas celestes da cosmologia medieval e as ciências. Segundo Dante, envolvendo a Terra esférica, as sete esferas dos planetas, começando pela Lua até Saturno, podem ser comparadas com as sete ciências. Assim, a Gramática correspondia à Lua, Dialética a Mercúrio, Retórica a Vénus, Geometria a Júpiter, Música a Marte, Astronomia a Saturno e a Aritmética ao Sol. A oitava esfera, a do Firmamento, associava-se à Física e à Metafísica. Dante afirma, por exemplo, que o sol relaciona-se com a aritmética da seguinte maneira: primeiro, ele é fonte de luz para todas as outras estrelas. Segundo, o olho não pode olhar a luz pela sua luminosidade. Por analogia, a aritmética – o estudo das propriedades numéricas – é o fundamento de todas as outras ciências analíticas, pois apesar dos números serem infinitos e imateriais, o intelecto humano pode ver e compreender seus princípios fundamentais (Lansing, 2000, p. 736).

Pelo fato de trabalhar com números e proporções, o quadrivium seria o melhor meio de compreender a ordem do universo, enquanto obra primorosa concebida pelo divino arquiteto, pois acreditava-se que as distâncias entre os planetas – bem como seus movimentos espaciais – estavam ordenados matematicamente. Portanto, estudar o universo seria tarefa não só da astronomia, mas também da ciência geométrica que estudava as leis imutáveis do espaço dispostas harmonicamente por Deus, segundo as proporções aritméticas e os padrões da harmonia musical.

Entre os séculos X e XI, em Reims, Gerbert d’Aurillac (930-1003), futuro Papa Silvestre II, aprofunda as artes do quadrivium. Desde o norte da França à abadia de Ripoll, da Catalunha à Itália, Gerbert ensina música, astronomia e geometria. Conhecem-se pelo menos duas obras redigidas sob sua inspiração, nomeadamente De Geometrica e De Astrolabio, que fazem transparecer a trajetória dos seus ensinamentos e o objetivo dos seus estudos: o aprofundamento das ciências naturais e práticas. Dando primazia à astronomia, Gerbert considera contudo que a geometria não é uma ciência que se reduz somente à resolução de problemas práticos, mas constitui uma forma sapiencial de pensar e apreender o Universo (Levet, 1997, p. 3).

Conhecido como o “papa matemático”, Gerbert não estudou somente o quadrivium, mas foi profundamente influenciado pelas ciências árabes, tendo reintroduzido na Europa o ábaco, como o demonstram as Regulae de numerorum abaci rationibus, e a esfera armilar. Dentre os seus alunos encontram-se figuras eminentes como Adalberon de Laon, João de Auxerre e o futuro fundador da escola de Chartres, São Fulberto de Chartres (c. 960-1028). Este último chega a Chartres por volta de 990, depois de ter estudado em Reims com Gerbert e tido por tutor Odon de Cluny, o qual fora aluno de Remigius de Auxerre. Mais tarde, torna-se mestre e chanceler, dirigindo as escolas da catedral que ele próprio manda reconstruir, após ser eleito bispo em 1006. Até à sua morte em 1028, Fulberto foi o grande impulsionador do estudo da filosofia, e quase todos os homens cultivados do seu século tiveram-no como mestre. Os ensinamentos dele situam o conhecimento do mundo não na percepção sensorial mas nas ideias; quer dizer, saber não significa um conhecimento ou mera classificação do universo, mas estudar sobretudo os seus princípios aparentes, isto é, as leis que o compõem (Brown, 2008, p. 237).

Entre os estudos de aprofundamento do quadrivium pelos seguidores de Gerbert, salienta-se a troca de oito cartas, cerca de 1025, entre Ragimbold de Colónia e Radolf de Liège – ambos alunos de Fulberto – que versam sobre uma questão de Boécio extraída das Categorias de Aristóteles, acerca de problemas de geometria. Apesar dessa troca de carteio revelar o diminuto e muito fragmentado conhecimento de ambos em Geometria,– além do que não conheciam nem grego nem as matemáticas árabes – é notável, sem dúvida, este vivo interesse por questões científicas e pelas obras antigas, o que viria a ter correspondência, um século mais tarde, na filosofia natural do Timaeus de Platão praticada pela escola de Chartres (Grant, 1977, pp.14-15).

O QUADRIVIUM NA ESCOLA DE CHARTRES

Se a cidade de Paris do século XII se tornou famosa pelos estudos de filosofia e teologia, as ciências, enquanto estudo da natureza e do que hoje chamamos comumente de ciências naturais, teve seu início com a escola de Chartres. Thierry de Chartres, por exemplo, ao interpretar o Génesis, propõe fazê-lo segundo as leis dos físicos (secundum rationem physicorum) (Häring, 1971, p. 562). Este modo racional de abordar a Criação reflete-se em outras obras suas: no prólogo do já mencionado Heptateucon, Thierry relaciona a sabedoria (sapientia) com a ciência das coisas (quadrivium); e no seu comentário ao De Trinitate de Boécio, faz um paralelo entre a sabedoria e a matemática, sublinhando que o costume dos antigos era aprender primeiro a matemática, de modo a poder aceder ao conhecimento de Deus ([…] quia mathematicam solebant prius antiqui discere ut ad divinitatis intelligentiam possent pervenire) (Häring, 1971, p. 62) [6]. O seu conceito de sabedoria está, portanto, relacionado com as artes do quadrivium, pelas quais, afirma ele, o universo pode ser estudado. Ter sabedoria significa compreender a racionalidade interna da natureza, que é alcançada por intermédio das ciências matemáticas, os quatro meios de ascender ao Deus criador (quattuor genera rationum ad cognitionem Creatoris), como o próprio Thierry afirma:

Assim, pois, existem quatro tipos de razões que levam o homem ao conhecimento do Criador, a saber: as provas aritméticas, musicais, geométricas e astronómicas. Nesta teologia devem-se empregar com prontidão ditas ferramentas, de maneira que se veja nas coisas a maestria do Criador e se manifeste racionalmente o que foi exposto (Häring, 1971, p. 568).

Na sua hermenêutica da Criação, Thierry tenta coadunar a narração evangélica com a experiência sensível e constatável pelas leis naturais, tentando fazer coincidir a exposição do autor sagrado com as exigências da ordem da natureza (ordo naturalis), nos momentos primeiros do mundo (Häring, 1971, p. 559). Na mesma linha, o seu contemporâneo e também mestre da mesma escola, Bernardo de Chartres, procurou fazer uma autêntica lectio physica da Criação, pois, na sua Glosae super Timaeus, obra na qual procura compreender a origem e ordem do universo, mostra como é possível inteligir as causas naturais através das ciências do quadrivium, pois é por intermédio dos números que se encontra a perfeição da ciência (scientia quadrivii […] est perfectio scientiae per numeros) (Dutton, 1991, p. 178).

Cabe aqui fazer uma indicação importante: existia na época uma concepção de que Deus governava o mundo através de uma lei, não no sentido moderno, mas a que chamavam alma do mundo (anima mundi), através da qual Deus mantinha ab extra todos os seres na sua devida ordem dentro do universo dos seres, ao mesmo tempo que lhes proporcionava as leis ab intra, que os faziam desenvolver conforme sua natureza. Vários chegaram inclusive a relacioná-la com o Espírito Santo, como Pedro Abelardo, que teve nesse assunto mais um motivo para a sua posterior condenação. De fato, era difícil distinguir entre o que era poder de Deus e lei da natureza, a qual ainda não se concebia enquanto tal. Sob esse aspecto, Thierry de Chartres, no seu comentário sobre a Criação, afirma que

em virtude daquele poder que opera sobre a matéria, existem todas as coisas que são ou podem ver-se no céu ou na terra. Com efeito, porque a própria matéria é por si mesma informe, não pode de modo algum obter a sua forma senão pelo poder do artífice que a trabalha e a ordena. (Häring, 1971, p. 566)

É pelo “espírito” de Deus, portanto que são governadas todas as espécies do mundo, cada qual segundo a natureza que Deus lhe conferiu (Häring, 1971, p. 566).

Seguindo a tradição neoplatônica, Thierry chama a essa força de (hyle), que é, em última análise, o mundo enquanto receptáculo de todas as coisas existentes, sejam as que se movem como as que vivem, e lembra que foi Platão, no Timaeus, que lhe chamou de anima mundi. Estas expressões filosóficas são depois relacionadas e justificadas com a frase do autor sagrado quando afirma no Génesis que “o Espírito do Senhor pairava sobre as águas” (Häring, 1971, pp. 566-567). Face à dificuldade de entender a origem e significado deste “poder”, o último dos grandes mestres de Chartres do século XII, João de Salisbury, deixou uma explicação sucinta mas clara sobre o seu significado:

O espírito criado [a anima mundi], isto é, o universal e natural movimento, toma uma forma que é em si mesma invisível numa matéria de si invisível, de uma tal maneira que o que é composto delas é transformado num género de substância atual e visível. O espírito é um movimento natural e universal, que contém os quatro elementos como se fossem ligados à matéria [hyle], e espalhados no firmamento pelas estrelas, no mundo sublunar pelo fogo, ar, água e terra, e em todas as outras coisas que naturalmente movem-se no mundo. A este movimento Mercúrio [Hermes] chama natureza, Platão chama de anima mundi, outros chamam destino e os teólogos chamam de providência divina. (Joannes Saresberiensis, 961D-962A)

Este poder da natureza foi o objeto principal do estudo de Chartres. Por isso se explica como era possível a crença de Bernardo de Chartres numa possibilidade de conhecer a ordem do universo através do quadrivium, e como ela se prendia ao facto de que a estabilidade do cosmos lhe fosse propiciada pela rigidez de leis métricas e por proporções matemáticas. Bernardo crê que esta firmeza e solidez do universo tem origem nos números 1, 2, 3 e 4, que são os que constituem a anima mundi, e, é importante recordar, são os mesmos da harmonia musical.

Com efeito, recorde-se que o medieval acreditava que a harmonia do mundo só podia existir porque era fundamentada na harmonia – do grego [ἁρμονία], que significava o princípio máximo de perfeição - das proporções musicais, isto é, da distâncias entre vários tons. Daí o fato, anteriormente mencionado, de se crer que os planetas estavam ordenados matematicamente segundo as tonalidades da escala musical. Razão pela qual eram capazes de produzir harmonias belíssimas ao movimentarem-se, que contudo não podiam ser captadas pelo ouvidos dos mortais – noção esta, de origem pitagórica, que ficou conhecida por teoria das esferas celestes. Para confirmar que o estudo da ordem do universo se faz pela música e por cálculos aritméticos, Bernardo lembra que Platão ensinara que a estrutura, ou a “sinfonia” do mundo partia dessa harmonia (Quibus simphoniis mundi fabricam constructam esse docebit) (Dutton, 1991, p. 146) [ver imagem 1].


IMAGEM 1. Escultura de Pitágoras (inferior esq.) tendo acima de si a Música (detalhe do Portal Royal de Chartres). À sua direita está Donato (ou Prisciano) que tem acima de si a Gramática.

Fonte: https://nibiryukov.narod.ru/nb_pinacoteca/nb_pinacoteca_sculpture/nb_sculpture_unknown_french_xii_chartres_cathedral_portal_statuettes.jpg


Essa ideia é largamente explorada pelos autores do século XII, como o inglês Adelard de Bath, que foi muito provavelmente um aluno de Thierry de Chartres. Em De eodem et diverso, recordando a Pitágoras, considerado o pai das matemáticas, Adelard ressalta a atração que a música exerce sobre homens e animais e lembra que isso se deve ao fato de que a harmonia da alma do mundo está presente em todos os seres do universo “o mesmo filósofo [Pitágoras] disse que a alma do mundo foi unificada destas consonâncias […] pois ela está em harmonia consigo mesma e alegre de colocar essa mesma harmonia nos corpos” (Burnett, 1998, p.54).

O estudo da música teve um papel fundamental nos mosteiros, ao longo da Idade Média. Na abadia de Cluny, que tinha na liturgia o centro gravitacional das suas atividades, a música estava no âmago da vida dos monges. Por isso, ao recitar o ofício, eles pretendiam entrar em consonância com a ordem do universo, que tinha na sua harmonia o mais belo hino de louvor da criação em relação ao seu Criador. Por isso, não é de admirar que o abade Hugo de Cluny tenha colocado nos capitéis do coro da basílica de Cluny uma representação dos tons musicais. Marie Thérèse D’Alverny deixou-nos um artigo bem significativo dessa mentalidade, que data de inicíos do século XII e reflete as influências de Calcidius, Capella, Macrobius e Boécio nas percepções musicais dos religiosos. Nele, ela comenta um curioso manuscrito intitulado De VII planetis et VIII musis, através do qual o autor - um anónimo monge - tenta suavizar os ensinamentos científicos com a arte poética. Para esse efeito, o método de ensino dos astros é dado através da leitura de uma prosa, que deve ser ao mesmo tempo cantada, e que faz corresponder para cada um dos sete tons da escala musical, um dos sete planetas (D’Alverny, 1964, pp. 7-20).

Como a música, as disciplinas que compõem o quadrivium são as scientiae princeps do estudo da natureza, ou seja, um modo científico que permite estudar o mundo criado, num caminho ascensional rumo ao Criador, como afirma Guilherme de Conches (100D) [7]. Uma edição de um tratado de autor anónimo Tractatus quidam de philosophia et partibus eius, publicado por Gilbert Dahan, revela bem como o homem platônico do século XII abordava os temas da natureza com base no quadrivium, dando-lhe um carácter científico (Dahan, 1983). Dahan é da hipótese do autor do texto ter sido discípulo de Guilherme de Conches. Este controverso mestre de Chartres compôs também uma Glosa super Platonem, onde seguiu os princípios geométricos e aritméticos dados por Boécio ao interpretar a ordem do mundo. Guilherme propõe uma autêntica ‘teologia musical’, pois para ele a anima mundi contém em si a harmonia arquetípica, que se reflete em todos os seres criados. E por isso os fenômenos que se podem contemplar na natureza têm leis próprias e inalteráveis. Essas leis Guilherme tentou explicar e interpretar nos três tratados filosóficos que nos chegaram: Glosae super Platonem, Philosophia mundi e Dragmaticon philosophiae.

É importante considerar como há na escola de Chartres um veio de busca sapiencial das causas da ordem do mundo criado, que suscita uma sinonímia entre scientia, sapientia e philosophia, isto é, entre aqueles que são considerados os instrumentos aptos para uma verdadeira interpretação da ordem do universo (Meirinhos, p. 4; Evans, 1993, pp. 7-8). Na verdade, a sabedoria é o fim último da filosofia (philosophia ergo est studium sapientiae), segundo Thierry de Chartres (Häring, 1971, p. 68), e a filosofia tem como instrumentos da sua análise as scientiae rerum, isto é, as ciências que estudam a verdade das coisas na imutabilidade dos números, como foi antes visto. Por isso, em Chartres, ciência e filosofia são os meios válidos, e porventura os únicos, para se alcançar a sabedoria. A imagem que mais bem expressa esse género de pensamento, e talvez também a mais bela, relacionando as artes liberales com a sabedoria, encontra-se no diagrama da filosofia da obra Hortus deliciarum, da mística Herrad de Landsberg, escrito após 1176 [ver imagem 2].

IMAGEM 2. A dama Philosophia tendo abaixo de si Sócrates e Platão e rodeada pelas sete artes liberais (as artes poéticas estão fora do círculo das ciências) © Strasbourg, Bibliothèque Municipale, (ms. perdido) Herrad de Hohenbourg, Hortus Deliciarum, f. 32r


CONCLUSÃO

Como foi visto, no século XII, a escola de Chartres pretendeu unir a teologia com as ciências matemáticas. Fruto de uma teologia de pendor platónico, desenvolvida sobretudo com base nos autores latinos dos séculos IV a VI, Chartres reúne e trabalha o pensamento físico e metafísico platónico - imbuído ainda de uma boa dose de matemáticas pitagóricas - que se encontra no Timaeus. No auge desta escola, estas teorias serviram tanto para a especulação teológica chartriana – de pendor naturalista - como para algumas aplicações científicas e práticas. Por isso, Winthrop Wetherbee afirmou que o século XII soube utilizar ferramentas na sua busca pelas causae e pelos principia, por onde é possível vislumbrar um gênero de pensamento que se poderia classificar como “ciência platónica” (Wetherbee, 1988, p. 26).

O seu pensamento teológico volta-se mais para a descoberta da natureza, afastando-se assim do ideal místico de sabedoria que perdurara ao longo da Idade Média, a imitatio christi. O pensamento chartriano demonstra um novo ideal que se traduz num esforço por compreender a estrutura matemática do universo, estabelecendo uma relação entre a teologia - mãe de todas as ciências - e o quadrivium.

A escola de Chartres criou métodos de estudo das universitas rerum, que são a base da sua particular cosmologia, isto é, da sua forma de fazer teologia e de conceber a Criação. Por isso, Thierry de Chartres, por exemplo, relaciona tão facilmente conceitos como sapientia e quadrivium, devido à semelhante imutabilidade que existe entre o Criador e a exatidão das ciências matemáticas. Pretende-se então fazer desta sabedoria uma teologia, isto é, unir razão e revelação, no intuito de encontrar nas universitas rerum aquilo que elas têm de mais verdadeiro pela vinculação com o Criador. E não é, portanto, de surpreender que uma das duas primeiras personificações em pedra das sete artes liberais, encontra-se no portail royal da catedral de Chartres, datado de cerca de 1150; era o momento em que a escola chartriana estava em pleno florescimento e Thierry de Chartres era seu chanceler [ver imagem 3].


IMAGEM 3. Portal Royal de Chartres

FONTE: https://employees.oneonta.edu/farberas/arth/Images/arth212images/gothic/Chartres/royport.jpg


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A escola de Chartres e a tradição do quadrivium 

Artículo recibido el 25 enero de 2014 y aprobado para su publicación el 1 de julio de 2014

Resumo

A escola de Chartres foi um importante pólo do conhecimento no século XII. O pensamento chartriano ficou conhecido devido ao seu veio científico que procurou estudar as leis da natureza baseando-se nas scientiae rerum, isto é, no quadrivium. Era por intermédio das ciências matemáticas que o homem poderia, fazendo uso da abstração, intelectualizar os fenómenos que via na natureza e interpretar as leis que discernia no universo. Este artigo procura fazer um elenco das principais fontes neoplatónicas desse pensamento por meio de um apanhado histórico e hermenêutico – num périplo que abarca desde os autores latinos neoplatónicos aos mestres do renascimento carolíngeo – no intuito de perceber como, por meio dessas quatro ciências das coisas (scientiae res), Chartres se tornaria um dos mais importantes centros de estudo das artes liberales e uma percursora das modernas ciências da natureza.

Palavras-chave

Escola de Chartres, Matemáticas, Quadrivium, Ciência, Idade Média.


La escuela de Chartres y la tradición del Quadrivium

Resumen

La Escuela de Chartres fue un importante centro de conocimiento en el siglo XII. El pensamiento chartriano quedó conocido por su intención científica de estudiar las leyes de la naturaleza, con base en las scientiae rerum, es decir, en el quadrivium. A través de las ciencias matemáticas, el hombre podía, con el uso de la abstracción, intelectualizar los fenómenos que veía en la naturaleza e interpretar las leyes que discernía en el universo. Este artículo procura hacer un elenco de las principales fuentes de este pensamiento neoplatónico a través de un recorrido histórico y hermenéutico -en un recorrido que abarca desde los autores latinos neoplatónicos a los maestros del renacimiento Carolingio- con el objeto de comprender cómo, a través de estas cuatro ciencias de las cosas (scientiae res), Chartres se convirtió en uno de los centros más importantes para el estudio de las artes liberales y una precursora de las modernas ciencias de la naturaleza.

Palabras clave:

Escuela de Chartres, Matemáticas, Quadrivium, Ciencia, Edad Media.


The School of Chartres and Quadrivium’s Tradition

Abstract

The school of Chartres was a relevant center of knowledge in the 12th century. Chartrian thought became renowned due to its scientific scope which aimed for the study of the laws of nature based on the scientiae rerum, i.e., the quadrivium. Through mathematical sciences and by making use of abstraction, men could intellectualize the phenomena they saw in nature and interpret the laws they observed in the universe. Following a historical and hermeneutical approach, the paper aims to list the main sources of such a neoplatonic thought, which range from Latin neoplatonic authors to Carolingian renaissance masters, in order to understand how, through these four sciences of things (scientiae res), Chartres became one of the most important centers for the study of the liberal arts and a forefather of modern nature sciences.

Key words

School of Chartres, Mathematics, Quadrivium, Science, Middle Ages.


Notas:

(*) Doctor Canónico en Filosofía (2012) por la Universidad Pontificia Bolivariana (Medellín, Colombia). Es sacerdote de la Sociedad Clerical de Vida Apostólica Virgo Flos Carmeli y miembro de la Asociación Internacional de Derecho Pontificio Heraldos del Evangelio. Correo electrónico: p.jorgefilipe.ep@gmail.com.

[1] Sobre esta problemática, veja-se D’Alverny, 1964, pp. 68-69.

[2] “Nam, cum sint duo praecipua phylosophandi instrumenta, intellectus eiusque interpretatio, intellectum autem quadruvium illuminet, eis vero interpretationem elegantem, rationabilem, ornatam trivium subministret, manifestum est heptatheucon totius phylosophiae unicum ac singulare esse instrumentum”.

[3] “Sed inmobilis magnitudinis geometria speculationem tenet, mobilis vero scientiam astronomia persequitur, per se vero discretae quantitatis arithmetica auctor est, ad aliquid vero relatae musica probatur obtinere peritiam”.

[4] “magnitudinis vero alia sunt mobilia, ut sphaera mundi, alia immobilia, ut terra. multitudinem ergo quae per se est arithmetica speculatur, illam autem quae ad aliquid est, musica. immobilis magnitudinis geometria pollicetur notitiam. mobilis vero scientiam astronomicae disciplinae peritia vindicat. mathematica igitur dividitur in arithmeticam, musicam, geometriam, astronomiam”.

[5] “Sapientia aedificavit sibi domum, excidit columnas septem […]. Divina praeveniente etiam et perficiente gratia faciam quod rogastis, vobisque ad videndum ostendam septem philosophiae gradus”.

[6] Ver em Guilherme de Conches. Glosae super Platonem (Jeauneau 1965 p. 61): [Mathematica vero quadrivium continent]. Também In Consolationem, I, pr. 1 (Nauta 1999 p. 34): [[…] per mathematicam et phisicam, usque ad caelestia; deinde ad contemplationem incorporeorum usque ad creatorem per theologiam. Et hic est ordo philosophiae].

[7] “[…] ad studium philosophiae debemus accedere. Cujus hic ordo est, ut prius in quadrivio, id est ipsa prius arithmetica, secundus in música, tertius in geometría, quartus in astronomía. Deinde in pagina divina. Quippe cum per cognitionem creaturae ad cognitionem Creatoris perveniamus”.

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Artigo disponível aqui: link.


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