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O Xadrez e a Matemática

Templários disputando uma partida de Xadrez
— Iluminura do “Libro de los Juegos

Tempo de Leitura: 24 minutos

Texto retirado do livro O homem que calculava de Malba Tahan, Editora Record.

Contextualizando, no capítulo XV, Beremir, o homem que calculava, estava falando sobre quadrados mágicos e agora contará ao rei sobre a origem do jogo de xadrez.

***

A seguir, o brilhante calculista tomou do tabuleiro de xadrez e disse, voltando-se para o rei:

— Este velho tabuleiro, dividido em 64 casas pretas e brancas, é empregado, como sabeis, no interessante jogo que um hindu chamado Lahur Sessa, inventou, há muitos séculos, para recrear um rei da Índia. A descoberta do jogo de xadrez acha-se ligada a uma lenda que envolve cálculos, números, e notáveis ensinamentos.

— Deve ser interessante ouvi-la! — atalhou o califa. — Quero conhecê-la!

— Escuto e obedeço — respondeu Beremiz.

E narrou a seguinte história:

Capítulo XVI 

Onde se conta a famosa lenda sobre a origem do jogo de xadrez. A lenda é narrada ao califa de Bagdá, Al-Motacém Bilah, Emir dos Crentes, por Beremiz Samir, o Homem que Calculava.

Difícil será descobrir, dada a incerteza dos documentos antigos, a época precisa em que viveu e reinou na Índia um príncipe chamado Iadava, senhor da província da Taligana. Seria, porém, injusto ocultar que o nome desse monarca vem sendo apontado por vários historiadores hindus como dos soberanos mais ricos e generosos de seu tempo.

A guerra, com o cortejo fatal de suas calamidades, muito amargou a existência do rei Iadava, transmutando-lhe o ócio e gozo da realeza nas mais inquietantes atribulações. Adstrito ao dever, que lhe impunha a coroa, de zelar pela tranquilidade de seus súditos, viu-se o nosso bom e generoso monarca forçado a empunhar a espada para repelir, à frente de pequeno exército, um ataque insólito e brutal do aventureiro Varangul, que se dizia príncipe de Caliã.

O choque violento das forças rivais juncou de mortos os campos de Dacsina e tingiu de sangue as águas sagradas do Rio Sandhu. O rei Iadava possuía — pelo que nos revela a crítica dos historiadores — invulgar talento para a arte militar; sereno em face da invasão iminente, elaborou um plano de batalha, e tão hábil e feliz foi em executá-lo, que logrou vencer e aniquilar por completo os pérfidos perturbadores da paz do seu reino.

O triunfo sobre os fanáticos de Varangul custou-lhe, infelizmente, pesados sacrifícios; muitos jovens quichatrias [1] pagaram com a vida a segurança de um trono para prestígio de uma dinastia; e entre os mortos, com o peito varado por uma flecha, lá ficou no campo de combate o príncipe Adjamir, filho do rei Iadava, que patrioticamente se sacrificou no mais aceso da refrega, para salvar a posição que deu aos seus a vitória final.

Terminada a cruenta campanha e assegurada a nova linha de suas fronteiras, regressou o rei ao suntuoso palácio de Andra, baixando, porém, formal proibição de que se realizassem as ruidosas manifestações com que os hindus soíam festejar os grandes feitos guerreiros. Encerrado em seus aposentos, só aparecia para atender aos ministros e sábios brâmanes quando algum grave problema nacional o chamava a decidir, como chefe de Estado, no interesse e para felicidade de seus súditos.

Com o andar dos dias, longe de se apagarem as lembranças da penosa campanha, mais se agravaram a angústia e a tristeza que, desde então, oprimiam o coração do rei. De que lhe poderiam servir, na verdade, os ricos palácios, os elefantes de guerra, os tesouros imensos, se já não mais vivia a seu lado aquele que fora sempre a razão de ser de sua existência? Que valor poderiam ter, aos olhos de um pai inconsolável, as riquezas materiais que não apagam nunca a saudade do filho estremecido?

As peripécias da batalha em que pereceu o príncipe Adjamir não lhe saíam do pensamento. O infeliz monarca passava longas horas traçando, sobre uma grande caixa de areia, as diversas manobras executadas pelas tropas durante o assalto. Com um sulco indicava a marcha da infantaria; ao lado, paralelo ao primeiro, outro traço mostrava o avanço dos elefantes de guerra; um pouco mais abaixo, representada por pequenos círculos dispostos em simetria, perfilava a destemida cavalaria chefiada por um velho radj [2] que se dizia sob a proteção de Techandra, a deusa da Lua. Ainda por meio de gráficos esboçava o rei a posição das colunas inimigas desvantajosamente colocadas, graças à sua estratégia, no campo em que se feriu a batalha decisiva.

Uma vez completado o quadro dos combatentes, com as minudências que pudera evocar, o rei tudo apagava, para recomeçar novamente, como se sentisse íntimo gozo em reviver os momentos passados na angústia e na ansiedade.

À hora matinal em que chegavam ao palácio os velhos brâmanes para a leitura dos Vedas [3], já o rei era visto a riscar na areia os planos de uma batalha que se reproduzia interminavelmente.

— Infeliz monarca! — murmuravam os sacerdotes penalizados. — Procede como um sudra [4] a quem Deus privou da luz da razão. Só Dhanoutara [5], poderosa e clemente, poderá salvá-lo!

E os brâmanes erguiam preces, queimavam raízes aromáticas, implorando à eterna zeladora dos enfermos que amparasse o soberano de Taligana.

Um dia, afinal, foi o rei informado de que um moço brâmane — pobre e modesto — solicitava uma audiência que vinha pleiteando havia já algum tempo. Como estivesse, no momento, com boa disposição de ânimo, mandou o rei que trouxessem o desconhecido à sua presença.

Conduzido à grande sala do trono, foi o brâmane interpelado, conforme as exigências da praxe, por um dos vizires do rei.

— Quem és, de onde vens e que desejas daquele que, pela vontade de Vichnu [6], é rei e senhor de Taligana?

— Meu nome — respondeu o jovem brâmane — é Lahur Sessa [7] e venho da aldeia de Namir, que trinta dias de marcha separam desta bela cidade. Ao recanto em que eu vivia chegou a notícia de que o nosso bondoso rei arrastava os dias em meio de profunda tristeza, amargurado pela ausência de um filho que a guerra viera roubar-lhe. Grande mal será para o país, pensei, se o nosso dedicado soberano se enclausurar, como um brâmane cego, dentro de sua própria dor. Deliberei, pois, inventar um jogo que pudesse distraí-lo e abrir em seu coração as portas de novas alegrias. É esse o desvalioso presente que desejo neste momento oferecer ao nosso rei Iadava.

Como todos os grandes príncipes citados nesta ou naquela página da História, tinha o soberano hindu o grave defeito de ser excessivamente curioso. Quando o informaram da prenda de que o moço brâmane era portador, não pôde conter o desejo de vê-la e apreciá-la sem mais demora.

O que Sessa trazia ao rei Iadava consistia num grande tabuleiro quadrado, dividido em sessenta e quatro quadradinhos, ou casas, iguais; sobre esse tabuleiro colocavam-se, não arbitrariamente, duas coleções de peças que se distinguiam, uma da outra, pelas cores branca e preta, repetindo, porém, simetricamente, os engenhosos formatos e subordinados a curiosas regras que lhes permitiam movimentar-se por vários modos.

Sessa explicou pacientemente ao rei, aos vizires e cortesãos que rodeavam o monarca em que consistia o jogo, ensinando-lhes as regras essenciais:

— Cada um dos partidos dispõe de oito peças pequeninas — os peões. Representam a infantaria, que ameaça avançar sobre o inimigo para desbaratá-lo. Secundando a ação dos peões vêm os elefantes de guerra [8], representados por peças maiores e mais poderosas; a cavalaria, indispensável no combate, aparece, igualmente, no jogo, simbolizada por duas peças que podem saltar, como dois corcéis, sobre as outras; e, para intensificar o ataque, incluem-se — para representar os guerreiros cheios de nobreza e prestígio — os dois vizires [9] do rei. Outra peça, dotada de amplos movimentos, mais eficiente e poderosa do que as demais, representará o espírito de nacionalidade do povo e será chamada a rainha. Completa a coleção uma peça que isolada pouco vale, mas se torna muito forte quando amparada pelas outras. É o rei.

O rei Iadava, interessado pelas regras do jogo, não se cansava de interrogar o inventor:

— E por que é a rainha mais forte e mais poderosa que o próprio rei?

— É mais poderosa — argumentou Sessa — porque a rainha representa, nesse jogo, o patriotismo do povo. A maior força do trono reside, principalmente, na exaltação de seus súditos. Como poderia o rei resistir ao ataque dos adversários, se não contasse com o espírito de abnegação e sacrifício daqueles que o cercam e zelam pela integridade da pátria?

Dentro de poucas horas o monarca, que aprendera com rapidez todas as regras do jogo, já conseguia derrotar os seus dignos vizires em partidas que se desenrolavam impecáveis sobre o tabuleiro.

Sessa, de quando em quando, intervinha respeitoso, para esclarecer uma dúvida ou sugerir novo plano de ataque ou de defesa.

Em dado momento, o rei fez notar, com grande surpresa, que a posição das peças, pelas combinações resultantes dos diversos lances, parecia reproduzir exatamente a batalha de Dacsina.

— Reparai — ponderou o inteligente brâmane — que para conseguirdes a vitória, indispensável se torna, de vossa parte, o sacrifício deste vizir!

E indicou precisamente a peça que o rei Iadava, no desenrolar da partida — por vários motivos —, grande empenho pusera em defender e conservar.

O judicioso Sessa demonstrava, desse modo, que o sacrifício de um príncipe é, por vezes, imposto como uma fatalidade, para que dele resultem a paz e a liberdade de um povo.

Ao ouvir tais palavras, o rei Iadava, sem ocultar o entusiasmo que lhe dominava o espírito, assim falou:

— Não creio que o engenho humano possa produzir maravilha comparável a este jogo interessante e instrutivo! Movendo essas tão simples peças, aprendi que um rei nada vale sem o auxílio e a dedicação constante de seus súditos. E que, às vezes, o sacrifício de um simples peão vale mais, para a vitória, do que a perda de uma poderosa peça.

E, dirigindo-se ao jovem brâmane, disse-lhe:

— Quero recompensar-te, meu amigo, por este maravilhoso presente, que de tanto me serviu para alívio de velhas angústias. Dize-me, pois, o que desejas, para que eu possa, mais uma vez, demonstrar o quanto sou grato àqueles que se mostram dignos de recompensa.

As palavras com que o rei traduziu o generoso oferecimento deixaram Sessa imperturbável. Sua fisionomia serena não traía a menor agitação, a mais insignificante mostra de alegria ou surpresa. Os vizires olhavam-no atônitos e entreolhavam-se pasmados diante da apatia de uma cobiça a que se dava o direito da mais livre expansão.

— Rei poderoso! — redargüiu o jovem com doçura e altivez. — Não desejo, pelo presente que hoje vos trouxe, outra recompensa além da satisfação de ter proporcionado ao senhor de Taligana um passatempo agradável que lhe vem aligeirar as horas dantes alongadas por acabrunhante melancolia. Já estou, portanto, sobejamente aquinhoado e outra qualquer paga seria excessiva.

Sorriu, desdenhosamente, o bom soberano ao ouvir aquela resposta que refletia um desinteresse tão raro entre os ambiciosos hindus. E, não crendo na sinceridade das palavras de Sessa, insistiu:

— Causa-me assombro tanto desdém e desamor aos bens materiais, ó jovem! A modéstia, quando excessiva, é como o vento que apaga o archote cegando o viandante nas trevas de uma noite interminável. Para que possa o homem vencer os múltiplos obstáculos que se lhe deparam na vida, precisa ter o espírito preso às raízes de uma ambição que o impulsione a um ideal qualquer. Exijo, portanto, que escolhas, sem mais demora, uma recompensa digna de tua valiosa oferta. Queres uma bolsa cheia de ouro? Desejas uma arca repleta de joias? Já pensaste em possuir um palácio? Almejas a administração de uma província? Aguardo a tua resposta, por isso que à minha promessa está ligada a minha palavra!

— Recusar o vosso oferecimento depois de vossas últimas palavras — acudiu Sessa — seria menos descortesia do que desobediência ao rei. Vou, pois, aceitar, pelo jogo que inventei, uma recompensa que corresponde à vossa generosidade; não desejo, contudo, nem ouro, nem terras ou palácios. Peço o meu pagamento em grãos de trigo.

— Grãos de trigo? — estranhou o rei, sem ocultar o espanto que lhe causava semelhante proposta. — Como poderei pagar-te com tão insignificante moeda?

— Nada mais simples — elucidou Sessa. — Dar-me-eis um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro; dois pela segunda, quatro pela terceira, oito pela quarta, e assim dobrando sucessivamente, até a sexagésima quarta e última casa do tabuleiro. Peço-vos, ó Rei, de acordo com a vossa magnânima oferta, que autorizeis o pagamento em grãos de trigo, e assim como indiquei!

Não só o rei como os vizires e venerandos brâmanes presentes riram-se, estrepitosamente, ao ouvir a estranha solicitação do jovem. A desambição que ditara aquele pedido era, na verdade, de causar assombro a quem menos apego tivesse aos lucros materiais da vida. O moço brâmane, que bem poderia obter do rei um palácio em uma província, contentava-se com grãos de trigo!

— Insensato! — clamou o rei. — Onde foste aprender tão grande desamor à fortuna? A recompensa que me pedes é ridícula. Bem sabes que há, num punhado de trigo, número incontável de grãos. Devemos compreender, portanto, que com duas ou três medidas de trigo eu te pagarei folgadamente, consoante o teu pedido, pelas sessenta e quatro casas do tabuleiro. É certo, pois, que pretendes uma recompensa que mal chegará para distrair, durante alguns dias, a fome do último pária [10] do meu reino. Enfim, visto que minha palavra foi dada, vou expedir ordens para que o pagamento se faça imediatamente, conforme teu desejo.

Mandou o rei chamar os algebristas mais hábeis da corte e ordenou-lhes calculassem a porção de trigo que Sessa pretendia.

Os sábios calculistas, ao cabo de algumas horas de acurados estudos, voltaram ao salão para submeter ao rei o resultado completo de seus cálculos.

Perguntou-lhes o rei, interrompendo a partida que então jogava:

— Com quantos grãos de trigo poderei, afinal, desobrigar-me da promessa que fiz ao jovem Sessa?

— Rei magnânimo! — declarou o mais sábio dos matemáticos. — Calculamos o número de grãos de trigo que constituirá o pagamento pedido por Sessa, e obtivemos um número [11] cuja grandeza é inconcebível para a imaginação humana. Avaliamos, em seguida, com o maior rigor, a quantas ceiras [12] corresponderia esse número total de grãos, e chegamos à seguinte conclusão: a porção de trigo que deve ser dada a Lahur Sessa equivale a uma montanha que, tendo por base a cidade de Taligana, seria cem vezes mais alta do que o Himalaia! A Índia inteira, semeados todos os seus campos, taladas todas as suas cidades, não produziria em dois mil séculos a quantidade de trigo que, pela vossa promessa, cabe, em pleno direito, ao jovem Sessa!

Como descrever aqui a surpresa e o assombro que essas palavras causaram ao rei Iadava e a seus dignos vizires? O soberano hindu via-se, pela primeira vez, diante da impossibilidade de cumprir a palavra dada.

Lahur Sessa — rezam as crônicas do tempo —, como bom súdito, não quis deixar aflito o seu soberano. Depois de declarar publicamente que abriria mão do pedido que fizera, dirigiu-se respeitosamente ao monarca e assim falou:

— Meditai, ó Rei, sobre a grande verdade que os brâmanes prudentes tantas vezes repetem: os homens mais avisados iludem-se, não só diante da aparência enganadora dos números, mas também com a falsa modéstia dos ambiciosos. Infeliz daquele que toma sobre os ombros o compromisso de uma dívida cuja grandeza não pode avaliar com a tábua de cálculo de sua própria argúcia. Mais avisado é o que muito pondera e pouco promete!

E, após ligeira pausa, acrescentou:

— Menos aprendemos com a ciência vã dos brâmanes do que com a experiência direta da vida e das suas lições de todo dia, a toda hora desdenhadas! O homem que mais vive mais sujeito está às inquietações morais, mesmo que não as queira. Achar-se-á ora triste, ora alegre; hoje fervoroso, amanhã tíbio; já ativo, já preguiçoso; a compostura alternará com a leviandade. Só o verdadeiro sábio, instruído nas regras espirituais, se eleva acima dessas vicissitudes, paira por sobre todas essas alternativas!

Essas inesperadas e tão sábias palavras calaram fundo no espírito do rei. Esquecido da montanha de trigo que, sem querer, prometera ao jovem brâmane, nomeou-o seu primeiro-vizir.

E Lahur Sessa, distraindo o rei com engenhosas partidas de xadrez e orientando-o com sábios e prudentes conselhos, prestou os mais assinalados benefícios ao povo e ao país, para maior segurança do trono e maior glória de sua pátria.

Encantado ficou o califa Al-Motacém quando Beremiz concluiu a história singular do jogo de xadrez. Chamou o chefe de seus escribas e determinou que a lenda de Sessa fosse escrita em folhas especiais de algodão e conservada em valioso cofre de prata.

E, a seguir, o generoso soberano deliberou se entregasse ao calculista um manto de honra e 100 cequins de ouro.

Bem disse o filósofo:

— Deus fala ao mundo pelas mãos dos generosos! [13]

A todos causou grande alegria o ato de magnanimidade do soberano de Bagdá. Os cortesãos que permaneciam no divã eram amigos do vizir Maluf e do poeta Iezid: era, pois, com simpatia que ouviam as palavras do calculista persa, por quem muito se interessavam.

Beremiz, depois de agradecer ao soberano os presentes com que acabava de ser distinguido, retirou-se do divã. O califa ia iniciar o estudo e julgamento de diversos casos, ouvir os honrados cádis [14] e proferir suas sábias sentenças.

Deixamos o palácio real ao cair da noite. Ia começar o mês de Chá-band [15].


NOTAS:

[1] Militares, uma das quatro castas em que se divide o povo hindu. As demais são formadas pelos brâmanes (sacerdotes), vairkas (operários) e sudras (escravos).

[2] Chefe militar.

[3] Livro sagrado dos hindus.

[4] Escravo.

[5] Deusa.

[6] Segundo membro da trindade bramânica.

[7] Nome do inventor do jogo de xadrez. Significa “natural de Lahur”.

[8] Os elefantes foram mais tarde substituídos pelas torres.

[9] Os vizires são as peças chamadas bispos. A rainha não tinha, a princípio, movimentos tão amplos.

[10] Indivíduo pertencente a uma das castas mais ínfimas da costa de Coromandel. Corresponde, na escala social, à casta dos poleás. Na Europa emprega-se o termo no sentido de “homem expulso de sua casta ou classe” (B. A. B.)

[11] Para se obter esse total de grãos de trigo, devemos elevar o número 2 ao expoente 64, e do resultado tirar uma unidade. Trata-se de um número verdadeiramente astronômico, de vinte algarismos, que é famoso em Matemática:

18.446.744.073.709.551.615

Chamamos especialmente a atenção dos matemáticos para a nota do Apêndice, intitulada O Problema do Jogo de Xadrez.

[12] Ceira ou cer — Unidade de capacidade e peso usada na Índia. Seu valor variava de uma localidade para outra.

[13] Esse pensamento é de Gibran Khalil Gibran.

[14] Cádis — Juízes. Denominação dada aos magistrados.

[15] Chá-band — Um dos meses do calendário árabe.


APÊNDICE

O Problema do Jogo de Xadrez


Aquele que deseja estudar ou exercer a Magia deve cultivar a Matemática [1] Matila Ghyka


É esse, sem dúvida, um dos problemas mais famosos nos largos domínios da Matemática Recreativa. O número total de grãos de trigo, de acordo com a promessa do rei Iadava, será expresso pela soma dos sessenta e quatro primeiros termos da progressão geométrica:

:: 1 : 2 : 4 : 8 : 16 : 32 : 64

A soma dos 64 primeiros termos dessa progressão é obtida por meio de uma fórmula muito simples, estudada em Matemática Elementar [2].

Aplicada a fórmula obtemos para o valor da soma S:

S = 2^{64} - 1

Para obter o resultado final devemos elevar o número 2 à sexagésima quarta potência, isto é, multiplicar 2\times 2\times 2\times ... tendo esse produto sessenta e quatro fatores iguais a 2. Depois do trabalhoso cálculo chegamos ao seguinte resultado:

S = 18.446.744.073.709.551.616 - 1

Resta, agora, efetuar essa subtração. Da tal potência de dois tirar 1. E obtemos o resultado final:

S = 18.446.744.073.709.551.615

Esse número gigantesco, de vinte algarismos, exprime o total de grãos de trigo que impensadamente o lendário rei Iadava prometeu, em má hora, ao não menos lendário Lahur Sessa, inventor do jogo de xadrez.

Feito o cálculo aproximado para o volume astronômico dessa massa de trigo, afirmam os calculistas que a Terra inteira, sendo semeada de norte a sul, com uma colheita, por ano, só poderia produzir a quantidade de trigo que exprimia a dívida do rei, no fim de 450 séculos! [3]

O matemático francês Etienne Ducret incluiu em seu livro, bordando-os com alguns comentários, os cálculos feitos pelo famoso matemático inglês John Wallis, para exprimir o volume da colossal massa de trigo que o rei da Índia prometeu ao astucioso inventor do jogo de xadrez. De acordo com Wallis, o trigo poderia encher um cubo que tivesse 9.400 metros de aresta. Essa respeitável massa de trigo deveria custar (naquele tempo) ao monarca indiano um total de libras que seria expresso pelo número:

855.056.260.444.220

É preciso atentar para essa quantia astronômica. Mais de 855 trilhões de libras [4].

Se fôssemos, por simples passatempo, contar os grãos de trigo do monte S à razão de 5 por segundo, trabalhando dia e noite sem parar, gastaríamos, nessa contagem, 1.170 milhões de séculos! Vamos repetir: mil cento e setenta milhões de séculos! [5]

De acordo com a narrativa de Beremiz, o Homem que Calculava, o imaginoso Lahur Sessa, o inventor, declarou publicamente que abria mão da promessa do rei, livrando, assim, o monarca indiano do gravíssimo compromisso. Para pagar pequena parte da dívida, o soberano teria que entregar ao novo credor o seu tesouro, as suas alfaias, as suas terras e seus escravos. Ficaria reduzido à mais absoluta miséria. Em situação social, ficaria abaixo de um sudra [6].


NOTAS

[1] Esse pensamento famoso poderá ser lido no livro de Matila Ghyka, Philosophie et Mystique des Nombres, Col. Payot, Paris, 1952, pág. 87.

[2] Cf. Thiré e Mello e Souza, Matemática, 4.ª série.

[3] Cf. Robert Tocquet, Les Calculateurs Prodiges et leurs Secrets, Ed. Pierre Amiot, Paris, 1959, pág. 164.

[4] Cf. Etienne Tucret, Récréations Mathématiques, Paris, s.d., pág. 87. Convém ler, também: Ighersi, Matemática Dillettevola e Curiosa, Milão, 1912, pág. 80.

[5] Cf. Tocquet, ob. cit.

[6] Veja a análise completa desse problema no livro Problemas Famosos e Curiosos da Matemática.


***




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O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 2

Imperador Justiniano I e seu séquito de
funcionários, guardas e clero, c. 547 AD


Tempo de leitura: 38 minutos

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas em 2017). Este texto é a continuação desse texto aqui: O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 1.

O SURGIMENTO DAS ESCOLAS CRISTÃS DE TIPO MEDIEVAL

Desde o século IV, vemos, todavia, aparecer um tipo de escola cristã, inteiramente orientada para a vida religiosa e que nada mais tem de antiga; esta escola, porém, de inspiração já totalmente medieval, permanece por longo tempo propriedade de um meio particular e pouco se irradia exteriormente. Trata-se da escola monástica.

A ESCOLA MONÁSTICA NO ORIENTE

Muito cedo, parece [1], os Padres do deserto do Egito acolheram consigo adolescentes ou mesmo crianças pequenas. Excepcionais, sem dúvida, no início, estas precoces vocações multiplicaram-se em seguida: as grandes comunidades organizadas por São Pacômio compreendiam, normalmente, numerosas crianças [2].

Uma vez que as recebiam, os monges eram sem dúvida obrigados a arcar com a educação delas: a criança, como todo noviço, é confiada a algum venerável ancião, cheio de experiência e de virtude, que lhe servirá de pai espiritual, APA (forma copta de “abade”, isto é, Pai) (1). Receberá dele, especificamente, uma formação ascética e moral, espiritual antes que intelectual. Recorde-se que Santo Antônio, o grande iniciador da vida monástica, era um camponês copta iletrado [3] e que dispensava perfeitamente livros, como soube mostrar aos filósofos que tinham vindo argumentar contra ele [4]. Eis aí um traço fundamental, que permanecerá sempre característico do monarquismo oriental: ali, no deserto, cogita-se menos de estudar que de esquecer os poetas e a ciência profana, supondo que se tenha, no século, frequentado as escolas [5]. O monaquismo restaurou, na tradição cristã, o “primado dos simples [6]”, opondo-se ao orgulho intelectual que a cultura antiga transportava e que, como bem mostra o exemplo dos gnósticos e dos alexandrinos, no século III ameaçava sufocar a simplicidade evangélica.

Mas, também nisto, o caráter “douto”, letrado, da religião cristã afirmou-se muito naturalmente. O monge, noite e dia, medita a lei divina, a Palavra de Deus — as Sagradas Escrituras. Acha-se normal, no Oriente, que êle as conheça de cor. Mas o meio mais seguro de assimilá-las assim é, evidentemente, antes de tudo, lê-las. É por isto que, por volta de 320-340, prescreve a Regra de São Pacômio que, se um ignorante entra no mosteiro, dar-se-lhe-ão, de início, vinte salmos e duas epístolas para aprender. Se não sabe ler, aprenderá, com um monge letrado, à razão de três horas de aula por dia, as letras, as sílabas, os nomes... Etiam nolens legere compelletur! Em princípio, todos, no mosteiro, devem saber ler e aprender de cor pelo menos o Saltério e o Novo Testamento [7].

A Regra de São Basílio, por sua vez, admite crianças, desde seus primeiros anos, apresentadas por seus pais; quer também que, sob a direção de um santo ancião, sejam iniciadas nas letras, com vistas ao estudo da Bíblia. Em uma palavra, São Basílio esboça uma notabilíssima pedagogia: lembramo-nos de que, uma vez assimilado o silabário, a criança aprendia a ler nomes isolados, depois máximas e em seguida pequenas anedotas: ao repertório mitológico da escola grega, a Regra substitui nomes de personagens bíblicos, versículos dos Provérbios e das histórias santas [8].

É, em suma, o mesmo programa e o mesmo método que São Jerônimo, por sua vez, desenvolve no programa de educação cristã por ele redigido, por volta de 400-402, para a pequena Paula, neta, filha e sobrinha dos seus caros discípulos romanos [9], e, em 413, para outra menina, Pacátula [10]. Nos dois casos, trata-se de futuras freiras, consagradas desde seu nascimento ao serviço de Cristo [11]: Paula será educada não em Roma, mas em Belém, no convento cuja superiora é sua tia Eustáquia e cujo diretor espiritual é o próprio São Jerônimo, Educação completamente ascética [12], da qual estão rigorosamente excluídas as letras [13] e as artes [14] profanas; está assentada na Santa Escritura, que deve ser aprendida inteiramente, segundo uma ordem sistemática [15]; fora dela, quase nada se estuda além dos Padres — Cipriano, Atanásio, Hilário [16] — e ela fornecerá, como em São Basílio, inclusive os elementos dos primeiros exercícios: as listas de nomes em que a criança aprende a ler serão, por exemplo, tiradas das genealogias evangélicas de Cristo [17].

Que tal método foi, de fato, praticado pela pedagogia monástica, mostram-no ostraka egípcias, notáveis por sua data tardia (séculos VII-VIII): aí encontramos listas de palavras em que figuram termos cristãos [18], por exemplo, toda a série de nomes próprios que se lê na narração do Pentecostes no livro dos Atos [19], fragmentos de salmos servindo de tema para exercícios de escrita [20], às vezes, o que é muito mais curioso, um ensaio de “narração” sobre um assunto legendário, “contar o milagre de Cristo e da vinha [21]” [*].

SUA DÉBIL IRRADIAÇÃO

Trata-se, porém, da educação ministrada aos jovens monges. Pensou-se por vezes em fazê-la beneficiar outras crianças. São Basílio, em outra de suas Regras, propõe-se à questão e permite, não sem alguma reticencia, entreabrir a porta do convento às “crianças do século” (παῖδες βιωτικοί) cujos pais lhas quisessem confiar [22]. Por volta de 375, São João Crisóstomo, então em pleno fervor de sua vida ascética, tentou persuadir os pais cristãos a confiar a educação de seus filhos, a partir dos dez anos de idade, aos monges dos “desertos” vizinhos de Antioquia, longe do século e dos seus perigos [23].

Mas nada disso teve grande repercussão. Vê-se, claramente, que o apelo de Crisóstomo é de uma alma exaltada, inteiramente voltada para a perfeição e convencida de que todos são tão sensíveis quanto ele. Nada menos prático que isso que ele imagina: os rapazes permanecerão dez anos, vinte anos, caso necessário, no mosteiro para consolidar-se na virtude [24]; mas qual se torna então sua carreira no século? Ele tem muito cuidado, sem dúvida, em esclarecer que não deseja que estas crianças fiquem sem instrução [25], mas nada indica que houvesse meios para que se lhas outorgasse no deserto [26]. Se ele nos mostra, uma vez, um monge servindo de preceptor a um rapaz iniciado nos estudos profanos [27], este é, segundo ele mesmo diz, um caso absolutamente excepcional: é até pelo fato de não se poder generalizá-lo que ele propõe a solução de uma permanência no deserto.

Pode-se suspeitar de que esta solução jamais prevaleceu: vinte anos mais tarde, o próprio São João Crisóstomo, mais esclarecido e instruído pela experiência, espontaneamente a ela renunciou de maneira expressa [28]. Se ele insiste, mais que nunca, sobre o dever que têm os pais de educar cristãmente seus filhos, é que a eles compete a missão, da qual ele estava tão disposto outrora a dispensá-los, confiando-a aos monges, de assegurar a formação da consciência cristã: como se viu, é no seio da família que a criança receberá esta educação religiosa, prosseguindo embora, por outro lado, os estudos literários nas escolas profanas [29].

Quanto a São Jerônimo, longe de pensar em generalizar o plano de educação imaginado para Paula (esta, com efeito, parece haver correspondido muito mal às esperanças do seu mestre [30]), não parece tampouco que ele: mesmo o tenha aplicado de maneira sistemática: como sabemos, dirigia ele a educação de certo número de jovens latinos que lhe haviam sido confiados no seu mosteiro de Belém, mas o ensino que lhes ministrava seguia os programas clássicos: a gramática, Virgílio, os poetas cômicos e líricos, os historiadores... [31] (2).

São Basílio, como vimos, não manifestava grande entusiasmo em admitir no claustro crianças cuja vocação religiosa não fosse certa; à medida que se avança, mais os meios monásticos mostram desconfiança contra esta intrusão, que só pode comprometer a paz e o recolhimento, e afinal, em 451, o Concílio de Calcedônia interditou formalmente a educação, nos conventos, de crianças destinadas a voltar ao século, παῖδες κοσμικοί [32]. Essa interdição será sempre mantida: a escola monástica, em país grego, é, se podemos dizê-lo, para uso interno.

Tocamos aí um dos traços mais característicos do monaquismo oriental: imerso num meio cultural que permanece quase sempre no mesmo nível, o convento não se vê obrigado a assumir na sociedade um papel para o qual não foi concebido; preocupa-se mais com permanecer um ascetério do que com tornar-se um centro de estudos; antes de difundir-se pelo mundo, procura isolar-se dele.

A ESCOLA MONÁSTICA NO OCIDENTE

No Ocidente as invasões germânicas e o declínio geral da cultura acarretaram, com o tempo, uma situação completamente diferente.

No início, as coisas se apresentam como no Oriente; exceto um matiz, que interessa assinalar. O monaquismo latino é uma importação relativamente tardia, um empréstimo, tomado a um organismo já bem desenvolvido. O cenobitismo e as letras são de rigor. Não encontramos aí, como no Oriente, a lembrança, como que nostálgica, dos heróis da primeira geração, os anacoretas sem cultura, em que o exemplo de Santo Antônio tem mais peso que as prescrições da regra de São Pacômio: de fato, não se achará nunca surpreendente, no Oriente, que um santo monge seja iletrado (3).

Nada disso no Ocidente: a lectio divina, a leitura dos Livros santos e antes de tudo do ofício, parece inseparável do pleno exercício da vida monástica. Este caráter letrado é bem manifesto nas origens: Santo Agostinho, que introduziu o monaquismo na África, dera à sua primeira comunidade, que, ainda leiga, ele agrupara em torno de si em Tagasta, o caráter de um mosteiro erudito (4); sua Regra prevê, como normal, a existência de uma biblioteca 33; em Marmoutier, os monges de São Martinho, o iniciador do monaquismo na Gália, copiam manuscritos [34]. Uma espécie de reflexo imediato liga o estado de monge ao estudo das letras: coloquemo-nos num contexto completamente estranho à cultura clássica e vejamos São Patrício evangelizar a Irlanda; cada vez que ele escolhe, ou que lhe trazem um jovem para fazer dele um monge, o reflexo aparece: “Ele o batiza e lhe dá um alfabeto [35]”.

Quando no século VI as trevas da barbárie se estendem, quando a cultura esmorece no Ocidente e ameaça desaparecer, vemos os legisladores do monaquismo redobrar em insistência, proclamar a necessidade, para todo monge, para toda freira, de saber ler, de entregar-se à leitura sagrada. Famosa entre todas as regras para mulheres, eis a Regra de São Cesário de Arles (534): só serão recebidas crianças a partir da idade (seis ou sete anos) em que sejam capazes de aprender as letras [36]; todas as religiosas deverão aprender a ler, omnes litteras discant [37]; consagrarão duas horas diariamente à leitura [38]; copiarão manuscritos [39].

O mesmo interesse quanto à lectio divina num grande número de outras regras: não apenas em Santa Radegunda, que adotara pura e simplesmente a de Cesário [40], mas em São Leandro de Sevilha († 601)[41], São Donato de Besançon († 650) [42]. Se o estudo das letras é tão recomendado entre as mulheres (entre elas, como podemos supor, a cultura estava menos difundida), ela o é, a fortiori, tanto quanto para os monges [43]: a Regra de Tarnat (por volta de 570) não dispensa da lectio nem mesmo aquele que está atreito ao trabalho dos campos [44]; a de Santo Ferreol de Uzia († 581) também prevê o estudo das letras [45] e a leitura meditada [46]; do mesmo modo (mas qual é sua data?) a Regula Magistri [47]. O movimento culmina, sem dúvida, com a Regra de São Bento (por volta de 525), cuja autoridade se tornará, como se sabe, soberana no Ocidente: regulamenta por longo tempo a leitura sagrada [48], prevê a admissão de crianças pequenas no mosteiro [49] e sua educação [50]; livros, tabuletas e estilos aí aparecem mui naturalmente como parte do mobiliário, e quase da decoração da vida monástica [51]: mesmo nos dias mais sombrios o mosteiro ocidental permaneceu como um foco de cultura.

A ESCOLA EPISCOPAL

O infortúnio dos tempos fez aparecer um segundo tipo de escola cristã: a escola episcopal (não é muito diferente, pelo menos na origem, do precedente: sabe-se que muitos entre os grandes bispos do Ocidente, monges por formação e por ideal, organizaram em torno ou junto à sede de seu episcopado comunidades monásticas: lembremo-nos de Santo Eusébio em Verceil, Santo Agostinho em Hipona, São Martinho de Tours em Marmoutier...).

Sempre houve, agrupado em torno do bispo, todo um corpo eclesiástico: compreendia em particular o grupo dos jovens que, investidos das funções de leitores, se iniciavam na vida clerical (5). Neste meio normalmente se recrutavam e se formavam os diáconos, os padres e os futuros sucessores do bispo: como indiquei de passagem no capítulo anterior, por esta formação, de caráter absolutamente prático e familiar, os membros do clero recebiam, na falta de seminários e de escolas de teologia, sua instrução dogmática, litúrgica e canônica. Quanto ao mínimo de cultura profana, e, se posso dizê-lo, humanista que supunha este ensino, era assegurado pelas escolas do tipo habitual, como o vimos na anedota relativa à juventude de Santo Atanásio [52].

Tudo muda, no Ocidente, quando, com o conjunto da estrutura política e social da romanidade, desaparece o sistema escolar clássico. Quanto mais se acentua a decadência, mais difícil se torna encontrar jovens que hajam recebido esse minimo de cultura literária sem o qual a formação clerical e o exercício do ministério eclesiástico são impossíveis. Por esta razão, vemos, por exemplo na França, nos tempos merovíngios, os bispos ocupando-se pessoalmente da instrução elementar de certas crianças (6).

O testemunho de Gregório de Tours (nascido em 538) a esse respeito é bem significativo: ele não recebeu senão a educação, absolutamente clerical, que lhe deu seu tio (-avô) São Nizier, bispo de Lyon, o qual, instruído “nas letras eclesiásticas”, se empenhara em assegurar a instrução das crianças de sua família: o jovem Gregório, acolhido por ele desde a idade de sete anos, foi introduzido no estudo das letras e, em seguida, nos dos salmos [53].

A premente necessidade de promover a formação do clero, ameaçada pela crescente barbárie, determinou a generalização deste tipo de educação: sem dúvida, podia-se recorrer, dentro de certa medida, ao meio monástico; é assim que Lérins foi como que um alfofre de bispos para todo o sudoeste da Gália nos séculos V e VI; do mesmo modo, Marmoutier para a Gália central [54]. Para citar um exemplo menos conhecido, tomarei o de outro tio de Gregório de Tours, São Galo, que, conduzido criança por seu pai ao mosteiro de Cournan (perto de Clermont-Ferrand), e, uma vez tonsurado, introduzido pelos monges no estudo das letras e do canto sagrado, sua bela voz foi notada, ocasionalmente, pelo bispo, que o ligou a seu clero, e a quem mais tarde éle sucederia [55].

Mas isto era apenas um recurso excepcional: para assegurar o recrutamento normal do seu clero, tornou-se realmente necessário que os próprios bispos tomassem a responsabilidade não apenas de sua formação técnica, mas também de sua instrução literária elementar: foi assim que nasceu e se generalizou a escola episcopal, semente de nossas futuras Universidades medievais.

Estamos ainda em um estágio bastante incipiente: trata-se de conseguir ensiná-los a ler. São Cesário é uma preciosa testemunha desse alteamento: muito atento à formação do seu clero, com o qual vive, por assim dizer, em comunidade, edificando-o com seu exemplo e suas palavras, empenha-se em que todos os seus clérigos tenham uma cultura suficiente: só ordena diácono aquele que tiver lido quatro vezes o conjunto do Antigo e do Novo Testamento [56].

É, pois, antes sob o aspecto de simples escola de canto litúrgico e profano que se deve imaginar esta escola episcopal do século VI, esta “turma”, schola, de jovens leitores sob a direção de seu primicerius, como em Mouzon, no tempo de São Remígio († 533) [57], como em Lyon em 551-552 [58], ou sob a férula de seu magister como já em Cartago, por volta de 480 [59]

O sistema difunde-se, de fato, por toda parte aonde se estende a barbárie: encontramo-lo igualmente na Espanha visigótica, onde o segundo Concílio de Toledo (527) prescreve que as crianças destinadas ao clero deverão, a partir do momento em que sejam tonsuradas, ser instruídas na “casa: da igreja”, sob a vigilância direta do bispo [60]. Regra reeditada um século mais tarde pelo IV Concilio de Toledo (633) [61]. Sabemos que ela foi aplicada: as Vitas dos bispos de Mérida no século VII mostram-nos crianças, no serviço da basílica de Santa Eulália, estudando as letras sob a direção de um mestre [62], enquanto um bispo forma seu futuro sucessor ensinando-lhe officium eclesiasticum omnemque bibliothecam scripturarum divinarum [63].

A ESCOLA PRESBITERIAL

No século VI, enfim, acaba-se de organizar ou de reconstituir, após a tormenta das invasões, a rede das paróquias rurais (7). O sucesso da evangelização das massas fez surgir a estrutura estritamente urbana da antiga Igreja, agrupada em torno da sede episcopal. Mas o número de padres é bruscamente multiplicado: como, neste contexto bárbaro, assegurar a formação do clero rural?

A solução consistiu em generalizar o sistema já em vigor na escola episcopal: em 529, o II Concílio de Vaison, sem dúvida por iniciativa de São Cesário, prescreveu “a todos os padres encarregados da paróquia receber em suas casas jovens na qualidade de leitores, a fim de educá-los cristamente, de ensinar-lhes os salmos e as lições da Escritura, e toda a lei do Senhor, de maneira a poderem preparar para si, entre eles, dignos sucessores [64]”.

É um acontecimento memorável esta decisão: trata-se do ato de fundação de nossa escola moderna, desta escola rural, popular, que a própria Antiguidade não conhecera sob esta forma regular, sistematicamente generalizada.

À iniciativa do Concilio de Vaison não é isolada: invoca, como precedente, “o costume, parece, já normalmente em uso em toda a Itália”; a Espanha visigótica a seguirá, com um século de atraso, no Concílio de Mérida em 666 [65]. Na própria Gália, temos prova de que foi seguida de fato [**]: vemos, na vida do futuro Santo Géry de Cambrai († 623-626), um bispo em visita pastoral preocupar-se em saber se em determinada cidade há crianças que estejam sendo preparadas para o sacedócio [66]. Mui naturalmente, o ermitão São Pátroclo († 576), que acaba de instalar-se no vicus de Néris (perto de Montluçon, Allier), aí construiu uma capela, que consagra após haver trazido para ela relíquias de São Martinho, e põe-se a ensinar as letras às crianças, pueros erudire coepit in studiis litterarum [67]: as duas funções, de cura da cidade e de instrutor, estão, doravante, unidas.

O INÍCIO DAS ESCOLAS MEDIEVAIS

Acabamos assim de ver todas as instituições que servirão de ponto de partida para o desenvolvimento do sistema da educação medieval. Nos séculos VI-VII, a que chegamos, este sistema está apenas esboçado: sejam monásticas, sejam seculares, estas escolas têm ainda um horizonte muito limitado: são, se posso dizer, escolas técnicas, que pretendem formar somente monges e clérigos.

Entretanto, por fôrça das circunstâncias, a partir do momento em que as escolas profanas, herdadas da Antiguidade, acabaram de desaparecer, essas escolas religiosas tornam-se o único instrumento através do qual se adquire e transmite a cultura. Todos os seus beneficiários são, em princípio, pessoas da Igreja: mas não é um traço característico de nossa idade média latina que a ciência seja, antes de tudo, mister do clericato? E, entretanto, já desde o século VI sua clientela começa a ampliar-se.

Os monastérios, pelo menos no continente, buscam, sem dúvida, como os do Oriente, defender-se contra a invasão de elementos mundanos: o cânone de Calcedônia encontra seu equivalente na Regra de São Cesário, que recusa rigorosamente, penitus non accipiantur, o acesso dos conventos às meninas nobres ou humildes, que pretendesse introduzir ali para receber educação e instrução [68]. Lendo-se a Regra beneditina, percebe-se que as crianças a que alude são necessariamente jovens oblatos. De fato, as crianças que vemos serem educadas no claustro são todas destinadas a tornar-se monges, quer se trate dos filhos de Santo Euchério, Salônia e Véran, que vemos acolhidos, muito jovens, em Lérins, quando seu pai aí vem fazer carreira (por volta de 420) [69], ou de jovens discípulos de São Bento, como Mauro e Plácido, cujos pais lhos enviam a fim de que ele os eduque para o serviço de Deus [70]. Entretanto, na Irlanda pelo menos (onde, podemos supô-lo, uma velha tradição druídica abrira caminho, desde o paganismo) (8), vemos já filhes de reis ou de chefes normalmente confiados a um mosteiro, ao tempo de sua educação: aí conservam seu estatuto laico e, concluída sua formação, voltam ao mundo e retomam a posição a que pelo nascimento se destinavam [71].

Mas quando a criação das escolas presbiteriais ofereceu a todos a possibilidade de instruirem-se, apareceram alunos que nem sempre tinham consciência de uma vocação eclesiástica [72]; simples meninos camponeses aproveitaram-se disso [73], mas, em número bem maior, filhos de nobres, pois entre os grandes permanecia o costume (as Vidas de São Seine [74] ou de São Leger [75] afirmam-nos em termos próprios) de mandar ensinar as letras a seus filhos: sobrevivência da época romana, quando a cultura era um dos elementos do prestígio da classe dominante; exigências práticas também: por mais baixo que houvesse caído o nível técnico da administração, subsistia ainda algum elemento de burocracia na monarquia merovíngia, e é em tais escolas; e não alhures (9), que se puderam formar -os servidores leigos empregados pelos reis.

O nível deste ensino continua, no mais das vezes, tem modesto: é realmente um ensino técnico, que visa a satisfazer necessidades imediatas: ler, escrever, conhecer a Bíblia, se possível de cor, ou pelo menos os Salmos [76], um mínimo de erudição doutrinal, canônica [77] e litúrgica: nada mais. A cultura ocidental atinge sua estiagem.

Seria um anacronismo projetar sobre estas primeiras escolas religiosas dos séculos V, VI e VII as ricas aspirações humanistas que alimentarão a Renascença carolíngia ou a do século XII (10). Longe de tirar todo o partido possível dos parcos conhecimentos que lhes são ainda acessíveis, os mestres destas Idades Obscuras buscam afastar seus discípulos de uma cultura demasiado aquiescente à tradição profana. O monaquismo ocidental desenvolve-se ainda na mesma atmosfera de ascetismo cultural do monaquismo do Oriente: o monge deve subtrair-se ao mundo, sua vaidade, suas riquezas — entre as quais se acha a cultura. Invocarei, mais uma vez, O precioso testemunho de São Cesário: egresso, por motivos de saúde, do claustro de Lérins, encontra em Arles o sábio africano Juliano Pomério e começa, sob sua direção, a estudar a gramática e a filosofia; mas, bem depressa, separa-se dele, interrompe esses estudos profanos para permanecer fiel à “simplicidade monástica?”. E, no entanto, Pomério não era um mestre de inspiração tão profana, como podemos constatar lendo seu De Vita contemplativa! A atmosfera é a mesma nas escolas episcopais: quando um bispo se atreve a dar demasiada atenção ao ensino da gramática, provoca escândalo e é duramente chamado à ordem, como São Gregório o Grande o fez ver a Didier de Viena [79] (11).

E este obscurantismo é também uma conseqüência do desmoronamento geral da cultura no Ocidente: a decadência não é causada apenas pela ignorância e pelo esquecimento, mas também pela degenerescência interna. A atitude de um Cesário ou de um Gregório só se compreende inteiramente quando se a confronta com a imagem real que, no quadro do tempo deles, eles pediam fazer-se desta cultura profana, que repudiam com tanto horror. Não são os valores eternos do humanismo que eles recusam, mas sim os jogos, de uma puerilidade aberrante, em que se comprazem os últimos letrados de seu tempo: reenvio o leitor à estranha obra de Virgílio, o Gramático (12), a suas pedantes mistificações, em que uma pretensa aspiração à ciência superior leva apenas ao logogrifo:

Cicero dicit RRR-SS-PP-MM-N-T-EE-OO-A-V-I, quod
sic solvendum est: Spes Romanorum periit... [80]

Sim, a escola cristã ainda não passa de uma semente, apenas entreaberta; uma semente entretanto, e não um simples resíduo. Esta pedagogia, ainda balbuciante, é, contudo, muito original por seu espírito e seus métodos: abre caminho a um novo tipo: de educação, que não poderia ser assimilado ao da Antiguidade clássica.

O ensino começa sempre, evidentemente, pelo alfabeto [81], mas, enquanto o escolar antigo aprendia lentamente, segundo a gradação sabiamente arranjada de uma análise abstrata, todos os elementos sucessivos da leitura, aqui, muito cedo, a criança é posta diretamente em contato com um texto, o Texto — sagrado. O mestre toma uma tabuleta e nela escreve o texto que vai servir de tema à lição: mais frequentemente, inicia com um Salmo [82], porque dominar o saltério, base do ofício, é o primeiro objetivo do ensino. A criança aprende este texto de cor, enquanto o diz: eis aí como que um grosseiro equivalente do nosso método global [83]; pelo menos no início, o escolar lê menos do que reconhece, do que relembra o texto. Éle não aprende a ler simplesmente, como o escolar antigo, mas a ler o texto, o Saltério, o Novo Testamento. E o texto que conhece é a palavra de Deus, a Escritura revelada, o único livro que merece ser conhecido. Quão longe está tudo isso da escola clássica: ocorrem-nos, antes, os métodos, em vigor ainda hoje no mundo muçulmano, nas escolas alcorâmicas. É mais justo, mais congruente com a história ver nisso o equivalente cristão da escola rabínica.

Nada lhe falta, nem o matiz especial da veneração, de respeito religioso ao mestre: quão longe estamos do mestre-escola grego ou latino, o pobre-diabo universalmente menosprezado! Agora, como nos meios semíticos, é “com a mais profunda veneração e por uma humilde prece” que se lhe pedem as lições: cum summa veneratione humilique prece... [84].

Não há dúvida que este sentimento se explica, em parte, como efeito da decadência e da barbárie ambiente: o mestre é o homem, difícil de encontrar, capaz de revelar o segredo, tornado misterioso, da escrita; testemunha-o este episódio que lemos em Gregório de Tours: um dia, um clérigo giróvago, e que logo se revelaria indigno, apresenta-se ao bispo Etério de Lisieux (por volta de 584) como mestre-escola, litterarum doctorem. Alegria do prelado, isto é tão raro! Apressa-se ele em reunir as crianças da cidade e em confiar-lhas para que as instrua: o clérigo granjeia a estima de todos, cumulado de obséquios por parte dos pais. E quando o inevitável escândalo irrompe, apressam-se em abafá-lo [85].

Muito mais ainda: o mestre é aquele que revela hão apenas a escritura, mas a Sagrada Escritura. Monástica, episcopal ou presbiterial, a escola não separa a instrução da educação religiosa, da formação dogmática e moral; religião ao mesmo tempo douta e popular, o cristianismo concede ao mais humilde dos seus fiéis, por mais incipiente que seja seu desenvolvimento intelectual, o equivalente àquilo que a altiva cultura antiga reservava à elite de seus filósofos: uma doutrina sobre o ser e sobre a vida, uma vida interior submetida a uma direção espiritual. Segundo a fórmula estereotipada de nossos velhos hagiógrafos, a escola cristã forma a um só tempo litteris et bonis moribus, “nas letras e nas virtudes [86]”. Nesta estreita associação, mesmo no escalão mais elementar, da instrução literária e da educação religiosa, na síntese, na pessoa de um mestre, do instrutor (ou do professor) e do pai espiritual, é que me parece residir a essência mesma da escola cristã, da pedagogia medieval por oposição à antiga. É necessário, desde então, fazer remontar sua aparição aos mosteiros egípcios do século IV.


Notas:

[1] João Cassiano, Instituições Monásticas, V, 40.

[2] Regra de São Pacósmio (ed. A. Boon, Th. Lefort, Pachomiana Latina), Pr. 5; 159; 166; 172. 

[3] SANTO ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Vida de Santo Antônio, 72. 

[4] Idem, 73; cf. 20.

[5] João Cassiano, Conferências com os Padres do Deserto, XIV, 12. 

[6] Evangelho segundo São Lucas (Novo Testamento), 10, 21 = Evangelho segundo São Mateus

[7] Regra de São Pacósmio (ed, A. Boon, Th. Lefort, Pachomiana Latina), 139-140. 

[8] São Basílio de Cesaréia, Regras Longas, 15.

[9] São Jerônimo, Correspondência. 107. 

[10] Idem, 128. 

[11] Idem, 107, 5, 1; 128, 2, 1. 

[12] Idem, 107, 128, 4. 1. 

[13] Idem, 107, 4, 1, 

[14] Idem, 4, 3. 

[15] Idem, 107, 12; 128, 4, 2. 

[16] Idem, 107, 12, 3. 

[17] Idem, 4, 4.

[18] H. R. Hall, Coptic and Greek Texts of the Christian Period Irom Otraka, Stela, e in the British Museum, 21379. 

[19] Idem, 26210. 

[20] Idem, 27426.

[21] Idem, p. 148-9.

[*] Cf., melhor ainda, um caderninho escolar contendo, entre outros exercícios de escrita, versículos do salmo 32 (33), achado no Fayium e remontando ao século IV-V: P. Sanz, Griechische literarische Papyri christlichen Inhaltes, I (Biblica,Vaterschriften und Verwandias) n.º XXIV (29274), em Mitteilungen aus Papyrussammlung der Nationalbibliothek in Wien, N. S., IV, Baden bei Wien, 1946.

[22] São Basílio de Cesaréia, Regras Breves, 292.

[23] São João Crisóstomo, Contra os Detratores da Vida Monástica (Migne, Patrologie Grecque, t. 47), III, 17, 378. 

[24] Idem, III, 18, 380.

[25] Idem, III, 12, 368.

[26] Idem, III, 8, 363; 11, 366; 13, 371.

[27] Idem, III, 12, 369-70.

[28] São João Crisóstomo, Da Vanglória e de como os Pais devem educar os Filhos (Migne, Patrologie Grecque, t. 47), 19, 2-3.

[29] Idem, 19, 1 4.; 73, 2-3.

[30] São Jerônimo, Correspondência, 153, 3.

[31] Rufino de Aquiléia, Apologia, II, 8, 592 A. 

[32] Revue de Philologie, d'histoire et de littérature anciennes, 21 (1941), 63.

[33] SANTO AGOSTINHO, Cartas, 211, 3.

[34] Sulpício Severo, Vida de São Martinho de Tours, 10, 6. 

[35] W. Strokes, The Tripartite Life of Patrick, with other documents relating to that saint (Rerum Britannicarum medii aevi Scriptores, t. 89), Londres, 1887, II, 326, 29; 328, 27; 497, 24. 

[36] São Cesário de Árles (ed. Morin, t. II), Regra dos Monges, 7, 104. 

[37] Idem, 18, 105.

[38] Idem, 19, 105; Cartas, II, 7, 140. 

[39] Idem, Vida de São Cesário (escrita por seus discípulos), I, 58, 320.

[40] São Gregório de Tours, História dos Francos, IX, 39 s. 

[41] SÃO LEANDRO DE SEVILHA, Regra Monástica, 6-7; Migne Patrologie Latine, 72, 882-4. 

[42] São Donato de Besançon, Regra Monástica, 20 ; Migne, Patrologie Latine, 87, 281-2. 

[43] São CESÁRIO DE ARLES (ed, Morin t. II), Regra dos Monges, 151, 25. 

[44] TARNATO, Regra Monástica, 9; — Patrologie Latine, 66, 981. 

[45] SÃO FERREOL DE UZES, Regra Monástica, E e, Patrologie Latine, 66, 963-4.

[46] Migne, Patrologie Latine, 26, 968.

[47] A Regra do Mestre, 50; Migne, Patrologie Latine, 88, 1010 D. 

[48] São Bento de Núrsia, Regra dos Monges, 48. 

[49] Idem, 59. 

[50] Idem, 30; 37; 39; 45; 63; 70. 

[51] Idem, 33.

[52] Rufino de Aquiléia, História Eclesiástica, X, 15. 

[53] São GREGÓRIO DE TOURS, Vida dos Padres, 8. 2. 

[54] Sulpício Severo, Vida de São Martinho de Tours, 10, 9.

[55] São Gregório de Tours, Vida dos Padres, 6, 1-2. 

[56] São Cesário Arles (ed. Morin. t. II), Vida de São Cesário (escrita por seus discípulos), I, 56, 320.

[57] São Remy de Reims, Cartas (ed. dos Monumenta Germaniae Historica, Epistulae, II, Epistulae merovingici aevi), IV, 115.  

[58] E. Drehl, Inscriptiones Latinae Christiane Veteres, 1287. 

[59] Vict..... Vit..... /sic pro ed. franc./, V, 9.  

[60] Cânone do segundo Concílio de Toledo, 1 (Migne, Patrologie Latine, 84, 335). 

[61] Cânone do quarto Concílio de Toledo, 24 (Migne, Patrologie Latine, 374).

[62] Vidas dos Padres de Mérida, II, 14; 1, 1. 

[63] Idem, IV, 4. 

[64] Concilia merovingici aevi (ed. Maassen dos Monumenta Germaniae Historica, Leges, III, Concilia, 1), 56, vu. 1. 

[65] Cânone do Concílio de Mérida, 18 (Migne, Patrologie Latine, 84, 623).

[**] Como o mostram os cânones de concílios que proíbem a ordenação de iletrados: Orléans, 533 (Concílios merovíngios, 63, 16), Narbonne, 589 (Mansi, Amplissima Collectio, tomo IX, colunas 1016 E — 1017 A, cânone 11).

[66] Passiones Vitaeque sanctorum merovingici aevi (nos Monumenta Germaniae Historica, Scriptores rerum merovingicarum, t. II-V), 1, 652, c 2. 

[67] São Gregório de Tours, Vida dos Padres, 9, 2.

[68] São Cesário DE Arles (ed. Morin, t. II), Regra das Monjas, 7, 104.

[69] Santo Euchério de Lyon, Instrução, pr. 773.  

[70] SÃO GREGÓRIO GRANDE, Diálogos, II, 3. 

[71] C. Plummer, Vitae Sanctorum Hibernias partim hacienus ineditae (Oxford, 1910), I, 250; 252; II, 180-1. 

[72] São Gregório de Tours, Vida dos Padres, 20, 1.  

[73] Idem, 9, 2.  

[74] Mabillon, Acta Sanctorum Ordinis sancti Benedicti, I, 263. 

[75] Idem, III, 283.  

[76] C. de Smedt e J. de Backer, Acta Sanctorum Hiberniae ex codice Salmanticensi (Bruges-Edimbourg, 1888), 166; São Ferreol de Uzes, Regra Monástica, 11 (Migne, Patrologie Latine, t. 66, 963).

[77] Concilia merovingici aevi (ed. Maassen dos Monumenta Germaniae Historica, Leges, III, Concilia, 1), 88, c. 6. 

[78] São Cesário De Arles, Vida de São Cesário (escrita por seus discípulos), 9, 299.  

[79] São Gregório O Grande, Cartas (classificação da ed. Ewald-Hartmann, Monumenta Germaniae Historica, Epistulse, I-II), XI, 34.

[80] Virgílio de Toulouse, Epitomae, 13, 77.  

[81] Passiones Vitasque sanctorem merovingici aevi (nos Monumenta Germaniae Historica, Scriptores rerum merovingicarum, t. III-V), II, 161; W. Stokes, The Tripartite Life of A árick, with other documents sine to that saint (Rerum Britannicarum medii aevi Seriptores, e 89, Londres, 1887), I, CLIII; 328; C. Plummer, Vitae Sanctorum Hiberniae partim hactenus ineditae (Oxford, Troy) 1, 67; II, 210.  

[82] C. Prummer. Vitae Sanctorum Hiberniae partim hactenus ineditae (Oxford, 1910), 1, 165; 156-7. 

[83] Passiones Vitaeque sanctorum merovingici aevi (nos Monumenta Germaniae Historica, Scriptores rerum merovingicarum, t. III-V), II, 342, c. 6.

[84] Idem, 161, c. 1. 

[85] São Gregório de Tours, História dos Francos, VI, 36.  

[86] Acta Sanctorum Feb..... /sic pro ed, franc/, III, 11; C. Plummer, Vitae Sanctorum Hiberniae partim hactenus ineditae (Oxford, 1910), I, 99; 153; 269; II, 77; 107; etc.


Notas Complementares:

(1) Sobre o nome de “abade” entre os solitários do Egito, cf. o artigo de J. Durpont, ap. La Vie Spirituelle, 1947, n.º 321, ps. 216-230.

(2) Rufino, Apol., II, 8; Rufino acusa São Jerônimo de trair o seu juramento do Sonho, ensinando os clássicos pagãos a seus alunos de Belém. Mas, como argutamente observa F. CAVALLERA, Saint Jérôme, t. I, p. 202, n. 1, em sua réplica, São Jerônimo, contrariando seus hábitos, não rebate a acusação: esse silêncio pode ser interpretado como um assenso.

(3) Monges iletrados em Bizâncio: ver os fatos reunidos por L. BRÉHIER, ap. Revue d'Histoire et de Philosophie religieuses, t. XXI (1941), p. 60, n. 86.

(4) O douto mosteiro de Santo Agostinho em Tagasta: M. MELLET, L'Itinéraire et l'Idéal monastiques de saint Augustin, Paris, 1934, ps. 19-29; P. MONCEAUX, ap. Miscellanea Agostiniana, II, Roma, 1931, ps. 70-75.

(5) O leitorado das crianças: cf. capítulo precedente, n. 18; sobre seu lugar na carreira eclesiástica, cf. L. DUCHESNE, Origines du Culte chrétiens 5, ps. 366-367: “A maior parte das carreiras eclesiásticas cujos detalhes são conhecidos começaram pelo leitorado. É o caso de São Félix de Nola, de Santo Eusébio de Verceil, do pai do papa Damásio, dos papas Libério e Sirício, do diácono de Fiesole Rômulo, de Santo Epifânio de Pavia e de muitos outros...” As inscrições citadas são: DIEHL, 967, 970, 972.

(6) Origens da escola episcopal. É difícil determinar a data de seu aparecimento: as fontes de que dispomos, antes de tudo Vidas de Santos, devem ser usadas com precaução. A julgar por uma vida dos santos Victor e Victeur do Mans, desde o século IV, São Martinho de Tours ter-se-ia encarregado da tarefa de ensinar, tendo em vista o sacerdócio, uma criança de dez anos: AA. SS., Jul. V, 146C, F. Mas esse texto não tem valor histórico e a própria existência de um de seus dois heróis é fabulosa: cf. H. LECLERCQ, ap. Dictionnaire d'Archéologie chrétienne et de Liturgie, t. X, 2, c. 1478-1480.

(7) Sobre a história das paróquias rurais na Gália, cf. o livro clássico de P. IMBART DE LA ROUR, Les Paroisses rurales du IVe au XVe siêcle, Paris, 1900, e as correções ou adições com que contribui para a sua doutrina: W. SESTON, Note sur les origines religieuses des Paroisses rurales, ap. Revue d'Histoire et de Philosophie religieuses, 1935, ps. 243-254; os dois pontos de vista são menos contraditórios do que complementares: cf. F. CHATILLON, Locus cui nomen Theopoli est, Gap. 1943, ps. 125-126, 135, n. 57.

(8) Os drúidas como educadores da Irlanda pagã: H. HUBERT, Les Celtes depuis l'époque de La Tène, Paris, 1932, ps. 279-281, e já da antiga Gália, CAES., G., VI, 14, 2-6: C. JULLIAN, Histoire de la Gaule, t. II, p. 106.

(9) A escola merovíngia é uma escola religiosa: H. PIRENNE sustentou um ponto de vista exatamente oposto em seu memorial De l'État de l'Instruction des Laiques à l'époque mérovingienne, ap. Revue bénédictine, XLVI (1934), ps. 165-177: baseio-me confiante no critério do leitor imparcial que queira confrontar as nossas duas opiniões. Pirenne exagera e desvirtua sistematicamente o alcance dos textos: não vejo em parte alguma razão para a existência, como ele pretende, de escolas laicas na Gália merovíngia: todas as escolas cuja existência constatamos são escolas religiosas, monásticas, episcopais e (na maioria) presbiterais. Descobrimos, sem dúvida, alguns indícios de um ensino leigo (tendo por objeto as letras, a gramática, a retórica, o direito), mas sempre se trata de ensino doméstico, particular, administrado, como já na época de Sidônio Apolinário, sob a forma de preceptorado.

(10) Foi cometido o anacronismo: a .apologética romântica, habituada, a exemplo de Chateaubriand, a celebrar o papel da Igreja como fator positivo de cultura, exagerou sistematicamente o valor dos testemunhos relativos às escolas cristãs dos séculos V e VI: ver, por exemplo, A. F. OZANAM, La civilisation chrétienne chez les Francs, Paris, 1849; a M. RoceR cabe o mérito de ter resolvido a questão em sua tese, fundamental para o nosso assunto: L'Enseignement des lettres classiques d'Ausone à Alcuin, Paris, 1905.

(11) GREG. MAGN., Reg., XI, 34: a interpretação desta carta deu margem a muitas discussões: cf. a antiga tese de H.-J. LEBLANC, Utrum B. Gregorius Magnus litteras humaniores et ingenuas artes odio persecutus sit, Paris, 1852; aqui também se seguirá o prudente critério de M. ROGER, op. cit., ps. 156-157.

(12) Atenção, porém: a obra de Virgílio o Gramático (aliás, não será ele antes da Irlanda que de Toulouse?) não passa, talvez, de uma paródia destinada a por em ridículo as proezas verbais das Hisperica Famina. Tais textos, indubitavelmente irlandeses, foram escritos a sério e não são muito menos abracadábricos!

***


Leia mais em O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 1

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Uma aula de Matemática no ano 1000

Monges Matemáticos: um ensinando o globo, o outro copiando um
manuscrito, do manuscrito "Imagem do Mundo", ilustração
da Ciência e Literatura na Idade Média e o Renascimento

Tempo de leitura: 22 minutos

Por Ana Catarina P. Hellmeister, IME - USP, publicado pela Revista Professor de Matemática nº 42, no ano 2000, disponível no LINK.

Introdução

Estamos no ano 2000 e uma pergunta que tenho ouvido com freqüência é: como será que era determinada coisa (a medicina, o teatro, a literatura, o ensino, ...) no ano 1000?

Vamos tentar dar alguma idéia de como era o ensino de Matemática, que afinal é o que nos interessa, no ano 1000 e pouco antes dele. Obviamente, este artigo não é, nem de longe, um texto completo sobre o ensino de Matemática na Idade Média, tem apenas a intenção de mostrar alguns de seus aspectos interessantes.

I.  Rosvita

Vamos começar, talvez por feminismo, apresentando Rosvita, uma monja beneditina do convento de Gandersheim, norte de Göttingen, Alemanha, que viveu aproximadamente de 935 a 1002, e é considerada a primeira poetisa da literatura alemã. Ela nasceu, muito provavelmente, em uma família aristocrata e há registros de que seu nome aparece numa gravura esculpida em madeira como Helena von Rossow.

Rosvita ingressou muito jovem no convento de Gandersheim, famoso centro de estudos, onde seu extraordinário talento encontrou abrigo e cultivo criterioso. Inicialmente Rosvita foi orientada por um professor e posteriormente ficou sob a supervisão de uma sobrinha de Otto I (monarca da época) de nome Gerberg, considerada a mulher modelo de seu tempo. Gerberg, que foi abadessa do convento entre 959 e 1001, tinha um interesse especial pela obra poética de Rosvita, a qual, segundo a abadessa, “contribuiria para o engrandecimento da glória de Deus”.

Albretch Dürer, A monja Rosvita apresenta
um livro a Oto I. (Kupferstichkabinett, Berlin)

Não cabe aqui, numa revista para professores de Matemática, discorrer com maiores detalhes sobre a extensa obra literária de Rosvita, uma das mais importantes da Idade Média. Focalizaremos uma em especial, a peça Sabedoria, que contém uma aula de Matemática para jovens estudantes, que, pelo seu espírito motivador e bem-humorado, serviria de exemplo (quem diria, 1000 anos atrás!) para nós, professores, preocupados com o ensino de Matemática.

Antes de comentar a peça em particular, para melhor ligar Rosvita à Matemática, vamos transcrever um trecho do livro Cuentos y cuentas de los matematicos, de Rodriguez Vidal, R. e Rodriguez Rigual, M. C. Editorial Reverte, 1986, pág. 137.

“[...] A idade média na Europa não islâmica limita seus conhecimentos de Matemática aos textos comentados de Alexandria e Bizâncio, sem que apareçam indícios de criação original. Desta época são os escritos de Rosvita, monja de um convento alemão, do século X, mais interessantes como literatura e filosofia do que como Matemática. Entretanto demonstram bom conhecimento da Arithmetica de Boécio e aludem a questões relativas a números deficientes e perfeitos, citando o 6, 28, 496 e 8128, que eram os números perfeitos conhecidos na sua época. O número perfeito seguinte é 33 550 336 [...].”

Há divergências entre os historiadores sobre se as peças teatrais escritas por Rosvita eram mesmo encenadas ou se seriam meros textos didáticos, nada tendo a ver com o teatro. Lembrando que o ensino na Idade Média era ministrado quase que exclusivamente nos mosteiros, sem dúvida, encenados ou não, os textos de Rosvita tinham claros propósitos didáticos, como é possível perceber em Sabedoria, que passamos a transcrever de [3].

Enredo da peça:  

Paixão das santas virgens Fé, Esperança e Caridade. Foram levadas à morte pelos diversos suplícios a que as submeteu o imperador Adriano em presença da sua santa mãe, Sabedoria, que, com seus maternos conselhos, as exortou a suportar os sofrimentos.

Consumado o martírio, sua santa mãe, Sabedoria, tomou de seus corpos e, ungindo-os com bálsamo, deu-lhes sepultura de honra a três milhas de Roma. Ela, por sua vez, no quarto dia, após a oração sacra, enviou também seu espírito ao céu.

Vamos transcrever apenas o trecho da peça que traz a lição de Matemática. Trata-se de um diálogo entre Sabedoria e o imperador Adriano:

Adriano: Dize, que vieste fazer entre nós?
Sabedoria: Nenhuma outra coisa a não ser conhecer a doutrina da verdade para o aprendizado mais pleno da fé que combateis e para consagrar minhas filhas a Cristo.
Adriano: Dize os nomes delas.
Sabedoria: A primeira se chama Fé; a segunda, Esperança; a terceira, Caridade.
Adriano: Quantos anos têm?
Sabedoria: (sussurrando) Agrada-vos, ó filhas, que perturbe com problema aritmético a este tolo?
Fé: Claro, mamãe. Porque nós também ouviremos de bom grado.
Sabedoria: Ó Imperador, se tu perguntas a idade das meninas: Caridade tem por idade um número deficiente que é parmente par; Esperança, também um número deficiente, mas parmente ímpar; e Fé, um número excedente mas imparmente par.
Adriano: Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números são!
Sabedoria: Não admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos números e não uma única resposta.
Adriano: Explica de modo mais claro, senão não entendo.
Sabedoria: Caridade já completou 2 olimpíadas; Esperança, 2 lustros; Fé, 3 olimpíadas.
Adriano: E por que o número 8, que é 2 olimpíadas, e o 10, que é 2 lustros, são números deficientes? E por que o 12 que completa 3 olimpíadas se diz número excedente?
Sabedoria: Porque todo número cuja soma de suas partes (isto é, seus divisores) dá menor que esse número chama-se deficiente, como é o caso do 8. Pois os divisores de 8 são: sua metade – 4, sua quarta parte – 2, e sua oitava parte – 1; que somados dão 7. Assim também o 10, cuja metade é 5; sua quinta parte é 2; e sua décima parte, 1. A soma das partes do 10 é, portanto, 8, que é menor que 10. Já o contrário se diz número excedente, como é o caso do 12. Pois sua metade é 6; sua terça parte, 4; a quarta parte, 3; a sexta parte, 2; e a duodécima parte, 1. Somadas as partes dão 16.
Quando porém o número não é maior nem menor que a soma de suas diversas partes, então esse número é chamado número perfeito.
É o caso do 6, cujas partes – 3, 2 e 1 – somadas dão o próprio 6. Do mesmo modo, o 28, 496 e 8128 também são chamados números perfeitos.
Adriano: E quanto aos outros números?
Sabedoria: São todos excedentes ou deficientes.
Adriano: E o que é um número parmente par?
Sabedoria: É o que se pode dividir em duas partes iguais e essas partes em duas iguais, e assim por diante até que não se possa mais dividir por 2 porque se atingiu o 1 indivisível. 8 e 16, por exemplo, e todos que se obtenham a partir da multiplicação por 2 são parmente pares.
Adriano: E o que é parmente ímpar?
Sabedoria: É o que se pode dividir em partes iguais, mas essas partes já não admitem divisão (por 2). É o caso do 10 e de todos os que se obtêm multiplicando um número ímpar por 2. Difere, pois, do tipo de número anterior, porque, naquele caso, o termo menor da divisão é também divisível; neste, só o termo maior é apto para a divisão.
No caso anterior, tanto a denominação como a quantidade são parmente pares; já aqui, se a denominação for par, a quantidade será ímpar; se quantidade for par, a denominação será ímpar.
Adriano: Não sei o que é isto de denominação e quantidade.
Sabedoria: Quando os números estão em “boa ordem”, o primeiro se diz menor e o último, maior. Quando, porém, se trata da divisão, denominação é quantas vezes o número se der. Já o que constitui cada parte, é o que chamamos quantidade.
Adriano: E o que é imparmente par?
Sabedoria: É o que – tal como o parmente par – pode ser dividido não só uma vez, mas duas e, por vezes, até mais. No entanto, atinge a indivisibilidade (por 2) sem chegar ao 1.
Adriano: Oh! Que minuciosa e complicada questão surgiu a partir da idade destas menininhas!
Sabedoria: Nisto deve-se louvar a supereminente sabedoria do Criador e a Ciência admirável do Artífice do mundo: pois não só no princípio criou o mundo do nada, dispondo tudo com número, peso e medida; como também nos deu a capacidade de poder dispor de admirável conhecimento das artes liberais até mesmo sobre o suceder-se do tempo e das idades dos homens.

Observem que os números parmente pares são as nossas potências de 2, os parmente ímpares são aqueles que são o dobro de um ímpar; os imparmente pares são os produtos de um ímpar por um parmente par. Denominação e quantidade são os atuais quociente e divisor.

Uma fala de Sabedoria que também chama atenção é sua afirmativa de que todos os números, além de 6, 28, 496 e 8128, são excedentes ou deficientes. Isso mostra o desconhecimento, por parte dos estudiosos da época da obra os Elementos de Euclides, que contém, no livro IX, a demonstração de que qualquer número da forma 2^{n-1}(2^n -1) é perfeito se 2^n - 1 for primo. Com esse resultado, já para n=13, obtém-se  o próximo perfeito que é o número 33 550 336.  Essa perda de contato com os ensinamentos de Euclides ficará bastante evidente nos problemas de geometria da seção a seguir.

II.  Já existia Educação Matemática no século VIII  

Ainda para mostrar que na Idade Média se entendia de ensino de Matemática, voltemos um pouco no tempo mudando o século e os personagens.

É extremamente interessante a seleção de Problemas para aguçar a inteligência dos jovens, encontrada em Patrologiae cursus completus, séries latina, atribuída a Beda, qualificado de O Venerável, que nasceu e viveu na Inglaterra entre  673  e  735,  tornando-se um dos maiores professores das escolas religiosas medievais. As soluções apresentadas também estão em Patrologiae cursus completus, séries latina (ver [3]) e são algumas atribuídas a Beda e outras a Alcuíno (séculos VIII-IX).

Os enunciados dos problemas traduzem bem a cultura popular da época, com a pouca Matemática que se conhecia apresentada e ensinada de modo atraente e bem-humorado, privilegiando o desenvolvimento da inteligência dos alunos, como pretendemos fazer hoje. Também já contemplavam a idéia hoje muito difundida de usar situações do cotidiano como motivadores do aprendizado.

Vejamos, então, alguns dos problemas da seleção de Beda, encontrados em [3], que certamente surpreenderão muitos dos leitores que acreditam que certos problemas e soluções são de épocas mais recentes.

1. Problema do lobo, da cabra e da couve: Certo homem devia passar, de uma a outra margem de um rio, um lobo, uma cabra e um maço de couves. E não pôde encontrar outra embarcação, a não ser uma que só comportava dois entes de cada vez, e ele tinha recebido ordens de transportar ilesa toda a carga. Diga, quem puder, como fez ele a travessia?

Solução: Não apresentamos a solução por ser bem conhecida, pois esse problema é proposto até hoje em diferentes versões. O surpreendente é que seja tão antigo.

2. Problema do boi: Um boi que está arando todo o dia, quantas pegadas deixa ao fazer o último sulco?

Solução: Nenhuma em absoluto. Pois o boi precede o arado e o arado segue o boi; e, assim, todas as pegadas que o boi faz na terra trabalhada, o arado as apaga. E, deste modo, não se encontrará no último sulco nenhuma pegada.

Este problema mostra bem o espírito brincalhão da época.

3. Problema da escada de 100 degraus: Numa escada de 100 degraus, no 1º degrau está pousada 1 pomba; no 2º, 2; no 3º, 3; no 4º, 4; no 5º, 5; e assim em todos os degraus até o 100º. Diga, quem puder, quantas pombas há no total?

Solução: Calcule-se assim: tome a pomba do 1º degrau e some-a às 99 do 99º, o que dá 100. Do mesmo modo, as do 2º com as do 98º somam 100. E assim degrau por degrau, juntando sempre um de cima com o correspondente de baixo, e obterá sempre 100. Some-se tudo junto com as 50 do 50º degrau e as 100 do 100º degrau que ficaram de fora, e obter-se-á 5 050.

Reconhecem aqui os leitores a famosa solução de Gauss, aos sete anos de idade, respondendo ao problema de somar  1 + 2 + ... + 100?

4. Problema dos dois caminhantes que viram cegonhas: Dois homens andando pelo caminho viram cegonhas e disseram entre si: Quantas são? E, contando-as, disseram: Se fossem outras tantas, e ainda outras tantas; e, se somasse metade de um terço do que deu e ainda se acrescentassem mais duas, seriam 100. Diga, quem puder, quantas cegonhas foram vistas por eles inicialmente?

Solução: 28. Pois 28 com 28 e 2884. Metade de um terço, 14, que somado com 84, dá 98, que, acrescido de 2, resulta 100.

5. Problema do comprador: Disse certo negociante: Quero com 100 denários comprar 100 suínos; mas cada porco custa 10 denários, cada leitoa, 5, e cada 2 porquinhos, 1 denário. Diga, quem entendeu, quantos porcos, leitoas e porquinhos devem ser comprados para que o preço seja exatamente 100 denários, nem mais nem menos?

Solução: 9 leitoas e 1 porco custam 55 denários e 80 porquinhos, 40. Já temos 90 suínos por 95 denários. Com os restantes 5 denários compram-se 10 porquinhos.

6. Problema da tela: Tenho uma tela de 100 cúbitos de comprimento e de 80 de largura. Quero daí fazer telinhas de 5 por 4. Diga pois, ó sabido, quantas telinhas podem-se fazer?

Solução: De 400, 5 é a octogésima parte e 4, a centésima parte. Seja 80 multiplicado por 5, ou 100 por 4, sempre encontrará 400.

Problemas como o  4, 5 ou 6 eram resolvidos sem equações, incógnitas, etc., recursos desconhecidos na época, mas por processos de tentativa. É interessante observar que esse procedimento medieval é bastante recomendado pelos educadores de hoje para incentivar o raciocínio e a criatividade dos estudantes.

O problema a seguir mostra que as soluções obtidas por tentativa nem sempre eram completas, deixando de lado alternativas válidas.

7. Certo pai de família tinha 100 dependentes, a quem mandou distribuir 100 medidas de provisões do seguinte modo: que os homens recebessem 3 medidas; as mulheres, 2; e as crianças, meia. Diga, quem for capaz, quantos homens, mulheres e crianças eram?

Solução: 11 vezes 333; 15 vezes 2, 30; 74 vezes meio, 37. 11 vezes mais 15 mais 74 é 100; e, do mesmo modo, 33 mais 30 mais 37.

Hoje, usando equações e incógnitas, faríamos:

h: número de homens.
m: número de mulheres.
c: número de crianças

Então, 

h + m + c = 100
3h + 2m + c/2 = 100

que implica 100 = 5h + 3m, que fornece as soluções:

h=20, \ \ m= 0, \ \ c=80  
h=17, \ \ m=5, \ \ c=78 
h=14, \ \ m=10, \ \ c=76  
h=11, \ \ m=15, \ \ c=74  
h=8, \ \ m=20, \ \ c=72  
h=5, \ \ m=25, \ \ c=70  
h=2, \ \ m=30, \ \ c=68  

Os problemas 8 e 9 a seguir mostram, em suas soluções incorretas, as deficiências da época em questões de geometria, denunciando o desconhecimento dos resultados da escola grega.

8. Problema do campo triangular: Um campo triangular mede de um lado 30 pérticas, de outro também 30 e de frente 18. Diga, quem puder, quantos aripenos [um aripeno eqüivale a 144 “pérticas quadradas”] compreende?

Solução: Os dois lados de 30 somados perfazem 60, cuja metade é 30 que multiplicado por 9 (que é a metade de 18) dá 270 (que é o cálculo da área em “pérticas quadradas”). Para expressar a área em aripenos é necessário dividir por 144, etc.

Observem que no cálculo da área do triângulo a medida da altura relativa a um dos lados era substituída erroneamente pela média das medidas dos outros dois lados.

9. Problema do campo circular: Quantos aripenos tem um campo circular de 400 pérticas de circunferência.

Solução: A quarta parte de 400 é 100; 100 multiplicado por 10010 000, que é a área. Para expressar em aripenos, divide-se por 144, etc.

Aqui a área do círculo seria dada por \bigg(\dfrac{2\pi r}{4} \bigg)^2 = \dfrac{\pi}{4}\pi r^2, que embute um aproximação de \pi por 4, que é bastante grosseira.

Os progressos nos textos geométricos, na Idade Média, só se iniciaram com Gerberto (950-1003) mas aí já é uma outra história...


Referências bibliográficas:

[1]   Eves, H. E. An introduction of the History of Mathematics. New York: Holt, Rinchart and Winston, Inc. [publicado pela Editora Unicamp com o título Introdução à História da Matemática].
[2]   Boyer, C. B. História da Matemática. São Paulo: Editora Edgar Blucher, 1996.
[3]   Lauand, L. J. Educação, teatro e Matemática Medievais. São Paulo: Editora Perspectiva., 1986.
[4]   Internet:
  • The Catholic Enciclopedia – Hroswitha.
  • Roswitha # 2/2 by Julio Gonzalez Cabillon

***


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Matemática e Poesia juntas

Tempo de leitura: 10 minutos

O  texto Lilavati, Matemática e Poesia juntas por José Carlos Fernandez está disponível no LINK.

O Lilavati é um manual de matemática escrito por Bhaskara (1114-1185) com tal impacto na cultura da Índia que até o início do século XX era o texto de matemática ensinado aos jovens, e só gradualmente foi substituído pelos tratados de matemática ocidentais, especialmente da linha inglesa.

MS Oriental Indic beta 229 Bhaskara, Lilavati Folha 26

Baseia-se, é claro, em matemáticos hindus anteriores, como Brahmagupta (século VII). Bhaskara  teria-o escrito para a sua filha, como entretenimento e consolo diante do seu casamento frustrado, embora não se saiba se isso é histórico. Quando o imperador Akbar o traduziu para o persa, no século XVI, já incorporava uma bela lenda:

O horóscopo da filha recém-nascida do Mestre Bhaskara previu que a linda criança não conseguiria desfrutar das delícias de um casamento. Quando Lilavati cresceu em modéstia, inteligência e beleza, o seu compromisso material foi determinado. No dia marcado para a comemoração, Lilavati, impaciente, brincava com o vestido na borda do relógio de água que marcaria tão esperado momento. O artefato tem no fundo um orifício por onde penetra a água. Quando todo o relógio estivesse submerso, chegaria o momento de se casar. Quase no minuto fatal, uma pérola do seu vestido caiu. O orifício ficara entupido e a hora propícia nunca chegou. Lilavati nunca se casou. O pai da desafortunada menina, para seu conforto e felicidade dela, um livro escreveu que Lilavati se chamou" [1].

Lilavati significa em sânscrito “mulher bela e encantadora” e existem comentadores desta obra que sugerem que se trata mesmo da personificação da Matemática.

Os textos estão na forma de sutras, breves máximas que fornecem a solução sem se deter no procedimento nem como foi alcançado. Ou dizem como, mas sem detalhes. É evidente que este trabalho deve ser sempre acompanhado de uma explicação oral. Hoje é necessário que convertamos essa linguagem poética na linguagem matemática atual se quisermos seguir o que diz.

As suas 279 estrofes em 13 capítulos incluem problemas, exemplos e explicações, introduzidas por uma oração ao deus da Sabedoria, Ganesha, que diz assim:

Eu dirijo a minha oração ao deus que tem rosto de elefante e diante de cujos pés estão multidões de outros deuses, em gratidão rendida por toda felicidade que procuram os seus devotos, a quem ele dá a conhecer como superar cada obstáculo. As leis com as quais operamos ao manusear a tabela, procuro colocar em verso, em estrofe clara e breve, para que os conhecedores possam desfrutar de sua beleza”.

Os problemas e soluções que levanta estão cinco ou mais séculos à frente da matemática ocidental, e o que mais encanta é a sua poesia e até a sua originalidade. Descreve unidades de medida, operações básicas (adição, multiplicação e suas inversas), os quadrados, cubos e suas raízes, operações com frações, equações usando o processo inverso, equações de segundo grau, regras de três diretas e inversas, simples e compostas, regras de capital e juros, ligas, combinatória (tomando elementos de “n” a “n”), séries aritméticas e geométricas, triângulo retângulo e triplos pitagóricos e euclidianos, determinação geométrica de meios harmónicos, fórmula de Brahmagupta e Heron, determinação da área de triângulos, losangos, trapézios, círculos, volumes de esferas, discos, prismas, trigonometria plana, equações diofantinas (método pulverizador), permutações, etc.

Nos ensinamentos e nos exemplos há muita poesia e delicadeza. Escolhemos três exemplos, entre muitos.

Ex.1 Permutações

Nosso amado Deus Shiva recorre a estas dez armas: armadilhas, arpões, serpentes, maças, clavas, focinheiras, dardos, lanças, flechas, arcos, e uma a uma ele as sustenta cada qual com as mãos. Quantas estátuas diferentes do deus Shiva existem? De quantas maneiras diferentes nosso amado Deus Vishnu segura seus quatro objetos: concha, disco, clava e o tão apreciado lótus?

Em Shiva, a solução é uma permutação desses dez elementos sem repetição:

P_{(10)} = 10! = 3.628.800

E o caso de Vishnu, de 4 elementos:

P_{(4)}= 4! = 24

Curiosamente, o deus Vishnu tem 24 nomes no seu ritual diário.

Ex. 2 Triângulos retângulos e teorema de Pitágoras

A brisa vem procurar um lótus num tanque que fez para ir com ela. Eles foram juntos até a borda do vidro, onde o ar não penetra. Se soubermos a que altura o lótus se projeta e também quão distantes estão seus caminhos, diga-me, menina deliciosa, a profundidade do tanque e a altura desse lótus que se deixou apaixonar”.



(x-a)^2 + b^2 = x^2 \rightarrow

\rightarrow x^2 + a^2 - 2ax + b^2 = x^2 \rightarrow

\rightarrow x = \dfrac{1}{2}\bigg(\dfrac{b^2}{a} + a\bigg)

y = \sqrt{x^2 - b^2}


Ex. 3 Equações

“Um casal estava em pleno jogo amoroso quando o colar de pérolas que a jovem usava quebrou-se. Um terço das pérolas acabou no chão e um quinto permaneceu na cama. Ela ainda manteve um sexto de todas as pérolas e seu amado conseguiu salvar um décimo em suas mãos. Seis únicas pérolas permaneceram no fio de seda. Quantas pérolas, Lilavati, compunham o colar?”

Poderíamos resolver assim:

x - \bigg(\dfrac{1}{3} + \dfrac{1}{5} + \dfrac{1}{6} + \dfrac{1}{10}  \bigg) x = 6

x - \dfrac{48}{60} x = 6

x - \dfrac{4}{5} x = 6

x\bigg(1 - \dfrac{4}{5} \bigg) = 6

Mas ele usa o mesmo método que era usado na matemática grega, que é a determinação do desconhecido por suposição e que o próprio Bhaskara formula da seguinte forma:

Para descobrir o que você não sabe, comece assumindo que vale alguma coisa e continue as contas. Os ajustes necessários são feitos ao valor inicial para chegar à verdade. Você encontrará finalmente a verdade, começando com a suposição, quando aplicar uma facilidade tão útil.

Assim, ele o faz, aplicando cuidadosamente a proporcionalidade:

Suponhamos que o número de pérolas é 1. Sabemos que o número final é 6; então o número de pérolas restantes é:

1 - \bigg(\dfrac{1}{3} + \dfrac{1}{5} + \dfrac{1}{6} + \dfrac{1}{10}  \bigg)  =

1 - \bigg(\dfrac{20 + 12 + 10 + 6}{60} \bigg) =

1 - \dfrac{48}{60}  =

1 - \dfrac{4}{5}  = \dfrac{1}{5} e portante, o número total de pérolas é \dfrac{6 \times 1}{1/5} = 30."

Se pensarmos em comparação com a matemática ocidental deste século, o conhecimento sobre o zero é surpreendente, não apenas no seu valor posicional, mas nas operações que podem ou não ser feitas com ele.

Se você adicionar zero a um número, não haverá adição.

É inútil a potência de zero, que é sempre zero. 

Se for multiplicado por zero ou se for dividido por ele, é melhor que você não pretenda obter um resultado, mas arraste a expressão indicada até o final.

Dividindo por zero vamos ao infinito. O infinito não muda com adição ou subtração: como Vishnu, ele é impassível a nascimentos e mortes.”

O que é expresso na terminologia atual como:

n + 0 = n

0^2 = 0^3 = \sqrt[2]{0} = \sqrt[3]{0} = 0

n \times 0 = 0 ; \ \ 0/n = 0 

\dfrac{n}{0} = \infty

Felizmente encontramos excelentes vídeos explicativos com os problemas do Lilavati, recomendo, por exemplo, os seguintes:

O lótus submerso no lago

O bambu quebrado

A mansão com 8 portas

O bando de cisnes

O pavão que caça a cobra

Bambu e cordas cruzadas

O problema dos dois macacos

Precisamos, mais uma vez, voltar à poesia da matemática para que, ao invés de ser apenas um exercício racional, também nos permita, através da beleza, abrir os olhos da alma para a intuição daquilo que não morre nem cessa nem nasce, os Arquétipos de Platão, e como dizia o professor Jorge Angel Livraga, “os primeiros arquétipos são os Números”.

Notas:

[1] Do livro Lilavati, A matemática em verso do século XII. Versão adaptada e ampliada por Ángel Requena e Jesús Malia. Da Biblioteca de Estímulos Matemáticos.

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