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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Sobre Rabano Mauro

Rabano Mauro (à direita) apresenta uma
obra a Gregório IV, sentado 
PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Praça de São Pedro
Quarta-feira, 3 de Junho de 2009

 

Rabano Mauro

Caros irmãos e irmãs

Hoje gostaria de falar de uma personagem do Ocidente latino verdadeiramente extraordinário: o monge Rabano Mauro. Juntamente com homens como Isidoro de Sevilha, Beda o Venerável e Ambrósio Autperto, de quem já falei em catequeses precedentes, ao longo dos séculos da chamada Alta Idade Média ele soube manter o contato com as grandes culturas dos antigos sábios e dos Padres cristãos. Recordado frequentemente como "praeceptor Germaniae", Rabano Mauro teve uma fecundidade extraordinária. Com a sua capacidade de trabalho absolutamente excepcional, talvez tenha contribuído mais do que todos para manter viva a cultura teológica, exegética e espiritual, da qual teriam haurido os séculos sucessivos. Nele inspiram-se quer grandes personagens pertencentes ao mundo dos monges, como Pier Damiani, Pedro o Venerável e Bernardo de Claraval, quer também um número cada vez mais consistente de "clérigos" do clero secular, que durante os séculos XII-XIII deram vida a um dos florescimentos mais bonitos e fecundos do pensamento humano.

Tendo nascido em Mainz por volta de 760, Rabano entrara no mosteiro extremamente jovem: foi-lhe acrescentado o nome de Mauro precisamente com referência ao jovem Mauro que, segundo o Livro ii dos Diálogos de São Gregório Magno, fora confiado quando era ainda criança pelos seus pais, nobres romanos, ao abade Bento de Núrsia. Esta inserção precoce de Rabano como "puer oblatus" no mundo monástico beneditino, e os frutos que obteve para o seu crescimento humano, cultural e espiritual, abririam sozinhos uma espiral interessantíssima não só sobre a vida dos monges e da Igreja, mas também sobre toda a sociedade da sua época, habitualmente qualificada como "carolíngia". Deles, ou talvez de si mesmo, Rabano Mauro escreve: "Há alguns que têm a sorte de ser introduzidos no conhecimento das Escrituras desde a tenra infância" ("a cunabulis suis") e foram tão bem nutridos com o alimento oferecido pela Santa Igreja que, com a educação apropriada, puderam ser promovidos às ordens sagradas mais altas" (pl 107, col. 419bc).

A cultura extraordinária, pela qual Rabano Mauro se distinguia, chamou depressa a atenção dos grandes do seu tempo. Tornou-se conselheiro de príncipes. Empenhou-se para garantir a unidade do império e, a nível cultural mais amplo, nunca deixou de oferecer a quem o interrogava uma resposta ponderada, que tirava preferivelmente da Bíblia e dos textos dos santos Padres. Eleito primeiro Abade do famoso mosteiro de Fulda e depois Arcebispo da cidade natal, Mainz, não cessou por isso de continuar os seus estudos, demonstrando com o exemplo da sua vida que se pode estar simultaneamente à disposição dos outros, sem se privar por isso de um tempo côngruo para a reflexão, o estudo e a meditação. Assim Rabano Mauro foi exegeta, filósofo, poeta, pastor e homem de Deus. As dioceses de Fulda, Mainz, Limbourg e Wroclaw veneram-no como Santo ou Beato. As suas obras completam seis volumes da Patrologia Latina do Migne. É a ele que se deve, provavelmente, um dos hinos mais bonitos e conhecidos da Igreja latina, o "Veni Creator Spiritus", síntese extraordinária de pneumatologia cristã. O primeiro compromisso teológico de Rabano manifestou-se, com efeito, sob a forma de poesia e teve como objeto o mistério da Santa Cruz, numa obra intitulada: "De laudibus Sanctae Crucis", concebida de maneira a propor não somente conteúdos de conceito, mas também estímulos mais requintadamente artísticos, utilizando tanto a forma poética como a pictórica no interior do mesmo códice manuscrito. Propondo iconograficamente nas entrelinhas do seu escrito a imagem de Cristo crucificado, ele por exemplo escreve: "Eis a imagem do Salvador que, com a posição dos seus membros, torna sagrada para nós a salubérrima, dulcíssima e amadíssima forma da Cruz, a fim de que, acreditando no seu nome e obedecendo aos seus mandamentos, possamos obter a vida eterna graças à sua Paixão. Por isso, cada vez que elevarmos o olhar para a Cruz, recordemo-nos daquele que padeceu por nós para nos tirar do poder das trevas, aceitando a morte para nos tornar herdeiros da vida eterna" (Lib. 1, Fig. 1, pl 107 col. 151c).

Este método de combinar todas as artes, o intelecto, o coração e os sentidos, que vinha do Oriente, teria tido um desenvolvimento enorme no Ocidente, atingindo níveis inigualáveis nos códices miniaturados da Bíblia e em outras obras de fé e de arte, que floresceram na Europa até à invenção da imprensa e além dela também. De qualquer modo, isto demonstra que Rabano Mauro tem uma consciência extraordinária da necessidade de empenhar, na experiência da fé, não apenas a mente e o coração, mas também os sentidos mediante aqueles outros aspectos do gosto estético e da sensibilidade humana que levam o homem a fruir da verdade com a totalidade do seu ser, "espírito, alma e corpo". Isto é importante: a fé não é só pensamento, mas refere-se a todo o nosso ser. Dado que Deus se fez homem em carne e osso, entrando no mundo sensível, nós em todas as dimensões do nosso ser temos que procurar e encontrar Deus. Assim a realidade de Deus, mediante a fé, penetra no nosso ser transformando-o. Por isso Rabano Mauro concentrou a sua atenção sobretudo na Liturgia, como síntese de todas as dimensões da nossa percepção da realidade. Esta intuição de Rabano Mauro torna-o extraordinariamente atual. Dele permaneceram inclusive os famosos "Carmina", propostos para ser utilizados principalmente nas celebrações litúrgicas. Com efeito, dado que Rabano era acima de tudo um monge, era totalmente evidente o seu interesse pela celebração litúrgica. Porém, ele não se dedicava à arte poética como fim em si mesma, mas subordinava a arte e qualquer outro tipo de saber ao aprofundamento da Palavra de Deus. Por isso, com compromisso e rigor extremos, procurou introduzir os seus contemporâneos, mas em primeiro lugar os ministros (bispos, presbíteros e diáconos), na compreensão do significado profundamente teológico e espiritual de todos os elementos da celebração litúrgica.

Assim, tentou compreender e propor aos outros os significados teológicos escondidos nos ritos, inspirando-se na Bíblia e na tradição dos Padres. Não hesitava em declarar, por honestidade mas também para dar maior importância às suas explicações, as fontes patrísticas às quais devia o seu saber. Todavia, servia-se das mesmas com liberdade e discernimento atento, dando continuidade ao desenvolvimento do pensamento patrístico. Por exemplo, no final da "Epistola prima", dirigida a um "corepiscopo" da diocese de Mainz, depois de ter respondido aos pedidos de esclarecimento a respeito do comportamento que se devia ter no exercício da responsabilidade pastoral, prossegue: "Escrevemos-te tudo isto do modo como o deduzimos das Sagradas Escrituras e dos cânones dos Padres. Tu porém, santíssimo homem, toma as tuas decisões como melhor te parecer, caso por caso, procurando moderar a tua avaliação de forma a garantir em tudo a discrição, porque esta é a mãe de todas as virtudes" (Epistulae, I, PL 112, col. 1510c). Assim, vê-se a continuidade da fé cristã, que tem os seus primórdios na Palavra de Deus; porém, ela é sempre viva, desenvolve-se e exprime-se de modos novos, sempre em coerência com toda a construção, com todo o edifício da fé.

Dado que uma parte integrante da celebração litúrgica é a Palavra de Deus, a ela se dedicou Rabano Mauro com o máximo empenhamento durante toda a sua existência. Ofereceu explicações exegéticas apropriadas praticamente para todos os livros bíblicos do Antigo e do Novo Testamento com uma intenção claramente pastoral, que justificava com palavras como estas: "Escrevi estas coisas... resumindo explicações e propostas de muitos outros para oferecer um serviço ao leitor pobre que não pode ter à disposição muitos livros, mas também para ajudar aqueles que em muitas coisas não conseguem entrar em profundidade na compreensão dos significados descobertos pelos Padres" (Commentariorum in Matthaeum praefatio, PL 107, col. 727d). Com efeito, quando comentava os textos bíblicos, hauria a mãos-cheias dos Padres antigos, com especial predileção por Jerónimo, Ambrósio, Agostinho e Gregório Magno.

Depois, a acentuada sensibilidade pastoral levou-o a enfrentar sobretudo um dos problemas mais sentidos pelos fiéis e pelos ministros sagrados do seu tempo: o da Penitência. Efetivamente, foi compilador de "Penintenciários" — assim eram chamados — nos quais, segundo a sensibilidade dessa época, eram enumerados pecados e penas correspondentes, utilizando na medida do possível motivações tiradas da Bíblia, das decisões dos Concílios e das Decretais dos Papas. De tais textos serviram-se inclusive os "Carolíngios" na sua tentativa de reforma da Igreja e da sociedade. A esta mesma intenção pastoral correspondiam obras como "De disciplina ecclesiastica" e "De institutione clericorum", nos quais, inspirando-se principalmente em Agostinho, Rabano explicava aos simples e ao clero da sua diocese os rudimentos fundamentais da fé cristã: tratava-se de uma espécie de pequenos catecismos.

Gostaria de concluir a apresentação deste grande "homem de Igreja", citando algumas das suas palavras em que se refletem a sua convicção de base: "Quem é negligente na contemplação ("qui vacare Deo negligit"), priva-se sozinho da visão da luz de Deus; além disso, quem se deixa surpreender de modo indiscreto pelas preocupações e permite que os seus pensamentos sejam alterados pelo tumulto das coisas do mundo, condena-se à absoluta impossibilidade de penetrar os segredos do Deus invisível" (Lib. I, PL 112, col. 1263a). Penso que Rabano Mauro dirige estas palavras também a nós, hoje: nas horas de trabalho, com os seus ritmos frenéticos, e nos períodos de férias, temos que reservar momentos para Deus, abrir-lhe a nossa vida, dirigindo-lhe um pensamento, uma reflexão, uma breve oração e principalmente não podemos esquecer que o domingo é o dia do Senhor, o dia da liturgia, para vislumbrar na beleza das nossas igrejas, da música sacra e da Palavra de Deus, a própria beleza de Deus, deixando-O entrar no nosso ser. Somente assim a nossa vida se tornará grande, verdadeira.


Texto disponível no link.


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Música e a Educação da criança

Canção dos Anjos, 1881 -
William Adolphe Bouguereau

1) Introdução.

Cultivar até à excelência a virtude e a inteligência são os requisitos imediatos da vida contemplativa; nisto afirmamos consistir aquela fase da pedagogia a que chamamos de intencional, por supor a intenção do aluno de alcançar este objetivo.

Antes disso, porém, temos a pedagogia não intencional, que consiste em uma preparação para o trabalho intencional da virtude e da inteligência em que no mais das vezes o aluno não tem condições de compreender o fim último de seus esforços.

Foi no fim do VII da Política e no VIII da mesma obra que Aristóteles abordou este assunto, analisando a educação da criança desde os seus primeiros anos. Entretanto, deixou este tratado incompleto ainda nos próprios princípios.

Santo Tomás de Aquino não chegou a comentar sequer este texto inacabado de Aristóteles. Seu comentário se interrompe ao longo do III da Política; um de seus discípulos, seguindo a orientação do mestre, completou o comentário até o ponto em que Aristóteles havia escrito. Este discípulo que continuou o Comentário demonstra conhecer bem a obra e o pensamento de Tomás, de modo que o Comentário à Política escrito pelos dois autores tem sido publicado como uma só obra, apenas com uma pequena nota assinalando o ponto em que termina o texto de Tomás e se inicia o do discípulo.

Não é difícil, ademais, supor o que Tomás de Aquino pensaria sobre Aristóteles nos textos que ele não comenta. A não ser em pouquíssimos pontos onde Aristóteles afirma algo manifestamente inconciliável com o conjunto do pensamento de Tomás, este último sempre concorda com o primeiro e, o mais freqüentemente, aprofunda o pensamento de Aristóteles. De modo que pode-se dizer que o presente capítulo desta trabalho, baseado no texto com que um aluno de Tomás de Aquino completou o Comentário à Política que ele havia deixado inacabado, não foge ao pensamento de Tomás de Aquino.

2) Princípio geral para a educação da criança.

O final do Comentário ao VII da Política, que inicia a abordagem dos requisitos remotos da educação em seus primeiros estágios, abordagem que infelizmente encontra-se interrompida ainda em seus começos, enuncia um princípio geral a ser observado em tudo quanto irá e iria ser tratado posteriormente.

Depois de ter declarado qual é o fim último da vida humana, diz o Comentário, deve-se considerar como se deve proceder para tornar os homens bons e aplicados em se ordenarem a este fim. Devemos distinguir três coisas que para isso são necessárias: a natureza, o costume, que nesta passagem é para Aristóteles um termo pelo qual se designam as disposições do apetite, e a razão [588].

É necessário considerar se as crianças devem ser instruídas primeiramente segundo a razão ou inteligência, ou se devem ser instruídas segundo o costume ou apetite. E antes mesmo disto, deve-se considerar se não devem ser bem dispostas segundo o corpo antes que tratemos de bem dispor as suas almas. De fato, é necessário harmonizar entre si estas coisas do modo devido para que tratemos de dispor em primeiro lugar àquilo que a natureza previu que deve ser disposto em primeiro lugar [589].

Ora, é manifesto nas coisas que são segundo a natureza e segundo a arte que qualquer geração começa por algum princípio imperfeito e termina em algo perfeito e final. O termo e fim natural do homem é a razão e a inteligência em ato e não em potência; pelo que importa ordenar primeiro o corpo do que a alma, e o apetite antes que a inteligência [590]. De fato, observa-se que o apetite precede segundo a via da geração o intelecto e a razão em ato, pois o irascível e a concupiscência estão nas crianças imediatamente desde o nascimento, enquanto que o intelecto e a razão em ato não estão senão depois de um certo tempo [591].

Portanto, como é necessário dispor aquilo que se ordena ao fim antes de dispor o próprio fim, e o corpo se ordena ao intelecto e à razão como a um fim, e o apetite se ordena à inteligência assim como a matéria à forma, será preciso primeiro ocupar-se do corpo do que da alma; e depois, na alma, daquilo que pertence ao apetite por causa do intelecto e tendo em vista ao mesmo, e por causa do intelecto cuidar de tudo quanto há na alma. De fato, todas as partes da alma e os seus hábitos se ordenam à perfeição que é segundo o intelecto [592].

3) A educação do nascimento ao terceiro ano.

O alimento mais conveniente às crianças logo após o parto, diz o Comentário, é o leite natural, e mais ainda o leite da mulher do que o dos animais, e ainda maximamente o da própria mãe do que o de outra. Aqueles que são alimentados com o leite da própria mãe crescerão melhor dispostos segundo a natureza [593].

Logo após o nascimento é importante acostumar as crianças a pequenos movimentos, por exemplo, das mãos, dos pés e de outras partes. E, segundo diz Avicenna, com o movimento deve-se procurar a consonância da música e a voz da canção para produzir na criança o deleite da consonância musical por causa do que será dito mais adiante [594].

4) A educação do terceiro ao quinto ano.

Nesta idade as crianças não são capazes do aprendizado por causa de sua tenra compleição e imperfeição das virtudes, nem podem fazer grandes trabalhos. Por isso é necessário exercitá-las em pequenos movimentos que podem ser feitos em diversas ações e brincadeiras. As brincadeiras não devem declinar à servilidade, nem ser muito trabalhosas ou violentas, para que não prejudiquem as virtudes por causa do excesso, nem muito moles e remissas, para que não se transformem em causa de preguiça [595].

Nesta idade devem ser exercitadas em ouvir pequenas histórias e fábulas, para que se exercitem no falar e nas razões dos nomes. Deve-se observar porém que, nesta idade, tudo em que as crianças forem acostumadas, movimentos, ações, brincadeiras, histórias e fábulas que ouvem e também que vêem, sejam imagens das coisas em que depois deverão tratar seriamente, e como que um caminho para as coisas que depois deverão estudar ou em que se ocupar, pois as coisas que por primeiro nos acostumamos mais inclinam posteriormente, já que aquilo de que temos costume nos é mais deleitável [596].

Deve-se evitar que ouçam, nesta idade, coisas torpes. Ao contrário, o bom legislador deveria exterminar completamente da cidade os discursos torpes sobre o que é venéreo e outras coisas que estão além da razão e honestidade, pois pelo fato de discorrer sobre o que é torpe segue-se a inclinação à ação torpe. Freqüentemente ocorre que, falando de alguma ação torpe, mais freqüentemente se pense sobre a mesma, e do freqüente pensamento segue-se uma inclinação maior a esta ação. Isto que deve ser universalmente proibido na cidade, deve ser maximamente proibido aos jovens e na presença deles, de modo que nem falem nem ouçam falar a respeito. De fato, tudo quanto ouvem ou vêem ou operam nesta primeira idade é admirado como coisa nova, por causa do que é melhor lembrado e se faz mais deleitável, pois as coisas admiráveis são deleitáveis e às coisas nas quais nos deleitamos mais facilmente nos inclinamos [597].

Deve-se evitar nesta idade que as crianças vejam o que é desonesto; de fato, diz o Filósofo, se devemos exterminar da cidade fazer ou dizer o que é torpe, manifesto é que deve-se evitar também o ver estas coisas, pois pelo vê-las produz-se a imaginação e a memória das mesmas, e isto principalmente nas crianças, as quais vivem da admiração [598].

5) A educação do quinto ao sétimo ano.

Nesta idade as crianças devem examinar as disciplinas em que irão ser posteriormente educadas. Por exemplo, se deverão ser educadas na música, devem ser levadas a ouvir os músicos, para que, pelo ouvido e pela inspeção de tais coisas adquiram o costume e mais se inclinem às mesmas [599].

6) A educação do sétimo ao décimo quarto ano.

As crianças podem aprender música depois dos sete anos. Há três finalidades na educação musical das crianças: para que brinquem [600], para que se tornem puras [601] e para acostumá-las a julgar retamente e deleitar-se segundo a razão, dispondo-as à virtude [602].

É coisa manifesta que pelo correto uso da música nos tornamos bem dispostos às virtudes. De fato, diz o Filósofo, os sacerdotes do monte Olimpo se utilizavam de muitas melodias para este fim [603].

A razão pela qual a música dispõe às virtudes consiste em que a música faz parte das coisas que são deleitáveis segundo si mesmas, e a virtude moral diz respeito como a uma matéria própria às deleitações, às tristezas e às demais paixões. Ora, é manifesto que nada acostuma tanto à geração dos hábitos morais e às ações das mesmas do que o reto julgamento dos movimentos das paixões e o deleitar-se nelas segundo a razão [604]. Acostumar-se, porém, a julgar o que é semelhante às ações e deleitações morais é acostumar-se a julgar das próprias ações morais e deleitar-se nelas.

Mas as harmonias musicais são semelhantes às paixões, aos hábitos e às ações morais [605], pois nas melodias musicais se encontram manifestamente imitações dos costumes, já que pelas diferenças das harmonias podem se dispor de modo imediato as paixões e os movimentos dos ouvintes de tal ou qual maneira. Assim é que a melodia lídia do sétimo tom retrai o espírito ao seu interior; a melodia lídia do quinto tom, também denominada de hipolídia, manifestamente predispõe à preguiça; a melodia dórica do primeiro tom dispõe os ouvintes à constância nas obras, pelo que é maximamente moral; a melodia frígia do terceiro tom recolhe fortissimamente o espírito do exterior ao interior [606].

Estes exemplos mostram como nas melodias encontramos as semelhanças das virtudes [607]; de onde que acostumar-se a julgar e a deleitar-se corretamente nas harmonias musicais é acostumar-se a julgar e a deleitar-se retamente nos hábitos e nas ações morais [608]. Deve-se, portanto, concluir que a música pode dispor à virtude, pelo que é importante educar e acostumar os jovens à mesma [609].

A música também pode purificar os jovens, porque a purificação é a corrupção de alguma paixão nociva que passa a não existir, o que se obtém pela geração do contrário, assim como a corrupção da ira se dá pela geração da mansidão [610].

7) A música como arte liberal.

O homem é dito livre quando ele é causa de si próprio sob a razão de causa movente e de causa final.

Ele é causa de si mesmo sob a razão de causa movente quando, mediante aquilo pelo qual ele possui natureza humana e é principal nele, isto é, a inteligência, é movido julgando e ordenando o modo e a razão do agir.

É causa de si mesmo sob a razão de causa final quando é movido ao bem e ao seu fim próprio segundo aquilo que há de principal nele, isto é, a inteligência; e tanto mais livre será segundo a natureza quanto mais for capaz de ser movido por aquilo que é principalíssimo nele e em direção ao seu fim e bem seguindo este mesmo principalíssimo [611].

Já o homem é dito servo quando não é capaz, por causa da indisposição da matéria, de mover-se pela inteligência própria, devendo por isso ser movido pela de outro; e quando nem também age por causa dela, mas por causa daquela de outro [612].

Neste sentido uma ciência era chamada liberal pelos antigos quando, por meio dela, o homem se dispunha segundo a inteligência ao seu fim próprio. E, entre as ciências liberais, aquela que é maximamente livre é aquela que dispõe de modo imediato a inteligência ao fim ótimo, isto é, aquela em cuja operação consiste a felicidade.

Aquelas que dispõem a inteligência ao fim ótimo do homem de modo mediato são menos livres, como o são as ciências posteriores nas quais o conhecimento que delas advém se ordena ao conhecimento das que lhe são superiores, embora estes conhecimentos já sejam tais que possam ser buscados por si mesmos.

Será minimamente liberal entre as ciências especulativas aquela em que minimamente se buscar o conhecimento por causa dela mesma e que se ordenar apenas através de muitos meios ao bem último do homem [613].

Embora a ciência maximamente liberal não possa ser mal usada quanto ao seu uso em si mesmo considerado, as ciências posteriores menos liberais podem ser mal usadas mesmo quando consideradas em si mesmas.

De fato, se considerarmos esta questão não segundo determinado aspecto, mas em relação ao próprio fim último do homem considerado em si mesmo, não é possível fazer mau uso deste fim último. Nas coisas que são meios para se alcançar um fim, mesmo consideradas em si mesmas e não segundo algum determinado aspecto, pode ocorrer que sejam mal usadas. Isto ocorre quando pela consideração ou pelo exercício das mesmas alguém se afasta seja do próprio fim, seja das coisas que são mais próximas àquele fim; é o que acontece quando, pela consideração de alguma ciência posterior que trata de um conhecimento menos nobre alguém se afasta da consideração da ciência primeira que trata do conhecimento maximamente elevado [614].

É freqüente que isto ocorra com a música, porque muitos há que acabam por colocar nela o seu fim último. Mas a música não é o fim último do homem, este fato só vindo a ocorrer porque são poucos os homens que alcançam o fim último da vida, efetivamente uma coisa rara. Os homens encontram para isto muitos impedimentos, por parte da natureza, por parte do costume, por causas externas, ou mesmo porque fogem do trabalho necessário para alcançá-lo. Quando isto acontece muitos acabam por colocar seu fim último na música apenas por causa da deleitação que ela proporciona; pelo fato de não poderem alcançar a felicidade que reside no fim último do homem, acabam por buscar na música a deleitação por si mesma. A razão disto é que o fim último da vida humana possui deleitação, não qualquer deleitação, mas a deleitação máxima; a música, de modo semelhante, possui deleitação; por isso, os que buscavam a primeira que está no fim último, não a alcançando, tomam aquela que está na música por aquela que lhe é mais nobre, pela semelhança que nesta segunda encontram com a do fim último [615].

8) O plano de Aristóteles.

Era a intenção de Aristóteles, conforme manifestado nas últimas linhas do livro VII da Política, tratar da educação após os sete anos em três etapas; a primeira, dos sete aos catorze anos; a segunda, dos catorze aos vinte e um; a terceira, dos vinte e um aos trinta e sete [616].

Entretanto, tendo mencionado previamente algumas disciplinas em que conviria exercitar os jovens dos sete aos catorze anos, entre as quais figurava a música, após ter iniciado a tratar a respeito da música, interrompeu repentinamente o seu livro.


Notas:

[588] In libros Politicorum Expositio, L. VII, l. 12, 1220.

[589] Idem, loc. cit..

[590] In libros Politicorum Expositio, L. VII, l. 12, 1221.

[591] Idem, loc. cit..

[592] Idem, L. VII, l. 12, 1223.

[593] Idem, L. VII, l. 12, 1246.

[594] Idem, loc. cit..

[595] Idem, L. VII, l. 14, 1249.

[596] Idem, L. VII, l. 12, 1250.

[597] Idem, L. VII, l. 12, 1253.

[598] Idem, L. VII, l. 12, 1254.

[599] Idem, L. VII, l. 12, 1257.

[600] Idem, L. VIII, l. 2, 1290.

[601] Idem, L. VIII, l. 3, 1331.

[602] Idem, L. VIII, l. 3, 1290.

[603] Idem, L. VIII, l. 2, 1302.

[604] Idem, L. VIII, l. 2, 1307

[605] Idem, L. VIII, l. 2, 1308.

[606] Idem, L. VIII, l. 8, 1312.

[607] Idem, loc. cit..

[608] Idem, L. VIII, l. 2, 1308.

[609] Idem, L. VIII, l. 2, 1314-1315.

[610] Idem, L. VIII, l. 3, 1331.

[611] Idem, L. VIII, l. 1, 1266.

[612] Idem, loc. cit..

[613] Idem, L. VIII, l. 1, 1267.

[614] Idem, L. VIII, l. 1, 1268.

[615] Idem, L. VIII, l. 2, 1299-1300.

[616] Idem, L. VII, l. 12, 1258.

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Trecho retirado capítulo VII A Pedagogia da Sabedoria IIIª Parte do livro Educação segundo a Filosofia Perene disponível no link.


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A Matematização do Mundo

Modelo sólido platônico de Kepler do Sistema
Solar no livro Mysterium Cosmographicum, 1597

Por José Carlos Zamboni

O escritor e físico argentino Ernesto Sábato ‒ que morreu, em 2011, com quase cem anos ‒ foi se aproximando de Deus muito devagar na longa estrada de sua vida. Na juventude foi comunista e ateu. Depois, anarquista e agnóstico. Aos oitenta anos de idade casou-se na Igreja Católica com a mulher ao lado de quem tinha vivido mais de sessenta anos. Em seu último livro, A resistência (publicado em 2000 aos oitenta e nove anos), confessou que já não sofria mais com a vinda da morte, pois sabia que ela não lhe subtrairia a vida.

Sábato tinha um pé na ciência, outro na literatura e na filosofia. Escreveu coisas interessantes sobre a tragédia da matematização do mundo, iniciada no glorioso e colorido Renascimento, cujo modelo de mundo e humanidade seria baseado na abstração matemática.

Cinco séculos mais tarde, ou seja, hoje, o mundo vive buscando modelos matemáticos para as soluções de seus problemas ‒ e, muitas vezes, criando com isto novos problemas. Basta pensar como influi, hoje, na vida de bilhões de pessoas a matematização da internet, cujos computadores organizam e controlam um número enorme de informações com uma rapidez surpreendente. O indivíduo de hoje não apenas sabe mais do que os homens de décadas passadas, como é induzido pelas “redes sociais” a decisões práticas, morais e até espirituais (inimagináveis em tempos não tão distantes assim).

Estamos cercados de máquinas. Os transumanistas acreditam até que o ser humano está condenado a ser máquina. Consideradas em si mesmas, as máquinas não são más; algumas tornam até mais fácil nossa luta com a natureza. Quando não estamos brigando com ela? O que inquieta é a possibilidade de o homem se transformar em etéreo e descarnado número, completamente robotizado. E pensar ‒ lembra Sábato ‒ que o precursor disto tudo foi o velho Platão, ao fantasiar um mundo perfeito, puramente mental, regido pela harmonia matemática. Terá sido por isto que ele foi tão admirado no Renascimento?

Duas coisas muito distantes entre si ameaçam o ser humano: sua metamorfose em número e sua regressão a besta. Todo pensamento dominado pela nostalgia da natureza e da pura animalidade está a um passo da barbárie. A natureza não é um cenário bucólico habitado por pastores e pastoras descarnados, mas um campo de batalha. Também a natureza foi afetada pelo pecado original. Por trás da aparente placidez das paisagens há muita tragédia virtual: maremotos, terremotos, secas, enchentes, relâmpagos, vírus e bactérias letais.

Quem ainda crê que os povos rústicos, mais próximos da natureza, viviam em doce e santa paz “originária”? Foi com ideias parecidas que os estruturalistas franceses, crentes no bom selvagem, dominaram as universidades há cinquenta anos. Em crítica literária, criaram um método de análise das obras que visava reduzi-las, ressentidamente, à condição de contos folclóricos, a partir de esquematizações binárias e oposições simplistas. Era, de algum modo, a matematização dos estudos literários, disfarçada de filosofia naturalista e pré-ambientalista.

Os homens não são nem anjos, nem bichos, diria Pascal. São apenas homens ‒ ou seja, têm espírito como os anjos e corpos como os bichos ‒, tentando defender-se precariamente da barbárie da natureza sempre ameaçadora, do perigo de retorno às selvas. E da barbárie do falso anjo, transformando a natureza e o homem em números gélidos, distantes, impassíveis. O pior é que os dois inimigos estão hoje amigavelmente enlaçados: selvageria e tecnologia.

Essa matematização da vida, segundo Sábato, torna as coisas abstratas mais importantes que as tangíveis: mata-se ou morre-se por coisas tão genéricas e abstratas como um partido político, uma classe social, uma ideologia.


Texto retirado do link.


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A Escola sem Deus

Da Revolução Francesa à Revolução Comunista

O naturalismo pedagógico sedimentou caminho rumo a escola sem Deus [1]. Trata-se nada mais do que de um “individualismo exagerado” [2] e que possui “um ânimo ferozmente hostil ao catolicismo” [3]. Esse ânimo ferozmente hostil se dá não só pelas raízes calvinistas e revolucionárias de Rousseau [4], mas por opor-se veementemente ao Antigo Regime [5] que foi plasmado pela cultura católica.

Destarte às considerações feitas ao inspirador das chamadas pedagogias modernas ou novas, consideremos, ainda que brevemente, a natureza da verdadeira educação e o quanto o naturalismo pedagógico e tudo quanto dele deriva contém erros [6] e se torna um desastre para a própria sociedade [7].

A educação não pode prescindir de uma correta e plena concepção acerca da natureza e condição humana. Primeiramente, deve partir da consideração do homem em si mesmo, constituído de natureza composta de corpo e alma; deve, portanto, compreender inclusive as diversas faculdades interiores, sem confundi-las com o organismo físico, e tampouco negá-lo, de modo a poder intervir pedagogicamente de modo adequado.

O ser humano é criado perfeito, mas é um ser perfectível [8], isto é, necessita de ser formado para alcançar seu fim. Com essa consideração faz-se ver nitidamente o caráter também social da educação, começando pelo papel fundamental da família e da Igreja [9], mas também do mestre e da escola, bem como do contato com o patrimônio literário e cultural deixado pelas gerações passadas [10].

Todavia, esse mesmo ser humano a ser educado, deve ser considerado na condição em que se encontra, isto é, de queda [11], mas também de redenção [12]. Todo que se põe a trabalhar pela educação tão logo se dará conta de que “a educação de um menino é a triste revelação da decadência da humanidade” [13], pois este é inclinado para o mal e necessitado de ser formado no caminho da virtude. A Religião tem, portanto, um papel lapidar, considerados estas realidades, especialmente a de queda, pois se torna um princípio poderoso para a educação “dirigir uma natureza rebelde, combater inclinações ingratas, impor deveres difíceis e inspirar formosas virtudes nascentes" [14]. Tudo isso com o apoio da divina graça. Ora, é tudo que desconsidera a escola sem Deus.

O título desse artigo parte da obra de mesmo nome [15], cujo autor Mons. de Segur (Paris 1820-1871), embora tenha perdido por causa de uma doença a visão, todavia enxergou com profundidade o drama de banir a Religião da escola e suas consequências terríveis. A escola sem Deus é produto a crítica iluminista e revolucionária e sua ampla difusão, especialmente através dos clubes e da imprensa [16], particularmente entre a elite francesa, décadas antes do estouro da Revolução de 1789. Mons. de Segur escreve no ano de 1873, quase cem anos depois, certamente, já enxergando os resultados da catástrofe.

A revolução precedente eclodira com o brado protestante: “Cristo, sim! Igreja, não!” [17] e sedimentava a estrada para a próxima convulsão [18]. Ora, o que foi o brado da revolução sucessiva, senão, “Deus sim! Cristo não!” A “religião” oriunda da revolução francesa não é outra coisa senão uma religião natural e racionalista, ou seja, nega a possibilidade da Revelação Divina e, claro o Divino Revelador, Jesus Cristo e, por consequência nega que a Igreja seja depositária dessa mesma revelação. Logo, segundo essa concepção errônea, de que serve a educação religiosa? Mas, às pessoas, mesmo as mais simples, tal pergunta causaria horror assim à queima-roupas. Era necessário um linguajar mais sutil e que pudesse ser “engolido” lenta e suavemente [19]. Fala-se assim da escola leiga, obrigatória e gratuita.

Começou-se por advogar uma escola neutra em matéria de instrução religiosa. Ora, essa escola não existe, pois nessa matéria não há neutralidade. Tão logo a escola neutra tornar-se ia indiferente à religião e, sucessivamente, adversa a mesma [20]. Mons. de Segur começa por constatar o tempo que as crianças passam na escola [21] sem qualquer referência à religião, o que, de per si, já introjeta na cabecinha delas que a religião seja algo secundário e de menor importância, erro que vão acabar levando pela vida afora. E lembra que a formação nas verdades da fé demanda tempo e, inclusive o trabalho intelectual. Mas, como realizar tal instrução em uma hora de catecismo durante toda a semana? E, acrescentemos, mandando a Igreja para casa, quem ou o que assumirá o seu lugar na escola? Além disso, aquela “única” hora ainda pode competir com o descanso e o lazer da criança, se, por exemplo, a missa e a catequese acontecem no fim de semana, no domingo pela manhã. Se não há uma intervenção correta da família, a instrução e a vida religiosa além de um apêndice podem se passar até mesmo por um estorvo.

A escola leiga corrobora com tudo isso e muito mais. Antes, uma distinção deve ser feita: a palavra ‘leigo’ quer dizer ‘o que não é sacerdote’, de modo que uma mãe e um pai de família profundamente católicos são leigos. Porém, o uso ‘escola leiga’ não serve para outra coisa se não para negar a religião e, por consequência, a aversão ao que é próprio da religião. Mons. de Segur faz recordar que em 1789 dava-se a separação entre Igreja e Estado, e, dois anos após, a supressão da Igreja pelo Estado – qualquer livro idôneo de História apresenta esse fato.

A Religião, por sua vez, garante a felicidade neste mundo e no outro através de seus ensinamentos infalíveis. E isso gera uma série de efeitos formidáveis: inspira obediência e respeito, forma inteligência e coração e vela sobre a instrução, conforme o espírito cristão [22]. A Religião ensina a conhecer o verdadeiro bem, a amá-lo e praticá-lo. Ensina satisfatoriamente o que somos, porque existimos e para onde vamos. Tudo isso é negado a princípio e depois combatido por detrás da concepção da “escola leiga” [23]. Portanto, a escola leiga é a escola não cristã, sem religião e sem Deus.

Por detrás dos termos ‘obrigatória’ e ‘gratuita’ está, portanto, a conspiração em impor a escola sem Deus, isto é, que intenta construir um tipo de homem e de sociedade sem a Igreja, é a educação revolucionária na sua essência [24]. Os posteriores sistemas filosóficos e políticos vão fazer uso instrumentalizado da educação para alcançarem seus objetivos particulares. Diz Mons. de Segur: “Com suas grandes palavras de liberdade, de progresso, das luzes etc. os incrédulos são tiranos e verdadeiros déspotas” [25]. Fere-se a liberdade religiosa e o que se pretenderá inculcar não será a ciência e a instrução, mas ímpias doutrinas.

A alegação da ‘escola gratuita’ é a cereja do bolo! Uma falácia! Pois é paga pelo Estado, que por sua vez é sustentado pelos contribuintes, inclusive pelos católicos [26]. Assim sendo, os católicos acabam por contribuir para que os próprios filhos sejam “educados” sem Deus e, por vezes, como é comum se ver em nossos dias com frequência cada vez maior, se formem jovens inimigos da Religião. Ora, por detrás da escola “leiga, obrigatória e gratuita” esconde-se uma armadilha à liberdade dos pais e da Igreja em educar seus filhos.

E notem a tragédia! O objetivo da educação católica não é outro se não formar cristãos, homens de bem e bons cidadãos. A escola sem Deus é um instrumento pronto para formar incrédulos e revolucionários. Deixemos a palavra a Mons. de Segur: A escola sem Deus, “com abomináveis doutrinas, as quais penetrando pouco a pouco no espírito, fazem-no incrédulo, ímpio e rebelde; e chegando até o coração, lhe inspiram o gosto pelo mal, o ódio a Deus, o hábito do vício” [27].

Essa é a escola concebida e montada a partir do naturalismo pedagógico e, sucessivamente, da ingerência absoluta do Estado em matéria educativa, que é danosa, principalmente por tirar aos pais o desejo de educar os filhos na Religião e dos filhos, o direito de serem educados com base na finalidade última da vida sobre a terra que é alcançar a vida eterna.

Ora, escola sem Deus é uma escola, antes de tudo, sem Religião o que faz dela uma instituição sem fundamento profundo e perene, a mercê dos ventos das ideologias; sem uma causa verdadeiramente última; sem governo firme e estável; e, o que é pior, sem a graça, isto é, sem o auxílio sobrenatural, indispensável para a formação do homem novo e da sociedade nova. Pobres alunos, pobres pais, pobres professores, pobre sociedade.

A falta de um fundamento profundo e perene refere-se a verdade que, por excelência coincide com o próprio Deus. Não é outro se não o objetivo da educação católica se não dar a verdade como alimento ao espírito da criança [28]. A escola sem Deus fica à mercê de ideias e opiniões mirabolantes e às vezes contraditórias entre si e a verdade do educando e da educação. Vence quem tem o melhor palavreado ou grita mais forte, ou ainda que tem o poder de mando.

É a causa final que norteia o projeto pedagógico. E a própria concepção de causa final já diz que o homem foi criado com essa finalidade, disposição e desejo. Mas como necessita ser ajudado, principalmente nos anos iniciais, os objetivos da escola devem ir de encontro às mais profundas aspirações do homem. A escola sem Deus tolhe esta perspectiva sobrenatural e eterna.

Abaixados os horizontes pedagógicos [29], é só questão de tempo, até se comprovar que a escola se torna uma instituição sem governo firme e estável, porque trocam-se os Mandamentos Divinos, fundamentos da autêntica moral, por uma espécie de moral racional e por isso relativa. O ideal educativo será também afetado: será, no melhor dos casos, meramente científico e não filosófico ou espiritual; técnico-profissional com fins ao trabalho e a aquisição de uma profissão; e, no pior, ideológico, isto é, mera doutrinação político-partidária.

A pior consequência, porém, está no fato de ser uma educação desprovida da ação da graça. Pois o educando a ser instruído nas letras e nas ciências e educado nas virtudes e na sabedoria, encontra-se em condição de queda, inclinado para o mal, e não poderá erguer-se verdadeiramente sem o auxílio da graça divina. Há um duplo campo de ação para a escola: atualizar as potências da natureza, mas também elevá-las. E disso a escola sem Deus não é capaz tanto por ignorância da matéria quanto por incompetência, por tratar-se de um campo em que necessita incondicionalmente da contribuição da Igreja [30].


Referências

[1] Ver “Falsidades e danos do naturalismo pedagógico” em PIO XI. Divini Illius Magistri. Roma, 1929.

[2] DE SEGUR. A Escola sem Deus. São Paulo: Volta e Meia [Livre], 2018. Apêndice II. p. 66.

[3] Ibid. p. 67.

[4] Ver Livro III. Capítulo II: A Igreja, a Reforma e a Cultura Intelectual em FRANCA, Pe. Leonel. A Igreja, a Reforma e a Civilização. Campinas: Calvariae Editorial, 2018. Dá um bom panorama da ascendência teórica do pai da pedagogia moderna. É claro que ao naturalismo pedagógico atrela-se a doutrina liberal, que também essa versada sobre a escola, advogará o laicismo ou a chamada escola leiga.

[5] “Os alicerces mais antigos e mais fundos eram obra da Igreja, que, durante doze séculos, tinha trabalhado ali sozinha ou quase só” GAXOTE, Pierre. A Revolução Francesa. Porto: Tavares Martins, 1945. p. 7.

[6] Um caos doutrinário em que se agitam extravagâncias. CARDIM, Maria Ignez. Filosofia da Educação de São Tomás de Aquino. São Paulo: Odeon, 1935. p. 38. SIQUEIRA, Antônio Alves de. Filosofia da Educação. Petrópolis: Vozes, 1948. p. 49-56; 347s. REDDEN, John D. RYAN, Francis A. Filosofia da Educação. Rio de Janeiro: Agir, 1973. p. 357-373.

[7] LEÃO XIII. Aeterni Patris. Roma, 1879. Sobre a educação religiosa, alertava sobre os graves danos dos erros filosóficos: “Se o intelecto peca em qualquer coisa, facilmente falirá também a vontade; assim acontece que as opiniões errôneas, que tem sede no intelecto, influenciem nas ações humanas pervertendo-as. Ao contrário, se a mente dos homens será sã e apoiada sobre sólidos e verdadeiros princípios, então frutificará em larga soma de benefícios públicos e privados”.

[8] É célebre a analogia de SANTO TOMÁS DE AQUINO no seu De Magistro acerca dessa mútua relação ao dizer que “o médico na cura é o coadjutor da natureza” (a. 1. Solução). Em outras palavras: “A função do professor é como a do médico. Pode esse último tratar a ferida, mas a natureza há de curá-la” (CARDIM. op. cit. p. 14).

[9] Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Declaração Gravissimum Educationis, 1965. Art. 3.

[10] Cf. Ibid. Art. 5.

[11] “Em consequência do pecado original, o homem tem um intelecto reduzido para perceber a verdade, e uma vontade também limitada para procurar o bem, e a sua natureza mais inclinada para o mal. O pecado original não afetou a natureza da inteligência e vontade humanas, mas privou-as de especiais e poderosos recursos” (REDDEN et RYAN. op. cit. p. 15).

[12] “A doutrina sobre o pecado original – ligada à doutrina da Redenção por meio de Cristo – propicia um olhar de discernimento lúcido sobre a situação do homem e de sua situação no mundo”. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000. p. 114-116; CIC 402-409. Assim, PIO XI (op. cit.) começa, na segunda parte, por tratar o sujeito da educação sob o título “todo homem decaído, mas redimido”.

[13] De SEGUR. op. cit. p. 70.

[14] Ibid. p. 71.

[15] Aux pères et mères. L’École sans Dieu (1873).

[16] GAXOTE. op. cit. pp. 38-78.

[17] Remetemos à leitura do artigo de MARQUES, Daniel. Do protestantismo ao ateísmo e relativismo contemporâneo. ZENIT, 2012. Disponível em acessado em 28 de setembro de 2020. [Obs.: O site zenit.org não está mais disponível: outro link para acesso do artigo: https://cleofas.com.br/do-protestantismo-ao-ateismo-moderno-e-relativismo-contemporaneo-uma-leitura-dos-acontecimentos-historicos/]

[18] Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plínio. Revolução e Contra-Revolução. São Paulo: IPCO, 2009. p. 22-25.

[19] Cada vez mais conscientes dessa estratégia, os agentes da nova ordem mundial, que entendem não mais apenas uma escola sem Deus, mas a sociedade e o homem sem Deus, se utilizam da “colonização ideológica” e “batalha semântica”, inclusive ao interno da Igreja, e denunciada amplamente por SANAHUJA, Mons. Juan Claudio. Poder Global e Religião Universal: “Mudar o significado das palavras é uma artimanha para que a reengenharia social seja aceita por todos sem protestos”. (Campinas: Ecclesiae, 2012. p. 27.38). Aconselha-se recorrer às vozes “Manipulação da linguagem” e “Manipulação verbal” no Lexikón do Pontifício Conselho para a Família.

[20] “Daqui resulta precisamente que a escola chamada neutra ou laica, donde é excluída a religião, é contrária aos princípios fundamentais da educação. De resto uma tal escola é praticamente impossível, porque de fato torna-se irreligiosa. Não ocorre repetir aqui quanto acerca deste assunto disseram os Nossos Predecessores, nomeadamente Pio IX e Leão XIII, em cujos tempos começou particularmente a dominar o laicismo na escola pública. Nós renovamos e confirmamos as suas declarações” (Pio XI. op.cit.). Com a larga difusão das escolas não católicas, o Concílio Vaticano II reiterou o direito e o dever dos pais e da Igreja em educar cristãmente seus filhos, assim como o dever do Estado de não impedi-lo (VATICANO II. op. cit., Art. 7).

[21] De Segur. op. cit. p. 7-9.

[22] Ibid. p. 12.

[23] Há uma importante distinção entre laicismo e laicidade. A laicidade trata da distinção entre o que é de ordem política e o que é de ordem religiosa em suas devidas competências, no respeito, reconhecimento e colaboração mútua. Essa separação não se faz na consciência do cristão leigo que é sempre o mesmo, trata-se do dever moral de coerência. O laicismo é intolerante, hostiliza qualquer forma de relevância política e cultural da fé e procura desqualificar o empenho social e político dos cristãos, com uma série de consequências, algumas das quais procuramos elencar do pondo de vista da educação. A presente distinção encontra-se no COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA (DSI), Art. 571-572.

[24] Note-se que o CONCÍLIO VATICANO II, op. cit., reconhece o direito universal à educação, que deve corresponder ao seu fim último, e embora reconheça o progresso das ciências relativas à educação, reafirma o dever dos fiéis e dos pastores de disporem às jovens gerações a educação cristã de modo que alcancem esse fim (Art. 1-2).

[25] De Segur. op. cit. p. 33.

[26] Ibid. p. 34. Já temos um artigo que tratou sobre esse assunto: “Existe educação gratuita?” na Revista do primeiro trimestre de 2019. E vimos que alguém sempre paga pela educação, no caso da escola católica inclusive, pagam os pais e quando não os fiéis.

[27] Ibid. p. 42.

[28] Ibid. p. 19.

[29] Pio XI, op. cit., já em 1929 lamentava tal rebaixamento a começar pelas próprias famílias: “Queremos, porém, chamar dum modo especial a vossa atenção, Veneráveis Irmãos e amados Filhos, sobre a lastimável decadência hodierna da educação familiar. Para os ofícios e profissões da vida temporal e terrena, com certeza de menor importância, fazem-se longos estudos e uma cuidadosa preparação, quando, para o ofício e dever fundamental da educação dos filhos, estão hoje pouco ou nada preparados muitos pais demasiadamente absorvidos pelos cuidados temporais”.

[30] “Por fim, a Igreja está plenamente convencida de que a Escola Católica, ao oferecer o seu projeto educativo aos homens do nosso tempo, atua uma sua função eclesial, insubstituível e urgente. Na Escola Católica, com efeito, a Igreja participa no diálogo cultural com uma sua contribuição original e propulsora do verdadeiro progresso na formação integral do homem. A ausência da Escola Católica constituiria uma perda imensa para a civilização, para o homem e para os seus destinos naturais e sobrenaturais” (SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. A Escola Católica. Roma, 1977. Art. 14).

***

Texto de autoria do Padre Alexandre Alessio e retirado do link. Sobre o autor: Pe. Alexandre Alessio, CR - Religioso da Congregação da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo (CR). Concluiu os estudos de Filosofia no Instituto São Basílio Magno, Curitiba - PR, sua formação teológica ocorreu em Roma pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente é pároco da Paróquia Imaculada Conceição em Franco da Rocha, Diocese de Bragança Paulista - SP, local onde iniciou o Projeto de Evangelização Jesus ao Centro, sustentado pela Associação Bento XVI, da qual é o fundador.


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Sobre as artes e as disciplinas das letras liberais - Cassiodoro

Trechos retirado do livro Institutiones: Introdução às letras divinas e seculares, Cassiodoro, também publicado pelo Instituto Hugo de São Vitor na Coleção de Artes Liberais Vol. 1: Trivium e Quadrivium.

Por Flávio Magno Aurélio Cassiodoro Senador

PREFÁCIO

O livro anterior, acabado graças ao Deus poderoso, contém o ensinamento sobre as leituras divinas. Ele compreende trinta e três títulos, número que se comprova acomodado à idade do Senhor quando assegurou a vida eterna ao mundo tomado de pecados e quando premiou os crentes com bens infinitos. Agora, com o presente livro, é o momento de desenvolver outros sete títulos que tratam das leituras profanas. Mas este número comporta a existência do universo em sua totalidade, pois retrocede continuamente sobre si mesmo pelas semanas que sucedem umas às outras.

II.

É preciso saber isto porque frequentemente tudo o que, contínua e perpetuamente, a Sagrada Escritura quer que seja compreendido está contido neste número. Tal como disse Davi: Sete vezes ao dia, eu Te louvei (Salmos 118, 164), e em outra parte declara: Bendirei o Senhor Deus em todo o tempo, Seu louvor estará sempre em minha boca. (Sl. 33, 2); e Salomão: A Sabedoria construiu a sua casa sobre sete colunas (Pr. 9, 1). No Êxodo, também disse o Senhor a Moisés: farás sete lâmpadas, as quais se acenderão para iluminar diante dele (Ex. 25, 37). O Apocalipse menciona também este número em diversos momentos. Contudo, este número nos leva à eternidade, que não pode desaparecer; por isso é mencionado sempre onde se manifesta o tempo perpétuo.

III.

Por isso a aritmética adquiriu grande renome, já que Deus, artífice de todas as coisas, estabeleceu tudo com número, peso e medida. Salomão diz: dispusestes tudo com medida, quantidade e peso (Sb. 11, 20); reconhece-se a criação de Deus feita em razão do número, quando Ele mesmo diz no Evangelho: os cabelos da vossa cabeça estão todos contados (Mt. 10, 30). A criação de Deus está fixada com medida, como Ele mesmo atesta no Evangelho: E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura? (Mt. 6, 27). Também o profeta Isaías disse: Quem mediu as águas na concha da mão, ou com o palmo definiu os limites dos céus? (Is. 40, 12). Mais uma vez se reconhece a criação de Deus feita em razão do peso, quando diz Salomão nos Provérbios: enquanto determinou as fronteiras do mar para que as águas não ultrapassassem seu ordenamento, quando assinalou as balizas dos alicerces da terra, eu estava com Ele (Pr. 8, 28). Sendo assim, as obras singulares e magníficas de Deus foram concluídas com precisão e bem determinadas, para que, ao passo que temos fé de que Ele criou todas as coisas, também possamos aprender, até certo ponto, como elas foram criadas.

IV.

Sendo assim, podemos concluir que as obras más do diabo não estão sujeitas nem ao peso, nem à medida, nem ao número, porque tudo que leva iniquidade é sempre contrário à retidão. Como nos lembra o Salmo 13, que diz: Contrição e infelicidade nos caminhos daqueles, e não reconheceram o caminho da paz; não há temor de Deus nos olhos deles (Sl. 13, 3). Isaías também diz: Abandonaram o Deus dos Exércitos totalmente e percorreram caminhos equivocados (Is. 5, 24). Em verdade, Deus é sumamente admirável e sábio, pois diferenciou todas suas criaturas com moderação singular para que uma confusão mortal não se apoderasse delas. Sobre isso, o Padre Agostinho em seu livro sobre o Gênesis comentou minuciosamente palavra por palavra.

V.

Mas tratemos já dos fundamentos do segundo volume bem atentamente. O nosso intento é escrever brevemente sobre a gramática ou sobre a retórica e sobre as outras disciplinas, das quais precisamos conhecer os princípios. Antes de tudo, é preciso falar da Gramática que evidentemente é a origem e o fundamento das letras liberais.

VI.

“Liber” vem de “libro”, ou seja, do corte de árvore cortada e “liberada”, sobre a qual, antes da invenção do papel, os antigos escreviam suas canções. Precisamos saber também, como diz Varrão, que os fundamentos de todas as artes passaram a existir por causa de alguma utilidade.

VII.

Diz-se, porém, “arte” porque nos limita e encerra com suas regras. Outros dizem que este nome foi criado pelos gregos, ἀπό τῆς ἀρεῆς, isto é, pelo talento com que os homens eloquentes são chamados ao conhecimento de cada coisa.

VIII.

Em segundo lugar, o livro sobre a Retórica, que por seu brilho e riqueza de sua eloqüência é considerada tão necessária e honrável em questões civis.

IX.

Em terceiro lugar, sobre a Lógica, que trata da Dialética, que, como dizem os mestres seculares, separa as verdades das falsidades através de disputas muito sutis e breves.

X.

Em quarto lugar a Matemática, que abarca quatro disciplinas: Aritmética, Geometria, Música e Astronomia. Em latim, podemos chamar ciência à Matemática. Mas mesmo que possamos dar este nome a qualquer ensinamento que instrua, este exige uma denominação comum própria para si por causa de sua superioridade. Sabemos que entre os gregos é considerado o poeta Homero e entre os latinos Virgílio; os gregos consideram Demóstenes como orador, e os latinos, Cícero, mesmo que se saiba que há muitos outros poetas em ambas as línguas.

XI.

Mas a Matemática é a ciência que considera a quantidade abstrata. Chamamos quantidade abstrata àquela que tratamos unicamente com a inteligência e o raciocínio ao separarmos (a substância) da matéria e mesmo dos acidentes. Com isso, a ordem está assegurada.

XII.

Agora, com ajuda de Deus, cumprirei o que prometi, sabendo cada uma de suas divisões e definições. De certo modo, esta é uma via dupla de aprendizado, pois, primeiro, a definição linear ilustra sob um aspecto, e depois, com atenção, penetra no entendimento. Não deixarei de citar autores tanto gregos como latinos que tenham esclarecido o que exponho para que aqueles que se sentirem atraídos por meus resumos tenham vontade de lê-los e saborear as palavras de seus antepassados mais ilustres.


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Nicolau de Oresme, precursor de Copérnico

Nicolau de Oresme (1400-1420)
Em pleno medievo: Nicolau de Oresme, precursor de Copérnico

 "A criação de Deus é a mais parecida àquela
de um homem que constrói um relógio e 
lhe permite funcionar continuando
o seu movimento autonomamente".
-- Nicolau de Oresme

Há um século, o historiador e filósofo francês Pierre Duhem [1] começou a esclarecer as raízes cristãs do pensamento científico moderno e, desde então, inúmeras publicação aprofundaram esses  temas. De modo particular, a estreita ligação entre a tradução das obras científicas e filosóficas greco-árabes e o desenvolvimento da ciência com a conhecemos hoje. Uma destas obras, As origens medievais da ciência moderna, [2] escrita por Edward Grant, docente de história e filosofia das ciências na Indiana University, é inteiramente dedicada a reconhecer a contribuição da Europa medieval na fundação da ciência e na formação dos cientistas modernos, de Galileu em diante. Uma contribuição construídas, de fato, sobre as traduções dos textos científicos do mundo grego e árabes, com o nascimento da universidade a reelaboração do pensamento aristotélico. Muitos estudiosos concordam com esta afirmação [3]. Transcorrendo o índice analítico desse volume, embarramos com numerosas referências ao texto de um nome pouco conhecido para a maioria: Nicolau de Oresme (1323 - 1382).

Nicolau Oresme é apresentado como um dos pilares fundadores do nascente católico da ciência, precisamente por suas traduções de textos antigos, em especial os de Aristóteles, e também por seus comentários refinados. É considerado uma personagem de importância capital na passagem da ciência medieval para a moderna [4] pela riqueza de suas ideias, que contêm muitas novidades importantes [5]. A época em que vive é aquela que os historiadores definem como escolástica tardia e que é caracterizada pela busca da consistência na discussão filosófica. Consequência dessa busca é o fermento suscitado exatamente na pesquisa científica [6]; a esse propósito, além de Oresme, é preciso recordar de João Buridam (1290 - 1358) e Alberto da Saxônia (1316 - 1390). Foram justamente os escolásticos do século XIV, na sua originalidade, que prepararam o caminho par o advento da ciência europeia do Renascimento a partir de Copérnico [7].

Oresmo nasceu em Allemagne, antigo nome de Fleury-sur-Orne, vilarejo francês da Baixa Normandia, que devia seu nome a uma guarnição de soldados alemães estabelecida pelos romanos entre os séculos II e IV. Muito pouco se conhece de sua juventude, a não ser que frequentou a Universidade de Paris [8], e foi nomeado grão-mestre no Collège de Navarre em 1355, depois de ter obtido o doutorado em teologia [9]

Durante sua permanência no Collège publicou obras sobre astrologia, teologia e matemática, escritas em latim, a língua em vigor nos colégios da sua época [10]. Também publicou um tratado sobre moedas, que despertou a atenção de Delfim de França, o futuro Carlos V, chamado o Sábio, que muito mais interessado que o pai, João II, chamado o Bom, nas reflexões de caráter moral e racional. Esse fato abriu as portas da corte para Oresme. Em 1362, deixou o colégio e se estabeleceu em Rouen como cônego da catedral, tornando-se decano do capítulo dois anos depois [11]. Neste período, Oresme começa a publicar as traduções comentadas dos livros de Aristóteles e algumas obras em francês.

Em 28 de janeiro, é sagrado bispo de Lisieux (33º bispo e 19º Conde de Lisieux) [12] numa cerimônia que contou com a presença do rei que presenteou com dois anéis de ouro [13]. Tomou posse do bispado em julho do mesmo ano e ali permaneceu até a morte, em 11 de julho de 1382. Seus restos mortais repousaram na catedral, próximos da porta à esquerda do coro [14], até a metade do século XVII, quando o bispo de Leonor II de Martignon, além de fazer substituir os antigos vitrais que eram muitos escuros, também removeu todos os túmulos que ficavam no interior da nave (1677) [15]; e assim se perderam os vestígios de sua sepultura e também de sua memória.

Oresme traduziu a Ética, a Política e a Economia de Aristóteles e também as obras de Francisco Petrarca, de quem havia se tornado amigo [16]. O uso do vernáculo representa sua característica mais original, se consideramos que naquele período todos os textos científicos eram ainda escritos em latim. Também compôs um tratado sobre a Imaculada Conceição de Maria, cento e quinze sermões, um tratado contra as ordem mendicantes [17], e três contra a astrologia, elogiados por Pico della Mirandola [18], nos quais polemiza contra o determinismo astral.

O rei da França, João II, que o consultava frequentemente sobre os negócios mais espinhosos e seguia os seus conselhos, o enviou a Avinhão (1363), onde Oresme pronunciou, diante do Papa Urbano V, um discurso eloquente e ousado contra a desordem e a falta de regras na cúria romana. Por fim, sabemos que Carlos V encomendou-lhe uma tradução da Bíblia em francês para prevenir as distorções que os valdenses e outros heréticos faziam dos textos sagrados.

Mas a primeira passagem fundamental para o nascimento da ciência nos séculos XII e XIII é, como dissemos, a tradução em latim das obras científicas e de filosofia natural gregas e árabes [19]. Oresme foi um dos primeiros a seguir esse caminho que levou ao nascimento da universidade e do pensamento científico medieval. Foram as traduções, em particular as de Aristóteles, que permitiram a institucionalização da ciência e da filosofia natural, além de fornecerem um currículo de estudos pronto para as novas universidades da época [20].

Assim, a revolução científica acaba se consolidando graças ao aparecimento dos filósofos teológicos-naturais que aceitaram confrontar-se com o pensamento pagão e estudaram o mundo físico sem encontrar obstáculos na Teologia [21]. A ciência e a matemática, especificamente, foram muito beneficiadas, e é precisamente nelas que Oresme aplicou sua grande genialidade. No seu tratado Sobre a comensurabilidade e incomensurabilidade dos movimentos celestes, faz-nos compreender como a aritmética é a ciência, nascida antes da geometria, que permite medir o movimento das esferas celestes [22].

Entre as suas obras no campo da ciências naturais, temos que citar Parva naturalia, o comentário à Física (perdido), Meteorica, De anima, De caelo et mundo, Tratado da Esfera e De uniformitate et difformitate intensionum [23].

No tratado De uniformitate et difformitate intensionum, expõe a mais conhecida prova geométrica do teorema da velocidade média, "talvez a mais extraordinária contribuição do Medievo à história da física matemática" (chamada Regra de Oresme) [24]. A prova geométrica de Oresme faz rapidamente um giro pela Europa e é possível que Galileu Galilei também a tenha conhecido [25]. No Tratado se encontra a representação gráfica das variações da velocidade do movimento ou da intensidade de uma quantidade (por exemplo, o calor) com linhas verticais postas sobre a reta horizontal à distância, que corresponde a intervalos temporais determinados, Deste modo, um retângulo representa o movimento uniforme e um triângulo, o movimento uniformemente acelerado. Esse método terá grande difusão do século XIV ao XVI, e contribuirá para preparar os esquemas matemáticos da nova física [26].

Oresme escreveu um comentário à Física de Aristóteles, pondo em discussão algumas de suas conclusões e fornecendo demonstrações alternativas às leis aristotélicas do movimento, recorrendo a um uso correto da razão. Isso o leva, sobretudo, a repelir os argumentos aristotélicos a favor da eternidade do mundo [27].

Para Oresme, as quaestiones, um gênero literário que se tornou sinônimo do método escolástico medieval, não se prestam para analisar profundamente os vários aspectos do intelecto humano [28], por isso, escolhe a forma de "tratado".

Mas o âmbito no qual o contributo do Bispo de Lisieux resultará clamoroso para a época é aquele da rotação terrestre e da posição das esferas celestes. Entre 1370 e 1373, Carlos V o convida a traduzir do latim para o francês as obras de Aristóteles e, dentre elas, o De Caelo, que recebe um grande número de comentários. Assim nasce O tratado do céu e do mundo (1377) [29], obra que lhe rendeu a nomeação a bispo.

A importância desse volume reside no fato de ser a primeira vez que uma obra científica aparecia em francês [30]. Igualmente fundamentais são as críticas dirigidas ao filósofo grego. A primeira delas deriva do princípio da inércia para explicar o movimento, que não era conhecido a Aristóteles. Então, Oresme acolhe, com algumas modificações, a teoria do impetus do seu mestre Buridan para explicar o movimento local, afirmando que um corpo no curso de seu movimento adquire um impetus [31]. Uma outra crítica diz respeito ao ao movimento dos astros que era considerado eterno. Oresme contesta, seguindo a outro bispo, Roberto Grosseteste, e propõe que os astro têm um movimento inicial.

Porém, a ideia mais revolucionária, que faz de Oresme um verdadeiro precursor das teorias copernicanas, é a hipótese do movimento rotatório da Terra em torno do seu eixo.

A esfera celeste, para realizar um rotação completa em torno do Sol em 24 horas, deveria ter uma velocidade elevadíssima, coisa que não é crível. Portanto, é mais razoável pensar que é a própria Terra que está a girar [32]. Oresme enfrenta também a interpretação do episódio da Bíblia com a detenção do Sol por parte de Josué, dizendo que a hipótese do movimento da Terra o tornaria mais razoável, se tomado em forma literal. É o que dirão mais tarde os copernicanos Galileu e também o Padre Paolo Antonio Foscarini [33]. Na ausência de demonstrações irrefutáveis, termina por aceitar as posições tradicionais mais próximas ao texto da Bíblia.

Oresme também deu uma grande contribuição à teoria monetária [34], com um tratado sobre a origem do dinheiro, o De mutationibus monetarum [35], imediatamente traduzido em francês e definido um marco histórico na ciência do dinheiro. Foi utilizado por Carlos V para restaurar a segurança nos negócios [36]. Ainda antecipou o princípio conhecido como Lei de Gresham, segundo a qual, havendo duas moedas na mesma economia, aquela que fosse superestimada debilitaria a menos estimada. Assim, Oresme compreendeu e descreveu quais danos acabam decorrendo da inflação [37].

Como teólogo escreve o tratado De communicatione idiomatum, no qual investiga as relações entre os atributo (idiomata) da natureza divina e os da natureza humana de Cristo [38].

Todas as obras de Oresme foram publicadas no início do século XVI, exceto o Tratado do céu e do mundo, que fora traduzido e publicado somente no século XX [39].

Nicolau Oresme tornou-se nome da Regra que citemos no início do capítulo, e também de uma cratera lunar aberta pelo impacto de um asteroide. É justo reconhecimento de um grande cientista e sua obra. 


Notas:

[1] S. Jaki, Scientist and Catholic: Pierre Duhem, Christendom Press, Front Royal, 1991.

[2] E. Grant, The Foundations of Modern Science in the Middle Ages -- Their Religious, Institutional and Intellectual Contexts, Cambridge University Press, 1996.

[3] S. Jaki, Patterns or Principles and Other Essays, Interconllegiate Studies Institute, Bryn Mawr, 1995, citado em Thomas E. Woods, Come la Chiesa cattolica ha costruito la civiltà occidentale, Cantagalli, Siena, 2007.

[4] Alain Costé, L'oeuvre scientifique de Nicole Oresme, "Bullettin de la société Historique de Lisieux", fasc. 37, 1997.

[5] Johan Huizinga, Autunno del Medioevo, Sansoni, Florença, 1987, p. 450.

[6] Cornelio Fabro, Introduzione a san Tommaso, Ares. Milão, 1983, pp. 235, 246.

[7] Christopher Dawson, La formazione della Cristianità occidentale, D'Ettoris Editori, Crotone, 2009, p. 284.

[8] Nicole Oresme, Traictie de la première invention des monnoies, publicado e anotado por M. L. Wolowsky, Paris, 1864 (ver Introdução).

[9] Fundado em 1304 por Joana, condessa de Navarra e mulher de Filipe, o Belo. Estes colégios que nasceram no século XII, eram destinados a hospedar somente estudantes necessitados que queriam estudar gramática, lógica ou teologia, bem decididos a trabalhos duros e a submeter-se as regras de vida particularmente austeras. Um famoso dito dizia: "A ciência cresce mais na pobreza que na riqueza". Em 1500, o seu número chegou, só em Paris, a 68 (Leo Moulin, La vita degli studenti nel Medioevo, Jaca Book, Milão, 1992, pp. 20-21).

[10] Oresme, op. cit.

[11] Id.

[12] Richard Séguin, Histoire des évéques-conte de Lisieux, 1832, reproduzida em Oresme, op. cit., p. XXX

[13] Id.

[14] Id.

[15] Ibid., p. XIX.

[16] Huizinga, op. cit., p. 450.

[17] A controvérsia sobre as ordem mendicantes (dominicanos e franciscanos) na Universidade de Paris remonta à metade do século XIII. Os mestre seculares não toleravam a sua presença porque a sua dedicação e superioridade doutrinal os colocava na sombra. (J. A. Weisheeipl, Tommaso d'Aquino: Vita, pensiero, opere. Jaca Book, Milão, 1988, pp. 86, 87). Com o tempo foram aceitos, mas com reservas, que se manifestaram também nos tempos de Oresme.

[18] Oresme, op. cit.

[19] Edward Grant, The Foundations od Modern Science in the Middle Ages. Citada a edição italiana: Le origini medievali della scienza moderna, Einaudi, Torino, 2001, p. 257.

[20] Ibid., p. 258.

[21] Ibid., p. 262

[22] Ibid., pp. 71, 72.

[23] M. De Wulf, Storia della filosofia medievale, Libreria Editrice Fiorentina, Florença, 1948, vol. III, p. 129.

[24] Grant, op. cit., p. 153.

[25] Cf. Ibid., p. 156.

[26] Cf. De Wulf, op. cit., p. 130; Universidade de Sena, manual de filosofia on-line, no verbete "Nicola Oresme" (www.unisi.it).

[27] Cf. Grant, op. cit., pp.246-247, 300.

[28] Cf. Ibid., p. 197.

[29] Costé, op. cit.

[30] Ibid.

[31] Cf. De Wulf, op. cit., p. 130.

[32] Grant, op. cit., p. 173.

[33] Frei Carmelita e cientista (1565 - 1616).

[34] Woods, op. cit.

[35] Oresme, op. cit.

[36] P. Larousse, Grand dictionnaire universel du XIX siècle, vol. XI.

[37] Sir Thomas Gresham, conselheiro da rainha Isabel I da Inglaterra, em 1558 afirmou que "a moeda má expulsa a moeda boa", referindo-se a uma iniciativa do governo de manter o valor da moeda, diminuindo o seu respectivo peso. Segundo Gresham, o povo guardaria as moedas antigas por perceberem que elas teriam maior valor, causando inflação -- NE.

[38] De Wulf, op. cit., p. 131.

[39] Le livre du ciel et du monde, editado por A. D. Menut e A. Denomy. Madison, Milwaukee and London. The University of Wisconsin, 1968.

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Texto retirado de AGNOLI, Francesco; BARTELLONI, Andrea. Cientistas de batina: de Copérnico, pai do heliocentrismo, a Lemaìtre, pai do Big Bang. 1 ed. Ecclesiae, 2018.


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