Postagem em destaque

COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae

Primeiramente quero agradecer bastante todo o apoio e todos que acessaram ao Summa Mathematicae . Já são mais de 100 textos divulgados por a...

Mais vistadas

Filosofia e Educação Clássica

Universidade: Estudantes de medicina. Artista Desconhecido.
Bibliothèque Nationale, Paris, França.

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.

Tempo de leitura: 37 minutos.

Apresentamos o texto Das Artes Liberais à Filosofia nas Universidades Medievais [*] de Scott Randall Paine [**], publicado na Revista VERITAS. Porto Alegre v.42 nº 3. Setembro 1997, p. 569-578, disponível no LINK.

SÍNTESE - O presente ensaio não se entende como uma pesquisa crítico-histórica das artes liberais e do seu papel nas universidades medievais, mas antes como uma reflexão filosófica sobre a lógica intrínseca destas artes e a sua interação com a filosofia aristotélica.

ABSTRACT - The present essay isn't a critical/historical investigation about the liberal arts and their role in the universities of the Middle Ages, but rather a philosophícal reflectíon on the intrínsic logic of the quoted arts and their ínteraction with Aristotle's philosophy.

No artigo que se segue, vão ser empregados os recursos expressivos da Língua Portuguesa, vai ser apresentada e defendida a lógica dum argumento - ou pelo menos, uma hipótese de interpretação que exige uma articulação racional - e vão ser utilizados certos expedientes (ilustrações, apelos aos tópicos atuais, etc.) para agilizar a compreensão, da parte dos leitores, dos assuntos tratados. Costumamos agrupar esses três círculos de tarefas sob a tríplice designação de "gramática", "lógica" e "retórica".

Preparando este artigo, tive que contar as páginas, para ficar dentro dos parâmetros de uma revista. Tive mesmo que levar em conta o tamanho da superfície das páginas, para estimar o quanto eu poderia ampliar o meu desenvolvimento dos temas tratados. A publicação desta revista está prevista para um certo mês do ano, o mês mesmo sendo determinado pela posição do sol na abóbada celeste. Finalmente, a colocação do meu artigo aqui num lugar determinado da revista obedecia - podemos supor - ao desejo da redação de manter um certo ritmo entre as diversas contribuições, criando, enquanto possível, um diálogo coerente (uma certa melodia, se quiser, unificada por diversos temas e tons respeitantes à filosofia medieval) e assim estabelecer uma harmonia no conjunto deste número da revista.

Então, contar paginas é fazer aritmética; estimar dimensões espaciais é fazer geometria; a determinação dos meses durante o ano exige astronomia; e unificar os movimentos de uma multidão de coisas - de quaisquer coisas - segundo um certo ritmo e visando uma certa harmonia, é um tipo de música. Como no emprego das palavras para comunicar as minhas idéias, eu aproveitei espontaneamente a Gramática, a Lógica e a Retórica - na mesma forma, e com a mesma espontaneidade, para situar as minhas letras numa página, e para relacionarmos o meu artigo aos demais desta revista, aproveitamos a Aritmética, a Geometria, a Astronomia e a Música.

Ora, estas sete operações básicas de nossa vida cotidiana - cujos traços se poderia identificar em qualquer atividade humana - constituem a matéria estudada nas sete artes que formaram o programa de estudos pré-teológicos (e também pré-jurídicos e pré-médicos) durante a maior parte da Idade Média. Essas artes foram chamadas de artes liberais (artes liberales) por duas razões inter-relacionadas: primeiro, por serem as artes características dos homens livres, ou seja, dos homens relativamente libertados dos esforços e do investimento de tempo, requeridos pelo trabalho manual e as suas artes correspondentes, as artes servis (artes serviles); e, em segundo lugar, por serem as artes que desenvolvem e aprofundam os atos mais livres e nobres do espírito humano, aqueles atos que se desempenham, não para alcançar qualquer outro objetivo, mas por causa do valor e da excelência do ato mesmo.

O meu propósito neste artigo será de oferecer só uma primeiríssima abordagem das artes liberais e do seu espírito - se eu puder exprimir-me assim - para ajudar-nos a entender como a Idade Média encarou essas artes e o seu papel na educação. Queremos especialmente perguntar como este papel mudou em vista do surgimento da filosofia aristotélica integral nos séculos XII e XIII. Em que maneira e com que alcance inseriu-se esta problemática dentro da tradição intelectual do Ocidente, mesmo a despeito das múltiplas e insistentes reviravoltas operadas no Renascimento, na Ciência Nova do século XVII, na Ilustração, em relação ao patrimônio medieval?

1 - As artes liberais

Falando dum modo geral, podemos afirmar que o homem medieval - seja do tempo patrístico (marcado pelas primeiras tentativas de interpretação racional da revelação cristã), seja do tempo de transição entre a era carolíngea e os princípios do século XII (marcado mais pela absorção e transmissão do patrimônio dos gregos e dos Padres cristãos), seja da Alta Escolástica e os seus panoramas intelectuais quase ilimitados - o homem medieval era alguém a quem se tinha passado uma herança imensa, e em muitos aspectos, desordenada e desconhecida. As tribos germânicas que desceram no sul da Europa depois da queda do Império Romano descobriram ali um tesouro cultural que, na sua profundeza e na sua envergadura, ultrapassou, e até intimidou, a sua própria herança.

A filosofia e a arte dos gregos, mesmo imperfeitamente conhecidas, e o Evangelho e a obra teológica dos Padres da Igreja constituíram um conjunto de manuscritos e de tradições que, antes de mais nada, necessitaram organização, classificação e, com o tempo, com cada vez mais consciência dos impressionantes novos horizontes dessas obras, comentário. A caraterística, e muitas vezes ridicularizada tendência "sistematizadora" dos medievais, é devida em grande parte a isto. Ora, uma das classificações mais bem sucedidas e influentes era a das sete artes liberais.

Temos que ver este pequeno esquema de sete artes como a cristalização duma doutrina pedagógica remontando pelo menos até Platão [1]. Platão, mesmo sendo - como ele mesmo insistiu - também um herdeiro duma tradição prévia duma envergadura intelectual (atribuída por ele aos palaioí, os "anciãos'' [2], e por Aristóteles aos pampalaioi [3]), podemos supor que qualquer forma destas artes existia desde que o homem começou a articular a sua busca do saber numa maneira racional. Como constatamos no início, as sete atividades que essas artes pretendem dirigir pertencem à nossa vida humana duma maneira inalienável.

Os primeiros autores medievais que davam forma e uma certa interpretação a estas artes eram os chamados "compiladores'', começando com Marciano Capela (séc. V) e sua De nuptlis Mercurii et Philologiae; e Santo Agostinho e sua De doctrina christiana; depois, Cassiodoro (VI) e a sua De artibus ac disciplinis liberalium litterarum e, na mesma época, as diversas obras individuais dedicadas a estas artes de Boécio (VI); finalmente, apareceu aquela "Encylopedia Brittanica" da Idade Média, as Etymologiae, de Santo Isidoro de Sevilha.

Esta classificação e resumo duma tradição intelectual já existente presenciamos nesses autores numa maneira altamente pormenorizada, cada arte tendo um eminente auctor da Antigüidade como auctoritas. As fontes da Gramática são Donato (séc. IV) e Prisciano (VI); da Dialética é sobre tudo Aristóteles (nos diversos graus de familiarização com o seu Órganon ao longo dos séculos medievais); da Retórica são Cícero (séc. I a.C.) e Quintilião (séc. I d.C). Nas artes matemáticas, foi a Nicômaco de Gerasa (fins do séc. I) que os aritméticos olhavam; Euclides (fl. 300 a C.) ficou como o mestre incontestado da Geometria; e Tolomeo (séc. II) era o mesmo na Astronomia. Um clássico na arte de Música não existia na mesma forma como nas outras artes (o nome de Pitágoras era o mais citado, mas existem pouquíssimos textos remontando a ele mesmo, o texto sobre a música de Boécio sendo usado como o texto de preferência).

Assim achamos um sistema de artes que obedecia a uma certa lógica interna na sua transmissão de uma herança antiga. A numeração não era sempre a mesma e diversas artes não constantes em nossa lista foram incluídas por alguns, como, a título de exemplo, a História e a Arquitetura. Mas a correlação bíblica, introduzida por Cassiodoro entre as sete artes e um verso do livro dos Provérbios, ("A Sabedoria edificou sua casa, talhou sete colunas" Pv.9:1), contribuiu para consagrar o setenário como número padrão, convidando comparações ulteriores com os sete Arcanjos, os sete planetas (os cinco planetas visíveis, mais o Sol e a Lua, esses últimos considerados "planetas" segundo o sentido originário no grego: planes = vagabundo, o Sol e a Lua "vagabundeando" , juntamente com Mercúrio, Vênus, Marte, Saturno e Júpiter, contra o pano de fundo dos astros fixos), e as sete virtudes (as três teologais e as quatro morais). Mas eu prefiro, neste contexto, não me apoiar em qualquer vindicação bíblica ou teológica e sim examinar a lógica intrínseca das três artes triviais e das quatro artes quadriviais na sua própria estrutura.

Como já transpareceu nas ligações das sete artes com a nossa experiência comum, elas comportam evidentemente uma divisão em dois grupos: as três artes da linguagem e as quatro artes matemáticas. Comparações com a conhecida divisão das "duas culturas" de C.P. Snow, a arte e a literatura dum lado, e a ciência e a técnica no outro, não seriam totalmente erradas, mas a mente medieval não estava encarando essas coisas segundo os critérios nem de uma cientificidade moderna quanto à Matemática, nem de uma crítica literária moderna quanto às Letras. A divisão derivou mais de uma experiência humana tão simples quanto as percepções pelas quais distinguimos espontaneamente entre qualidade e quantidade, entre "assim" e "quanto", entre um grande homem e um homem grande.

O intelectual medieval entendeu todas as sete artes como justamente artes-não ciências, nem no sentido aristotélico, nem no sentido newtoniano, mas artes. Uma arte é, nesta perspectiva, a recta ratio factibilium, ou seja, uma racionalidade certa, metódica, quanto às coisas que ficam por produzir.

A única diferença entre as artes servis, ou mecânicas, e as liberais, era a natureza do produto que as artes criam: nas artes servis, o produto fica um objeto material (uma cadeira, uma casa, uma boa colheita, etc.), ao passo que nas artes liberais, a "obra" realizada era uma realidade imaterial, ou melhor dizendo, uma realidade lingüística: na Gramática, uma construção sintática ou morfológica; na Lógica, um silogismo; na Retórica, um discurso adaptado às necessidades e situação dos ouvintes, duma certa platéia; na Aritmética, um cálculo; na Geometria, uma medição das dimensões espaciais; na Astronomia, uma previsão dos cursos dos astros; na Música, uma harmonia. Na língua latina, as sete obras eram resumidas pelas palavras: lingua, ratio, tropus, numerus, angulus, astra, tonus.

Estas "obras de arte" eram, para o homem educado da Idade Média, os recursos intelectuais que ele precisava para navegar livremente na sua fé e no seu mundo. E a razão por que ele considerava o exercício destes atos como excelentes em si era por causa da sua ordenação intrínseca a uma "leitura" desta fé e deste mundo, uma leitura cuja suprema meta era nada menos do que a contemplação - seja metafisica, seja mística.

Pela leitura "quadrivial" da Natureza, o homem podia meditar, e mais e mais contemplar, o mistério de Deus como cognoscível através das obras das suas mãos (cf. Salmo 18, e a Carta aos Romanos 1:19). Pela leitura "trivial" da Bíblia, foi visada a contemplação de Deus nas suas obras, digamos, "sobrenaturais", ou seja, a sua intervenção na história humana para redenção e santificação de uma Humanidade desencaminhada.

Na evolução do pensamento medieval, a interpretação e o uso do trivium e do quadrivium em relação ao conhecimento de Deus, do homem e do mundo, mudaram e se adaptaram enquanto as ciências filosóficas e teológicas se destacaram progressivamente delas. É isto que abre uma perspectiva rica no nosso entendimento da filosofia medieval.

Pensemos numa letra, qualquer letra, digamos "x". Para nós hoje em dia, esta letra representa um símbolo escrito - a maioria de nós diria provavelmente um símbolo arbitrário - para um som usado na fonética da nossa língua. Pensaríamos até em certos atributos quantitativos deste som, como a freqüência e a amplitude de suas vibrações, o volume do som e mesmo nos bits informáticos que constituem um "x" nos nossos computadores. Nosso entendimento de uma letra seria dominado por uma interpretação quantitativa.

Agora, tentemos reproduzir, aproximadamente, a maneira pela qual um Agostinho, um João Escoto Erígena, ou um Boaventura, abordariam o mesmo assunto. O que eles imaginariam, pensariam, refletindo na natureza de um "x"? Antes de mais nada, eles viriam neste símbolo, simultaneamente e sem conflito de perspectivas, uma letra que representa um som e um número que representa uma soma. Parece que na maioria das línguas tradicionais, ou seja, pré-modernas, as letras serviram tanto para os sons de linguagem no tempo, quanto para os números e dimensões dos corpos no espaço. Qualidades e quantidades ficaram inter-relacionadas na grafia mesma da linguagem humana.

Gramma e arithmos, letra e número, qualidade e quantidade, nomes e medidas - alguns iam tão longe a ponto de identificar as artes triviais com as artes do céu (não sem referências à tríade das artes como manifestação da Santíssima Trindade) e as artes quadriviais com as da terra (a quaternidade sendo símbolo natural para a ordem material - as quatro direções, os quatro elementos, as quatro estações etc.). Esta observação nos conduz à seguinte reflexão.

Das doutrinas teológicas do pensador medieval, nenhuma o marcou tão profundamente quanto a da Incarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade em Jesus Cristo: Et Verbum caro factum est. Esta inesperada doutrina colocou diante da mente do cristão três fatos imprescindíveis da sua fé: 1) a vida, o ensinamento, a morte e a ressurreição de Cristo, o Verbo Encarnado, o falar mesmo de Deus entrado neste mundo - Cristo, como aquilo que Deus quis dizer a nós depois do pecado; 2) o mundo mesmo, na sua estrutura física e matemática, como aquilo que Deus quis dizer a nós antes do pecado, porque "todas a coisas foram feitas por ele [o Logos], e sem ele nada foi feito" (João 1:3), e "nele [no Logos] foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis [...] tudo foi criado por ele e para ele..." (Col. 1:16).

A doutrina cristã da criação pelo Logos implica um universo cheio de sentido, um certo prolongamento pela criação da mesma processão do Filho do Pai, em Deus, por geração; e enfim, 3) Deus precisamente como Trindade, entendendo por Deus alguém que fala, a Segunda Pessoa sendo o Verbo, a Expressão completa do Pai no Espirita Santo. Este último sentido do Verbo, o que Deus diz de Si Mesmo a Si Mesmo, fica reservado para os ouvidos das almas glorificadas, percebidas só imperfeitamente e esporadicamente pelos místicos nesta vida.

O ponto importante aqui é que as doutrinas-chave do cristianismo ensinam que tudo tem significado: o foco da fé cristã na pessoa e obra de Cristo, para este significado é que ambos, a Bíblia e o universo, são expressões do mesmo Logos, do mesmo Verbo, em duas vertentes complementares. E a harmonia entre estas duas expressões se radica na sua origem comum no Verbo que Deus diz de Si Mesmo a Si Mesmo.

Num sermão do século XIII, atribuído no passado a Tomás de Aquino, o homilista exprime um lugar comum sobre a relação entre a Bíblia e a Natureza: "Deus teve o cuidado de produzir para nós escritos excelentes, a fim de nos instruir em perfeição [.. .] Esses escritos encontram-se em dois livros: o livro da criação e o da Escritura. No primeiro, são tantas as criaturas quantos os escritos excelentes que nos ensinam a verdade sem mentira. E aí está por que Aristóteles, a quem perguntaram onde aprendera tanto e a tal .Ponto, respondeu: 'Nas coisas, que não sabem mentir"'.

Aqui achamos o motivo mais potente para a sistematização e esquematização das sete artes liberais nos dois grupos. Essas artes, herdadas dos gregos, apresentaram ao homem medieval os recursos para uma dupla alfabetização: pelo trivium, os meios necessários para ler a Sagrada Escritura, o livro de Deus ao mundo dos pecadores; e pelo quadrivium, os meios para ler o sentido e o simbolismo do mundo físico, o livro de Deus ao mundo já antes do pecado. O primeiro sentido da palavra artista, aquele que completou os seus estudos na Faculdade das Artes, era a pessoa que tinha aprendido a "ler" os dois livros: o livro da Bíblia e o livro da Natureza. Uma vez ''letrado", ele podia passar para a Faculdade de Direito, a de Medicina, ou a de Teologia, para estudar os próprios assuntos apresentados nos dois livros.

2 - O Trivium

As três artes de linguagem foram chamadas artes sermocinales (artes verbais) e governaram a maneira pela qual o homem enfrenta a realidade com o seu Logos, ou seja, a sua língua, as suas palavras. A prática mostra que nós experimentamos uma realidade já existente que nos esforçamos por nomear e descrever. Consideramos os nossos nomes e as nossas descrições adequadas na medida em que refletem a maneira de existir e de atuar das coisas mesmas. Este modo de existir foi por vezes chamado de modus essendi (o modo de ser) e foi tarefa da Gramática apanhar este modo de ser pela sua morfologia e a sua sintaxe.

Uma vez captando as coisas desta maneira rudimentar, a mente humana começa a pensar sobre o sentido das palavras e as suas inter-relações, comparando palavra com palavra, proposição com proposição e, finalmente, chegando a aprofundamentos do conhecimento através de inferências tiradas de certas proposições. Este aspecto do nosso encontro lingüístico com a realidade, esta elaboração interior pela razão dos dados da Gramática, este modus intelligendi (modo de entender) foi governado pela arte da Dialética (mais ou menos coincidente com o que chamamos hoje de Lógica).

Enfrentando as coisas com a Gramática, ponderando as coisas com a Lógica, o homem sente mais uma necessidade, uma necessidade imposta por sua própria natureza humana. Ele tinha começado a sua inter-relação lingüística com o mundo empregando o órgão dentro da sua boca - o mesmo órgão com que ele acolhe o alimento, saboreando-o e passando-o para o corpo para sua assimilação. A Gramática é também um "comer" da realidade, um saborear das coisas antes de passá-las para a razão. E analogamente ao processo de digestão, em que o corpo trabalha e assimila as comidas, tirando nutrimento delas, que a língua mesma não podia tirar, a razão também trabalha e assimila os conceitos e juízos que a Gramática presta, assimilando a realidade, por assim dizer, ao "organismo" do intelecto humano.

Ora, o próximo passo é evidente. O corpo não se alimenta e não digere o alimento apenas para existir, mas também, e sobretudo, para atuar e agir. O alimento presta energia física que quer exprimir-se, articular-se para o mundo externo. O mesmo é o caso com o conhecimento que acolhemos (ou "comemos") pela Gramática, e elaboramos (ou "digerimos") pela Lógica. Este conhecimento quer também exprimir-se para fora, quer voltar ao mundo de que foi tirado. E como a força física anda do aparelho digestivo através dos nossos membros para exprimir-se na locomoção, a força da linguagem passa do nosso intelecto para fora, voltando à mesma língua, para ser exprimida.

Mas notemos uma caraterística particular deste terceiro passo, seja no caso do processo biológico, seja no caso da linguagem: em ambos temos diante de nós um processo altamente adaptável, móvel, fluido mesmo. O que fazemos com a energia fornecida pelo alimento e elaborada pela digestão, fica indeterminado. Podemos fazer um passeio, jogar futebol, ou ficar sentados na poltrona e engordarmos. A digestão, em contraste, segue regras fixas e um itinerário predeterminado.

O mesmo é o caso com a linguagem. A Lógica tem regras estritas e um discurso predestinado - pelo menos para quem quer raciocinar com acerto e não sofrer aquela indigestão intelectual que chamamos de incoerência. Mas quando exprimimos o que sabemos, temos novos parâmetros que também requerem atenção: o ouvinte, as suas emoções, a sua situação, os seus preconceitos, etc. Quem quer não somente acolher a realidade gramaticalmente, entendê-la logicamente, mas também comunicar o seu conhecimento e as suas idéias eficazmente, precisa de mais uma arte. O modus communicandi (o modo de comunicar ou ensinar) exige a arte da Retórica.

Ora, estes três momentos do uso da linguagem foram aplicados ao estudo dos textos, sobretudo, claramente, do texto dos textos, a Bíblia, mas também dos clássicos gregos e romanos. Este exercício contemplativo da interpretação do texto da Bíblia segundo as três artes triviais passou por diversas fases de ênfase. Nos primeiros séculos da Idade Média, o interesse era talvez mais gramatical, na Alta Escolástica, mais lógico, e na transição ao tempo moderno, com o surgimento do humanismo renascentista, mais retórico. Mas estas simplificações ignoram a complexidade dos assuntos e dos autores dessas épocas. Certos Padres (Agostinho e Crisóstomo, por exemplo) estavam entre os mestres medievais da Homilética, uma filha cristã da Retórica clássica. E a Gramática especulativa, um movimento significativo de interpretação dos diversos modi significandi dos termos, gozou o seu tempo de ouro nos séculos XIII e XIV.

3 - O Quadrivium

Vou ater-me a uma apresentação ainda mais sumária das quatro artes matemáticas, por causa da sua complexidade e dos limites deste artigo. Algumas observações gerais, porém, bastariam para salientar o essencial.

Estas artes foram chamadas de artes reales, artes do real, quer dizer, não das palavras sobre o real, mas do real mesmo. O mesmo universo que nós acolhemos, elaboramos e exprimimos pelas artes verbais, enumeramos e medimos pelas artes reais. O "triângulo lingüístico" da Gramática, Lógica e Retórica se complementa pelo "quadrado matemático" de Aritmética, Geometria, Astronomia e Música.

O universo em redor de nós exibe pelo menos três polaridades fundamentais: céu e terra (céu no sentido astronômico), números e extensões (ou na língua filosófica: quantidade discreta e quantidade contínua), e a maneira em que eles todos se movem ou não, ou seja, movimento e repouso. Ora, começamos com a Geometria, porque é sobre a terra que passamos a nossa vida. Esta terra precisa ser medida, para construir um santuário ou uma cidade, fixar os campos para Agricultura, fazer uma estrada, determinar fronteiras. Aqui temos a terra, as extensões matemáticas, em repouso.

Mas em cima, o Sol, a Lua e as estrelas todas giram em redor do nosso lar. Eles seguem cursos, se relacionam uns aos outros por ângulos e graus. Aqui temos o céu, as extensões em movimento. A nossa experiência do tempo se mede principalmente segundo estes movimentos: o nascer e o pôr do Sol, o mês (uma unidade basicamente lunar), o ano (uma unidade solar) e assim por diante. A quantidade contínua, no seu aspecto estático e dinâmico: eis o estudo da Geometria e Astronomia.

O mundo, porém, não consta unicamente de extensões, proporções e dimensões. Há coisas nele. Quantas? Começamos a contar, somar, multiplicar, etc. A Aritmética se apresenta: os números em repouso. Mas os números podem também mover-se. Números em movimento - eis a essência da Música: a escala musical, os intervalos, os modos do canto gregoriano e os tons de música moderna.

4 - As artes liberais e a Filosofia

Já desde os primeiros séculos, a Idade Média tinha conhecimento de Aristóteles, mas os escritos acessíveis eram pouquíssimos. Como é sabido, provavelmente poucos conheciam mais do que as suas primeiras duas obras lógicas, as Categorias e o Sobre a interpretação, e só referências oblíquas às outras. Ademais, Aristóteles mesmo não seguia o esquema das sete artes liberais, mesmo quando toda a sua obra foi levada em consideração. A Gramática ele pressupõe, mas não trata ex professo. A sua Retórica parece mais como uma extensão da sua Lógica, estudando a Retórica antes como uma forma de argumentação do que um estudo com o alcance enorme que ganhou em Cícero e Quintilião. E sobre Matemática, Aristóteles não escreveu praticamente nada. Para ele, as artes matemáticas têm em qualquer caso um valor totalmente subordinado às ciências físicas do real.

Sendo assim a sua postergação do régime quadrivial e trivial, um confronto com toda a largura e profundeza dos seus tratados sistemáticos, como aconteceu só nos séculos XII e XIII, graças às traduções secundárias do Árabe, e finalmente do próprio Grego, só podia significar um desafio bastante ameaçador para a pedagogia tradicional das sete artes liberais.

As primeiras reações das autoridades universitárias a este sistema aparentemente completo e abrangente de Filosofia eram, como sabemos, em grande parte negativas. Diversas condenações da parte das universidades nas primeiras décadas do século XIII pareciam ameaçar o aristotelismo com a anatematização. Mas precisamente o teor de respeito diante da verdade objetiva, que as próprias artes liberais tinham cultivado, gerava uma abertura intelectual entre os professores e alunos, que garantia por fim um acolhimento generoso ao corpus aristotelicum (sem minimizar as controvérsias tenazes entre o aristotelismo e o agostinismo.

A única arte liberal que achou nas obras de Aristóteles um tratamento extensivo era a Lógica. Quando, nos meados do século XII, as Primeiras Analíticas e as Segundas Analíticas foram traduzidas, toda uma teoria da ciência se apresentava pela primeira vez à mente medieval, e a mera classificação e organização dum patrimônio dava lugar a uma intuição na própria natureza da ciência. A aprendizagem de uma série de artes para a leitura dos dois "livros" da Bíblia e da Natureza começou a ocupar uma posição cada vez mais relativizada em face da teoria aristotélica da natureza da Filosofia especulativa e prática. Aqui compareceram a Filosofia da Natureza, a Psicologia, a Metafísica, a Ética, a Política, etc., cada uma assumindo a sua posição no currículo dos alunos.

Mesmo a Teologia, até então definida quase totalmente pela arte de glosar e comentar a Sagrada Escritura, de organizar em sententiae as opiniões dos Padres e de escrever homilias, assumiu ambições cada vez mais "científicas" para sua interpretação da revelação sobrenatural.

Que vai ficar das artes liberais neste brave new world de ciência peripatética? A Faculdade das Artes vai continuar a chamar-se assim pelo resto da Idade Média. E mesmo no mundo moderno, a Faculdade das Artes e Ciências vai continuar, em muitas universidades contemporâneas, a tradição de prestar os recursos básicos de uma educação propedêutica, capacitando os alunos a "ler" as ciências especializadas da pós-graduação.

A Gramática medieval continuou desenvolvendo-se independentemente dos debates universitários sobre aristotelismo e agostinismo. O próprio estudo humanista das línguas devia mais a esta tradição que seu desprezo do Latim medieval deixa enxergar. A Retórica desenvolveu-se no estudo das letras e de oratória no Renascimento. As artes matemáticas começaram já no século XIV e XV a declarar a sua independência da Filosofia e das artes verbais, encaminhando os primórdios das modernas ciências da Natureza.

Sem a cultura intelectual gerada pelas artes liberais, a recepção de Aristóteles nas universidades medievais teria sido um processo bem mais problemático, e por causa precisamente de um analfabetismo quanto à leitura dos "dois livros" que, na História da Filosofia medieval, prepararam o homem a ver sentido e razão na sua vida, e também ordem e racionalidade no mundo que o cercava. Sem dúvida, nós continuamos lendo o livro da Natureza hoje, mas com os novos óculos de uma ciência cada vez mais subordinada às exigências inconstantes da tecnologia. E as artes verbais perdem-se facilmente em Filologia e cálculos logísticos. Um remédio para esta perda do espirita "sinóptico" (para falar com Platão) seria a volta a urna leitura (esta vez literalmente falando!) dos livros da nossa tradição grego-romana e judaico-cristã. Sem a orientação intelectual oferecida por estes clássicos seminais, ao texto da nossa leitura da realidade, vai faltar freqüentemente, e às vezes tragicamente, o contexto.


Notas:

[*] A forma original deste artigo foi ministrada como conferência na III Semana de Estudos Medievais na Universidade de Brasília, em outubro, 1996. Esta revisão se dirige aos leitores de uma cultura mais filosófica.

[**] Universidade de Brasília.

[1] ver Republica, 1. VII.

[2] Filebus 16 c, 5-9.

[3] cf. J. Ritter, Aristoteles und die Vorsokratiker, p. 35.

***

Leia mais em O que é educação clássica

Leia mais em A verdadeira filosofia da educação



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.


 

Educação Matemática da criança (de zero a 5 anos)

Cálculo mental. Escola Pública de S. A. Rachinsky,
por Nikolai Petrovich Bogdanov-Belsky, 1895

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.


Tempo de leitura: 10 minutos.

Apresentamos trechos do capítulo 4 relativas a educação matemática da criança do livro A mente bem treinada: um guia para educação clássica em casa. Autoras: Jessie Wise e Susan Wise Bauer. Tradução: Alexei Gonçalves de Oliveira. Editora Liber, 2019.

Matemática [Pré-escola: do nascimento aos três anos de idade]

Comece o "letramento matemático" de seu filho já nos anos iniciais de sua vida. Enquanto você estiver lendo para seu filho de dois ou três anos, cercando-o de linguagem até que ele entenda que as palavras impressas têm uma carga de significado, você precisa agora expô-lo continuamente aos processos matemáticos e linguísticos. Só assim ele entenderá que os símbolos matemáticos também têm sua própria carga de significado.

Traga números para a vida diária tão frequentemente quanto possível. Comece pelas contagens: dedos das mãos e dos pés, olhos e orelhas; brinquedos e tesouros; pedrinhas e palitos. Brinque de esconde-esconde, contando até cinco e, depois, até dez, quinze ou vinte. Faça contagens de dois em dois, de cinco em cinco, e de dez em dez antes gritar, "estou indo!". Brinque de nave espacial em caixas de papelão e faça contagens regressivas para decolar. Leiam juntos livros sobre números. Uma vez que a criança esteja à vontade fazendo contagens, você pode começar a exercitar somas matemáticas simples - normalmente, durante os níveis K-4 e K-5 [*].

[...]

Matemática [Os anos do jardim de infância: quatro e cinco anos de idade]

Agora que a criança já consegue contar, continue a ensinar Matemática diariamente fazendo adições e subtrações no contexto do dia a dia da família. Arrumar a mesa é um ótimo exercício de Matemática: peça a seu filho para descobrir quantos pratos, facas, garfos e colheres serão necessários. Adicione e subtraia na mercearia ("Veja só, querido. Estou pegando quatro tomates e, agora, peguei mais um tomate - agora tenho cinco tomates!"). Mantenha seus filhos por perto enquanto cozinha - as receitas culinárias estão repletas de frações e medidas. Quando for cortar um sanduíche ao meio ou em quartos, diga: "Veja só, cortei pela metade!" ou "Cortei o sanduíche em quartos".

Faça brincadeiras que usem números. "Uno" é um clássico, que ensina tanto os números quanto as combinações de cores. Jogos simples de cartas tais como "Bisca" , "Burro" ou "Oito Maluco" exigem que a criança lembre quais números são maiores e quais são menores.

Pratique a escrita de números usando lápis e papel, giz e quadro-negro, giz de cera e cartolina, dedinhos e areia. Números grandes são divertidos e fáceis de brincar - não insista com seu filho em idade pré-escolar que escreva seus números perfeitamente alinhados em papel pautado.

Faça muitas adições e subtrações usando objetos (feijões, botões, lápis e pastilhas de chocolate). Brinque com manuseáveis de Matemática: escalas Cuisenaire [20], ursinhos contadores [21] ou círculos fracionados. Pratique a contagem até cem - de dois em dois, de cinco em cinco, de dez em dez. Ensine a contar dinheiro, a dizer as horas e dar nome a figuras geométricas - círculos, quadrados, triângulos, retângulos.

A biblioteca pública mais próxima de você deve ter uma seleção bem variada e colorida de livros de Matemática para o nível do jardim de infância, com problemas fáceis desenvolvidos a partir de figuras de objetos. Pegue um livro toda semana e leia-o junto com seu filho. Se você seguir estas sugestões, seu filho está pronto para a Matemática da primeira grade. Os filhos de Susan não tiveram dificuldade de adotar diretamente um currículo de Matemática da primeira grade sem completar primeiro um programa formal de Matemática em nível de jardim de infância. Tal como em Leitura, entretanto, as crianças pequenas podem gostar de ter um programa de Matemática para trabalhar ao mesmo tempo que seus irmãos mais velhos. Muitos programas de Matemática para jardim de infância são divertidos e repletos de objetos para manipular. Novamente, pense num programa de Matemática para o jardim de infância como uma brincadeira, não como um objetivo acadêmico. Caso a criança fique cansada após cinco ou dez minutos, não a obrigue a terminar a lição.

[...]

Matemática: Guias

Embora você não precise d e um currículo formal d e Matemática para a Pré-escola e o Jardim de Infância, os guias a seguir podem ajudá-lo a seguir um padrão para desenvolvimento do "letramento" matemático.

Kumon. Are You Ready for Kindergarten? Math Skills. Teaneck, NJ: Kumon Publishing, 2010. $6.95. Habilidades pré-Jardim de Infância em contagem e reconhecimento de formas, com atividades simples no caderno ( desenhar linhas, circular formas).

Snow, Kate. Preschool Math at Home: Simple Activities to Build the Best Possible Foundation for Your Child. Charles City, VA: Well-Trained Mind Press, 2016. $19.99 . Jogos divertidos e atividades simples que desenvolvem a consciência matemática, junto com explicações claras para os pais sobre os conceitos subjacentes a cada jogo. Não é necessário escrever.

Williams, Robert A., Debra Cunningham, and Joy Lubawy. Preschool Math. Beltsville, MD: Gryphon House, 2005. $19.95. Escrito para professores do nível pré-escolar, mas acessível a todos os pais, este guia oferece princípios para o ensino prático de Matemática e sugere numerosas atividades que podem ser feitas com objetos domésticos comuns. Não é tão "abra e faça" como os guias Snow e Kumon, mas excelente para criar uma conscientização matemática ainda maior.

Matemática: Manuseáveis

Cuisenaire Rods lntroductory Set. Faça seu pedido à Hand2Mind. $9.25. Um conjunto individual de setenta e quatro escalas Cuisenaire acompanhado de um breve guia para seu uso.

Fraction Circles. Faça seu pedido à Didax Educational Resources. $6.95. Nove círculos plásticos divididos em metades, quartos, oitavos, etc.

Geosolids. Order from Hand2Mind. $13. Conjunto de dezenove sólidos geométricos em madeira, de cubos a elipsoides.

Jumbo Sorting & Counting Bears ( "Ursinhos contadores"). Faça seu pedido à Lakeshore Learning Materials. $29.99. Vinte e sete ursos em três tamanhos e três cores diferentes, junto com uma jarra para armazenamento.

Kumon Flash Cards: Write and Wipe ! (" Escreva e apague"). Te­aneck, NJ: Kumon Publishing. $9.95. Cada conjunto contém trinta e dois cartões de memória em material duro e laminado, e uma caneta de hidrocor apagável. Os estudantes aprendem os números e formas com exercícios de traço e "ligue os pontos".
Easy Telling Time
Numbers 1-30
Shapes

Wooden Pattern Blocks ("Blocos para padrões de madeira"). Or­der from Didax Educational Resources. $22.95. Um dos conjuntos de manuseáveis mais úteis para a pré-escola; cada conjunto de 250 peças de madeira com 1 cm de espessura contém 25 hexágonos amarelos, 25 quadrados laranjas, 50 triângulos verdes, 50 trapezoides vermelhos, 50 paralelogramos azuis e 50 losangos salmão. Empilhe-os, conte-os, faça figuras com eles, refestele-se neles!

Matemática: Livros de Histórias

Procure estes livros de histórias matemáticas nas livrarias ou na biblioteca de sua cidade e faça deles parte de sua rotina de leituras. Uma vez que comece a procurar, encontrará muitos outros títulos mais.

Allen, Nancy Kelly. Once Upon a Dime: A Math Adventure. Wa­tertown, MA: Charlesbridge, 1999.

Anno, Mitsumasa. Anno 's Math Games. New York: Putnam & Grosset, 1997.

____. Anno 's Mysterious Multiplying Jar. New York: Penguin, 2008.

Axelrod, Amy. Pigs Will Be Pigs: Fun with Math & Money. New York: Aladdin, 1997.

Burns, Marilyn. Greedy Triangle. New York: Scholastic, 2008 .

____. Spaghetti and Meatballs for Ali: A Mathematical Story. New York: Scholastic, 2008.

Jonas, Ann . Splash! New York: Mulberry Books, 1 9 97.

Miranda, Anne. Monster Math. New York: Harcourt, 2002.

Mogard, Sue. Gobble Up Math: Fun Activities to Complete and Eat for Kids in Grades K-3. Huntington Beach, CA: Learning Works, 1994.

Murphy, Stuart J. Divide and Ride. New York: HarperCollins, 1997.

Myllar, Rolf. How Big Is a Foot? New York: Yearling, 1991.

Neuschwander, Cindy. Sir Cumference and the First Round Table: A Math Adventure. Watertown, MA: Charlesbridge, 2002. Também procure pelas outras seis aventuras de Sir Cumference.

Pinczes, Elinor J. One Hundred Hungry Ants. Boston: Houghton Mifflin, 1999.

Schwartz, David M. How Much Is a Million? New York: Harper­ Collins, 2004.

Scieska, Jon, and Lane Smith. Math Curse. New York: Viking Children's Books, 2007.

Tang, Greg. Math for Ali Seasons: Mind-Stretching Math Riddles. New York: Scholastic, 2005.

Wright, Alexandra. Alice in Pastaland: A Math Adventure. Water­ town, MA: Charlesbridge, 1997.


Notas:

[*] Nota do tradutor: Neste contexto, "K" se refere a "kindergarten" , isto é, ao " jardim de infância ". No sistema educacional americano, as siglas "K-4" e "K-5" designam, portanto, o jardim de infância para crianças de 4 e de 5 anos, respectivamente.

[20] Nota do tradutor: As "escalas Cuisenaire " são materiais auxiliares ao ensino de Matemática que ajudam as crianças em nível elementar a aprender conceitos matemáticos de forma prática. Criadas pelo professor primário belga Georges Cuisenaire (1891-1975), foram popularizadas na década de 1950 por Caleb Gattegno.

[21] Nota do tradutor: No original, "counting bears" - um conjunto de ursinhos de plástico coloridos que são popularmente usados nos Estados Unidos para ensino da Matemática de nível elementar.

***

Leia mais em O ensino dos números no Primário antigo

Leia mais em Música e a Educação da criança



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.


 


Sobre a Literatura e Dante Alighieri

Afresco de Luca Signorelli, na capela de San Brizio, Duomo, Orvieto



Tempo de leitura: 60 minutos.

Texto retirado do LINK

CARTA APOSTÓLICA

CANDOR LUCIS AETERNAE

DO SANTO PADRE FRANCISCO

NO VII CENTENÁRIO DA MORTE DE DANTE ALIGHIERI

Esplendor da Luz Eterna, o Verbo de Deus tomou um corpo da Virgem Maria quando, ao anúncio do Anjo, Ela respondeu: «Eis a serva do Senhor» (Lc 1, 38). O dia em que a Liturgia celebra este mistério inefável é particularmente significativo também na vida histórica e literária do insigne poeta Dante Alighieri, profeta de esperança e testemunha da sede de infinito presente no coração do homem. Por isso, nesta ocorrência, desejo unir-me também eu ao coro numeroso de quantos querem honrar a sua memória no VII centenário da sua morte.

Em Florença, de facto, o ano tinha início, segundo o cômputo ab Incarnatione, em 25 de março. Próxima do equinócio da primavera e vista na perspectiva pascal, tal data aparecia associada quer com a criação do mundo quer com a redenção realizada por Cristo na cruz, início da nova criação. À luz do Verbo encarnado, convida a contemplar o desígnio de amor que é o próprio coração e a fonte inspiradora da obra mais célebre do Poeta, a Divina Comédia. No último canto desta, o acontecimento da Encarnação é lembrado por São Bernardo com estes versos famosos: «No ventre teu reacendeu-se amor / e em paz eterna fez que germinasse / a seu calor assim tão bela flor» (Par. XXXIII, 7-9)[*].

Mas, já no Purgatório, Dante representara a cena da Anunciação esculpida num penhasco rochoso (X, 34-37.40-45).

Por isso, nesta circunstância, não pode faltar a voz da Igreja que se associa à comemoração unânime do homem e do poeta Dante Alighieri. Melhor do que muitos outros, soube exprimir, com a beleza da poesia, a profundidade do mistério de Deus e do amor. O seu poema, expressão sublime do génio humano, é fruto duma nova e profunda inspiração, de que o Poeta aliás tem consciência quando fala dele como «poema santo que consagro, / em que puseram mão o céu e a terra» (Par. XXV, 1-2).

Desejo, com esta Carta Apostólica, unir a minha voz à dos meus Antecessores que honraram e celebraram o Poeta, especialmente por ocasião dos aniversários do nascimento ou da morte, para o propor de novo à atenção da Igreja, à universalidade dos fiéis, aos estudiosos de literatura, aos teólogos, aos artistas. Recordarei brevemente estas intervenções, focando a atenção nos Pontífices do último século e nos seus documentos de maior relevo.

1. As palavras sobre Dante Alighieri dos Romanos Pontífices do último século

Há um século, em 1921, por ocasião do VI centenário da morte do Poeta, Bento XV, recolhendo as ideias que surgiram nos pontificados anteriores, particularmente de Leão XIII e São Pio X, comemorou o aniversário de Dante quer com uma Encíclica[1] quer promovendo obras de restauro em Ravena na igreja de São Pedro Maior, chamada popularmente de São Francisco, onde se celebrou o funeral de Alighieri tendo sido sepultado na respetiva área tumular. O Papa, vendo com apreço as numerosas iniciativas tendentes a solenizar a ocorrência, reivindicava o direito da Igreja, «que foi sua mãe», de ser protagonista de tais comemorações, honrando o «seu» Dante.[2] Já na Carta ao Arcebispo de Ravena, D. Pasqual Morganti, com a qual aprovara o programa das celebrações do centenário, Bento XV motivou a sua adesão da seguinte forma: «Além disso (e isto é mais importante) há uma razão particular para considerarmos que se deve celebrar o seu fausto aniversário com grata memória e grande concurso de povo, ou seja, o facto de que Alighieri é nosso. (...) Com efeito, quem poderá negar que o nosso Dante tenha alimentado e fortalecido a chama do engenho e a virtude poética inspirando-se na fé católica, a ponto de cantar num poema quase divino os mistérios sublimes da religião?»[3]

Num momento histórico marcado por sentimentos de hostilidade à Igreja, o Pontífice reiterou, na citada Encíclica, a pertença do Poeta à Igreja, «a união íntima de Dante com esta Cátedra de Pedro»; mais, afirmou que a sua obra, apesar de ser expressão da «prodigiosa vastidão e agudeza do seu engenho», recebeu «um poderoso impulso de inspiração» precisamente da fé cristã. Por isso, «nele – continuava Bento XV – não devemos admirar apenas a altura sublime do engenho, mas também a vastidão do tema que a religião divina ofereceu ao seu canto». E tecia o seu elogio, respondendo indiretamente a quantos negavam ou criticavam a matriz religiosa da sua obra: «Respira-se em Alighieri a mesma piedade que há em nós; a sua fé tem os mesmos sentimentos. (...) O motivo principal de elogio nele é este: ser um poeta cristão e ter cantado com acentuações quase divinas os ideais cristãos dos quais contemplava, com toda a alma, a beleza e o esplendor». E o Pontífice prosseguia: a obra de Dante é um exemplo eloquente e válido para «demonstrar quão falso seja que o obséquio da mente e do coração a Deus corte as asas do engenho; pelo contrário, estimula-o e eleva-o». Por isso, defendia ainda o Papa, «os ensinamentos que Dante nos deixou em todas as suas obras, mas sobretudo no seu triplo poema» podem servir «como guia validíssimo para os homens do nosso tempo», e de modo particular para alunos e estudiosos, já que ele, «ao compor o seu poema, não teve outro objetivo senão levantar os mortais do estado de miséria, isto é, do pecado e conduzi-los ao estado de beatitude, isto é, da graça divina».

Passando a São Paulo VI, as suas várias intervenções estão relacionadas com o VII centenário do nascimento, em 1965. No dia 19 de setembro, ofereceu uma cruz dourada para embelezar a Capela de Ravena que guarda o túmulo de Dante, até então desprovida de «tal sinal de religião e esperança».[4] Em 14 de novembro, enviou a Florença uma coroa áurea de louros para ser encastoada no Batistério de São João. Finalmente, no termo dos trabalhos do Concílio Ecuménico Vaticano II, quis doar aos Padres Conciliares uma edição artística da Divina Comédia. Mas sobretudo honrou a memória do insigne Poeta com a Carta Apostólica Altissimi cantus,[5] na qual reiterava a forte ligação entre a Igreja e Dante Alighieri: «Se alguém quisesse perguntar por que motivo a Igreja Católica, por vontade do seu Chefe visível, tenha a peito cultivar a memória e celebrar a glória do poeta florentino, é fácil a nossa resposta: porque, por um direito particular, Dante é nosso! Nosso, queremos dizer da fé católica, porque tudo nele respira amor a Cristo; nosso, porque muito amou a Igreja, cujas glórias ele cantou; e nosso, porque no Romano Pontífice reconheceu e venerou o Vigário de Cristo».

Mas tal direito, continuava o Papa, longe de autorizar atitudes triunfalistas, constitui um compromisso. «Dante é nosso: podemos justamente repeti-lo. E afirmamo-lo, não para fazer dele um almejado troféu de glória egoísta, mas antes para nos lembrar a nós próprios o dever de o reconhecer como tal e explorar na sua obra os tesouros inestimáveis do pensamento e sentimento cristãos, convencidos como estamos de que só quem penetra na alma religiosa do insigne Poeta pode compreender profundamente e saborear as suas maravilhosas riquezas espirituais». E este compromisso não dispensa a Igreja de acolher também as palavras de crítica profética pronunciadas pelo Poeta contra quem devia anunciar o Evangelho e representar, não a si próprio, mas a Cristo: «Nem me custa recordar que a voz de Dante se ergueu, pungente e severa, contra mais de um Romano Pontífice, e teve amargas reprimendas para instituições eclesiásticas e pessoas que foram ministros e representantes da Igreja»; contudo resulta claro que «tais atitudes inexoráveis nunca abalaram a sua fé católica firme nem o seu afeto filial à santa Igreja».

Depois Paulo VI ilustrava as caraterísticas que fazem do poema de Dante uma fonte de riqueza espiritual ao alcance de todos: «O poema de Dante é universal: na sua amplitude imensa, abraça céu e terra, eternidade e tempo, os mistérios de Deus e as vicissitudes dos homens, a doutrina sagrada e a que deriva da luz da razão, os dados da experiência pessoal e as memórias da história». Mas sobretudo especificava a finalidade intrínseca da obra de Dante, particularmente da Divina Comédia (finalidade essa, nem sempre claramente apreciada e avaliada): «O objetivo da Divina Comédia é primariamente prático e transformador. Não se propõe apenas ser poeticamente bela e moralmente boa, mas capaz de mudar radicalmente o homem e levá-lo da desordem à sabedoria, do pecado à santidade, da miséria à felicidade, da visão terrificante do inferno à contemplação beatificante do paraíso».

Num momento histórico denso de tensões entre os povos, o Papa tinha a peito o ideal da paz e encontrava na obra do Poeta uma reflexão preciosa para a promover e suscitar: «Esta paz dos indivíduos, das famílias, das nações, da sociedade humana, paz interna e externa, paz individual e pública, tranquilidade da ordem, é perturbada e abalada, porque são espezinhadas a piedade e a justiça. E, para restaurar a ordem e a salvação, são chamadas a trabalhar em harmonia a fé e a razão, Beatriz e Virgílio, a Cruz e a Águia, a Igreja e o Império». Nesta linha, assim definia a obra poética na perspectiva da paz: «A Divina Comédia é poema da paz: lúgubre canto da paz perdida para sempre é o Inferno, suave canto da paz esperada é o Purgatório, epinício triunfal de paz eterna e plenamente possuída é o Paraíso».

Nesta perspectiva, continuava o Pontífice, a Divina Comédia «é o poema da melhoria social na conquista duma liberdade, que está isenta da escravidão do mal e nos leva a encontrar e amar a Deus (…) professando um humanismo, cujas qualidades julgamos ter ficado bem esclarecidas». E Paulo VI reiterava uma vez mais quais eram as qualidades do humanismo de Dante: «Em Dante, todos os valores humanos (intelectuais, morais, afetivos, culturais, civis) são reconhecidos, exaltados; e é muito importante notar que este apreço e honra se verificam enquanto ele mergulha no divino, quando a contemplação teria podido anular os elementos terrenos». Daí, afirmava o Papa, nasce – e justamente – o apelativo de Sumo Poeta e o atributo de divina dado à Comédia, bem como a proclamação de Dante como «senhor do altíssimo canto», no incipit da própria Carta Apostólica.

Além disso, avaliando as qualidades artísticas e literárias extraordinárias de Dante, Paulo VI reiterava um princípio por ele afirmado muitas outras vezes. «A teologia e a filosofia têm com a beleza ainda outra relação, e é esta: a beleza, ao emprestar à doutrina o seu vestido e ornamento, com a suavidade do canto e a visibilidade da arte figurativa e plástica, abre a estrada para os seus preciosos ensinamentos chegarem a muitos. As pesquisas profundas, os raciocínios subtis resultam inacessíveis aos humildes, que são uma multidão, e famintos também eles do pão da verdade. Entretanto estes percebem, sentem e apreciam o influxo da beleza e, por este veículo, brilha mais facilmente para eles a verdade e nutre-os. Bem o compreendeu e realizou o senhor do altíssimo canto, cuja beleza se tornou serva da bondade e da verdade, e a bondade matéria da beleza». Por fim, citando a Divina Comédia, Paulo VI exortava a todos: «Honrai agora o altíssimo poeta» (Inf. IV, 80).

De São João Paulo II, que repetidamente citou nos seus discursos as obras do insigne Poeta, quero lembrar apenas a intervenção de 30 de maio de 1985 na inauguração da Exposição Dante no Vaticano. Como Paulo VI, também ele destacou a sua genialidade artística: a obra de Dante é interpretada como «uma realidade visualizada, que fala da vida do além-túmulo e do mistério de Deus com a força própria do pensamento teológico, transfigurado pelo esplendor da arte e da poesia, simultaneamente conjuntas». Depois o Pontífice deteve-se a examinar um termo chave da obra de Dante: «“transumanar”, ultrapassar o humano. Foi este o esforço supremo de Dante: fazer que o peso do humano não destruísse o divino que existe em nós, nem a grandeza do divino anulasse o valor do humano. Por esta razão, o Poeta leu justamente a própria vicissitude pessoal e a da inteira humanidade em chave teológica».

Bento XVI falou frequentemente do itinerário de Dante, tirando das suas obras tópicos de reflexão e meditação. Por exemplo, ao apresentar a sua primeira Encíclica – a Deus caritas est –, partiu precisamente da visão de Deus que tinha Dante e na qual «luz e amor são uma coisa só», para propor novamente uma sua reflexão sobre a novidade da obra de Dante: «O olhar de Dante vislumbra uma coisa totalmente nova (…). A Luz eterna apresenta-se em três círculos aos quais se dirige com estes versos densos que conhecemos: “Luz eterna que só tens sede em ti, / e a ti entendes, e por ti intelecta / e entendente, te amas, ris assi!” (Par. XXXIII, 124-126). Na realidade, ainda mais impressionante que esta revelação de Deus como círculo trinitário de conhecimento e amor é a perceção dum rosto humano – o rosto de Jesus Cristo – que aparece a Dante no círculo central da Luz. (…) Este Deus tem um rosto humano e – podemos acrescentar – um coração humano».[6] O Papa destacou a originalidade da visão de Dante na qual se comunica poeticamente a novidade da experiência cristã, decorrente do mistério da Encarnação: «A novidade dum amor que impeliu Deus a assumir um rosto humano; mais, a assumir carne e sangue, o ser humano inteiro».[7]

Por minha vez, na primeira Encíclica,[8] fiz referência a Dante para expressar a luz da fé, citando um verso do Paraíso onde ela é descrita como «a cintila / que se dilata em chama então vivaz, / e qual astro no céu, em mim rutila» (Par. XXIV, 145-147). Pelos 750 anos do nascimento do Poeta, quis honrar a sua memória com uma mensagem, almejando que «a figura de Alighieri e a sua obra sejam novamente compreendidas e valorizadas»; e propunha que se lesse a Divina Comédia como «um grande itinerário, aliás como uma verdadeira peregrinação, tanto pessoal e interior, como comunitária, eclesial, social e histórica»; com efeito, «ela representa o paradigma de cada viagem autêntica para a qual a humanidade está chamada a abandonar a terra que Dante define “a jeira que nos torna tão ferozes” (Par. XXII, 151), para chegar a uma nova condição, marcada pela harmonia, a paz, a felicidade».[9] Por isso, apresentei a figura do insigne Poeta aos nossos contemporâneos, propondo-o como «profeta de esperança, anunciador da possibilidade de resgate, da libertação, da mudança profunda de cada homem e mulher, de toda a humanidade».[10]

Por fim, no dia 10 de outubro de 2020, ao receber a Delegação da Arquidiocese de Ravena-Cervia por ocasião da abertura do Ano de Dante e anunciar este documento, sublinhei como a obra de Dante pode ainda hoje enriquecer a mente e o coração de muitos, sobretudo jovens, que, abeirando-se da sua poesia «numa forma acessível a eles, constatam, por um lado, inevitavelmente toda a distância do autor e do seu mundo; mas, por outro, captam uma ressonância surpreendente».[11]

2. A vida de Dante Alighieri, paradigma da condição humana

Com esta Carta Apostólica, desejo também eu abeirar-me da vida e obra do ilustre Poeta, para captar precisamente esta ressonância, manifestando tanto a atualidade como a sua perenidade, e recolher aquelas advertências e reflexões que ainda hoje são essenciais não apenas para os crentes mas para toda a humanidade. Com efeito, a obra de Dante é parte integrante da nossa cultura, remete-nos para as raízes cristãs da Europa e do Ocidente, representa o património de ideais e valores que também hoje a Igreja e a sociedade civil propõem como base da convivência humana, na qual podemos e devemos reconhecer-nos todos irmãos. Sem me embrenhar na complexa história pessoal, política e judiciária de Alighieri, gostaria de lembrar apenas alguns momentos e factos da sua existência, pelos quais ele aparece extraordinariamente próximo de muitos dos nossos contemporâneos e que são essenciais para compreender a sua obra.

À cidade de Florença, onde nasceu em 1265 e se casou com Gema Donati gerando quatro filhos, esteve primeiramente ligado por um forte sentimento de pertença, o qual, por causa de dissensões políticas, com o tempo se transformou em aberto contraste. Contudo nunca morreu nele o desejo de lá regressar, não só pelo afeto que continuou em todo o caso a nutrir pela sua cidade, mas sobretudo para ser coroado poeta lá onde recebera o Batismo e a fé (cf. Par. XXV, 1-9). No cabeçalho de algumas das suas Cartas (III, V, VI e VII), Dante define-se como «florentinus et exul inmeritus – florentino imerecido no exílio», enquanto na carta XIII, dirigida a Cangrande della Scala, especifica «florentinus natione non moribus – florentino de nascimento, não de costumes». Guelfo da fação branca, vê-se envolvido no conflito entre Guelfos e Gibelinos, entre Guelfos brancos e negros, e depois de ter ocupado cargos públicos cada vez mais importantes até se tornar Prior, em 1302, devido às vicissitudes políticas adversas, é exilado por dois anos, banido dos cargos públicos e condenado ao pagamento duma multa. Dante rejeita a sentença, em sua opinião injusta, e o julgamento contra ele torna-se ainda mais severo: exílio perpétuo, confiscação dos bens e pena de morte em caso de regresso à terra natal. Assim começa a dolorosa história de Dante, que tenta em vão poder regressar à sua amada Florença, pela qual lutara com paixão.

Torna-se assim o exilado, o «peregrino pensativo», caído numa condição de «penosa pobreza» (Convívio, I, III, 5) que o impele a procurar refúgio e proteção junto de alguns suseranos locais, entre os quais os Scaligeri de Verona e os Malaspina na Lunigiana. Nas palavras de Cacciaguida, antepassado do Poeta, intuem-se a amargura e o desconforto desta nova condição: «Deixarás toda a cousa que é dileta / mais caramente; e este é dardo tal / que o arco do exílio antes projeta. / Tu provarás assim sabor a sal / do alheio pão e como é duro mal / se desça escada alheia ou já se escale» (Par. XVII, 55-60).

Depois, não aceitando as condições humilhantes da amnistia que lhe teria permitido o regresso a Florença, em 1315 foi de novo condenado à morte, desta vez, juntamente com os seus filhos adolescentes. A última etapa do seu exílio foi Ravena, onde foi acolhido por Guido Novello da Polenta, e lá faleceu – regressava duma missão a Veneza – aos 56 anos, na noite de 13 para 14 de setembro de 1321. A sua sepultura num sarcófago em São Pedro Maior, por trás do muro externo do antigo claustro franciscano, foi posteriormente transferida para a adjacente Capela do século XVIII, onde em 1865, depois de atribuladas vicissitudes, foram colocados os seus restos mortais. O lugar é ainda hoje meta de inúmeros visitantes e admiradores do insigne Poeta, pai da língua e literatura italianas.

No exílio, o amor à sua cidade, traído pelos «celerados florentinos» (Epist. VI, 1), transformou-se em triste saudade. A profunda desilusão pela queda dos seus ideais políticos e civis, juntamente com a penosa peregrinação duma cidade para outra à procura de refúgio e apoio não são alheias à sua obra literária e poética; pelo contrário, constituem a sua raiz essencial e a motivação de fundo. Quando Dante descreve os peregrinos que se põem a caminho para visitar os lugares sagrados, de certo modo descreve a sua condição existencial e manifesta os seus sentimentos mais íntimos: «Oh peregrinos que partis pensativos...» {Vita Nova, 29 [XL (XLI), 9], v. 1}. O motivo reaparece mais vezes, por exemplo nestes versos do Purgatório: «Como romeiros pensativos lançam, / cruzando pela via gente ignota, / apenas um olhar e não descansam» (XXIII, 16-18). A pungente melancolia de Dante peregrino e exilado adivinha-se também nos famosos versos do canto VIII do Purgatório: «Era hora em que a saudade aos navegantes / regressa e os enternece já de cor / o adeus a amigos doces dito antes» (VIII, 1-3).

Dante, refletindo profundamente sobre a sua situação pessoal de exílio, incerteza radical, fragilidade, mobilidade contínua, transforma-a, sublimando-a, num paradigma da condição humana, que se apresenta como um caminho – mais interior que exterior – sem paragem alguma enquanto não atingir a meta. Deparamo-nos, assim, com dois temas fundamentais de toda a obra de Dante: o ponto de partida de todo o itinerário existencial, o desejo, presente no ânimo humano, e o ponto de chegada, a felicidade, dada pela visão do Amor que é Deus.

O insigne Poeta, embora atravessando vicissitudes dramáticas, tristes e angustiantes, nunca se resigna, não sucumbe, nem aceita suprimir a ânsia de plenitude e felicidade que está no seu coração, e muito menos se resigna a ceder à injustiça, à hipocrisia, à arrogância do poder, ao egoísmo que faz do nosso mundo «a jeira que nos torna tão ferozes» (Par. XXII, 151).

3. A missão do Poeta, profeta de esperança

Deste modo, relendo a sua vida sobretudo à luz da fé, Dante descobre também a vocação e a missão que lhe foram confiadas, de modo que, paradoxalmente, de homem aparentemente falido e desiludido, pecador e desanimado, transforma-se em profeta de esperança. Na Carta a Cangrande della Scala, com extraordinária nitidez, deixa claro o objetivo da sua obra, que se concretiza e explicita, já não através de ações políticas ou militares, mas graças à poesia, à arte da palavra que, dirigida a todos, tudo pode mudar: «É preciso dizer brevemente que a finalidade do todo e da parte é tirar os viventes nesta existência dum estado de miséria e conduzi-los a um estado de felicidade» [XIII, 39 (15)]. Tal finalidade desencadeia um caminho de libertação de todas as formas de miséria e degradação humanas (a «selva escura») e simultaneamente aponta para a meta derradeira: a felicidade, entendida quer como plenitude de vida na história quer como bem-aventurança eterna em Deus.

Desta dupla finalidade, deste audacioso programa de vida, Dante é mensageiro, profeta e testemunha, confirmado na sua missão por Beatriz: «Por isso, em prol do mundo que mal vive, / ao carro põe os olhos e o que vês / lá regressado, a tua escrita o arquive» (Purg. XXXII, 103-105). Também o seu antepassado Cacciaguida o exorta a não desfalecer na sua missão. Ao Poeta, que recorda brevemente o seu caminho nos três reinos do Além e assinala a dificuldade de comunicar as verdades que doem e incomodam, o ilustre antepassado responde: «… A consciência fusca / ou já da própria ou de alheia vergonha / bem sentirá tua palavra brusca. / E tu porém, sem que a mentir se ponha, / toda tua visão faz manifesta; / e deixa que se cocem onde hão ronha» (Par. XVII, 124-129). Um idêntico incitamento a viver com coragem a sua missão profética é dirigido a Dante, no Paraíso, por São Pedro, quando o Apóstolo, depois duma tremenda invetiva contra Bonifácio VIII, se dirige ao Poeta desta forma: «E tu, filho, que voltarás aonde o / mortal peso há de pôr-te, abre a boca, / e não escondas o que eu não escondo» (Par. XXVII, 64-66).

Assim, na missão profética de Dante, inserem-se também a denúncia e a crítica contra os crentes, tanto Pontífices como simples fiéis, que atraiçoam a adesão a Cristo e transformam a Igreja num instrumento em prol dos próprios interesses, esquecendo o espírito das Bem-aventuranças e a caridade para com os pequenos e os pobres e idolatrando o poder e a riqueza: «Que quanto a Igreja guarda, é atributo / todo da gente que por Deus demande; / não de parentes nem de outro mais bruto» (Par. XXII, 82-84). Mas, através das palavras de São Pedro Damião, São Bento e São Pedro, o Poeta, ao mesmo tempo que denuncia a corrupção dalguns setores da Igreja, faz-se porta-voz de uma renovação profunda e invoca a Providência para que a favoreça e torne possível: «Mas a alta providência, que a Cipião / foi a romana glória nas mãos pondo, / cedo virá, em minha conceção» (Par. XXVII, 61-63).

E assim Dante exilado, peregrino, frágil, mas agora forte pela profunda e íntima experiência que o transformou, renascido graças à visão que, das profundezas dos infernos, da mais degradada condição humana, o elevou à própria visão de Deus, ascende a mensageiro duma nova existência, a profeta duma nova humanidade que anseia pela paz e a felicidade.

4. Dante cantor do desejo humano

Dante é capaz de ler o coração humano em profundidade; e em todos, mesmo nas figuras mais abjetas e molestas, consegue vislumbrar uma cintila de desejo de alcançar alguma felicidade, uma plenitude de vida. Detém-se a escutar as almas que encontra, dialoga com elas, interpela-as para se adentrar e participar nos seus tormentos ou na sua beatitude. Assim, partindo da sua condição pessoal, o Poeta faz-se intérprete do desejo que todo o ser humano tem de continuar o caminho enquanto não chegar ao destino final, não encontrar a verdade, a resposta aos porquês da existência, enquanto o coração – como já afirmava Santo Agostinho[12] – não encontrar repouso e paz em Deus.

No Convívio, analisa precisamente o dinamismo do desejo. «O desejo supremo de todas as coisas, conferido de início pela natureza, é retornar ao seu princípio. E como Deus é princípio das nossas almas, (...) a alma deseja intensamente retornar a Ele. E como um peregrino, que segue um caminho nunca antes percorrido por ele – quando avista de longe uma casa espera que seja a hospedaria, acabando depois por verificar que não o é, então deposita a sua esperança noutra e assim, de casa em casa, até encontrar finalmente a hospedaria –, a nossa alma, ansiosa por ter entrado no novo e nunca percorrido caminho desta vida, dirige o olhar para a meta do seu bem supremo, acreditando encontrá-lo em tudo o que vê e lhe parece ter em si algum bem» (IV, XII, 14-15).

O itinerário de Dante, ilustrado sobretudo na Divina Comédia, é verdadeiramente o caminho do desejo, da necessidade profunda e interior de mudar a sua própria vida para poder alcançar a felicidade e, assim, mostrar a estrada a quem se encontra, como ele, numa «selva escura» e perdeu «a direita via». Além disso, é significativo que, desde a primeira etapa deste percurso, o seu guia – o grande poeta latino Virgílio – lhe indique a meta aonde deve chegar, incitando-o a não ceder ao medo nem ao cansaço: «Mas porque volves ao ansioso enleio? / Porque não vais ao deleitoso monte / que é razão da alegria e dela cheio?» (Inf. I, 76-78).

5. Poeta da misericórdia de Deus e da liberdade humana

Trata-se de um caminho que não é ilusório nem utópico, mas realista e possível, onde todos podem entrar, porque a misericórdia de Deus oferece sempre a possibilidade de mudar, converter-se, encontrar-se a si mesmo e encontrar a via para a felicidade. A propósito, são significativos alguns episódios e personagens da Divina Comédia, que mostram como tal via não esteja vedada a ninguém na terra; exemplo disso é o imperador Trajano, pagão mas colocado no Paraíso. Dante justifica esta presença assim: «Regnum coelorum a violência há de / sofrer de quente amor, viva esperança, / que vence assim a divinal vontade; / não de homem que homem a vencer se lança, / mas vence-a, pois quer ela ser vencida, / para vencer então benigna e mansa» (Par. XX, 94-99). O gesto de caridade de Trajano para com uma «viúva» (Par. XX, 45) ou a «lagrimeta» de arrependimento derramada à hora da morte pelo Buonconte de Montefeltro (Purg. V, 107) não só mostram a infinita misericórdia de Deus, mas confirmam também que o ser humano pode sempre, com a sua liberdade, escolher qual caminho seguir e qual sorte merecer.

Sob esta luz, é significativo o rei Manfredo, colocado por Dante no Purgatório e que assim recorda o seu fim e a sentença divina: «Depois que se rompeu minha pessoa / de feridas mortais, eu me rendi, / chorando, a quem de bom grado perdoa. / Eu horríveis pecados cometi; / mas bondade infinita tanto abraça / que quem se a ela volta aceitar vi» (Purg. III, 118-123). Parece quase vislumbrar-se a figura do pai da parábola evangélica, com os braços abertos pronto a acolher o filho pródigo que volta para ele (cf. Lc 15, 11-32).

Dante faz-se paladino da dignidade de todo o ser humano e da liberdade como condição fundamental tanto das opções de vida como da própria fé. O destino eterno do homem – sugere Dante ao narrar-nos as histórias de tantas personagens, ilustres ou pouco conhecidas – depende das suas escolhas, da sua liberdade: os próprios gestos diários, aparentemente insignificantes, têm um alcance que se estende para além do tempo, são projetados na dimensão eterna. O maior dom de Deus ao homem, para que possa alcançar a meta última, é precisamente a liberdade, como afirma Beatriz: «O maior dom que Deus em tal largueza / já fez criando e à sua bondade / mais conformado e esse que mais preza, / foi ter-se de vontade liberdade» (Par. V, 19-22). Não são afirmações retóricas e vagas, visto que brotam da existência de quem conhece o preço da liberdade: «Liberdade ele busca, que é tão cara, / e sabe-o quem por ela a vida enjeita» (Purg. I, 71-72).

Mas a liberdade – lembra-nos Alighieri – não é fim em si mesma; é condição para subir continuamente. E o percurso nos três reinos ilustra-nos plasticamente esta subida até tocar o Céu, alcançar a plena felicidade. O «alto desejo» (Par. XXII, 61), suscitado pela liberdade, não pode extinguir-se senão em presença da meta, na visão última e na bem-aventurança: «E eu que ao termo da ânsia toda vi / me aproximava, tal como devia, / o fim de tal ardor em mi senti» (Par. XXXIII, 46-48). Depois o desejo faz-se também oração, súplica, intercessão, canto que acompanha e assinala o itinerário de Dante, tal como a oração litúrgica cadencia as horas e os momentos da jornada. A paráfrase do Pai Nosso, que o Poeta propõe (cf. Purg. XI, 1-21), entrelaça o texto do Evangelho com a experiência pessoal, com as suas dificuldades e sofrimentos: «Venha a nós do teu reino assim tamanho / a paz, que só por nós não vamos ter (…). Dá-nos hoje a maná quotidiana, / sem a qual por este áspero deserto, / atrás vai quem avante mais se afana» (7-8.13-15). A liberdade de quem acredita em Deus como Pai misericordioso não pode senão confiar-se a Ele na oração, não sendo por isso minimamente lesada, mas antes reforçada.

6. A imagem do homem na visão de Deus

No itinerário da Divina Comédia, como já sublinhava o Papa Bento XVI, o caminho da liberdade e do desejo não traz consigo – como porventura se poderia imaginar – uma redução do humano na sua realidade concreta, não aliena a pessoa de si mesma, não anula nem negligencia o que constituiu a sua existência histórica. Com efeito, mesmo no Paraíso, Dante representa os bem-aventurados – as «alvas» (Par. XXX, 129) – no seu aspecto corpóreo, evoca os seus afetos e emoções, os seus olhares e gestos, em resumo, mostra-nos a humanidade na sua perfeição completa de alma e corpo, prefigurando a ressurreição da carne. São Bernardo, que acompanha Dante no último trecho do caminho, mostra ao Poeta as crianças presentes na rosa dos bem-aventurados e convida-o a observá-las e ouvi-las: «Dos rostos podes vê-lo se os perscrutas / e também pelas vozes pueris, / se já os bem contemplas e os escutas» (Par. XXXII, 46-48). Resulta comovente ver como esta manifestação dos bem-aventurados na sua luminosa humanidade integral é motivada não só por sentimentos de afeto pelos seus entes queridos, mas sobretudo pelo desejo explícito de voltar a ver os seus corpos, as feições terrenas: «Seus corpos desejando antes da morte; / talvez não só por si, mas pela mãe, / pelo pai, pelos mais que cada amava, / antes de eterna chama ser também» (Par. XIV, 63-66).

E, finalmente, no centro da visão última, no encontro com o Mistério da Santíssima Trindade, Dante vislumbra precisamente um Rosto humano, o de Cristo, da Palavra eterna feita carne no seio de Maria: «E na profunda e clara subsistência / do alto lume três círculos vi vir / de três cores e de uma continência (...). Nessa circulação, que assim concepta / parecia em ti lume refletido, / dos olhos meus um pouco circunspecta, / dentro de si, do próprio colorido, / me apareceu pintada nossa efígie» (Par. XXXIII 115-117.127-131). Só na visão de Deus se aplaca o desejo do homem, e termina todo o seu fatigoso caminho: «Então a mente me era percutida / por um fulgor em que seu querer veio. / Foi a alta fantasia aqui colhida» (Par. XXXIII, 140-142).

O mistério da Encarnação, que hoje celebramos, é o verdadeiro centro inspirador e o núcleo essencial de todo o poema. Nele realiza-se o que os Padres da Igreja chamavam «divinização», admirabile commercium – o prodigioso intercâmbio, pelo qual, ao mesmo tempo que Deus entra na nossa história fazendo-Se carne, o ser humano, com a sua carne, pode entrar na realidade divina, simbolizada pela rosa dos bem-aventurados. A humanidade, na sua realidade concreta, com os gestos e as palavras diárias, com a sua inteligência e afetos, com o corpo e as emoções, é assumida em Deus, no Qual encontra a verdadeira felicidade e a realização plena e última, meta de todo o seu caminho. Dante havia desejado e previsto esta meta no início do Paraíso: «Mais o desejo aceso então surgiu / de ver aquela essência em que se vê / como nossa natura e Deus se uniu. / Lá se verá o que se tem por fé, / não demonstrado, mas por si é noto / qual verdade primeira que o homem crê» (Par. II, 40-45).

7. As três mulheres da Divina Comédia: Maria, Beatriz, Luzia

Cantando o mistério da Encarnação, fonte de salvação e alegria para toda a humanidade, Dante não pode deixar de cantar os louvores de Maria, a Virgem Mãe que, com o seu «sim», com a sua aceitação plena e total do projeto de Deus, torna possível que o Verbo Se faça carne. Na obra de Dante, encontramos um tratado estupendo de mariologia: com acentuações líricas sublimes, particularmente na oração pronunciada por São Bernardo, sintetiza toda a reflexão teológica sobre Maria e a sua participação no mistério de Deus: «Virgem e mãe, que és filha de teu filho, / humilde e alta mais que criatura, / de eterno querer termo fixo e brilho, / aquela és que a humanal natura / tanto nobilitaste, que o fator / não desdenhou fazer de si feitura» (Par. XXXIII, 1-6). O oximoro inicial e a sucessão de termos antitéticos destacam a originalidade da figura de Maria, a sua beleza singular.

São Bernardo, mostrando os bem-aventurados colocados na rosa mística, convida Dante a contemplar Maria, que deu as feições humanas ao Verbo Encarnado: «Contempla agora a face tal que a Cristo / mais se assemelha, pois sua clareza / só te pode dispor a veres Cristo» (Par. XXXII, 85-87). O mistério da Encarnação é de novo evocado pela presença do Arcanjo Gabriel. Dante pergunta a São Bernardo: «Quem é esse anjo em tão festivo jogo / que na nossa rainha o olhar atina, / e tão enamorado é quase fogo?» (Par. XXXII, 103-105). E o Santo responde: «Ele é esse que levou a palma / lá a Maria quando o Filho de Deus / quis carregar com toda a nossa xalma» (Par. XXXII, 112-114). A referência a Maria é constante em toda a Divina Comédia. Ao longo do percurso no Purgatório, é o modelo das virtudes que se opõem aos vícios; é a estrela da manhã que ajuda a sair da selva escura para se encaminhar rumo ao monte de Deus; é a presença constante, através da sua invocação («Nome da bela flor que sempre rogo, / manhã e tarde, …»: Par. XXIII, 88-89), que prepara para o encontro com Cristo e com o mistério da Deus.

Dante, que nunca está sozinho no seu caminho, mas se deixa guiar primeiro por Virgílio, símbolo da razão humana, e depois por Beatriz e São Bernardo, agora, graças à intercessão de Maria, pode chegar à pátria e gozar a alegria plena desejada em cada momento da existência: «… e ainda me distila / ao coração dulçor que lhe começa» (Par. XXXIII, 62-63). Não nos salvamos sozinhos (parece repetir-nos o Poeta, consciente da sua insuficiência): «Por mim próprio não venho» (Inf. X, 61); é necessário que o caminho seja empreendido em companhia de quem nos possa apoiar e guiar com sabedoria e prudência.

Neste contexto, resulta significativa a presença feminina. No início do fatigoso itinerário, Virgílio – o primeiro guia – conforta e encoraja Dante a prosseguir, porque três mulheres intercedem por ele e o hão de guiar: Maria, a Mãe de Deus, figura da caridade; Beatriz, símbolo de esperança; Santa Luzia, imagem da fé. Com palavras comoventes, assim se apresenta Beatriz: «Eu sou Beatriz, ora a fazer-te andar; / do lugar venho a que voltar pretendo, / e amor me move, que me faz falar» (Inf. II, 70-72), afirmando que a única fonte que nos pode dar a salvação é o amor, o amor divino que transfigura o amor humano. Depois Beatriz remete para a intercessão doutra mulher, a Virgem Maria: «Uma gentil senhora no céu plange / o impedimento a que enviar-te entendo, / e o mais duro juízo assim confrange» (Inf. II, 94-96). Depois intervém Luzia, que se dirige a Beatriz: «Beatriz, divina loa verdadeira, / pois não socorrerás quem te amou tanto, / que abandonou por ti vulgar fileira?» (Inf. II, 103-105). Dante reconhece que somente quem é movido pelo amor pode verdadeiramente apoiar-nos no caminho e levar-nos à salvação, ao renovamento da vida e, consequentemente, à felicidade.

8. Francisco, esposo da senhora Pobreza

Na cândida rosa dos bem-aventurados, em cujo centro brilha a figura de Maria, Dante coloca também numerosos santos, cuja vida e missão esboça, para os propor como figuras que, na realidade concreta da sua existência e mesmo através de numerosas provações, alcançaram a finalidade da sua vida e da sua vocação. Mencionarei brevemente apenas a figura de São Francisco de Assis, ilustrada no canto XI do Paraíso, onde se fala dos espíritos sapientes.

Existe uma profunda sintonia entre São Francisco e Dante: o primeiro, juntamente com os seus companheiros, saiu do convento e foi para o meio do povo, pelas estradas de aldeias e cidades, pregando ao povo, parando nas casas; o segundo fez a escolha, então incompreensível, de usar no grande poema do Além a linguagem de todos e povoando a sua narração com personagens conhecidos e menos conhecidos, mas completamente iguais em dignidade aos poderosos da terra. Outro traço une os dois personagens: a abertura à beleza e ao valor do mundo das criaturas, espelho e «vestígio» do seu Criador. Como não reconhecer nestes versos da paráfrase de Dante ao Pai-Nosso – «sejas louvado em nome e em valor / por toda a criatura…» (Purg. XI, 4-5) – uma referência ao Cântico das Criaturas de São Francisco?

No canto XI do Paraíso, essa consonância aparece com um novo aspecto, que os torna ainda mais semelhantes. A santidade e a sabedoria de Francisco sobressaem precisamente porque Dante, olhando do céu a nossa terra, vislumbra a tacanhez de quem confia nos bens terrenos: «Ó cuidar insensato dos mortais, / por quantos defetivos silogismos / fazem que asas ao fundo a dar tu vais!» (Par. XI, 1-3). Toda a história ou, melhor, a «vida admirável» do santo assenta sobre a sua relação privilegiada com a senhora Pobreza: «Mas por que eu não pareça assaz escuso, / Francisco e a Pobreza por amantes / entendas ora em meu falar difuso» (Par. XI, 73-75). No canto de São Francisco, recordam-se os momentos salientes da sua vida, as suas provações e por fim o acontecimento no qual a sua configuração a Cristo, pobre e crucificado, encontra a sua extrema, divina confirmação na marca dos estigmas: «Porque de mais azeda já observa / a gente à fé, por não ficar em vão, / ao fruto regressou da ítala erva, / e entre Arno e Tibre em cru penedo então / foi ter de Cristo o último sigilo, / que dois anos seus membros levarão» (Par. XI, 103-108).

9. Acolher o testemunho de Dante Alighieri

No final deste olhar sintético à obra de Dante Alighieri, uma mina quase infinita de conhecimentos, experiências, considerações em todos os campos da pesquisa humana, impõe-se uma reflexão. A riqueza de figuras, narrações, símbolos, imagens sugestivas e atraentes que Dante nos propõe suscita certamente admiração, maravilha, gratidão. Nele podemos quase entrever um precursor da nossa cultura multimediática, na qual palavras e imagens, símbolos e sons, poesia e dança se fundem numa única mensagem. Assim se compreende por que o seu poema tenha inspirado a criação de inúmeras obras de arte de todo o género.

Mas a obra do insigne Poeta suscita também alguns desafios para os nossos dias. Que poderá ela comunicar-nos, no nosso tempo? Terá ainda algo a dizer-nos, a oferecer-nos? Terá a sua mensagem alguma função a desempenhar também para nós na atualidade? Poderá ainda interpelar-nos?

Hoje Dante – tentemos fazer-nos intérpretes da sua voz – não nos pede para ser simplesmente lido, comentado, estudado, analisado. Pede-nos sobretudo para ser escutado, ser de certo modo imitado, fazer-nos seus companheiros de viagem, porque quer-nos mostrar também hoje qual é o itinerário para a felicidade, a direita via para viver plenamente a nossa humanidade, superando as selvas escuras onde perdemos a orientação e a dignidade. A viagem de Dante e a sua visão da vida além da morte não são simplesmente objeto duma narração, não constituem apenas um acontecimento pessoal, embora excecional.

Se Dante conta tudo isto (e fá-lo de maneira admirável), usando a linguagem vulgar do povo, a língua que todos podiam compreender, elevando-a a língua universal, é porque tem uma mensagem importante a transmitir-nos, uma palavra que quer tocar o nosso coração e a nossa mente, destinada a transformar-nos e mudar-nos já agora, nesta vida. É uma mensagem que pode e deve tornar-nos plenamente conscientes daquilo que somos e daquilo que vivemos dia após dia na tensão interior e contínua para a felicidade, para a plenitude da existência, para a pátria última onde estaremos em plena comunhão com Deus, Amor infinito e eterno. Embora Dante seja um homem do seu tempo e possua sensibilidade diferente da nossa em alguns assuntos, todavia o seu humanismo é ainda válido e atual e pode certamente constituir um ponto de referência para aquilo que queremos construir no nosso tempo.

Por isso, aproveitando esta ocasião propícia do centenário, é importante que a obra de Dante seja dada a conhecer ainda melhor e de maneira mais adequada, isto é, seja tornada acessível e atraente não só para alunos e estudiosos, mas também para todos aqueles que, ansiosos por dar resposta às questões interiores, desejosos de realizar em plenitude a sua existência, querem viver o seu itinerário de vida e de fé de forma consciente, acolhendo e vivendo com gratidão o dom e o compromisso da liberdade.

Congratulo-me naturalmente com os professores que são capazes de comunicar com paixão a mensagem de Dante, introduzir no tesouro cultural, religioso e moral contido nas suas obras. Mas este património pede para ser tornado acessível fora das aulas das escolas e universidades.

Exorto as comunidades cristãs, sobretudo as estabelecidas nas cidades que conservam as memórias de Dante, as instituições académicas, as associações e os movimentos culturais a promoverem iniciativas visando o conhecimento e a difusão da mensagem de Dante na sua plenitude.

De maneira particular encorajo os artistas a dar voz, rosto e coração, a dar forma, cor e som à poesia de Dante, ao longo da via da beleza que ele percorreu magistralmente; e assim comunicar as verdades mais profundas e, com as linguagens próprias da arte, difundir mensagens de paz, liberdade, fraternidade.

Neste momento histórico particular, marcado por muitas sombras, por situações que degradam a humanidade, por falta de confiança e de perspectivas para o futuro, a figura de Dante, profeta de esperança e testemunha do desejo humano de felicidade, pode ainda dar-nos palavras e exemplos que estimulam o nosso caminho. Pode ajudar-nos a avançar, com serenidade e coragem, na peregrinação da vida e da fé que todos somos chamados a realizar até o nosso coração encontrar a verdadeira paz e a verdadeira alegria, até chegarmos à meta última de toda a humanidade, «o amor que move o sol e as mais estrelas» (Par. XXXIII, 145).

Vaticano, na solenidade da Anunciação do Senhor, 25 de março do ano de 2021, nono do meu pontificado.

Francisco

Notas:

[*] Usou-se a tradução portuguesa da obra bilingue de VASCO GRAÇA MOURA, A Divina Comédia de Dante Alighieri, Bertrand Editora – Venda Nova, 52000.

[1] Carta enc. In praeclara summorum (30 de abril de 1921): AAS 13 (1921), 209-217

[2] Cf. ibidemo. c. 210

[3] Epistola Nobis, ad Catholicam (28 de outubro de 1914): AAS 6 (1914), 540.

[4] Discurso ao Sacro Colégio e à Prelatura Romana (23 de dezembro de 1965): AAS 58 (1966), 80

[5] Cf. AAS 58 (1966), 22-37.

[6] Discurso aos participantes no Encontro promovido pelo Pontifício Conselho «Cor Unum» (23 de janeiro de 2006): Insegnamenti 2006, II/1, 92-93.

[7] Ibidemo. c., 93.

[8] Cf. Carta enc. Lumen fidei (29 de junho de 2013), 4: AAS 105 (2013), 557.

[9] Mensagem ao Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura (4 de maio de 2015): AAS 107 (2015), 551-552.

[10] Ibidemo. c., 552.

[11] L’Osservatore Romano (10 de outubro de 2020), 7.

[12] Cf. Confissões, I, 1, 1: PL 32, 661.

***

Leia mais em Sobre o papel da Literatura na Educação

Leia mais em Matemática Sagrada na Divina Comédia de Dante



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.


 

Total de visualizações de página