Iluminura do Livro de Jogos, obra do scriptorium de Afonso X. A imagem mostra três copistas trabalhando. |
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Trecho retirado do livro Uma História da Matemática da Florian Cajori, publicado pela Editora Ciência Moderna, em 2007.
A Europa durante a Idade Média
Com o terceiro século depois de Cristo começou uma era de migração de nações na Europa. Os poderosos godos abandonaram os seus pântanos e florestas no norte e, em marcha constante em direção ao sul, desalojaram os vândalos, os suecos, e os borgonheses. Cruzando o território romano, pararam e recuaram somente quando alcançaram as praias do Mediterrâneo. Dos Montes Urais, hordas selvagens varreram as terras até o Danúbio, o Império Romano caiu em pedaços indicando a Idade das Trevas. Embora possa parecer tenebroso, foram eles os responsáveis pela criação das instituições e das nações da Europa Moderna. Assim como os gregos e os hindus foram os grandes pensadores da antiguidade, o mesmo também se aplica aos povos latinos, que foram o embrião de um forte e luxuriante acontecimento, ou seja, as modernas civilizações do norte dos Alpes e a da Itália passaram a ser os grandes líderes dos tempos modernos.
INTRODUÇÃO À MATEMÁTICA DOS ROMANOS
Consideraremos agora como as nações do norte, ainda bárbaras, gradualmente conseguiram se apossar dos tesouros intelectuais da antiguidade. Com a expansão do cristianismo, a língua latina foi introduzida não só eclesiástica, como também cientificamente em todas as importantes transações mundiais. Naturalmente a ciência da Idade Média foi largamente extraída das fontes latinas. Com isto, durante os primeiros tempos da Idade Média os autores romanos eram os únicos escritores lidos no Ocidente. Embora o grego não fosse totalmente desconhecido, mesmo assim, antes do século XIII nenhum trabalho grego foi lido ou traduzido para o latim. Por ser na verdade escassa a ciência de que se poderia extrair dos escritores romanos, tivemos de esperar vários séculos antes que qualquer progresso matemático fosse feito.
Depois da época de Boécio e Cassiodório [Cassiodoro], a atividade matemática Itália morreu completamente. O primeiro tênue sopro de ciência entre as tribos que vieram do norte foi uma enciclopédia intitulada Orígenes [Etimologias], escrita por Isidoro (morto em 636 como bispo de Sevilha). Este trabalho é baseado nas enciclopédias de Martiano Capella de Cartago e a de Cassiodório e parte dele é dirigido ao quadrivium, aritmética, música, geometria, e astronomia. O autor apresenta definições e explicações gramaticais de termos técnicos, e mais os modos de computação usados na época. Depois de Isidoro, seguiu um século de obscurantismo um pouco dissipado pela presença de Beda, o Venerável (672-735), o mais erudito homem do seu tempo. Era um nativo de Wearmouth, na Inglaterra, seus trabalhos contêm tratados sobre o Computus, ou cálculo da data da Páscoa e prática da contagem com os dedos. Parece que o simbolismo com os dedos foi então largamente usado para os cálculos. A correta determinação da data da Páscoa naqueles dias era um problema crucial para a Igreja. Tornou-se mandatório que pelo menos um monge em cada monastério soubesse calcular o dia dos festivais religiosos, bem como o calendário. Tais cálculos requerem algum conhecimento de aritmética. Portanto achamos que a arte do cálculo sempre teve um papel importante na educação dos monges.
O ano em que Beda morreu é também o ano em que Alcuíno (735- 804) nasceu. Alcuíno foi educado em York, e depois chamado à corte de Carlos Magno, que foi um grande patrono da educação, e ele próprio um homem culto. Nas grandes catedrais e monastérios criaram-se escolas nas quais eram ensinados os salmos, a escrita, o canto, o cálculo (computus) e a gramática. Por computus significa aqui, provavelmente, não meramente o cálculo da data da Páscoa, mas a arte do cálculo em geral. Exatamente o que era, não temos como saber. Não se sabe igualmente se Alcuíno estava familiarizado com os ápices de Boécio ou com o modo romano de calcular pelo ábaco. Ele pertence à extensa lista dos sábios que moldaram a teoria dos números na teologia. Assim, o número de seres criados por Deus, que criou também todas as coisas, é 6, porque 6 é um número perfeito (cuja soma dos seus divisores é 1 + 2 + 3 = 6); 8, por outro lado, é um número imperfeito (1 + 2 + 4 < 8); portanto a segunda origem da humanidade vem do número 8, que é o número de almas dito ter estado na arca de Noé.
Há uma coleção de "Problemas para estimular a mente" (propositiones ad acuendos invenes), que é tão velha quanto 1000 d.C. ou talvez mais. O historiador Cantor é de opinião que foram escritos muito antes por Alcuino. O que se segue é um desses "Problemas": Um cão corre atrás de um coelho que tem uma vantagem de 50 m, e avança por cada pulo 3 metros, enquanto o coelho ao dar um pulo avança 2,5 metros. Para calcular em quantos pulos o cão alcança o coelho, 50 é dividido por 0,5 [1]. Nessa coleção de problemas, as áreas de terras triangulares ou quadrangulares são calculadas pelas mesmas fórmulas aproximadas usadas pelos egípcios fornecidas por Boécio em sua geometria. Um antigo problema é o da "cistema" (dado o tempo em que cada uma de várias bicas podem encher uma cistema, calcular o tempo que todas juntas levariam para enchê-la), que fora previamente encontrado em Herão, na Antologia grega, e em trabalhos hindus. Muitos dos problemas indicam que a coleção foi compilada principalmente de fontes romanas. O problema que em razão de sua unicidade dá o mais positivo testemunho de sua origem romana é o da interpretação de um testamento, no caso dos dois herdeiros serem gêmeos. O problema é idêntico aos dos romanos, exceto no que diz respeito às proporções de divisão estabelecidas no testamento. Como exemplo de problemas recreativos, mencionamos o do lobo, da cabra e da couve que devem fazer a travessia de um rio em um bote que os transporte, além do seu piloto, apenas mais um dos três. Pergunta: Quais podem ir no barco em cada travessia de modo que a cabra não coma a couve e nem o lobo a cabra? As soluções dos "problemas para estimular a mente" requerem não mais conhecimento do que algumas poucas fórmulas usadas em agrimensura, a habilidade de resolver equações lineares e o domínio das quatro operações fundamentais com inteiros. Extrações de raízes em nenhuma parte eram exigidas; e frações dificilmente ocorriam.
O grande império de Carlos Magno foi ameaçado de ruir logo após a sua morte em virtude da guerra e confusão que assumiram o poder. As pesquisas científicas foram abandonadas, e não retomadas até o final do século X, quando sob o domínio saxônico na Alemanha e dos capetianos na França, surgiu mais uma época de paz e a espessa escuridão da ignorância começou a desaparecer, e o zelo com o qual o estudo de matemática foi tomado deve-se principalmente a energia e influência de um homem Gerbert, nascido em Auvergne (França). Depois de receber uma educação monástica engajou-se no estudo, principalmente de matemática na Espanha. De volta ensinou em Reims por dez anos, tornando-se notável por sua grande cultura e elevado a mais alta posição. Pelo rei Oto I e seus sucessores, foi eleito bispo do Reino, depois de Ravena, sendo por fim, eleito papa sob o nome de Silvestre II, pelo último imperador Oto III. Considerado como o maior matemático da Europa do século X. sua matemática foi considerada maravilhosa pelos seus contemporâneos. Morreu em 1003 depois de uma vida atribulada, envolvendo-se em muitas disputas políticas e religiosas, acusado de conluios criminosos com os espíritos do diabo.
Gerbert aumentou seus conhecimentos com a leitura de livros raros. Assim, em Múntua, encontrou a geometria de Boécio, e embora isto fosse de menor valor científico, possuía, contudo, uma grande importância histórica. Foi, na época, o livro principal no qual os sábios europeus podiam aprender os elementos de geometria. Gerbert estudou-o com afinco, e é aceito, em geral, que ele próprio tenha sido o autor de uma geometria. H. Weissenbonn, um historiador, nega essa teoria, e garante que o livro em questão consiste em três partes que não podem ter vindo de um mesmo e único autor. Estudos mais recentes admitem Gerbert como o autor e adiantam que ele o tenha compilado de diferentes fontes. A sua geometria contém pouco mais do que a de Boécio, mas o fato de erros ocasionais nesta última e corrigidas na de Gerbert demonstra que o autor dominara o assunto. "O primeiro texto matemático da Idade Média que merece este nome", diz Hankel, "é uma carta de Gerbert a Adalbold, bispo de Utrecht", na qual é explicada a razão porque a área de um triângulo, obtida "geometricamente" tomando-se produto da base pela metade da altura difere da área calculada "aritmeticamente", pela fórmula \dfrac{1}{2} a (a + 1), usada pelos agrimensores onde a representa o lado de um triângulo equilátero. A carta fornece corretamente a explanação que na última fórmula todos os pequenos quadrados, nos quais é suposto o triângulo ser dividido, são contados inteiramente, embora parte deles saia fora dos limites da figura. D. E. Smith chama a atenção para um grande jogo numérico medieval; chamado Aritmancia: suposto por alguns ser de origem grega, foi praticado até tardiamente como no século XVI. Esse jogo exige considerável habilidade aritmética, tendo sido conhecido por Gerbert, Oronce Fine, Thomas Bradwardine e outros. Um tabuleiro semelhante ao de xadrez era usado. Relações como 81=72+ \dfrac{1}{8} de 72, 42 = 36 + \dfrac{1}{6} de 36 eram envolvidas no jogo.
Gerbert fez um cuidadoso estudo dos trabalhos de Boécio, e ele próprio publicou o primeiro, talvez ambos, dos dois trabalhos seguintes, Um Pequeno Livro sobre Divisão de Números: e o Regras de Cálculo Para o Ábaco. Estes livros dão idéia dos métodos de cálculos praticados na Europa antes da introdução dos numerais hindus. Gerbert usou o ábaco que provavelmente não era conhecido por Alcuíno. Bernelino, um aluno de Gerbert, descreve o ábaco como consistindo em uma prancha lisa sobre a qual os geômetras estavam acostumados a espalhar areia azul para desenhar os seus diagramas. Para os propósitos aritméticos, a prancha era dividida em 30 colunas, das quais três eram reservadas para frações enquanto as 27 restantes, divididas em grupos com três colunas em cada. Em cada grupo, as colunas são marcadas respectivamente pelas letras C (cento), D (dez), e S (unidades) ou M (monas). Bernelino apresenta os nove numerais usados que são os ápices de Boécio, e relembra que as letras gregas podem ser empregadas nos lugar daqueles. Com a utilização das colunas, qualquer número pode ser escrito sem o zero, e todas as operações da aritmética podem ser executadas sem as colunas do mesmo modo que fazemos hoje, empregando o zero. Na verdade, os modos de adicionar, subtrair, e multiplicar em voga entre os abacistas concordam substancialmente com os de hoje. Mas para a divisão existe uma grande diferença. As primitivas regras para a divisão parecem ter sido elaboradas para satisfazerem as três seguintes condições: (1) O uso de tabelas para a multiplicação seriam restritas, pelo menos, à prática de nunca se pedir a multiplicação mental de um número de dois dígitos por outro de um dígito. (2) As substrações deveriam ser evitadas tanto quanto possível e substituídas por adição. (3) A operação deveria ser feita de modo puramente mecânico, não sujeita a tentativas. Que tais condições fossem pedidas pode nos parecer estranho; mas deve ser lembrado que os monges da Idade Média não freqüentavam a escola na infância e aprendiam a tabuada enquanto a memória estava fresca. As regras para a divisão de Gerbert são as mais antigas ainda existentes. Elas são tão lacônicas que se tornam obscuras para o não iniciado. Foram provavelmente criadas simplesmente para ajudar a memória na chamada das sucessivas etapas do trabalho. Nos manuscritos posteriores foram instituídas com mais detalhes. Na divisão de um número qualquer por outro de um algarismo digamos 668 por 6, o divisor era primeiro aumentado para 10 com o acréscimo de 4. O processo era apresentado com uma figura ao lado. Na continuação do processo, devemos imaginar os dígitos que deveriam ser cortados, apagados e substituídos pelo que estava abaixo. Seria como segue: 600\div 10 = 60, mas para corrigir o erro, 4 \times 60, ou 240, deveria ser adicionado; 200 \div 10 = 20, mas 4 \times 20, ou 80, adicionado. Agora, escreve-se para 60 + 40+ 80, cuja soma é 180, e continuava-se assim: 100 \div 10 = 10; a correção necessária é 4 \times 10, ou 40, que somada a 80, dá 120. Novamente 100 \div 10 = 10, e a correção 4 \times 10, junto com 20, resulta 60. Procedendo como antes, 60 \div 10 = 6; a correção é 4\times 6 = 24. Agora 20 \div 10 = 2, a correção passa a ser 4\times 2 = 8. Na coluna das unidades temos aqui 8 + 4 + 8, ou 20. Como antes 20 \div 10 = 2; a correção é 2 \times 4 = 8, que não divisível por 10, mas somente por 6, fornecendo o quociente 1 e o resto 2. Todos os quocientes parciais tomados juntos fornecem 60 +20 + 10 + 10 + 6 + 2 + 2 + 1 = 111, e o resto 2.
Semelhante, mas mais complicado, é o processo quando o divisor é formado por dois ou mais algarismos. Quando o divisor for 27, por exemplo, então o múltiplo mais próximo de 10, ou 30, deve ser tomado como divisor, mas as correções para 3 são impostas. Aquele que tivesse paciência para levar uma tal divisão até o fim, entenderia por que se tem dito de Gerbert que "Regulas dedit, quae a sudantibus abacistis vix intelliguntur" [2]. Perceberá também por que o método de divisão árabe, quando foi introduzido, era chamado de divisio aurea, mas para o ábaco, de divisio ferrea.
Em seu livro sobre o ábaco, Bernelino separou um capítulo para frações. Estas eram, naturalmente, as duodecimais, primeiramente usadas pelos romanos. Sem uma notação adequada, o cálculo com elas era muito difícil. Mesmo para nós que estamos acostumados a lidar com frações, pela aplicação de nomes, tais como uncia para \dfrac{1}{12} quincunx para \dfrac{5}{12} e dodrans para \dfrac{9}{12}.
No século X, Gerbert foi a figura central dos sábios. No seu tempo, o Ocidente entrou na posse segura de todo o conhecimento matemático dos romanos, e durante o século XI esse saber foi estudado assiduamente. Apesar dos numerosos trabalhos que foram escritos sobre aritmética e geometria, o conhecimento matemático era ainda muito insignificante, na verdade escassos tesouros matemáticos obtidos das fontes romanas.
Notas:
[1] Está subentendido que o cão e o coelho, na corrida, executam os saltos concomitantemente. (N. T.)
[2] Estabeleceu regras que são compreendidas apenas por esforçados abacistas. (N. T.)
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