A sabedoria medieval na ponta dos dedos,por Luis Dufaur - Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs.
A queda do Império Romano deixou a Europa e boa parte do Oriente Próximo submersos no mais generalizado analfabetismo. Porque nesse Império, tão grande sob os pontos de vista cultural, jurídico e administrativo, tão elogiado hoje, a imensa maioria dos homens era de escravos. Apenas as classes altas que dirigiam a sociedade e os exércitos haviam recebido instrução, por vezes aprimorada. Mas essas categorias cultas pereceram ou desapareceram nas invasões dos bárbaros. Os bárbaros – talvez feitas algumas exceções – acrescentaram o próprio deles: a barbárie! Foi o trabalho santo, heroico e paciente da Igreja, notadamente suas escolas monacais, episcopais ou paroquiais que foram tirando Europa da noite da ignorância até transforma-la num farol de cultura universal.
São Beda é o fundador da historiografia inglesa, entre outros títulos
O trabalho educador demorou séculos considerando as devastações das sucessivas invasões bárbaras e dos muçulmanos cheios de ódio destrutor. Houve um período intermediário de séculos até os povos serem satisfatoriamente instruídos. Como faziam então, os primeiros medievais com suas contas sabendo pouco escrever ou ler? O mais incrível que o faziam com os dedos da mão, porém com uma habilidade e uma complexidade de nos fazer passar vergonha. A habilidade era tão surpreendente que foi objeto de uma reportagem especial do jornal portenho “La Nación”.
Nós também contamos com os dedos, mas não vamos além dos 10 das duas mãos. Os medievais conheciam combinações por onde com esses 10 podiam facilmente calcular até 9.999. Os mais habilidosos podiam fazer cálculos na casa do milhão pondo as mãos em diversas partes do corpo, algo muito útil para os que mexiam com dinheiro.
Em verdade, o método não era exclusivamente medieval e já existia na Antiguidade. O escritor romano do século V Marciano Capela descreveu “a dama da Aritmética”, como uma “mulher de extraordinária beleza, e a majestade de uma nobilíssima antiguidade”, em seu livro “De Nuptiis”, no qual personifico as sete artes liberais. E descreveu uma “dança” que a dama Aritmética executava com as mãos: a complexa e muito prezada arte de contar com os dedos. Tudo isso se teria perdido se não fosse os monges católicos.
A dama da Aritmética, xilografia do livro Margarita Philosophica (A pérola filosófica), de Gregor Reisch (1467 -1525)
“Esse sistema foi usado até os séculos XI e XIII na Idade Média em toda a Europa”, disse à BBC Mundo o historiador da ciência medieval Seb Falk, autor do livro “The Light Ages” ou “A idade da luz”.
O livro De temporum ratione ou “Como contar o tempo” de um monge do início do século VIII é o mais interessante. O religioso vivia em um dos cantos mais remotos do mundo conhecido, no mosteiro de Jarrow, no nordeste da Inglaterra. Mas suas obras iluminaram a civilização ocidental durante milênios, e sua fama de estudioso de renome internacional revoa até hoje: foi São Beda, o Venerável, Doutor da Igreja. O referido tratado marcou o compasso da Europa até a reforma gregoriana de 1582 ensinando a ciência do cálculo do tempo e a arte da construção do calendário.
Sinais sobre o corpo para os grandes números
“A base do calendário cristão é a Páscoa. Essa data tem que ser identificada meses ou anos antes para harmonizar o culto divino e desencadeou grandes debates do Atlântico a Alexandria”, explica o historiador da ciência. “Devia cair no domingo após a primeira lua cheia ou equinócio, e tinha que ser marcada com antecedência, já que toda a liturgia católica depende dela. “Era preciso combinar o ciclo solar e o ciclo lunar e os dias da semana.
“São Beda resolveu como fazê-lo usando os dedos das mãos! Assim chegava à data correta da Páscoa em questão de segundos. “Não foi à toa que seu manual enciclopédico foi impresso e copiado por centenas de anos”, escreveu o professor Seb Falk.
São Beda mostra que as mãos, esses aparelhos portáteis por excelência, servem como computadores modernos e ensinou como contar até 9999.
“Assim como, quando escrevemos, temos uma coluna para as unidades, outra para as dezenas, centenas e milhares, ele dedicava o dedo mínimo, o anel e os dedos médios da mão esquerda às unidades e o indicador e o polegar às dezenas; na mão direita, o polegar e o indicador indicavam as centenas e os outros três dedos, os milhares”. “Diferentes combinações desses dedos em posições diferentes permitiram representar todos esses números”, escreve Falk.
Seb Falk, 'The Light Ages'
São Beda forneceu dicas para aprender a contar: dizendo os números em voz alta enquanto mostra suas mãos e os alunos se acostumam a gestos às vezes difíceis de reproduzir, até memoriza-los. Pode se usar as mãos para adicionar, subtrair, multiplicar como um ábaco.
“Era uma linguagem de sinais usada pelos feirantes para se comunicar de maneira eficaz em meio ao ruído e à distância”, explica Falk. “Os monges utilizavam para se comunicar em mosteiros onde o silêncio é regra, e para memorizar textos filosóficos e fórmulas matemáticas”.
Nesse caso os números eram substituídos pelas letras – a letra “a” era representada pelo 1; a “b” pelo 2, etc. E também servia de código secreto em caso de perigo. Se alguém quiser alertar um amigo que está entre traidores mostra com os dedos 3, 1, 20, 19, 5 e 1, 7, 5; nessa ordem as letras significam caute age (aja com cautela). Esse código manual também foi valioso para o estudo de algo muito precioso na vida monástica: a música.
“A música foi estudada de uma maneira muito científica; para monges era uma ciência matemática. “Eles pensavam constantemente sobre a relação entre as diferentes harmonias, nas proporções aritméticas entre as diferentes notas da escala musical. “Para esses filósofos tudo havia sido criado por Deus com algum motivo, e a ‘harmonia das esferas’ e da ‘música universal’ não era uma metáfora”.
Os monges haviam recuperado os escritos do grego Pitágoras, pai das matemáticas, que postulava que o Universo era governado de acordo com magnitudes numéricas harmoniosas e que o movimento dos corpos celestes seguia proporções musicais.
São Beda no leito de morte dita a interpretação do último capítulo do Apocalipse, James Doyle Penrose (1862 – 1932), Royal Academy, Burlington House, Piccadilly
Assim os dedos serviam para os mais complicados cálculos astronômicos. Mas também para erigir catedrais de altitudes vertiginosas e formas ousadas que perduram até hoje. Se o sistema dos dedos distorcesse um pouco esses prédios teriam desabado há tempo. “Os planetas tocavam um tipo de música criada pela velocidade em que giravam, que era como uma frequência: quanto maior a frequência, maior a nota. (Este conceito aliás foi assimilado por Aristóteles e comentado por Santo Tomás de Aquino). “Para lembrar as diferentes notas musicais e configurações de harmonia, eles usavam as mãos”, prossegue o historiador da ciência.
Naquela época, a memória era uma ferramenta indispensável, porque os materiais de escrita eram muito caros, os livros eram escassos e muito prezados. Talvez os mais preciosos sejam os do Venerável São Beda que nos transmitiu a dança digital científica que durante séculos serviu para a contagem da melodia cósmica e a construção da Cristandade.
Genial. Contudo, até o leitor mais benevolente pode questionar se Platão não foi um pouco além da conta; Aristóteles certamente achava que foi. Mas é importante entender que, descontados certos detalhes e floreios retóricos, até muitas pessoas que não são solidárias à cosmovisão global de Platão admitem que sua teoria é altamente plausível e defensável, e ela sempre teve defensores de peso, inclusive nos dias atuais. O motivo é que é notoriamente dificílimo evitar algo pelo menos similar à teoria de Platão se quisermos que a matemática, a linguagem, a ciência e a própria estrutura do mundo da experiência façam sentido.
Para entender o porquê, consideremos três tipos de coisas (embora haja outras) que têm toda a aparência de ser objetos abstratos como os que Platão postula, isto é, entidades existentes fora do tempo e do espaço e fora da mente humana. Os primeiros são os universais, dos quais já vimos exemplos. Além deste ou daquele triângulo específico, temos a “triangularidade” universal; além deste ou daquele ser humano, temos “o humano” universal; além desta ou daquela coisa vermelha, temos a “vermelhidão” universal; e, em geral, cada coisa específica parece exemplificar várias características universais. As coisas específicas são únicas e irrepetíveis – há apenas um Sócrates, um Aristóteles, um George W. Bush etc. – mas os aspectos que exemplificam (por exemplo, “humano”) são repetíveis e comuns a muitas coisas e, portanto, “universais”.
Um segundo exemplo são os números e outras entidades matemáticas. Os números não são objetos físicos: o numeral “2” não é o número2, assim como o nome “George Bush” não é a mesma coisa que o homem George Bush, e apagar todos os numerais 2 que todas as pessoas já escreveram não fará com que de repente 2 + 2 = 4 seja falso. Tampouco são os números puramente mentais: como acontece com as verdades geométricas, as verdades da matemática em geral são coisas que nós antes descobrimos que inventamos; de alguma forma elas já estão “por aí” esperando que as encontremos; portanto, não é necessário que pensemos sobre elas para que sejam verdadeiras. São ainda verdades necessárias, não contingentes. Saber, digamos, que há nuvens sobre Vênus é saber um fato contingente, isto é, que poderia não ter ocorrido. Por exemplo, poderia ser que Vênus nunca tivesse existido, ou que sua órbita o levasse para tão perto do Sol, que qualquer atmosfera que tivesse teria sido dissipada há muito tempo; e, seja como for, em algum momento do futuro o Sol se expandirá e engolirá tanto Vênus como as nuvens que o recobrem, incinerando-os completamente. Mas conhecer mesmo um fato matemático simples, como 2 + 2 = 4, é conhecer uma verdade necessária, que não poderia não ocorrer [10]; 2 e 2 já eram 4 muito antes de alguém saber disso e continuariam 4 ainda que todos nos esquecêssemos disso ou morrêssemos. Aliás, continuaria a ser verdade que 2 + 2 = 4 ainda que todo o universo despencasse sobre si mesmo. Mas se essa verdade matemática é de tal modo necessária, então as coisas a respeito das quais é verdadeira – os números – também devem existir de modo necessário, fora do tempo e do espaço e independente de qualquer mente.
Por fim, temos o que os filósofos chamam de proposições – declarações sobre o mundo, sejam verdadeiras ou falsas, que são distintas das frases que as expressam. “John é solteiro” e “John não é comprometido” são frases diferentes, mas expressam a mesma proposição. “A neve é branca” e “Schnee ist weiss” também são frases diferentes – na verdade, aquela é do português e esta do alemão – mas expressam, do mesmo modo, exatamente a mesma proposição, a saber, a proposição de que a neve é branca. Quando a mente cogita qualquer pensamento de qualquer tipo, seja verdadeiro ou falso, é em última análise uma proposição que cogita, não uma frase. Esse é o motivo pelo qual podemos todos cogitar os mesmos pensamentos apesar de estarmos separados por diferentes línguas, épocas e lugares: quando pensam que a neve é branca, Sócrates e George Bush estão pensando exatamente a mesma coisa, apesar do fato de que um deles expressa esse pensamento em grego na Atenas do século V antes de Cristo e o outro em inglês no Texas do século XXI. Diferindo de qualquer frase, aliás de qualquer outra sequência física de sons ou formas que se pode usar para expressá-las, as proposições são em algum sentido distintas do mundo material. Porém, como uma proposição ou é verdadeira ou é falsa ainda que ninguém a cogite – novamente, 2 + 2 = 4 continuaria verdadeiro mesmo que nos esquecêssemos disso amanhã, 2 + 2 = 5 seria falso mesmo que todos passássemos a acreditar que é verdadeiro e a neve já era branca muito antes de ser vista por alguém –, parece seguir-se que as proposições também são independentes de qualquer mente.
A posição de que os universais, os números e/ou as proposições existem objetivamente, à parte de qualquer mente humana e distintos de qualquer aspecto material ou físico do mundo, é chamada de realismo e a Teoria das Formas de Platão talvez seja a sua versão mais famosa (embora não a única, como veremos). As posições alternativas tradicionais são o nominalismo, que nega que os universais e similares sejam reais, e o conceptualismo, que reconhece sua realidade mas insiste que eles existem apenas na mente; e, como o realismo, cada uma dessas posições vem em diversos modelos. O debate entre essas três correntes é antigo e extremamente complicado [11]. Pode parecer ainda, à primeira vista, bastante improdutivo, esotérico e irrelevante para a vida prática. Mas nada pode estar mais longe da verdade. O fato é que não é exagerado afirmar que virtualmente todas as grandes controvérsias religiosas, morais e políticas das últimas décadas – aliás, dos últimos séculos – repousam de algum modo em discordâncias sobre o “problema dos universais” (como é conhecido), ainda que esse fato esteja implícito ou não seja notado. Isso inclui a disputa entre os “neoateus” e seus adversários, por mais ignorantes que aqueles (embora, com frequência, também estes) sejam das verdadeiras raízes da questão. Quando fez a famosa observação de que “ideias têm consequências” [livro], Richard Weaver não estava afirmando o fato banal de que aquilo em que acreditamos afeta o modo como agimos; estava se referindo às radicais implicações sociais e morais do abandono do realismo e da adoção do nominalismo para a civilização ocidental moderna [12].
Examinaremos essas consequências no momento devido. Por ora, analisemos brevemente algumas das razões que fazem com que o realismo, de uma forma ou de outra, pareça inescapável até para muitos pensadores visceralmente inclinados a rejeitá-lo; e por que as tentativas de escapar dele – a saber, o nominalismo e o conceptualismo – parecem, em última análise, indefensáveis, por maior que seja o entusiasmo (ou o desespero) com que se tenta defendê-las.
Já aludimos a alguns dos argumentos que se seguem, mas será útil resumi-los e torná-los mais explícitos. (Alguns também são levemente técnicos; rogo a tolerância do leitor.) Em prol da simplicidade, alguns deles serão formulados de maneira “platônica”; realistas de outras correntes os modificariam ligeiramente.
1. O argumento do “um sobre o múltiplo”: A “triangularidade”, a “vermelhidão”, o “humano” etc. não são redutíveis a nenhum triângulo, objeto vermelho ou ser humano específico, nem mesmo a uma coleção de triângulos, objetos vermelhos ou seres humanos. Pois qualquer triângulo, objeto vermelho ou ser humano específico, ou até o conjunto completo dessas coisas, poderia deixar de existir sem que a triangularidade, a vermelhidão e o humano deixassem de poder ser representados novamente. Essas coisas também podem ser, e muitas vezes são, representadas ainda que nenhuma mente humana esteja ciente disso. Portanto, a triangularidade, a vermelhidão, o humano e outros universais não são nem coisas materiais, nem conjuntos de coisas materiais, nem dependentes de mentes humanas para existir.
2. O argumento da geometria: Na geometria, lidamos com linhas perfeitas, círculos perfeitos e assemelhados e descobrimos fatos objetivos a respeito deles. Como são objetivos – nós não os inventamos e não poderíamos alterá-los se quiséssemos – esses fatos não dependem da nossa mente. Como são necessários e inalteráveis (ao contrário dos fatos que dizem respeito a coisas materiais) e como nenhuma coisa material tem a perfeição que os objetos geométricos têm, eles também não dependem do mundo material. Portanto, são fatos que dizem respeito a uma “terceira esfera” de objetos abstratos.
3. O argumento da matemática em geral: As verdades matemáticas são necessárias e inalteráveis, ao passo que o mundo material e a mente humana são contingentes e mutáveis. Essas verdades já eram verdadeiras antes de o mundo material ou as nossas mentes existirem e continuariam a ser verdadeiras se estes deixassem de existir. Assim, os objetos a respeito dos quais essas verdades são verdades – números e similares – não podem ser nem mentais nem materiais, mas abstratos. Além disso, a série de números é infinita, mas há apenas uma multiplicidade finita de coisas materiais e apenas uma multiplicidade finita de ideias em qualquer mente humana ou conjunto de mentes humanas; logo, as séries numéricas não podem ser identificadas com nada material nem como nada mental.
4. O argumento da natureza das proposições: As proposições não podem ser identificadas nem com algo material nem com algo mental. Pois algumas proposições (por exemplo, verdades matemáticas como 2 + 2 = 4) são necessariamente verdadeiras e, portanto, continuariam verdadeiras ainda que nem o mundo material nem a mente humana existissem. Muitas proposições contingencialmente verdadeiras também continuariam verdadeiras em tais circunstâncias: “César foi assassinado nos Idos de Março” continuaria verdadeiro ainda que o mundo inteiro e todas as mentes humanas saíssem da existência amanhã. Ainda que nem o mundo material nem mente humana alguma jamais tivessem existido, a proposição “não há nem mundo material nem qualquer mente humana” teria sido verdadeira, caso em que não seria algo nem material nem mental. E assim por diante [13].
5. O argumento da ciência. As leis e classificações científicas, sendo de aplicação geral ou universal, necessariamente fazem referência a universais; e o interesse da ciência é descobrir fatos objetivos, independentes de qualquer mente. Assim, aceitar os resultados da ciência é aceitar que existem universais independentes da mente. Além disso, a ciência usa formulações matemáticas, e dado que (como observado acima) a matemática diz respeito a uma esfera de objetos abstratos, quem aceita os resultados da ciência fica, portanto, obrigado a aceitar que há tais objetos [14].
Esses argumentos são diretos. Existem também os indiretos, isto é, aqueles que mostram a impossibilidade de as alternativas ao realismo estarem corretas. Considere o nominalismo, que sustenta que não existem universais, nem números, nem proposições [15]. Onde acreditamos haver universais, afirma o nominalista, há apenas termos gerais, palavras que aplicamos a muitas coisas. Assim, por exemplo, há o termo geral “vermelho”, que aplicamos a vários objetos, mas não existe “vermelhidão” nenhuma. Evidentemente, surge com isso a questão de por que aplicamos o termo “vermelho” precisamente às coisas que aplicamos, e é difícil compreender qual outra resposta plausível poderia haver além de “porque todas elas têm a vermelhidão em comum”, o que nos leva novamente, no fim das contas, a afirmar a existência dos universais. O nominalista pode tentar evitar essa conclusão alegando que chamamos coisas diferentes de “vermelhas” porque elas lembram umas às outras, sem especificar em que aspecto o fazem. Isto é manifestamente implausível – não é simplesmente óbvio que elas lembram umas às outras com respeito à sua vermelhidão? – mas há outros problemas também:
6. O problema do regresso vicioso: Como Bertrand Russell observou, a própria “semelhança” a que o nominalista recorre é um universal [16]. Um sinal de “Pare” se assemelha a um caminhão de bombeiros, motivo pelo qual classificamos ambos de “vermelhos”. A grama lembra a pele do Incrível Hulk, razão pela qual chamamos a ambas de “verdes”. E assim por diante. O que temos, pois, são múltiplas representações de um mesmo universal, “semelhança”. Ora, o nominalista pode tentar evitar esta consequência dizendo que só chamamos todos esses exemplos de “semelhança” porque eles lembram uns aos outros, sem especificar em que aspecto o fazem. Mas aí, em vez de ser resolvido, o problema apenas surge novamente em um grau superior. Esses vários casos de semelhança se assemelham a vários outros casos de semelhança, de modo que temos uma semelhança de ordem superior, que será ela mesma um universal. E se o nominalista tentar evitar este universal aplicando mais uma vez a estratégia original, apenas enfrentará o mesmo problema novamente em um grau ainda mais elevado, ad infinitum.
7. O problema de que “as palavras também são universais”: O nominalista afirma que não há universais como “vermelhidão”, apenas termos gerais como “vermelho”. Contudo, esta afirmação parece obviamente autocontraditória, uma vez que o próprio termo “vermelho” é um universal. Você enuncia a palavra “vermelho”, eu enuncio a palavra “vermelho”, Sócrates enuncia a palavra “vermelho” e todas são obviamente enunciações específicas da mesma palavra, que existe para além das nossas várias enunciações dela. (Segundo a formulação usual dos filósofos, cada enunciação é um diferente token [espécime, exemplar] do mesmo type [tipo, palavra única].) Em verdade, esta é a única razão pela qual a proposta nominalista tem alguma plausibilidade (se é que ela tem alguma plausibilidade): Que a mesma palavra se aplique a muitas coisas pode parecer suficiente (pelo menos se você não pensar com cuidado na da questão) para gerar nossa impressão intuitiva de que há algo em comum entre elas. Mas, novamente, se é a mesma palavra, temos, uma vez que há diferentes enunciações dela, situação idêntica à do “um sobre o múltiplo” que o nominalista quer evitar. Para escapar desse resultado, ele pode afirmar que quando você, eu e Sócrates dizemos a palavra “vermelho”, na verdade nós não estamos enunciando a mesma palavra de maneira alguma, mas apenas palavras que se parecem umas com as outras. Isto seria, é claro, simplesmente de uma estupidez cristalina, além de um desespero patético. Na barganha, implicaria que a comunicação é impossível, uma vez que jamais estaríamos usando as mesmas palavras (aliás, você jamais usaria a mesma palavra mais de uma vez nem quando estivesse falando consigo mesmo, mas apenas palavras que lembram umas às outras) – neste caso, por que o nominalista está falando conosco? E o recurso à “semelhança” abriria novamente a porta ao problema do regresso vicioso.
Em geral, é dificílimo defender o nominalismo de um modo que não leve de volta, pela porta dos fundos, à adesão sub-reptícia aos universais ou outros objetos abstratos, em cujo caso a posição é autocontraditória. Por razões como esta, o conceptualismo procura escapar do realismo não negando que os universais existam, mas antes negando apenas que existam fora da mente. É uma tentativa de chegar a um meio termo entre o realismo e o nominalismo. Mas ele também enfrenta dificuldades que são consideradas em geral insuperáveis:
8. O argumento da objetividade dos conceitos e do conhecimento. Quando eu e você consideramos qualquer conceito – o conceito de um cachorro, digamos, ou de vermelhidão, ou aliás do próprio conceptualismo – cada um de nós está considerando o mesmo conceito; não é que você esteja considerando o seu conceito específico de vermelho e eu esteja considerando o meu, sem que haja nada em comum entre eles. Similarmente, quando cada um de nós considera várias proposições e verdades, estamos considerando as mesmas proposições e verdades. Assim, por exemplo, quando você pensa no Teorema de Pitágoras e eu penso no Teorema de Pitágoras, cada um de nós está pensando sobre uma única e mesma verdade; não é que você esteja pensando sobre o seu próprio Teorema de Pitágoras pessoal e eu esteja pensando no meu (o que quer que isso significasse). Assim, os conceitos (e, portanto, os universais) e as proposições não existem apenas na mente, subjetivamente, mas independentemente dela, objetivamente. Relacionado a este argumento há outro:
9. O argumento da possibilidade de comunicação: Suponha que, como sugere o conceptualismo, os universais e as proposições não fossem objetivos, mas existissem apenas nas nossas mentes. Nesse caso, nossa comunicação seria impossível. Pois toda vez que você dissesse algo – “A neve é branca”, por exemplo – os conceitos e proposições que expressasse seriam coisas que existiriam apenas na sua mente e assim seriam inacessíveis a todas as outras pessoas. Sua ideia de “neve” seria inteiramente diferente da minha ideia de “neve”, e como você só teria acesso à sua ideia e eu só teria acesso à minha, nós jamais diríamos a mesma coisa quando falássemos a respeito da neve ou, aliás, a respeito de qualquer outra coisa. Mas isto é absurdo: nós somos capazes de nos comunicar e apreender os mesmos conceitos e proposições. Logo, essas coisas não são subjetivas nem dependentes da mente, mas objetivas, como afirma o realismo.
Argumentos similares aos dois últimos se originam com o lógico Gottlob Frege (1848-1925), cuja preocupação era defender o estatuto científico da lógica e da matemática contra uma doutrina conhecida como “psicologismo”, que tendia a reduzir as leis dessas a meros princípios psicológicos dirigindo a operação da mente humana [17]. Isso significa, de acordo com essa perspectiva, que a lógica e a matemática não descrevem a realidade objetiva, mas apenas o modo pelo qual a estrutura da mente faz com que pensemos sobre a realidade. Há óbvias afinidades entre o conceptualismo e esse tipo de ponto de vista, que deriva de pensadores como Immanuel Kant (a respeito do qual diremos algumas coisas em capítulos posteriores). Quando se acrescenta a ele (o que Kant não fez) a sugestão de que a estrutura da mente é determinada por circunstâncias culturais, históricas e sociais contingentes e em evolução, o resultado é uma forma de relativismo cultural bastante radical, na qual todos os nossos conceitos, assim como a lógica, a matemática, a ciência etc., são condicionados pela cultura e sujeitos a revisão, sem nenhuma relação necessária com a realidade objetiva.
Radical e totalmente contraditório, como são o psicologismo e o conceptualismo em geral. Pois se afirmamos que os conceitos, as regras da lógica etc. não são determinados por nenhuma correspondência necessária com a realidade objetiva, mas antes pelos efeitos exercidos na nossa mente por forças históricas, culturais e similares contingentes, ou mesmo pela nossa evolução biológica, então temos de explicar exatamente como isto funciona – isto é, temos de dizer precisamente quais foram as forças biológicas e/ou culturais responsáveis por isso, como elas formaram nossa mente e assim por diante – e teremos ainda de dar argumentos em defesa desta explicação. Mas tal explicação terá necessariamente de recorrer a vários universais (“pressões seletivas darwinianas”, “interesses de classe”, “mutações genéticas”, “tendências sociais” etc.) e a princípios científicos e matemáticos controladores dos processos relevantes; e para defendê-los será necessário recorrer às regras da lógica. Contudo, essas são as coisas mesmas que, segundo o ponto de vista em questão, não têm nenhuma validade objetiva e (como supostamente dependem dela para existir) não existiam antes de a mente existir. Logo, teorias como essa são totalmente autocontraditórias.
Suponha que, em vez disso, seguindo Kant, o conceptualista ou psicologista adote a posição menos radical de que embora os conceitos e/ou as regras da lógica e da matemática reflitam apenas as operações da mente e não a realidade objetiva, este é um fato necessário a respeito de nós, algo que não pode ser mudado por evolução biológica nem cultural. Em outras palavras, estamos presos aos conceitos e regras que temos e os aspirantes a engenheiros sociais simplesmente deram azar. Isto impediria que essa posição desmoronasse por incoerência? De maneira alguma. Pois, novamente, o defensor dela terá de explicar como é que sabe de tudo isso e como, então, a mente ficou assim, e se recorrer a conceitos, regras de lógica etc., dos quais acabou de nos dizer que não têm nenhuma relação com a realidade objetiva e que têm existência dependente da mente, estará assim, na prática, contradizendo o próprio argumento. Por outro lado, na medida em que afirma ser um fato necessário a respeito da mente que tenhamos precisamente os conceitos, as regras de lógica etc. que temos, então está afirmando assim ter conhecimento da natureza objetiva das coisas – especificamente, da natureza objetiva do funcionamento da mente – do tipo que deveria ter sido excluído pela sua teoria. Pois para formular e defender o que afirma ele precisa recorrer a certos universais (como “mente”), às regras da lógica etc.; e, novamente, sua teoria alega que estes não têm validade objetiva. Portanto, ele se vê em um dilema: se insiste, como sua teoria deve levá-lo a fazer, que os conceitos, as regras da lógica etc. não têm validade objetiva, será incapaz de defender a própria posição; se afirma que eles de fato têm validade, de modo a justificar sua pretensão de ter conhecimento sobre a natureza objetiva da mente, estará apenas contradizendo o próprio ponto de vista no ato mesmo de defendê-lo. De novo, a teoria é simplesmente incoerente [18].
Teorias como essas são provocativas e têm, por razões óbvias, apelo emocional para adolescentes de todas as idades. Mas do ponto de vista racional, são totalmente desprezíveis; como disse certa vez David Stove, ao fim e ao cabo seus proponentes não têm a oferecer muito mais do que “um sorriso maroto” [19]. Para ser justo, é preciso observar que muitos naturalistas, materialistas e ateus concordariam de bom grado com a severidade dessa conclusão. Os religiosos que acreditam que os secularistas dominantes na academia são todos relativistas estão redondamente enganados. Ao menos nos departamentos de filosofia dominados pela “filosofia analítica”, que atualmente são majoritários nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha – em outros departamentos de humanidades e departamentos de filosofia fora desses países, e/ou dominados pela “filosofia continental”, às vezes a história é completamente diferente –, reina o mais absoluto desprezo ao menos pelas formas mais extremas de relativismo, subjetivismo e similares [20]. Não devemos atribuir aos secularistas crimes de que não são culpados. O que é verdade é que muitos naturalistas, materialistas e ateus sustentam posições que são exatamente tão dementes quanto as dos relativistas radicais, e sem dúvida todos sustentam posições que têm as mesmas consequências do relativismo extremo, ainda que não tenham essa intenção.
Mas eu divago; voltaremos a tudo isso em breve. A questão no momento é que conseguir formular uma defesa plausível ou do conceptualismo ou do nominalismo é, na melhor das hipóteses, muito difícil. Ademais, não há grande motivação intelectual para fazê-lo além de tentar evitar o realismo. É inútil recorrer (como se faz com frequência) ao famoso princípio da Navalha de Ockham como motivação; pois ela recomenda optar pela teoria mais simples e evitar postular a existência de algo a não ser que seja necessário fazê-lo, e a lição clara da história do debate sobre os universais, proposições, números e similares é que é de fato necessário “postular” a existência deles. O nominalismo e o conceptualismo são teorias “mais simples” do que o realismo no mesmo sentido em que a astronomia seria “mais simples” se negasse a existência de planetas e estrelas. É tentador dizer aos oponentes do realismo: Desistam. Não dá para fugir. Parem de resistir. Aceitem. Mas há motivo para que muitos pensadores estejam dispostos a rolar nus em caco de vidro e suco de limão para não aceitar o realismo; isto ficará evidente ao final deste livro, à medida que compreendemos as consequências bastante conservadoras e bastante religiosas do realismo e das ideias adjacentes.
Algo similar à teoria de Platão, pois, afigura-se claramente correto. Mas o “algo similar” é importante. Pois é possível ser realista sem abraçar até as últimas consequências a depreciação dos sentidos e a postulação de uma misteriosa esfera de objetos além do espaço e do tempo que caracterizam sua teoria. Isto nos leva finalmente a Aristóteles
Notas:
[10] Aqui, novamente, às vezes se ouvem argumentos péssimos no sentido contrário. Por exemplo, sugere-se às vezes que se o mundo físico fosse configurado de maneira tal que sempre que se colocasse dois objetos junto a outros dois objetos um quinto objeto aparecesse magicamente entre eles, este seria um caso em que 2 + 2 = 5. As pessoas que usam esses argumentos realmente deveriam se ouvir com mais cuidado. Pois de acordo com seu próprio relato, o que descreveram não foi 2 e 2resultando em 5, mas antes o ato de colocar 2 objetos junto a outros 2 objetos (o que dá 4 no total) causando de repente e magicamente o aparecimento de um novo e quinto objeto. (“X causa Y” não quer dizer “X é igual a Y”).
[11] Ver Universals (McGill-Queen’s University Press, 2001), de J.P. Moreland, para uma introdução ao debate escrito de um ponto de vista solidário ao realismo.
[12] Richard M. Weaver, Ideas Have Consequences (University of Chicago Press, 1948). Como mencionado acima, a Teoria das Formas de Platão também é conhecida como Teoria das Ideias. O título do livro de Weaver é um jogo de palavras. [O livro de Weaver tem tradução em português pela É Realizações: As Ideias têm Consequências.]
[13] As dificuldades de identificar proposições com qualquer coisa material ou mental vão muito além disso e foram bem resumidas por Alvin Plantinga em Warrant and Proper Function (Oxford University Press, 1993), capítulo 6.
[14] D. M. Armstrong é um naturalista que endossa o realismo quanto aos universais com base no papel deles na ciência e W.V.O. Quine é um naturalista que aceita a existência de alguns objetos abstratos (embora, em verdade, antes de conjuntos que de números) com base no papel que a matemática desempenha na ciência. Armstrong ajusta isso com seu naturalismo ao tentar virilmente (embora em vão, como Moreland alega) mostrar que os universais não são abstratos. (Como veremos, Aristóteles faz algo similar, mas de um modo que nenhum naturalista poderia aprovar.) Quine o faz dando de ombros. (Mais gravemente, ele o faz ampliando a definição de “naturalismo” a um grau tal que qualquer coisa que a ciência nos leve a postular seja coerente com ele.)
[15] É possível ser nominalista com relação a apenas um tipo de objeto alegadamente abstrato, ou vários tipos, sem ser nominalista com relação a todos eles. Isto é, pode-se negar que um tipo de objeto abstrato exista enquanto se aceita que outro tipo existe. Mas quem tem atração pelo nominalismo geralmente procura ampliá-lo até onde ele pode ir, e é compreensível que o faça. Pois se o nominalismo é motivado pelo desejo de defender o materialismo ou o naturalismo, não faz muito sentido ser seletivo quanto a isso, uma vez que admitir que pelo menos alguns tipos de objetos abstratos (logo, não materiais e não naturais) existem enfraquece gravemente a plausibilidade do materialismo ou do naturalismo como posição global.
[16] Bertrand Russell, The Problems of Philosophy (Prometheus Books, 1988), capítulo 9.
[17] Ver, por exemplo, o ensaio “Thought”, de Frege, em The Frege Reader (Blackwell, 1997), editado por Michael Beaney.
[18] Para uma defesa mais extensa recente desse tipo de argumento, ver Crawford L. Elder, Real Natures and Familiar Objects (MIT Press, 2004), pp. 11–17.
[19] Stove, The Plato Cult , p. 62.
[20] A diferença entre “filosofia analítica” e “filosofia continental” é uma questão complicada. A narrativa simplista corriqueira é a seguinte: A filosofia analítica tende a enfatizar clareza de expressão, argumentação explícita e rigorosa e uso pesado das ferramentas da lógica simbólica moderna. Seus criadores tinham a propensão de pensar que a solução dos problemas tradicionais da filosofia poderia ser facilitada pela análise cuidadosa da linguagem em que haviam sido expressos, e também costumavam ver a ciência empírica como o paradigma da investigação racional. Ela é a escola de pensamento predominante no mundo de língua inglesa e seus heróis são pensadores como Frege, Russell, Wittgenstein, Carnap e Quine. A filosofia continental, em contrapartida, tende a ter caráter mais literário e humanista. Sua abordagem deriva do idealismo de Kant e Hegel e mais diretamente do método “fenomenológico” de analisar a experiência humana desde dentro, buscando assim formular uma descrição precisa do modo como o mundo se manifesta ao sujeito humano, colocando, enquanto isso, a questão da verdade objetiva entre parênteses. Essa abordagem tende a predominar no continente europeu, e seus heróis modernos são pensadores como Husserl, Heidegger, Sartre, Gadamer e Foucault. A típica queixa analítica quanto à filosofia continental é que ela é inexata, confusa, subjetivista, negligente com a ciência e escrita em prosa impenetrável. A típica queixa continental quanto à filosofia analítica é que ela é superficial, reducionista, anal-retentiva, negligente aos problemas humanos e chata.
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Texto retirado do livro A Última Superstição: Uma Refutação do Neoateísmo, de Edward Feser. Edições Cristo Rei, 2017.
Filósofos pré-cristãos e desbravadores do caminho*. Da esquerda para direita: Sibila Eritreia, Sócrates e Platão. Sólon, Aristóteles, Pitágoras e Tucídides. Apolônio de Tiana, São Paulo Apóstolo, São Justino Filósofo e Homero.
* Baseado nos afrescos do Santo Mosteiro de Vatopaidi no Monte Athos, bem como no Mosteiro da Transfiguração de Cristo em Meteora, este é um ícone contemporâneo de São Paulo Apóstolo e São Justino Mártir e Filósofo com muitos filósofos clássicos que buscaram e falaram do Logos e que encontrariam realização em Cristo e em Seu Santo Evangelho.
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Trecho retirado do capítulo III do livro Educação segundo a Filosofia Perene que está disponível no LINK.
III. 6) A pedagogia de Platão. I.
É evidente que o ideal filosófico proposto por Platão supõe por parte do filósofo, ou do aprendiz de filósofo, uma elevada capacidade de abstração, não apenas para compreender o que seja a idéia da beleza ou do bem em si mesmo, mas para alcançá-las com suficiente firmeza para serem não apenas objeto de investigação, mas também de contemplação.
Na República [livro] Platão expõe como deve o homem ser educado se quiser tornar-se um filósofo. Como Aristóteles foi seu mais brilhante discípulo durante 20 anos, e suas teorias apresentam notáveis semelhanças e aprofundamentos em relação às de Platão, é de se supor que ele tenha sido educado pelo mestre segundo um plano, se não igual, pelo menos semelhante ao esboçado por Platão na República. Não é descabido supor também que grande parte da genialidade de Aristóteles seja resultado desta educação recebida por meio de Platão.
Uma exposição completa da Pedagogia de Platão exigiria um trabalho à parte; aqui apenas reportaremos passagens do texto da República para dar uma primeira noção do que se tratava.
Na República Platão traça um sistema educacional que, se executado tal como exposto, se iniciaria aos sete anos de idade e se estenderia até aos cinqüenta e cinco.
Seu objetivo não era estender o sistema a todos os homens; segundo ele, nem todos os homens são iguais, mas alguns tem uma alma de ouro, outros de prata, outros de ferro e bronze; o filho de quem tem uma alma de ouro pode nascer com uma alma de ferro, e vice versa; só durante o processo de aprendizado é que se faz possível descobrir quem são as almas de ouro. Seu sistema educacional, extremamente exigente e planejado, seria apenas para as almas de ouro; isto, segundo ele, não representaria discriminação nem injustiça para as demais, porque seriam elas próprias a não se interessarem em enfrentar um aprendizado tão longo e difícil. Mas, ainda que poucas almas de ouro o seguissem, isto representaria um bem imenso para toda a humanidade; as almas de ouro que se tornassem filósofos tomariam o poder e governariam os povos; tal como o Pai do Universo, que ao contemplar as idéias eternas produziu o cosmos, estas almas, ao alcançarem a contemplação destas mesmas idéias eternas que plasmaram o cosmos, plasmariam os povos e suas instituições segundo o mesmo modelo, imitando assim na sociedade humana a mesma função dos deuses quando da formação do Universo. É o que veremos no final do esboço que vamos apresentar da Pedagogia de Platão.
Ao contrário do que comumente se pensa, estes objetivos de Platão não foram uma utopia irrealizada. Eles se concretizaram na pessoa de Aristóteles seu discípulo; nele Platão encontrou uma alma de ouro, alguém que através desta Pedagogia alcançou uma notável profundidade na contemplação. As obras de Aristóteles são uma transposição para o papel desta atividade contemplativa; nela encontramos uma síntese filosófica que reproduz, tanto quanto possível, a própria ordem do Universo, não em uma narrativa que transpõe o que vêem os olhos, mas em que se procura alcançar a essência desta ordem em todas as suas manifestações possíveis, inclusive na Ética e na Política. E pode-se dizer também que, após alguns séculos de esquecimento, quando Aristóteles se tornou finalmente conhecido pelo mundo medieval, ele tomou o poder durante alguns séculos no mundo ocidental; ele ajudou a plasmar a nossa civilização, e suas opiniões sobre todos os assuntos, desde a ciência natural até à Ética e à Política, tiveram mais força entre os homens do que os decretos passageiros dos soberanos, facilmente revogados e esquecidos.
III. 7) A pedagogia de Platão. II.
Segundo Platão, a educação do futuro filósofo começa cedo, já na infância:
"Começamos por contar fábulas às crianças.
Estas são fictícias, por via de regra, embora haja nelas algo de verdade. As fábulas, na educação das crianças, aparecem antes da ginástica.
O princípio é o mais importante em toda a obra, sobretudo quando se trata de criaturas jovens e tenras; pois neste período de formação do caráter, é mais fácil deixar nelas gravadas as impressões que desejarmos.
Não poderemos então permitir, levianamente, que as crianças escutem quaisquer fábulas, forjadas pelo primeiro que apareça. Trataremos de convencer às mães e às amas que devem contar às crianças apenas as histórias que forem autorizadas, para que lhes moldem as almas por meio das histórias melhor do que os corpos com as mãos. Será então preciso rechaçar a maioria das fábulas que estão atualmente em uso: jamais devem ser narradas em nossa cidade, nem se deve dar a entender a um jovem ouvinte que ao cometer os maiores crimes não fez nada de extraordinário; nem tampouco se deve dizer uma palavra sobre as guerras no céu, as lutas e as ciladas que os deuses armam uns aos outros, o que aliás nem é verdade. Pelo contrário, se houver meio de persuadi-los de que jamais houve cidadão algum que tivesse se inimizado com outro e de que é um crime fazer tal coisa, esse, e não outro, é o gênero de histórias que anciãos e anciãs deverão contar-lhes desde o berço, pois os meninos não são capazes de distinguir o alegórico do literal e as impressões recebidas nesta idade tendem a tornar-se fixas e indeléveis. Portanto, é da mais alta importância que as primeiras fábulas que escutarem sejam de molde a despertar nelas o amor da virtude" [194].
Além das histórias, Platão quer também que as crianças sejam sadiamente educadas desde cedo em uma arte correta:
"Teremos de vigiar não apenas os poetas, fazendo-os expressar a imagem do bem em suas obras ou a não divulgá-las entre nós; mas será preciso vigiar também os demais artistas, impedindo que exibam as formas do vício, da intemperança, da vileza ou da indecência na escultura, na edificação e nas demais artes.
Pois a arte reflete a harmonia da alma: a beleza do estilo, a harmonia, a graça e a eurritmia não são mais do que conseqüências da verdadeira simplicidade, próprias de uma mente e caráter nobremente dispostos; busquemos, pois, aqueles artistas cujos dotes naturais os levam a investigar a verdadeira essência do belo e do gracioso. Desta maneira, os jovens crescerão em uma terra salubre" [195].
Que os jovens também sejam educados a respeito do abuso do prazer:
"O abuso do prazer não tem nenhuma afinidade com a temperança, nem com a virtude em geral" [196].
"Sabemos por experiência que quanto mais fortemente somos arrastados pelos desejos num sentido, mais fracos se mostram eles nos outros; é como uma corrente que fosse desviada toda para um canal. Aqueles cujos desejos o conduzem para o saber sob todas as suas formas se entregará inteiramente aos prazeres da alma e porá de lado os do corpo, se for filósofo verdadeiro e não fingido. Tal homem será temperante e nada avaro de riquezas" [197].
Continuando a exposição, Platão mostra como existe um equilíbrio ideal entre ginástica e música na formação do futuro filósofo:
"Quanto às duas artes da música e da ginástica, crêem alguns que se destinam uma a atender a alma e outra a atender o corpo; mas é muito possível que tanto uma quanto a outra tenham sido criadas com vistas sobretudo ao aperfeiçoamento da alma. Pois os que praticam exclusivamente a ginástica tornam-se por demais abrutalhados, enquanto que os que se dedicam exclusivamente à música amolecem-se mais do que lhes convém. Será preciso, pois, combinar a ginástica com a música e ajustá-las à alma dos jovens na mais justa proporção" [198].
Depois Platão insiste que é preciso treiná-los também nas diversas virtudes e na arte militar:
"Dentre eles depois escolheremos os mais inclinados a ocupar-se com o que julgam útil à cidade, aqueles para os quais não haja sedução nem violência capaz de fazer-lhes esquecer o sentimento do dever para com a comunidade" [199].
"E se hão de ser tais como os descrevemos, é necessário que tenham a qualidade da veracidade. De caso pensado, jamais acolherão a mentira em suas mentes, pois a odeiam tanto quanto amam a verdade.
Haverá alguma coisa mais natural à filosofia do que a verdade?
É necessário, portanto, que o verdadeiro amante do saber aspire desde a sua juventude à verdade em todas as coisas" [200].
"Devemos examinar ainda outro critério pelo qual se aquilata a índole filosófica: que não passe desapercebida nenhuma vileza, porque a mesquinhez do pensamento é o que há de mais incompatível com a alma que tende constantemente para a totalidade e a universalidade do divino e do humano" [201].
"Um homem assim não poderá considerar a morte como coisa terrível. Como pode, (de fato, quem teme a morte), ter a elevação necessária para vir a contemplar a verdade?" [202].
"Ademais, o homem harmoniosamente constituído, que não é avaro nem mesquinho, vaidoso nem covarde, não poderá jamais mostrar-se duro ou injusto em suas relações com os outros" [203].
"Tampouco pode-se passar por alto se aprende com facilidade ou não; pois como pode-se esperar que alguém ame aquilo que lhe pesa fazer e em que se adianta pouco e a duras penas?" [204].
"Mas a verdade será a principal e a primeira de todas as qualidades, que ele deverá perseguir sempre e em todas as coisas" [205].
"Estes são os sinais que distinguem desde a juventude a natureza filosófica da que não o é" [206].
Passada a juventude, depois do exercício das virtudes, começará o exercício da inteligência:
"Durante o período de crescimento os jovens tem de ocupar-se sobretudo com os seus corpos, para que lhes sejam prestantes, mais tarde, no serviço da filosofia. Á medida que a vida for avançando e o intelecto começar a amadurecer, intensificarão pouco a pouco a ginástica da alma" [207].
"Será preciso fazer com que se exercitem em muitas disciplinas, para vermos se serão capazes de suportarem a maior de todas elas, ou se fraquejarão como os que fraquejam em outras coisas" [208].
A matemática, será, nesta época, um dos estudos a que hão de se dedicar os jovens. Porém, no que diz respeito a esta disciplina, Platão reconhece que não é buscada pelo motivo com que convém buscá-la:
"Ninguém se serve devidamente dela, pois a sua verdadeira utilidade é atrair as almas para as essências" [209].
A matemática "é uma espécie de conhecimento que se deveria implantar por lei, tentando persuadir os que vão exercer as mais altas funções da cidade que se acerquem dela e a cultivem não como amadores, mas para que cheguem a contemplar a natureza dos números com a ajuda exclusiva da inteligência; não como fazem os comerciantes e os revendões, para utilizá-la nas compras e nas vendas.
A matemática (pode começar a) elevar a alma a grandes alturas, obrigando-a a discorrer sobre os números em si, rebelando-se contra qualquer tentativa de introduzir objetos visíveis ou palpáveis na discussão. Nota-se que os que têm um talento natural para o cálculo também mostram grande vivacidade para compreender todas ou quase todas as ciências, e que mesmo os espíritos tardios, quando foram educados e exercitados nesta disciplina, tiram dela, quando não outro proveito, pelo menos o se fazerem mais atilados do que antes eram. Fica, pois, assentado que esta será nossa primeira matéria de educação" [210].
A segunda matéria que se segue à matemática, diz Platão, será a Geometria. No entanto, os homens também não estudam a Geometria como convém:
"Confundem as necessidades da geometria com as da vida diária: no entanto, o verdadeiro objeto de toda esta ciência é o conhecimento. Ela (deve) ser cultivada com vistas no conhecimento do que sempre existe, e não do que nasce e perece. Então ela atrairá a alma para a verdade e formará mentes filosóficas que dirijam para cima aquilo que agora dirigimos indevidamente para baixo. Em todos os ramos de estudo, como demonstra a experiência, quem aprendeu geometria tem uma compreensão infinitamente mais viva" [211].
Assim, depois de dissertar também sobre a importância do estudo da geometria no espaço, da astronomia e da música na formação do filósofo, Platão chega finalmente à própria filosofia, que ele chama de Dialética:
"Assim chegamos finalmente à melodia que a Dialética executa, a qual, embora sendo unicamente do intelecto, é imitada pela faculdade da vista ao procurar contemplar os animais, as estrelas reais e o próprio Sol. Quando, pelo seu auxílio, tentamos dirigir-nos, com a ajuda da inteligência e sem a intervenção de nenhum sentido para o que é cada coisa em si e não desistimos até alcançar, com o auxílio exclusivo da inteligência, o que é o bem em si, então chegamos às próprias fronteiras do inteligível, assim como aquele que chegou ao limite do visível" [212].
"Mas teremos que escolher (novamente) aqueles a quem haveremos de ensinar estas coisas e de que maneira. O erro que se comete agora é o de ser estudada a filosofia por indivíduos que não são dignos dela.
Por conseguinte, a Matemática, a Geometria, e toda a instrução que constitui o preparo para a filosofia devem ser ministrados na infância; não, porém, com a idéia de impor pela força o nosso sistema de educação. Um homem livre não deve ser escravizado na aquisição de qualquer espécie de conhecimento. Os exercícios corporais, quando compulsórios, não fazem dano ao corpo; mas o conhecimento que penetra na alma pela força não cria raízes nela. Que não se empregue, portanto, a força para instruir as crianças; que aprendam brincando, e assim poderemos conhecer melhor o pendor natural de cada uma. E os que neles demonstrarem sempre maior agilidade passarão a formar um grupo seleto" [213].
"A partir de então, com os que forem escolhidos entre a classe dos 20 anos, reuniremos os conhecimentos que adquiriram separadamente durante a educação infantil num quadro geral das relações que existem entre as diferentes disciplinas e entre cada uma delas e a natureza do ser. Este é, ademais, o melhor critério para aquilatar as naturezas filosóficas, pois aquele que tem visão de conjunto é filósofo; o que não a tem, esse não o é" [214].
"Estes são os pontos que deverão ser considerados; aqueles que, além de se avantajarem aos outros nestas coisas, se mostrarem mais firmes e constantes na aprendizagem, na guerra e nas demais atividades, logo que tenham alcançado a idade dos 30 anos tornarão a ser separados entre os já escolhidos para investigar, com a ajuda da Dialética, quais deles serão capazes de renunciar ao uso da vista e dos sentidos e, em companhia da verdade, atingir o ser absoluto. Mas aqui será necessário ter muita cautela" [215].
"Há grande perigo em que tomem gosto pela filosofia quando ainda são jovens; servir-se-ão dela como de um jogo, empregando-a para contradizer os outros e depois de terem conquistado muitas vitórias e sofrido também muitas derrotas, cairão rapidamente na incredulidade a respeito de tudo quanto antes acreditavam" [216].
Mas, a partir dos 30 anos,
"durante cinco anos se dedicarão à filosofia. Depois serão obrigados novamente a exercer os cargos atinentes à guerra" e ao bem público.
"Também nestes cargos serão postos à prova, para ver se se manterão firmes ou fraquejarão em face das tentações que procurarão arrastá-los em todos os sentidos. Esta nova fase de suas vidas durará quinze anos. Quando chegarem aos 50, os que se tiverem distinguido em todos os atos de sua vida e em todos os ramos do conhecimento serão levados à consumação final, pois será preciso obrigá-los a elevar os olhos da alma e contemplar de frente o que proporciona luz a todos; e quando tiverem visto o bem em si, o adotarão como modelo durante o resto de sua existência, em que governarão cada qual por seu turno, tanto à cidade e aos particulares como a si mesmos" [217].
III. 8) Conclusão.
Vimos, pois, em suas linhas essenciais, qual era a educação que Platão propunha para formar um filósofo.
Não obstante tratar-se de uma educação capaz de levar os alunos a um grau de abstração surpreendentemente elevado, tal pelo menos como ela se encontra apresentada na República, esta educação não foi exposta por Platão de modo abstrato. Ao contrário, foi revestida da roupagem de um exemplo concreto até os seus menores detalhes, dos quais omitimos a quase totalidade na resenha que dela fizemos. Tratava-se do exemplo de uma cidade que deseja formar uma elite permanente de sábios a quem caberia dirigir a sua política e os seus destinos ocupando de fato todos os cargos públicos fundamentais. Evidentemente esta não é a essência do livro, mas uma técnica literária para tornar a leitura mais agradável a um público mais amplo; no final do livro VII o próprio Platão duvida se o exemplo que ele deu se concretizará algum dia sobre a terra:
"Sim, esta é a melhor maneira para que uma cidade alcance no mais breve espaço de tempo a felicidade. Parece-nos ter descrito muito bem como estas coisas se realizarão, se é que alguma vez chegarão a realizar-se" [218].
Entretanto, desrevestido de seu exemplo, Platão realizou tudo quanto descreveu na República não em uma grande elite dirigente, mas na pessoa de seu discípulo Aristóteles; e, através dele, a cidade onde esta elite de um só exerceu o poder, sem necessidade de exercer cargos públicos, foi a própria civilização ocidental.