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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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A divisão da Aritmética - por Boécio


Alegoria da aritmética, de Margarita
 Philosophica por Gregor Reisch, 1503

Trecho retirado do livro Coleção de Artes Liberais Vol. 9: Aritmética do Instituto Hugo de São Vitor.

Proêmio: no qual está divisão da Aritmética

Anício Mânlio Torquato Severino Boécio

Todos os homens de antiga autoridade que, tendo o próprio Pitágoras como guia, floresceram com um tino mais puro de mente, convêm em que não é dado alcançar o cume da perfeição filosófica a qualquer um, mas somente àquele que, por nobreza e bom senso, é capaz da trilhar como que um caminho de quatro vias [quadrivium], o que, por certo, não escapará ao engenho do bom observador.

O entendimento da verdade é a sabedoria das coisas que são e das divisões da substância imutável. Dizemos que estas coisas nem crescem por expansão, nem diminuem por retração, nem se transformam por variações, mas se preservam, sempre apoiadas na força própria de sua natureza. São estas, no entanto, qualidades, quantidades, formas, magnitudes, pequenezas, igualdades, hábitos, atos, disposições, lugares, tempos e o que quer que se encontre unido aos corpos de alguma maneira. Apesar de unidas aos corpos, elas são de natureza incorpórea, carregam a noção de substância imutável; porém, pela participação no corpo, se transformam e pelo contato com coisas variáveis se sujeitam à inconstância cambiável.

As coisas, portanto, que participam da natureza da substância imutável, como foi dito, são as que de fato propriamente existem. A sabedoria lucra com a ciência destas coisas, isso é, coisas que propriamente existem, cada uma levando o nome de sua essência. Tais essências são partes semelhantes: mas uma é contínua e ligada por suas partes sem dividir-se por fim algum, como é uma árvore, uma pedra e todos os corpos deste mundo; esses tipos se chamam magnitudes; outra parte é disjunta de si, determinada por partes e trazida a uma assembleia quase que por acumulação, como um grupo, um povo, um coro, um monte e o que quer que tenha as partes limitadas por extremidades próprias e descontínuas aos términos de outra quantidade. Desta última, o nome próprio é multidão. Dentre elas, as multidões que não carecem de nada são per se, como três, ou quatro, ou o tetrágono ou o número que for. Outras quantidades, no entanto, não subsistem por si só, mas se referem a um outro, como o duplo, a metade, a sesquiáltera, o sesquiterço e tudo que, se não estivesse relacionado a outra quantidade, não subsistiria. Certas magnitudes, no entanto, são inertes, carecem de movimento, enquanto outras não descansam em tempo algum, sempre giram em rotação móvel. A aritmética, portanto, examina as multidões que por si só subsistem. Já aquelas quantidades que estão relacionadas a outras, as medidas da harmonia musical bem conhecem. Já o conhecimento da magnitude imóvel é a geometria, que promete, ao passo em que a experiência da astronomia reivindica para si a ciência da quantidade móvel.

Se a um examinador faltar essas quatro partes, ele não poderá encontrar o que é verdadeiro, pois sem esse exame da verdade não se conhece coisa alguma com acerto. Logo, o conhecimento destas coisas que realmente são, é entendimento e compreensão completa. E àquele que despreza tais coisas, ou seja, as sementes da sabedoria, declaro que não pode filosofar corretamente, se filosofia é mesmo o amor a sabedoria, pois, desdenhadas estas coisas, também é ela própria desdenhada.

Julgo dever adicionar que toda força da multidão cresce na progressão de um término e vai ao infinito. A magnitude, porém, começa de uma quantidade finita e sua divisão é sem medida, pois tem partes infinitas em seu corpo. A filosofia deixa de lado tal potência infinita e indeterminada da natureza. O que é infinito não pode ser captado pela ciência ou compreendido pela mente, de ter sido destas coisas que a própria razão extraiu a noção do infinito para si, para que pudesse exercitar sua argúcia indagatória da verdade. Ela tomou para si dentre a pluralidade da multidão infinita uma porção finita da quantidade, e da magnitude interminável uma seção de quantidade finita para o conhecimento do espaço. Logo, consta que quem negligencia tais coisas, deixa escapar a doutrina da filosofia.

Esta é aquela via de quatro caminhos (Quadrivium), pela qual as almas mais excelentes são conduzidas, dos sentidos naturais às coisas mais certas da inteligência. São certos degraus e dimensões do progresso, pelas quais se pode ascender. O olho da alma, o qual, como diz Platão, é mais digno de se guarnecer que muitos olhos corporais, pois somente à luz dele pode-se investigar e inspecionar a verdade; digo que estas disciplinas sempre iluminam este olho, estes velado. Qual, dentre estas que está imerso nos sentidos corporais e e é por artes, se deve aprender primeiro, senão aquela que, de algum modo, serve como uma matriz de princípios às demais? Essa é a aritmética. Ela é anterior a todas as outras, não só porque Deus, fundador desta enorme massa terrena, a tomou como primeiro exemplar de seu raciocínio e segundo ela constituiu todas as coisas, as quais encontram harmonia na razão construtiva pelos números ordenados; mas a aritmética também é dita anterior porque, seja qual for a natureza das coisas anteriores, estas, se removidas, ao mesmo tempo removem as posteriores. Ao passo que, se o que é posterior perece, nada se altera no estado da substância anterior. Por exemplo, o animal, que antecede homem. Pois se removes o animal, imediatamente também a natureza de homem é destruída, mas se tirares homem, a natureza animal não perece. Por outro lado, o que traz consigo alguma outra coisa, é sempre posterior, enquanto aquilo que, quando dito, nada de posterior traz consigo, é anterior, como se ilustra com o homem. Se disseres 'homem', nomeias 'animal' ao mesmo tempo, pois 'homem' e 'animal' são o mesmo; se dizes 'animal', nada disseste da forma de homem, pois 'animal' e 'homem' não são o mesmo. Precisamente isso parece ocorrer na geometria e na aritmética. Se removes os números, de onde provém o triângulo e o quadrado ou qualquer outra coisa em geometria, todos os números são denominativos? Por outro lado, se removeres o quadrado e o triângulo, toda a geometria será destruída, mas o três e o quatro e o restante dos números não perecerão. Novamente, quando me pronuncio sobre alguma forma geométrica, simultaneamente há nisso o nome implícito dos números; quando falo de números, não nomeio nenhuma forma geométrica. Mas a música é anterior aos princípios dos números, e aqui podemos provar não somente que são anteriores as coisas que existem por si, ao que faz referência a alguma outra coisa. Mas a modulação musical dos números é designada com nomes, e o mesmo que foi dito da geometria pode acontecer aqui. O diatessaron [1], o diapente [2] e o diapason [3] são chamados por nomes que fazem referência ao número. Além disso, a proporção entre os sons não é encontrada somente nos números. O intervalo de oitava, por exemplo, se calcula na proporção de dois números. O intervalo de quarta perfeita é uma modulação composta de intervalos de segunda. O chamam de intervalo de quinta é também composto intervalos menores. que Aquilo que conhecemos como epogdous [4] nos números, é o mesmo tom na música; e para que não haja grandes dificuldades nesta obra, se mostrará, definitivamente, quão anterior é a aritmética às outras artes.

E precede a astronomia esférica tanto quanto as outras duas disciplinas antecedem esta terceira natureza. Na astronomia, há o círculo, a esfera, o centro e o eixo médio de um círculo paralelo, que são todas preocupações da doutrina geométrica. Pelo que se mostra que são anteriores os princípios da geometria, pois todo movimento vem depois do repouso e na natureza a imobilidade sempre precede o movimento. A astronomia é, pois, a doutrina das coisas móveis, como a geometria o é das imóveis; ou, pode-se dizer, a astronomia é a doutrina dos movimentos das estrelas, adornado por modulações harmoniosas.

Portanto, o curso dos astros precede os princípios da música pela antiguidade, tanto quanto sem dúvida supera, pela natureza, a aritmética, pois aquela parece mais antiga que esta. Racionalmente, porém, pela própria natureza dos números foram constituídos o curso de estrelas e o sistema astronômico. Pois assim calculamos o nascer e o ocaso, e medimos a lentidão e a velocidade dos astros errantes. Assim, reconhecemos os eclipses e as múltiplas variações da lua. Portanto, uma vez que os princípios da aritmética devem primeiro ser esclarecidos, comecemos por ela a discussão.


Notas:

[1] Um intervalo de quarta perfeito.

[2] Um intervalo de quinta perfeito.

[3] Um intervalo de oitava perfeito.

[4] Uma proporção musical de 9:8, ou um todo e mais um oitavo.

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Educação (Paideia) na Antiguidade Cristã

Três Santos Hierarcas da Igreja:
São Basílio, o Grande,
São João Crisóstomo e
São Gregório, o Teólogo

CRISTIANISMO E PAIDÉIA

Desde a obra famosa de Werner Jaeger, o termo paidéia sugere de imediato o conceito de ideal formativo do homem, descoberto e formulado pelos gregos. A paidéia seria, então, o ideal de educação do homem completo, bem desenvolvido física e espiritualmente, isto é, amadurecido com o auxílio da arte e a colaboração dos adultos experientes no pleno exercício das suas potencialidades físicas, intelectuais e morais. Acontece, entretanto, que esse ideal formativo, formulado de modo clássico e com valor perene, por se assentar na realidade e no conceito de personalidade humana, revestiu na prática certos aspectos muito discutíveis e dignos de censura. Assim, por exemplo, a clara percepção da existência do poder intelectual e do papel da lei na vida física, social e moral foi sombreada pelos raptos imaginativos que engendravam quimeras, como as figuras mitológicas dos deuses que se apresentavam como seres reais, e ela não foi apenas entenebrecida, como também conspurcada, pelos vícios que degradaram o povo que soube espargir pelo mundo ideias tão luminosas. Por isso, quando o Cristianismo surgiu, houve de início um choque entre os representantes da paidéia clássica e os mensageiros da Boa Nova anunciada por Nosso Senhor Jesus Cristo. Os discípulos do Verbo Salvador receberam do Mestre divino a mesma noção da eminente dignidade do ser humano e, ainda mais, com uma idéia muito superior dessa dignidade, quando tomaram consciência de que o homem não é só imagem de Deus pela sua inteligência e pela sua liberdade, como por ter sido elevado ao plano da vida sobrenatural mediante a posse da graça divina que lhe foi outorgada com a criação, perdida pelo pecado e recuperada por meio do sacrifício redentor de Cristo. Por conseguinte, havia uma identidade de concepção greco-cristã quanto ao valor da personalidade humana, mas com vantagem para os cristãos, que tiveram acesso, pela Revelação, ao conhecimento do valor superior do homem, enquanto ser participante da vida divina. Ora, essa concepção do homem criado íntegro, decaído e redimido, mas que deve lutar para se conservar no estado de graça que lhe abre as portas para o reino que não é deste mundo, vinha impor novas condições para a educação do ser humano, sobre ser a nova paidéia inteiramente refratária aos desvarios da fantasia, que se permitia construir o mundo lúcido e fabuloso dos mitos sem consistência real, e aos vícios que corrompiam e enfeavam os homens já enfraquecidos pelo pecado original. Daí, segundo a concepção educacional cristã, a necessidade da ascese, o perpétuo combate espiritual, enquanto dura a existência, a necessidade da penitência, da metanoia, a contínua conversão da pessoa no rumo do Senhor Deus, o abandono do velho fermento do pecado, do homem velho, num contínuo esforço de renovação espiritual. Por isso, os cristãos podiam assumir valores naturais da paidéia grega, mas não podiam admitir os extravios do seu espírito e da sua mentalidade. Em virtude deste último aspecto do espírito grego, muitos pensadores cristãos julgaram, de início, inconciliável a paidéia grega com a doutrina cristã condenando os pagãos ou gentios idólatras e imorais e recusando o que tomavam como pretensa sabedoria deste mundo oposta à sabedoria de Deus, revelada através dos Profetas e dos Apóstolos. Ora, foi exatamente o alto feito educacional de Clemente de Alexandria, nas pegadas do mártir São Justino, ter concorrido para harmonizar a paidéia grega com o espírito cristão, a filosofia pagã com o Evangelho, procurando demonstrar que a filosofia não é "pagã" por natureza, mas uma decorrência da natureza, mas uma decorrência da natureza intelectual do ser humano do ser humano e, por conseguinte, uma dádiva de Deus ao homem, como as artes e as ciências, dons subjetivos, mas dons como os bens externos representados pela variedade e pela beleza das criaturas, como o mar, as montanhas, as flores e as estrelas. Com essa convicção, Clemente de Alexandria aprofunda a idéia de São Justino quanto ao Logos que se fez homem e é o princípio de toda sabedoria, e procura demonstrar que a plenitude da razão e da vida espiritual só se encontra na vida cristã.

[...]

A PAIDÉIA GREGA E A VIDA CRISTÃ

O ínclito helenista Festugière O. P. escreveu páginas notáveis a respeito da paidéia grega e da vida cristã, tomando por base a cidade de Antioquia no século IV e as figuras cimeiras do retórico Libânio e do maior orador cristão do Oriente, São João Crisóstomo. Este, como teremos ocasião de estudar detidamente num capítulo especial, nutria a convicção de que os jovens deviam recolher-se sem pestanejar a um mosteiro, para se dedicarem à religião e ao estudo da santa doutrina, livres dos perigos da sociedade mundana. São João Crisóstomo demonstrava com isso um excessivo e feroz rigorismo, tal como São Jerônimo, ódio por tudo que fosse humano, desconhecimento das verdadeiras condições da vida religiosa e uma ausência de tato espiritual, diz Festugière, que nos aflige e aborrece [19]. Nessa época cultivou-se um erro, que durou muito tempo: o de poderem os pais constranger os filhos a seguir a vida religiosa num mosteiro, embora estes não tivessem a mínima inclinação para este gênero de vida.

O que se sabe a respeito da educação clássica em Antioquia no século IV vale igualmente para outros grande centros escolares do Oriente. A essência da educação antiga consistia da leitura assídua dos famosos autores gregos, os clássicos, de Homero a Demóstenes. O método seguido era o de ler os grande textos e decorá-los, a fim de recitar trechos poéticos ou em prosa diante do mestre, do pedagogo ou para si mesmo. Depois vinha as composições escritas, e as declamações feitas em classe perante mestres e colegas e, às vezes, diante dos pais e dos amigos. Evidentemente, só os meninos e jovens de famílias dotadas de recursos recebiam esses tipo de formação em gramática e retórica, uma vez que os pobres aprendiam um ofício manual que passavam de artesão a artesão numa tradição imemorial.

Festugière traça com mestria o quadro das oposições de vantagens e perigos da paidéia grega. Inegavelmente, a paidéia propunha ao homem um tipo de vida decente que a pessoa bem educada devia levar. As regras de conduta iam da epieiqueia, modéstia e conveniência, e da filantropia, generosidade (ajuda às pessoas em desgraça), até a civilidade pueril e honesta. Esse código de boas maneiras assemelhava-se ao do honnête homme do século XVII ou do gentleman inglês, e Libânio denominava-o maneira grega de viver, ellênikón esti, de tal modo que iniciar-se na cultura grega significava estudar os autores da Grécia e adotar o estilo de vida helênico, Ellênikos Bios, sem os seus vícios tradicionais. Quando se compara a moral grega com a cristã verifica-se que há uma diferença radical entre ambas, mas que podem congraçar-se numa obra de plena realização humana. A moral grega baseia-se na noção de prépon, ou seja, um homem para ser homem, e portanto para viver como ser racional, tem o dever para consigo mesmo de ser belo aos próprios olhos e aos olhos dos outros, isto é, deve procurar alcançar um alto nível de vida moral que constituí a beleza por excelência.

A moral cristã baseia-se na noção de pecado, de ofensa ou falta contra Deus e que por Ele é punida, de modo que o temor de Deus, o temor do seu juízo e da sua punição, constitui a mola primordial dessa moral. Ora, podem conciliar-se perfeitamente os dois ideais, de forma objetivo natural e humano enaltecido pelos gregos seja coroado pela meta sobrenatural e pelo critério evangélico da moral cristã.

Festugière aponta, finalmente, duas classes de perigos da paidéia grega: a indecência de algumas lendas mitológicas e certa aliança dos ierá e dos lógoi, da religião pagã com o estudo das letras, relação que não era necessária mas se fazia na prática habitualmente. Ora, os próprios pagãos perceberam, denunciaram e condenaram a indecência de muitas lendas mitológicas tanto que, desde a Stoa, pelo menos, existiam interpretações físicas ou morais desses mitos que lhes retiravam o veneno. Aliás, observa Festugière, se havia algum perigo em certos mitos gregos, não era nos livros que ele se achava mas na sua representação no teatro sob a forma de pantomimas. Além disso, adotava-se nas escolas o uso de antologias, em que se omitiam as passagens escabrosas. O recurso às antologias já fora recomendado por Platão, que nas Leis afirma ser de boa prática educacional levar os jovens à leitura de longos trechos seletos e à sua recitação de memória quando se pretende que tais jovens se tornem bons e sábios à custa de experiência e de erudição. Diz ainda Platão que existem nos livros dos poetas muita coisa para louvar e muito para censurar [20]. 

Uma vez que no século IV não existiam colégios para a educação da juventude, e já que também a autoridade paterna decaíra por completo em muitos lares, havia cristãos que condenavam de uma vez os templos, os espetáculos e os livros pagãos, repudiando desse modo a cultura pro- fana. Assim pensaram os monges do Oriente, máxime em Antioquia, e moralistas rigorosos, como São João Crisóstomo, que haviam recebido educação monástica e que, preocupados com a salvação eterna das pessoas, achavam que elas deviam ser preservadas das tentações das cidades e dos perigos dos espetáculos. Por isso, tratavam de arrancar os jovens aos encantos da paidéia e só lhes recomendavam a leitura da Bíblia, a recitação dos salmos e a existência recolhida dos mosteiros. Apesar desse exagero, a obra de São João Crisóstomo contém muitos e valiosos ensinamentos a respeito da educação dos filhos.


Referências:

[19] Festugière O. P., Antioche Païenne et Chrétienne, p. 212.

[20] Platon, Lois, 1. 7, 811 a - 811 b, vol. III, pp. 44-45.

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Texto retirado de História da Educação na Antigüidade Cristã de Ruy Afonso da Costa Nunes de 1978 e republicado em 2018 pelas Edições Kírion.


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Introdução geral ao Quadrivium (Matemáticas)

Sobre a imagem: O tetraktys dos pitagóricos ampliado pelo lambda do Timeu. Platão manteve três números escondidos e revelou apenas sete: $1, 2, 3, 4, 8, 9$ e $27$, em relação aos planetas. Seixos ou khálix (forma grega para “cal’’: resíduos de minerais ou metais após a calcinação) era a norma grega para a matemática.

Introdução Geral

O Quadrivium foi inicialmente formulado e ensinado por Pitágoras como o Tetraktys [1], por volta de 500 a.C., em uma comunidade em que todos eram iguais, até materialmente e moralmente, e na qual as mulheres possuíam um status equivalente ao dos homens. Foi a primeira estrutura de ensino europeia a aprimorar a educação enfocando em sete temas essenciais, depois conhecidos como as sete artes liberais.

Educação vem do latim educere [2], que significa "conduzir para fora" [3], apontando para a doutrina central que Sócrates, sob a pena de Platão, elucidou tão claramente — o conhecimento é parte inerente e intrínseca da estrutura de nossa alma. O Trivium da linguagem está estruturado sobre os valores fundamentais e objetivos da Verdade, da Beleza e da Bondade [4]. Seus três temas são: a Gramática, que assegura a boa estrutura da linguagem; a Lógica, para encontrar a verdade; e a Retórica, para o belo uso da linguagem ao expressar a verdade. O Quadrivium surge do mais reverenciado de todos os assuntos disponíveis à mente humana: o número. A primeira dessas disciplinas é a Aritmética. A segunda é a Geometria ou a ordem do espaço como número no espaço. A terceira é a Harmonia, que, para Platão, significava o número no tempo. A quarta é a Astronomia ou o número no espaço e no tempo. Todos esses estudos oferecem uma escada segura e confiável para alcançar os valores simultâneos da Verdade, da Beleza e da Bondade. Por sua vez, isso leva ao valor essencial e harmonioso da Totalidade.

A alma humana, que Sócrates provou ser imortal no Fédon, vem de uma posição de completo conhecimento antes de nascer no corpo. Recordar [5] — o ponto principal da educação — significa trazer novamente ao coração algo que ficou esquecido. O objetivo de estudar essas disciplinas era ascender de volta à Unidade através de uma simplificação, baseada na compreensão adquirida pela prática em cada área do Quadrivium [6]. A finalidade residia em encontrar sua fonte (tradicionalmente, este era o único propósito da busca do conhecimento).

Em sua discussão sobre os ideais da educação, Sócrates revela seu modelo de continuidade da consciência. Era como uma "linha" traçada verticalmente, atingindo desde os primórdios do conhecimento consciente em avaliações até o clímax da consciência como noesis, que é o entendimento unificado. Para além disso, está o indescritível e o inefável. Há, significativamente, quatro fases (outro quadrivium ou tetraktys) dadas pela divisão de Sócrates da "linha ontológica". A primeira divisão encontra-se entre o mundo sensorial e o mundo inteligível, que são fundamentais, assim como entre mente e matéria. A seguir, cada um deles é dividido. Esse é o lugar onde as avaliações podem ser distinguidas das opiniões — mesmo as opiniões corretas, porém ainda baseadas na experiência sensorial. Acima da primeira linha divisória, entramos no mundo inteligível da Mente e encontramo-nos no reino que "comporta a verdade" do Quadrivium. Este é agora o conhecimento objetivo. A última e mais elevada divisão do inteligível é o Nous ou Conhecimento Puro propriamente dito, em que conhecedor, conhecido e conhecimento se tornam Um. Essa é a finalidade e a fonte de todo o conhecimento. Assim, com tempo e sabedoria testados, o Quadrivium oferece ao buscador sincero a oportunidade de recuperar a própria compreensão interna da natureza integral do universo e de si mesmo como parte inseparável desse universo.

A aritmética possui três níveis: o materialmente numerado, o número dos matemáticos (indefinido) e o número ideal ou arquetípico completo no dez. A geometria desdobra-se em quatro estágios: o ponto não dimensional, que se move para se tomar uma linha; a linha move-se para se tornar um plano; e, finalmente, o plano alcança a solidez como o tetraedro. A harmonia, que é igualmente a natureza da alma, possui quatro "escalas", como a música: a pentatônica [7], a diatônica [8], a cromática [9] e a shruti [10]. A palavra cosmos foi criada por Pitágoras e significa "ordem" e "ornamento". Esta última era a forma com que os gregos descreviam o céu que podemos ver como um "ornamento" dos princípios puros, o número dos planetas visíveis relacionado aos princípios da harmonia proporcional. O estudo da "perfeição" do céu servia como uma forma de aperfeiçoar os movimentos da própria alma.

Dentre os estudantes do Quadrivium estão: Cassiodonus, Filolau (de Crotona), Timeu, Arquitas (de Tarento), Platão, Aristóteles, Eudemus, Euclides, Cícero, Fílon, o Judeu (de Alexandria), Nicômaco, Clemente de Alexandria, Orígenes, Plotino, Jâmblico, Macróbio, Capella (a versão mais divertida disponível), Dionísio Areopagita, Beda (o Venerável), Alcuíno, Al-Khwarizmi, Al-Kindi, Eurigena, Gerbert d’Aurillac (Papa Silvestre II), os Irmãos da Pureza, Fulbert, Ibn Sina (Avicena), Hugo de São Vitor, Bernardo Silvestre, Bernardo de Claraval, Hildegard von Bingen, Alanus ab Insulis (Alain de Lilles), Joaquim de Fiore, Ibn Arabi, Robert Grosseteste (o grande cientista inglês), Roger Bacon, Tomás de Aquino, Dante e Kepler.

Terminemos com uma citação dos pitagóricos, dos Versos Dourados: "E saberás que a lei [...] estabeleceu a natureza interna de todas as coisas de modo idêntico"; e com outra de Jâmblico: "Não foi por tua causa que o mundo (cosmos) foi gerado, mas foste tu que nasceste para o bem dele".

Keith Critchlow

Notas:

[1] Representação pitagórica em forma de triângulo, denominado "triângulo perfeito". Para os pitagóricos, os números mantinham uma relação direta com a matéria, considerando, por exemplo, o número $1$ como um ponto, o $2$ como uma reta, o $3$ como uma superfície, e o $4$ como um sólido. Assumindo que $1 + 2 + 3 + 4 = 10$, o número $10$ era visto como uma espécie de conjunto de $4$ elementos, o alicerce das coisas do mundo. Assim, de acordo com os pitagóricos, o $10$ corresponderia a um tetraktys. (N. T.)

[2] Verbo composto, formado pelo prefixo ex (fora) e pelo verbo ducere (conduzir, levar). (N. T.)

[3] Do inglês lead out, o verbo, aqui, não se aplica a um movimento físico de direcionamento, mas à ação de preparar um indivíduo para o mundo. (N. T.)

[4] Ver Irmã Miriam Joseph, O Trivium — As Artes Liberais da Lógica, da Gramática e da Retórica. São Paulo, É Realizações, 2014.

[5] Do latim, verbo composto pelo prefixo re (novamente) e pela palavra cordis (coração). (N. T.)

[6] É importante lembrar que. para os antigos romanos e gregos, o coração não era a sede dos sentimentos, como hoje pensamos, mas a localização física da mente, do pensamento. Além disso, a mente não estava situada na cabeça ou no cérebro, mas dentro do peito. Por isso, voltar a passar pelo coração significava a mesma coisa que voltar à mente ou retomar ao pensamento No original em inglês deste texto, o autor utilizou o verbo remember (lembrar, relembrar, recordar), associando-o literalmente à reunião de membros separados ou dispersos novamente em uma totalidade Por essa razão, segue-se a afirmação sobre a subida de volta à Unidade. (N. T.)

[7] Conjunto de todas as escalas formadas por cinco notas ou, em outras palavras, uma escala com cinco notas musicais por oitava. Escalas pentatônicas são muito comuns e podem ser encontradas em todo o mundo. As mais usadas são as pentatônicas menores e as maiores, que podem ser ouvidas em estilos musicais como o blues, o rock e a música popular. Muitos músicos chamam-na simplesmente penta. (N. T.)

[8] Escala de oito notas, com cinco intervalos de tons e dois intervalos de semitons (menor intervalo utilizado nessa escala) entre as notas. Esse padrão se repete a cada oitava nota, numa sequência tonal de qualquer escala É típica da música ocidental e concerne à fundação da tradição musical europeia. As escalas modernas maior e menor são diatônicas, assim como todos os sete modos tonais utilizados atualmente. (N. T)

[9] Escala que contém doze notas com intervalos de semitons entre elas. (N. T.)

[10] Termo sânscrito utilizado em diversos contextos ao longo da história da música indiana. Literalmente, significa "aquilo que é ouvido" e representa o menor intervalo de altura do som que o ouvido pode detectar. (N. T.)

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Trecho extraído da introdução do livro O Quadrivium: as quatro artes liberais clássicas da aritmética, da geometria, da música e da cosmologia. John Martineau (org.). É Realizações, 2014. 


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A Arte da Memória

por Eduardo Rocha do Instituto Hugo de São Vitor.

Grandes intelectuais dedicaram tempo a um tema recorrente: A arte da memória. Cícero é um dos mais antigos que temos registro, outros tratam do tema com mais detalhes ainda, como Santo Tomás de Aquino, Santo Agostinho, monges e professores do século XV e até mesmo, mais recentemente, Sertillanges, que escreve sobre o tema num capítulo de A Vida Intelectual, assim como outro livro mais abrangente, de abordagem mais histórica, de Frances Yates, dentre um manancial de títulos. Sabemos que ao nos depararmos com uma grande quantidade de novos vocábulos ou textos e retê-los na memória não encaramos uma atividade fácil nem mesmo aos que se submetem a uma vida de muito estudo; pois, um observador atento e consciente dos próprios passos que dá, enquanto estuda, nota que boa parte do sucesso está ligada ao interesse específico, esforço e habilidade para memorizar uma série de itens.

A arte da memória já foi considerada a rainha de todas as artes e por ela podemos conhecer ainda mais sobre nosso próprio intelecto, assim como dominá-la.

Não somos capazes de crescer nem mesmo em virtudes se exercitamos pouco a memória. Reavivando certos momentos em que reconhecemos esse aspecto, vemos, por exemplo, que ao nos esforçarmos por lembrar de algo, as informações, as imagens antes simbolizadas e todas as lembranças se misturam pelo menos um pouco; há no intelecto, nesse momento, não só uma simples mistura, mas também a perda de informações ou o distanciamento delas.

O remédio contra isso permanece ainda um mistério para muitos que guardam escondida, por exemplo, a vergonha de não conseguirem cantar músicas inteiras ou declamar poesias, dominar técnicas – com sequências de itens a serem repetidas, como uma escala de acordes no piano, aprender línguas, melhorar no que já praticam, dentre muitas atividades que dependem dessa habilidade; então, em decorrência do problema, muitos dizem “li há pouco tempo um texto enorme, mas agora não consigo dizer muito sobre ele” ou alguns piores “tento aprender gramática desde a quinta série e nunca lembro de nada” e também “estudo espanhol há mais de 3 anos, leio bem os textos, mas escrevo mal por causa dos tempos verbais e das regras ortográficas”.

No entanto, algumas pessoas passam menos por isso sendo normal reterem muitos itens na memória, mesmo por talento natural, característica que lhes dá vantagem para tudo que aprendem. Portanto devemos ter pelo menos, se formos minimamente responsáveis, alguma noção de como isso funciona.

Segundo Frances Yates, em A Arte da Memória, há uma produção bibliográfica muito intensa que começa a se acumular a partir do início do século XV, na qual encontramos obras de escolásticos e outras reescritas de livros mais antigos contendo muitas técnicas de memorização, cada uma conforme suas necessidades específicas, em grande parte para serem usadas para a leitura das Escrituras Sagradas. Para entendermos um pouco como a mnemotécnica funciona, devemos pensar primeiro sobre uma questão, até bem simples: do que somos capazes de lembrar com mais facilidade? Se compararmos a qualidade das memórias que temos, podemos facilmente reconhecer que as coisas de nosso maior interesse nas quais detemos a atenção, com uma curiosidade maior, são muito mais fáceis de guardar, assim como momentos intensos e ambientes pelos quais frequentamos por certo tempo; resumidamente podemos dizer que esta atenção nos levou a um trabalho imaginativo mais rico, mais denso, como se produzisse em nosso intelecto um material pesado de difícil remoção, o que também é típico daqueles que precisam desvendar mistérios urgentes e lembram-se da investigação nos mínimos detalhes.

No caso contrário, quando passamos muito tempo encarando um assunto que nos seja desagradável ou para o qual sejamos indiferentes ou, por exemplo, num texto que corramos os olhos apenas uma vez, temos muito mais dificuldade com a memorização. Desse modo, o básico é ler ou aprender algo sempre com uma imaginação ativa, que produza as imagens referidas ou listadas com a maior qualidade possível, como, por exemplo, ao ler “maçã”, não só lembrar da cor vermelha e do formato arredondado, mas também do brilho, cheiro, gosto, temperatura, dentre outros tantos atributos possíveis do objeto; e num momento seguinte, em se tratando de uma narrativa ou discurso lógico, vincular todas as imagens produzidas com a ordem que foram dadas, de forma que guardemos uma cadeia de informações do início ao fim e a imagem do todo – já para itens sem ligação entre si, depositá-los próximos uns dos outros como se os enxergássemos de perto dispostos num ambiente. Esses passos podem nos ajudar a entender a técnica talvez mais popular, denominada “palácio da memória”, na qual deixamos os itens que desejamos memorizar espalhados por um lugar que tenha de preferência uma arquitetura bem conhecida, valendo-se da afirmação de que a memória espacial é a mais forte.

Tomemos isso tudo como dicas bem resumidas, pois há uma multidão de livros e materiais sobre o tema, assim como inúmeras formas de usar as mesmas técnicas mnemônicas. O assunto é vasto e complexo, nunca deixará de fazer parte de nenhuma atividade humana, hoje limitadas por não termos mais consciência da liberdade que a inteligência cria. Desse modo, a exemplo de tantos que se empenharam por enrijecer a memória e detiveram soluções incríveis da mnemotécnica - que não servem para evitar esforços, visto que as próprias ferramentas demandam os seus, mas sim para melhorar a qualidade do estudo – também alavanquemo-nos nas atividades mais complexas como no domínio das línguas e de textos literários, caminhemos de encontro às questões de nosso interesse verdadeiro sem medo e façamos esforços com toda a nossa capacidade.

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Texto retirado do link.


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Progresso e Tradição em Pedagogia

Avô contando uma história - Albert Anker (1884)

Por P. Leonel Franca

Entre extremos igualmente funestos nem sempre é fácil encontrar o equilíbrio sensato de justo meio. Há amigos da tradição que a comprometem, confundindo-a com a invariabilidade das coisas mortas. Há bajuladores do progresso que não compreendem o benefício das renovações salutares sem o radicalismo das revoluções destruidoras. Como preservar o fiel da balança dos extremos destas oscilações perigosas?

Quer-me parecer que um justo conceito do progresso é a primeira condição para formar a justeza moderada do critério. Da marcha evolutiva da humanidade não raro se apresenta uma noção inteiramente falsa. O homem, ao que se diz, avança na história pelas sendas de um progresso indefinido; o diagrama deste movimento poderia representar-se por uma linha ininterruptamente ascensional. O que para trás ficou não tem mais que um valor histórico; hoje representa um peso morto que devemos alijar; que o presente se desvencilhe do passado; a condição do progresso é a ruptura com a tradição.

Visão precipitada e insuficiente das coisas. Nas ciências há dois domínios nitidamente distintos: o das ciências da natureza -- e consequentemente da técnica -- e o das ciências do homem nos seus valores mais altos e específicos. No campo da observação dos fenômenos naturais o progresso é função quase exclusiva do tempo que multiplica os observadores e as observações. Os que foram grandes outrora, conservam hoje o direito à nossa admiração e reconhecimento pelos serviços prestados à causa científica. Mas já nos não sentamos à sua escola; não vamos estudar astronomia em KEPLER nem química em LAVOISIER; foram, já não são mestres .

Há, porém, outro domínio muito diverso das ciências positivas e suas aplicações técnicas: é o das ciências do espírito. Aqui, o progresso não é a função principal do tempo; do valor de uma obra decide em primeira linha o gênio do seu autor, a profundeza dos seus conhecimentos da vida interior das almas, a capacidade de discernir, sob a superfície das aparências que passam e mudam, a natureza humana no que ela tem de essencial, eterno e imutável. Por isso, na religião, na filosofia, no direito, nas artes, na pedagogia, a tradição não tem só o valor de história do que já se foi, mas ainda o de ensino perenemente vivo do que deve ser. Os mestres nestas disciplinas do homem não se sucedem, eliminando-se; superpõem-se, completando-se. PLATÃO e ARISTÓTELES continuam a ensinar-nos filosofia ao lado de S. AGOSTINHO e de S. TOMÁS; BERGSON [1] e HUSSERL [2] não suprimem KANT ou LEIBNIZ, HOMERO e VIRGÍLIO sobrevivem ao lado de DANTE e de CAMÕES. Nos monumentos de Atenas e de Corinto, como nas obras de BERNINI ou de MICHELANGELO, vamos ainda educar o nosso sentimento estético. Porque lemos BOURGET ou DOSTOIÉVSKI, não deixamos de aprender os refolhos do coração humano em GOETHE ou SHAKESPEARE. Todos estes foram e são mestres, ainda que separados por intervalos de séculos e milênios.

Em todo este imenso domínio em que entra no que tem de mais profundo a pedagogia, a tradição não só continua como mestra viva que quer e deve ser escutada, mas é ainda a cláusula necessária do verdadeiro progresso. Triste e mesquinha concepção esta que faz da ruptura com o passado a condição de vida para o presente e de salvação para o porvir. Neste corte de fio que nos liga às gerações de ontem, querem ver um enriquecimento onde na realidade não há mais que uma dilapidação temerária que nos empobrece. O que é a sociedade no espaço, é a tradição no tempo. A comunhão com os contemporâneos amplia-nos o campo visual, opulentando a nossa experiência própria que é de um só, com a experiência dos que vivem ao nosso lado e são muitos. Sem esta solidariedade no trabalho, seria a esterilidade do isolamento. A tradição vem alargar no tempo os benefícios desta sociedade das inteligências. Já não são somente as vozes contemporâneas, são as vozes de todos os séculos que nos vêm trazer a experiência de sua sabedoria.

Este contato benfazejo com os gênios de outras eras imuniza-nos ainda contra um perigo que não é quimérico: a ditadura da moda, a tirania da geração atual. Como todos os outros, o nosso século tem as suas paixões desorientadoras, sente a fascinação de influências efêmeras e naturalmente reveste-as com o rótulo sedutor de "progresso moderno", "de conquistas da ciência". Corrigir-lhes os desvios, temperar-lhe os excessos, ampliando no tempo o campo de observação, é uma verdadeira benemerência científica. O isolamento de cada geração das que a precederam é que é a verdadeira morte do progresso, a condenação a um recomeço indefinido. Não assistimos, porventura, nestas últimas gerações, ao nascimento, vida efêmera e morte precoce de tantos sistemas pedagógicos que se apresentavam em nome dos fatos e dos resultados definitivos das ciências positivas?

Muito larga e mais compreensiva é a pedagogia cató­lica. Sem renunciar a nenhuma inovação que se imponha em nome de um progresso real, ela não rompe os contatos com o passado. A sua experiência é mais ampla: a segurança dos seus fundamentos mais consolidada pela prova dos séculos.

Esta atitude sensata, preconizara-a, já há quase um século, um dos nossos grandes mestres: 

"Se importa não imobilizar ou prender a educação na rotina, se, pelo contrário, é necessário estudá-la sempre para melhorá-la, fortificá-la, torná-la mais e mais eficaz e fecunda, convém outrossim, nos acautelemos contra as inovações temerárias que vão quebrar a obra dos séculos, calcar aos pés as experiências do passado e lançar, neste grande trabalho da educação, as perturbações mais tempestuosas. O que a sabedoria das idades consagrou, o que a natureza das coisas -- regra suprema -- exige e impõe, convém respeitar profundamente, combinando-o sem o destruir, com o que podem exigir as necessidades novas, a marcha dos tempos, os progressos do espírito humano e as transformações sociais". (DUPANLOUP [4], De la haute éducation intellectuelle, t. III, p. 566.)

Eis uma visão mais compreensiva e justa da historia, colaboradora indispensável de todo progresso estável e duradouro. Fora daí, revoluções destruidoras, renovação perpétua de tentativas efêmeras .

Um grande pedagogo contemporâneo apontou na "transplantação da ideia de progresso contínuo, do domínio da técnica para o da atividade especificamente humana, a causa principal da tragédia de nossa cultura contemporânea. (FR. DE HOVRE [5], Le Catholicisme, ses pédagogues, sa pedagogie. Bruxelas, 1930, p. 403.).

Na lealdade de um esforço reconstrutor tentaremos conciliar as justas exigências da tradição e do progresso, ampliando incessantemente os tesouros do passado com as novas riquezas do presente. É a nobre, pacífica e fecunda missão da pedagogia católica.

Rio, julho de 1932.

Notas:

[1] N. da E.: Henri Bergson (Paris, 18 de outubro de 1859 - Paris, 4 de janeiro de 1941) foi um filósofo e diplomata francês, laureado com o Nobel de Literatura de 1927.

[2] N. da E.: Edmund Gustav Albrecht Husserl (8 de abril de 1859 - Friburgo em Brisgóvia, 27 de abril de 1938) foi um matemático e filósofo alemão que estabeleceu a escola da fenomenologia.

[3] N. da E.: Gian Lorenzo Bernini (Nápoles, 7 de dezembro de 1598 - Roma, 28 de novembro de 1680) foi um eminente artista do barroco italiano, trabalhando principalmente na cidade de Roma. Como arquiteto e escultor é autor de obras de arte presentes até os dias atuais em Roma e no Vaticano, como a Praça de São Pedro, a Capela Chigi, O Êxtase de Santa Teresa, Habacuc e o Anjo, etc.

[4] N. da E.: Mons. Félix Antoine Philibert Dupanloup (3 de janeiro de 1802 - 11 de outubro de 1878) foi um eclesiástico francês. Ele estava entre os líderes do catolicismo liberal na França.

[5] N. da E.: Frans de Hovre (1884-1958) foi um educador belga.

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Trecho retirado do livro A Formação da PersonalidadeP. Leonel Franca. Edições Hugo de São Vitor, 2019.


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Sobre as Sete Artes Liberais - Rabano Mauro

Trechos retirado do livro Trivium e Quadrivium publicado pelo Instituto Hugo de São Vitor da Coleção de Artes Liberais Vol. 1.

I. Sobre a Gramática e suas espécies

A primeira das artes liberais é a gramática, a segunda retórica, a terceira dialética, a quarta aritmética, a quinta geometria, a sexta música, a sétima astronomia. A gramática tem seu nome de gramma, letra, como a etimologia da palavra mostra, pode-se definir: a gramática é a ciência que ensina ao explicar os poetas e historiadores e a maneira de escrever e falar corretamente. Ela é a origem e o fundamento das artes liberais, e é apropriado lê-la na escola católica, porque nela é baseada a arte da correta fala e escrita. Como alguém reconhecerá o poder da palavra falada ou o significado das letras e sílabas se não a aprendeu primeiro? Ou como alguém poderia entender a diferença de nível, pronúncia e grau de comparação se não fora ensinado sobre isso neste assunto? Ou como se saberiam as regras sobre as partes do discurso, a beleza das figuras, o poder das figuras, os princípios da explicação das palavras, a grafia correta, se não se familiarizou com a arte da gramática antes? Sem falhas, e não apenas isso, é louvável que quem aprende e adora esta arte, o faça não como um argumento vazio com palavras, mas aprenda a arte da fala e da fluência correta na escrita. Ela é a juíza de todos os escritores de livros porque condena todos os erros assim que os vê e confirma a boa ortografia com o seu consentimento. Todas as figuras do discurso, tantas das quais a arte secular conhece, podem ser encontradas nos livros sagrados. Além disso, nossos escritores usaram gravuras com mais frequência e abundância do que se possa pensar e acreditar e qualquer um que ler cuidadosamente os livros sagrados encontrá-las-á.  E não há apenas exemplos de todas essas figuras, mas algumas delas também estão nos próprios nomes dos livros bíblicos, como alegoria, enigma, parábola. Portanto, todo o seu conhecimento é necessário para esclarecer certas partes das Escrituras; porque se alguém quisesse usar as palavras no sentido apropriado, não haveria mais dúvidas. Portanto, é necessário examinar se isso ou aquilo que não entendemos é talvez uma expressão pictórica; dessa maneira, a maior parte do que antes era escuro ficou claro. O ensino dos metros dos versos — que também é tratado na gramática — também não deve ser negligenciado, porque, segundo o testemunho de São Jerônimo, o saltério hebraico às vezes se move em jâmbicos, às vezes soa no verso alcéico, às vezes soa na estrofe sáfica, às vezes dá passos de meio metro. O Deuteronômio, a canção de louvor de Isaías, bem como Salomão e Jó, são originalmente compostos por hexâmetros e pentâmetros fluidos, como atestam Josefo e Orígenes. Portanto, não é necessário desconsiderar esse ensinamento, embora geralmente seja encontrado entre escritores pagãos, deles aprenda-se o quanto for necessário. Muitos homens cristãos escreveram livros sobre essa arte a partir de livros desenhados e tentaram agradar a Deus: Juvenco, Sedúlio, Arator, Alcuíno, Clemente, Paulino, Fortunato e muitos outros. No entanto, se quisermos ler os poemas e os livros dos pagãos em geral pelo bem de seus discursos, devemos proceder como a mulher no cativeiro, de quem o quinto livro de Moisés fala. Lá, o Senhor ordena que, se um israelita quiser que ela seja sua mulher, ela deve raspar os cabelos da cabeça, cortar as unhas, tirar o vestido em que foi pega e depois deixá-la sob a autoridade do vencedor. Se entendermos isso pela letra, é ridículo. Por isso, também fazemos isso e precisamos fazê-lo quando lemos os poetas pagãos, quando livros de sabedoria mundana entram em nossas mãos. Se encontrarmos algo útil, aplicamos à nossa doutrina; mas o que é prejudicial, dos ídolos, dos casos de amor, das preocupações com as coisas temporais devem ser eliminadas e cortadas com a faca mais afiada. Mas, acima de tudo, temos que garantir que essa liberdade não irrite os fracos, para que o irmão, que ainda é fraco em nossa ciência e por quem Cristo morreu, não pereça quando nos vir lidar com os ídolos.

II. Sobre a Retórica

A retórica, como dizem os professores, é a instrução para falar bem na sabedoria secular, na medida em que se relaciona com questões civis. Se, mesmo depois dessa explicação, parece se referir apenas à sabedoria mundana, ainda permanece não muito distante da sabedoria da Igreja. Porque tudo o que o orador e professor da lei divina ensina de maneira eloquente e delicada, ou o que ele apropriada e refinadamente coloca no papel se relaciona com a experiência nesta arte. Aqueles que adotaram esta arte em tempo hábil e que seguem suas regras ao escrever e ao fazer um discurso não precisam temer que estejam cometendo um erro; e quem dela se apropria tão perfeitamente para pregar a Palavra de Deus está fazendo um bom trabalho. Pois tanto a verdade quanto a falsidade podem ser aconselhadas. Quem ousaria dizer que a verdade deve estar indefesa contra as mentiras, de modo que aqueles que querem impor algo errado sejam ínclitos, atentos e dóceis ao ouvinte, e nós não? Que eles representam o errado de maneira sucinta, clara e plausível, enquanto nós apresentamos a verdade de tal maneira que os ouvintes se cansam e não entendem o que é dito? Que eles que aparentemente atacam a verdade e pregam o falso, mas que nós sejamos incapazes de defender a verdade e refutar o falso? Que eles enganam e levam a mente do ouvinte ao erro, aterrorizam, entristecem, a aquecer os ânimos com suas palavras, mas que nós somos preguiçosos, frios e sonolentos à verdade? Quem seria tão irracional em pensar que isso é razoável? Então o dom da fala é um meio, de fato, que pode ajudar muito a falar sobre o mal e o bem. Por que o homem bom não deve se esforçar por adquiri-lo, de modo a argumentar a favor da verdade, mais do que os maus em favor de seus atos errados e vãos? O que quer que seja considerado um hábito e uma regra aqui, tu só podes alcançar o que é chamado eloquência pelo uso apropriado das ricas técnicas e pela prática constante da língua. E isso deve ocorrer em um tempo definido especificamente para esse fim e em idade apropriada nas quais aprende-se e adquire-se a arte rapidamente. Mesmo os oradores mais excelentes entre os romanos não deixaram de dizer que essa arte só pode ser aprendida cedo ou nunca. No entanto, não a valorizamos tanto que desejamos incentivar pessoas mais maduras a fazê-lo. Basta que alguns jovens se esforcem para fazer o que é preciso em benefício da Igreja, mas apenas aqueles que ainda não são requisitados para coisas mais urgentes. Porque se tu não tens um espírito aguçado e vivo, é mais fácil obter eloquência ouvindo homens eloquentes ou lendo seus escritos do que estudando as regras da eloquência. Além dos livros canônicos, não deve haver falta desses escritos eclesiásticos, que estão associados à barreira protetora da autoridade superior. E bom que o jovem leia e compreenda e, se prestar atenção ao conteúdo, que seja pelo menos influenciado pelo modo de falar sobre o assunto, principalmente ao lidar com ele quando existe a prática de escrever, dispor e, finalmente, também recitar o que ele acredita de acordo com a piedade e a regra da fé. Mas isto já é o suficiente sobre a retórica, mais abaixo explicarei as regras para os diferentes tipos de eloquência em mais detalhes.

III. Sobre a Dialética

A dialética é a ciência da razão, que ensina a investigar, definir e explicar os termos, para poder distinguir o verdadeiro do falso. E, portanto, a ciência das ciências; ensina como ensinar e como aprender; nela, a razão mostra e se abre ao que é, ao que quer e ao que vê. Ela sozinha define o que é conhecimento e, além de querer nos dar o conhecimento, também pode fazê-lo. Ao raciocinarmos através dela, podemos concluir o que somos e de onde viemos; através dela, reconhecemos quem é bom e o que é bom, quem é o criador e a criatura; através dela, exploramos o verdadeiro e reconhecemos o errado; através dela, aprendemos a tirar conclusões e descobrir o que é o certo a ser seguido e não o que está em conflito com a essência das coisas, o que é verdadeiro em questões e disputas, o que é provável e o que está completamente errado. Nesta ciência, investigamos tudo engenhosamente, explicamos corretamente e discutimos com Sabedoria. Portanto, o clero deve entender essa nobre arte e manter suas regras sob constante reflexão, para que possam ver claramente a astúcia dos professores mal orientados e refutar seus ditos envenenados com conclusões engenhosas. Porque existem muitas das chamadas falácias, falsos raciocínios, que geralmente são tão parecidos com os reais que enganam não apenas fracos, mas também os inteligentes se não estiverem atentos. Em uma conversa entre dois, um afirmou: “O que eu sou, você não é”. O outro admitiu. Era parcialmente verdade, em parte porque um era um pouco mal intencionado e o outro era inofensivo. Depois, acrescentou: “Mas eu sou um ser humano.” Isso também foi admitido pelo outro, do qual surgiu a conclusão: “Então você não é um ser humano”. Na minha opinião, essas conclusões cativantes abominam as Escrituras na maior parte do tempo em que diz: “Quem fala enganosamente é odioso”. Aliás, esse discurso, que não é cativante, mas tem mais decoração das palavras do que dignidade, é chamado de enganador. Também existem raciocínios corretos que levam a conclusões erradas tiradas do erro da pessoa com quem se está tratando. Mas eles também são atraídos por um homem justo e educado, de modo que o homem que persegue o erro, se envergonha de desistir do erro. Porque se ele quisesse permanecer nele, ele também teria que aceitar o que rejeita como errado. Portanto, não foi uma conclusão correta quando o apóstolo disse: “Assim, Cristo não ressuscitou”; e quando ele acrescenta: “Portanto, nossa fé é em vão, também nosso sermão é em vão”. Isso é totalmente errado, porque Cristo ressuscitou e o sermão daqueles que creram não foi em vão. Mas, como a conclusão está errada, a premissa também deve estar errada. Este pré-requisito diz: “Não há ressurreição dos mortos”, diziam aqueles cujo erro o apóstolo queria refutar. Pois, a partir do pré-requisito que estabeleceram que não há ressurreição dos mortos, segue-se necessariamente: “Portanto, Cristo não ressuscitou”. Agora, esta conclusão está errada, pois Cristo ressuscitou. Daí a premissa de que não há ressurreição dos mortos é ruim. Portanto, há uma ressurreição dos mortos. Em poucas palavras, toda essa evidência é a seguinte: “Se não houver ressurreição dos mortos, Cristo não terá ressuscitado. Mas Cristo ressuscitou, então há uma ressurreição dos mortos”. Como as conclusões corretas podem assim ser derivadas não apenas da verdade, mas também de pressupostos errados, é fácil aprender uma conclusão correta também nas escolas que estão fora da Igreja. Permaneça na Igreja, mas as frases verdadeiras podem ser encontradas nos santos livros eclesiásticos, mas a exatidão das conclusões não foi introduzida pelos homens, mas foi percebida e observada por eles e pode ser aprendida e ensinada. Está na natureza imperecível e determinada por Deus, como ele mesmo a criou. Isto é suficiente para a lógica, vamos à matemática.

IV. Sobre a Matemática

Matemática é o que em latim chamamos de ciência que ensina, que considera a quantidade abstrata. A quantidade abstrata é dita aquela que, pelo intelecto, separamos da matéria ou de outros acidentes, como as noções de par e ímpar ou outras coisas que somente tratamos pelo raciocínio. A matemática é dividida em aritmética, música, geometria e astronomia. Falarei delas de acordo com esta ordem.

Sobre a Aritmética

Aritmética é a ciência dos números em si mesmos. Portanto, é a teoria dos números, porque ἀριθμον em grego significa número. Os escritores seculares a colocam à frente das ciências matemáticas porque ela existe como um assunto independente, sem precisar de mais nada. Por outro lado, a música, a geometria e a astronomia precisam da aritmética para poderem existir. Josefo, o hebreu erudito, conta no capítulo 9 do primeiro livro de suas Antiguidades que Abraão ensinou aritmética e astronomia aos egípcios, e foi a partir desse ensino que estes homens engenhosos desenvolveram outros assuntos. Nossos Santos Padres aconselham, com razão, o estudo desta arte com grande entusiasmo, porque, dessa maneira, os pensamentos são, em grande parte, atraídos pelos sentidos e direcionados para o que podemos compreender com o coração com a graça do Senhor. O significado do número também não deve ser ridicularizado. Em muitos lugares, as Escrituras Sagradas mostram o quanto algo parece ser alto quando olhado de perto. Não é à toa que louvamos a Deus por ter criado tudo com tamanho, número e peso. Mas cada número é determinado por suas peculiaridades, de modo que nenhum deles pode ser igual ao outro. Eles são, portanto, desiguais e diferentes um do outro; cada um é diferente, cada um é limitado e todos são ilimitados. Mas quem se atreve a subestimar os números como se não pertencessem ao conhecimento de Deus? Pois Platão, que é tão respeitado, diz que Deus criou o mundo a partir dos números. Aqui também o Profeta diz de Deus: “Ele cria o mundo em números”. O Salvador também diz no evangelho: “Todo o seu cabelo é contado”. Os números se apresentam aos nossos olhos, como se fossem imagens dos corpos, por exemplo, quando se considera a composição, ordem e divisão do número de seis; no entanto, a visão mais alta e mais prevalente não concorda com ela, porque engloba a natureza do número; em outras palavras, significa que a unidade do número não pode ser dividida em partes, enquanto todos os corpos podem ser divididos em partes. “Sim,
o céu e a terra, criados após o número seis, passariam mais cedo do que poderia acontecer que o número seis não consistisse em suas partes. Portanto, não podemos dizer que o número seis é perfeito porque Deus fez tudo em seis dias, completou suas obras, mas é por isso que Deus completou suas obras em seis dias, porque o número seis é perfeito. Portanto, se essas (obras) não estavam lá, que (número) seria perfeito; mas se não fosse perfeito, elas não seriam perfeitas. A ignorância dos números também é responsável pelo fato de que não se entende muitas coisas que são figuradas e misteriosamente mencionadas nas Escrituras. A mente inquiridora, pelo menos, não merece esse nome, a menos que saiba por que Moisés, Elias e o próprio Senhor jejuaram por quarenta dias. O significado secreto desta ação não pode ser explicado sem que se conheça este número. São dez vezes quatro, por assim dizer, o conhecimento de todas as coisas entrelaçadas com os tempos. Depois, em quatro, as horas do dia e as estações do ano correm; as horas do dia são as horas da manhã, meio-dia, tarde e noite; e as estações do ano a primavera, o verão, o outono e o inverno. Porém, enquanto vivermos no tempo, temos que evitar a conveniência dos tempos e jejuar pelo bem da eternidade em que queremos viver. A passagem do tempo já nos ensina que devemos subestimar o temporal e buscar o eterno. O número dez denota o conhecimento do criador e das criaturas. Como o número três vai para o criador, o número sete designa a criatura após a vida e o corpo. Como existem três, também devemos amar a Deus com todo o coração, alma e mente. No corpo, no entanto, os quatro elementos dos quais consiste são evidentes. Se tomarmos o número dez temporalmente, isto é, se o multiplicarmos por quatro, devemos recomendar que vivamos castos e relutantes em desfrutar do prazer temporal, ou seja, em jejuar por quarenta dias. E isso que a lei incorporada em Moisés quer; é isso que os profetas ensinam, representado em Elias; o próprio Senhor exorta a isso, que, como atestado pela lei e pelos profetas, foi transfigurado no meio da montanha diante dos olhos dos três discípulos espantados. Há também a questão de como o número cinquenta vem de quarenta. Esse número também é santificado em grande parte em nossa religião pelo Pentecostes. Se tomares as mesmas três vezes, por causa das três vezes antes da lei, sob a lei e sob a graça, ou por causa do nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, adicionarás as três, por causa do segredo mais sublime e sagrado da nossa Igreja, existem 153, que é o número de peixes capturados nas redes jogados para a direita após a ressurreição do Senhor. Ainda existem muitos relacionamentos secretos entre as diferentes formas de números nos livros sagrados que estão ocultos aos leitores por causa da ignorância dos números. Portanto, aqueles que querem aprender sobre as Escrituras devem aprender diligentemente esta arte. Se a aprenderes, entenderás os números misteriosos nos livros sagrados com mais facilidade.

V. Sobre a Geometria

Agora queremos passar para a geometria, que consiste na representação vivida das figuras. E uma ferramenta de ensino amplamente utilizada pelos filósofos, que dizem que Júpiter pratica constantemente geometria em seus trabalhos. Mas me parece questionável se há elogios ou críticas, a saber, se eles confessam que Júpiter desenhe no céu o que eles representam com areia colorida na terra. Se estivesse corretamente relacionada ao verdadeiro Criador e Deus Todo-Poderoso, a frase seria, na melhor das hipóteses, baseada na verdade. Pois a Divindade Sagrada é baseada na geometria, se assim se pode dizer, atribuindo diferentes tipos e formas às suas criaturas, que Ela ainda chama à existência; ou se Ela dirige às estrelas com seu poder digno de adoração, deixa os planetas rolarem certos círculos e grampeiam as estrelas fixas em certos pontos. Os ensinamentos dessa ciência podem ser aplicados a tudo que está bem organizado. De acordo com o texto, geometria significa medir a terra. Sua definição é: a ciência de tamanhos e formas imóveis. Segundo as várias figuras, o Egito foi distribuído pela primeira vez aos proprietários individuais, como alguns dizem. Os mestres nesta arte foram, portanto, chamados de agrimensores. Mas Varro, um dos mais instruídos entre os latinos, diz que esse nome vem do fato de que uma vez que as pessoas mediam os países e definiam as fronteiras, povos errantes a usaram para os acordos de paz; depois, eles teriam dividido todo o curso do ano em meses, e, portanto, os meses também têm seu nome como corte do ano. Mas quando essas coisas foram encontradas, elas foram levadas pela curiosidade a investigar o invisível e começaram a perguntar a que distância a lua estava da terra, a que distância o sol estava da lua; quanto é a distância até o ápice do céu. Os geômetras mais habilidosos, ele diz, teriam revelado isso. Então, como ele relata com credibilidade, toda a Terra foi ocupada, e é por isso que a própria ciência recebeu o nome de metrologia da terra, que agora se mantém há muitos séculos. Essa ciência também foi usada na construção do tabernáculo e do templo, onde há círculos e esferas da mesma escala, depois também hemisférios, quadrados e outras figuras. Saber tudo isso é de grande benefício para aqueles que estão preocupados com isso, para uma compreensão mais profunda.

VI. Sobre a Música

A música é a ciência que lida com as relações dos números, principalmente os encontrados nos tons, como duplo, triplo, quádruplo e similares. Esta ciência é, portanto, tão nobre e tão útil que aqueles que não a possuem não podem preencher adequadamente um ofício espiritual. Isso pode ser devido à pronúncia correta das leituras, ao adorável canto dos salmos na igreja, essa ciência leva a isso, e não apenas para ler e cantar na igreja, mas para realizar todo o culto adequadamente. Assim, o assunto da música se estende a todas as ações de toda a nossa vida da seguinte maneira: Primeiro, quando observamos os mandamentos do nosso Criador e O servimos com a mente pura no momento certo. Porque tudo o que estamos falando ou o que nos move internamente devido à pulsação prova que tudo está conectado com forças harmônicas através do ritmo da música. A música é a ciência da batida e medida certa. Portanto, se lutarmos por uma causa justa, nos mostraremos como verdadeiros amigos desta arte; mas quando fazemos o mal, não temos harmonia. Até o céu e a terra, junto com tudo o que acontece neles através de influência mais alta, nada mais são do que música; Pitágoras afirma que este mundo foi criado pela música e pode ser governado por ela. Também está intimamente relacionado à religião cristã; portanto, a ignorância de algumas coisas musicais esconde e obscurece muitas coisas. Alguém levantou temas engenhosos sobre a diferença entre harpa e citara; e, quanto à harpa de dez cordas, os estudiosos argumentam com razão se existe uma lei musical que exige um número tão grande de cordas ou, se esse não for o caso, se esse número não é particularmente sagrado por causa dos dez mandamentos da lei. Se a pergunta também for levantada por causa desse número, ela deve ser encaminhada apenas ao criador e à criatura, como foi demonstrado em relação ao número dez acima. Até o número de anos que levou para a construção do templo, 46, segundo o Evangelho, parece expressar algo harmonioso. Se alguém se refere ao templo do corpo do Senhor, o que significa quando o templo é mencionado, muitos dos professores de erros têm que admitir que o filho de Deus não adotou um corpo aparente, mas real e humano. Portanto, descobrimos que tanto os números quanto a música são honrados em muitos lugares das Escrituras Sagradas. Tão longe de nós estão os erros da superstição pagã, que as nove musas inventaram como as filhas de Júpiter e Mnemosine (memória). Varro já os refutou, e não creio que tenha havido um pesquisador acadêmico e engenhoso nesse assunto. Ele diz que uma cidade — não me lembro o nome — ordenou que três estátuas das musas de três artistas fossem colocadas como presentes votivos no templo de Apoio, para que fossem comparadas e a mais bela, escolhida e comprada. Mas aconteceu que esses artistas apresentaram suas obras igualmente bonitas, de modo que os cidadãos gostaram das nove. Então todas foram compradas para serem dedicadas a Apoio no templo. Então, ele diz, o poeta Hesíodo acrescentou os nomes a elas. Sendo assim, Júpiter não criou as nove musas, mas três artistas produziram três cada. Mas os três escolheram a cidadania não porque os viram em seus sonhos ou porque muitos estavam flutuando na frente de qualquer um deles, mas porque era fácil observar que toda nota que forma a base da melodia tem uma natureza tríplice: ou é provocada pela voz, como naqueles que cantam com a garganta sem acompanhamento instrumental; ou tocando, como trombetas e flautas; ou golpeando, como citaras e tímpanos e todos os outros instrumentos, que são tocados com golpes. Seja como Varro relata ou não, não precisamos fugir da música por causa de abusos supersticiosos se pudermos aprender algo que seja útil para entender as Escrituras. Nem devemos nos permitir ser tentados às piadas teatrais se estivermos lidando com citaras e instrumentos de som para obter ganho intelectual. Nós também não aprendemos as ciências, embora elas tenham Mercúrio como deus da virtude e da justiça porque honram as consagrações do templo em homenagem a elas e preferem adorá-las em pedras, em vez de em corações? Todo o bom e verdadeiro cristão deve estar convencido de que, onde quer que encontre a verdade, seu Deus também estará presente.

VII. Sobre a Astrologia

Finalmente, há a astronomia, que, como alguém disse uma vez, é uma ferramenta de ensino digna para os piedosos e um grande incômodo para os curiosos. Ou seja, quando a exploramos com uma mente mais alta e humilde, ela preenche nossa mente, como dizem os idosos, com grande clareza. O que significa subir ao céu em seus pensamentos, investigar sua formação como um todo com um espírito inquiridor e, pelo menos parcialmente, compreender a nítida perspicácia da mente que criou um espaço tão grande! Porque, como dizem alguns, o mundo deve ser agrupado em uma bola redonda e, assim, compreender as várias formas de coisas ao seu redor. Sêneca, de acordo com as investigações dos filósofos, escreveu um livro sobre esse assunto com o título “A Forma do Mundo”. A astronomia com a qual estamos lidando agora é chamada Lei das Estrelas, porque elas não fazem isso de outra maneira além daquela determinada pelo Criador, e nem existem ou se movem a menos que mudou milagrosamente após a decisão divina. Lemos que Joshua Nave ordenou que o sol em Gabaon ficasse parado, e que em sua época de o rei Ezequias recuou dez passos, para que o sol escurecesse por três horas, o tempo em que o Senhor sofreu, e que milagres são chamados de fenômenos porque se destacam de uma maneira impressionante contra o curso normal da natureza, como dizem os astrônomos. As estrelas parecem estar firmemente no céu, por outro lado, os planetas se movem, isto é, são estrelas errantes, que completam seu curso de acordo com certas leis, como já foi dito. A astronomia é a ciência que lida com o curso e as imagens das estrelas, bem como com todos os relacionamentos das estrelas entre si e com a terra com um espírito inquiridor. Há uma certa diferença entre astronomia e astrologia, embora ambas façam parte de uma só ciência. Porque a astronomia inclui a rotação do céu, a ascensão, o pôr e o movimento das estrelas e de onde elas receberam seu nome. Em contraste, a astrologia se baseia em parte na natureza, em parte na superstição. A astrologia natural deriva uma certa qualidade de tempo do curso do sol, lua e estrelas; a supersticiosa, no entanto, é aquela que os matemáticos seguem, aqueles que contam a sorte nas estrelas, que distribuem os doze sinais do céu entre os membros individuais da alma ou do corpo e tentam dar natividade às pessoas a partir do curso das estrelas. Esta parte da astrologia — que se baseia na exploração da natureza, explora cuidadosamente o curso do sol, da lua e das estrelas e de certas mudanças no tempo — o clero cristão deve adquirir com um exame cuidadoso, a fim de fazer suposições confiáveis baseadas nas regras confiáveis e tirar conclusões inequívocas não apenas para investigar períodos passados de acordo com a verdade, mas também para poder julgar o futuro com probabilidade. Também deve poder observar cuidadosamente o início da Páscoa e os horários específicos de todos os festivais e celebrações, a fim de torná-los conhecidos do povo cristão pela celebração.

VIII. Sobre os livros dos filósofos

Creio que expliquei suficientemente o quão útil é para os católicos aprenderem as sete artes liberais das formas seculares. Queremos acrescentar que, se há algo nos escritos e tratados dos chamados filósofos que seja verdadeiro e de acordo com nossa crença, especialmente entre os platônicos, não só não precisamos ter medo, mas também devemos nos apropriar de tudo. Pois como os egípcios não apenas tinham ídolos e serviços religiosos que o povo de Israel detestava e fugia, mas também vasos de ouro e prata, e roupas que estes secretamente se apropriavam para um melhor uso quando saíram do Egito, não por sua própria presunção, mas porque foi ordenado por Deus que os próprios egípcios emprestaram, sem pensar, o que não usavam adequadamente. Sendo assim, todos os sistemas de ensino pagãos contêm não apenas poemas falsos e supersticiosos e um fardo opressivo de trabalho inútil, que cada um de nós, aqueles que Cristo chamou, deve evitar. Mas entre elas estão as artes liberais que acabamos de discutir, que são muito adequadas ao serviço da verdade e são muito úteis à vida, existe algo do Deus verdadeiro entre elas. E estas coisas pagãs, como se fossem ouro e prata, não os prepararam, mas antes cavaram os poços para Providência Divina, que permeia tudo; mesmo fazendo isso às mentiras, erros e injustiças e as usando mal a serviço do diabo. O cristão agora, que em espírito se afasta de sua triste condição de pecado, deve aprender estas artes e usá-las para o fim correto, para a proclamação do evangelho. Também suas roupas, isto é, suas instituições humanas, adaptadas à sociedade civil e indispensáveis para esta vida, podem ser apropriadas para uso cristão. E o que mais muitos de nossos bons crentes fizeram? Eles não se mudaram do Egito com tanto ouro, prata e roupas quanto possível? Tanto Cipriano, tão distinto e professor amoroso quanto um mártir feliz, quanto Lactâncio, Victorino, Optato, Hilário e inúmeros estudiosos seguiram o exemplo dado pelo servo mais fiel de Deus, Moisés, que disse: “Ele foi ensinado com toda a sabedoria dos egípcios”. O paganismo supersticioso nunca teria de todos esses homens — e menos ainda no momento em que era sacudido o jugo de Cristo e seus discípulos perseguidos — as ciências que lhe pareciam úteis, se houvesse suspeita de que elas poderiam ser usadas para adorar o verdadeiro e único Deus, por quem o serviço ocioso dos ídolos foi destruído. Então eles deram ouro, prata e roupas ao povo de Deus que saiu do Egito, sem perceber que seus dons seriam usados para servir a Cristo. Porque, sem dúvida, o que aconteceu quando deixei o Egito, figurativamente, deve ser entendido, com aquilo que não quero antecipar outra interpretação igualmente boa ou melhor. Mas um leitor das escrituras assim preparado pode levar isso a sério quando ele começa a pesquisá-las, a saber, que ele não esquece o ditado do apóstolo: “A ciência infla, o amor edifica”. Essa deve ser a atitude dele, não importa quão ricamente ele se mude do Egito, porque se ele não celebra a Páscoa, ele não pode ser salvo. “Nosso Cordeiro da Páscoa, Cristo, foi sacrificado”. E o sacrifício de Cristo não nos chama nada mais insistente do que aquilo que ele mesmo chama àqueles a quem ele lutou no Egito sob o faraó: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei”. Leve meu jugo e aprenda comigo; porque sou manso e humilde de coração; encontrarás descanso para tua alma, porque meu jugo é doce e meu fardo é leve.

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S. João Batista de La Salle, padroeiro dos Educadores

São João Batista de La Salle, por
Pierre Léger - Museu La Salle, Roma


São João Batista de La Salle, fundador dos Irmãos das Escolas Cristãs, destinada à educação das classes sociais menos favorecidas. A Igreja celebra sua memória no dia 7 de abril.

Entre as inúmeras glórias da cidade francesa de Reims, conta-se o fato de ter assistido ao nascimento de um novo João Batista, em 30 de abril de 1651.

Esse local, que se tornara a pia batismal da França quando Clóvis ali recebeu o primeiro dos Sacramentos, por volta do ano 498, e o sustento da fé francesa quando Santa Joana d’Arc viu coroado Carlos VII em 1429, serviu também de berço para o varão que batizaria “no Espírito Santo” (Mc 1, 8) inúmeras crianças francesas nos conturbados séculos subsequentes.

João Batista, filho primogênito de Luis de La Salle e Nicolasa Moët, teve uma infância marcada pela calorosa vida de família, pela piedade e pelo estudo. Seus principais divertimentos consistiam em construir oratórios e imitar os ritos sagrados, num ambiente doméstico caracterizado pela ternura dos pais e vivacidade dos irmãos. Enquanto aluno, apresentou um desempenho brilhante.

Cônego de Reims e estudante de Teologia

O destaque do jovem no mundo acadêmico propiciou que ele se tornasse, ainda muito novo, cônego de ­Reims. No Domingo de Páscoa de 1666, houve um concurso de literatura e distribuição de prêmios no colégio que frequentava, durante o qual atuou magistralmente. Sua desenvoltura atraiu a atenção de Pedro Dozet, secretário e cônego de Reims já ancião, levando-o a ceder-lhe seu canonicato quando o Santo contava quinze anos e apenas havia recebido a tonsura.

Tratava-se de um cargo de prestígio, porém muito oneroso. Pertencendo ao cabido, ele estava obrigado a participar da oração coral: três longos períodos de oração oficial em nome da Igreja. Sua condição de estudante o eximia desse dever na maioria dos dias, mas não de comparecer a diversas reuniões administrativas, estar presente em procissões e desempenhar várias outras funções.

Em 1670, tendo já três anos de canonicato, ele ingressou no seminário parisiense de São Sulpício, passando a estudar na Universidade da ­Sorbonne. João Batista rumava por sendas planas em direção ao sacerdócio, que almejara desde a mais tenra infância, e a um futuro brilhante. Contudo, a Divina Providência tinha outros desígnios a seu respeito.

No ano seguinte à mudança para a capital francesa, chegaram-lhe notícias desalentadoras: em julho de 1671, faleceu sua mãe, seguida pelo marido nove meses depois. João Batista teve de deixar o seminário e transladar os estudos novamente para Reims, onde a primogenitura o obrigava a cuidar dos irmãos órfãos.

Ali, não obstante a administração do patrimônio a ele confiado, continuou seus estudos, recebendo a ordenação sacerdotal em 1678, na sua cidade natal.

Um chamado visto com nitidez

Naquela quadra histórica, grande parte do clero encontrava-se contaminada por certa tibieza e relaxamento no empenho apostólico, procurando se destacar junto aos nobres e abastados, enquanto as classes humildes eram deixadas de lado. Como resultado, havia multidões de crianças carentes de qualquer formação religiosa.

Em contrapartida, iniciou-se em algumas cidades francesas um movimento para a fundação de escolas caritativas dedicadas a esses pequenos, notadamente os pobres e órfãos. O responsável por tal iniciativa, Sr. Adrian Nyel, dirigiu-se a Reims com o intuito de organizar ali um estabelecimento semelhante e, ouvindo os rumores acerca das virtudes do jovem cônego, decidiu pedir-lhe ajuda.

Tendo se aliado a essa tarefa, o Pe. de La Salle não tardou em perceber o caráter superficial de seu companheiro, que o levava a vaguear pela França em busca de novas fundações sem haver alicerçado adequadamente as já iniciadas.

Enquanto isso, o espírito ­profundo do Santo constatou a necessidade de fornecer uma sólida formação religiosa aos mestres, antes de lançar-se em empreendimentos que não poderiam se sustentar. A partir dessa moção da graça, e após muitas orações, o Pe. de La Salle começou a delinear os primeiros esboços da ousada empresa que ele percebeu ser sua vocação: fundar uma Ordem Religiosa.

Todavia, a Providência não queria ainda depositar o grão em terra fecunda. Antes era preciso que ele se desenvolvesse em solo pedregoso…

Constituição da congregação religiosa

Após um curto período de vida comunitária com um incipiente conjunto de discípulos, surgiram as primeiras desavenças e discórdias. Coube ao fundador passar pelo crivo aquele grupo, pois percebera que muitos dos que haviam aderido a seu projeto visavam somente pertencer a um corpo docente e jamais lhes passara pela mente abraçar uma vocação religiosa.

Contudo, mesmo depois desta purificação, restava uma reticência de seus seguidores em relação à sua pessoa: ele os convidava a viverem inteiramente confiados na Providência, dependentes de esmolas ou da escassa renda das escolas, enquanto ele próprio conservava uma posição social prestigiosa e recebia a renda do canonicato.

Ao perceber a questão, o Santo não duvidou: decidiu renunciar ao cargo e ao patrimônio que lhe cabia, dando tudo aos pobres. Alguns o desaconselharam nesse sentido, fundamentados no fato de aquela renda ser um dos meios de subsistência da comunidade, mas a confiança do Pe. de La Salle em Deus era total.

A depuração interna e a renúncia do fundador marcam uma nova fase para o estabelecimento de uma verdadeira congregação religiosa. O terreno pedregoso tornara-se fértil para a semente começar germinar.

Expansão e perseguições

Depois de se instituir o hábito próprio, definir o nome de Irmãos das Escolas Cristãs e se estabelecerem os primeiros regulamentos, a obra entrou em franca expansão, conquistada a preço de grandes sofrimentos.

Com a fama das escolas gratuitas, os mestres leigos sentiram-se prejudicados, pois algumas famílias que só a muito custo conseguiam manter os filhos nos estabelecimentos de ensino convencionais preferiram transferi-los para as instituições caritativas, fazendo-os perder cada vez mais alunos. O problema chegou a gerar vários processos contra os Irmãos das Escolas Cristãs, aos quais o fundador teve de responder pacientemente.

Entrementes, a obra ia-se desenvolvendo: em 1691, foram organizados dois grandes retiros; em 1692, fundou-se o noviciado; em 1694, realizou-se a primeira emissão de votos perpétuos e foi definida a regra. A instituição começava a tomar ares de uma congregação religiosa pujante, mas isso não agradou a todos…

Em 1702, alguns dos irmãos tomaram, imprudentemente, atitudes demasiado severas ao punir os noviços, gesto que propiciou a certos clérigos, avessos a São João Batista de La Salle, afirmarem que os castigos haviam sido infligidos por orientação do Santo.

Movido pelos detratores, o Cardeal Louis Antoine de Noailles tomou a deliberação de destituí-lo do cargo de superior e substituí-lo por um clérigo alheio ao carisma fundacional. O fundador foi informado de que estava degredado e recebeu a ordem de convocar todos os irmãos de Paris para uma assembleia, na qual seriam postos a par das novas medidas.

No dia 3 de dezembro, reuniram-se os filhos espirituais de São João Batista de La Salle, sem saber que estavam ali para ouvir a terrível notícia dos lábios de um enviado do Cardeal. Quando ouviram aquela decisão draconiana, ergueram imediatamente um clamor unânime de indignação: “Temos um superior eleito livremente por nós; não podemos aceitar outro […]. Se queres estabelecer um superior, traze também os inferiores; nós nos retiramos”.

A intransigência dos irmãos conquistou a vitória. O novo superior acabou limitando-se a uma atuação “externa”, à maneira de um capelão, completamente impossibilitado de alterar o carisma. O fundador continuava como superior efetivo.

Não obstante, em 1709 outro sofrimento assomou. O inverno rígido converteu a classe mais modesta da França numa turba de mendigos, e os irmãos também foram atingidos: a fome afetou quase todas as casas e vários adoeceram gravemente; o grande noviciado, fundado quatro anos antes em Saint-Yon, não podendo manter as condições mínimas de dignidade, transferiu-se para Paris.

Últimos combates

Em 1717 convocou-se o segundo Capítulo Geral, no qual, a pedido do fundador, foi oficialmente nomeado o primeiro Superior Geral – o Ir. Bartolomeu – e se procedeu à revisão da regra inicial. Naquela ocasião, a comunidade alcançava sua maturidade: “tinha hábito próprio; afirmava sua completa laicidade; professava três votos perpétuos; dispunha de regras adequadas; declarava como seu campo de apostolado eclesial a educação integral, mediante a escola cristã; considerava indispensável a gratuidade total; tinha sua hierarquia estabelecida”.

Dali em diante, o fundador permaneceria recolhido em Saint-Yon, atuando como confessor da comunidade e inteiramente obediente ao superior constituído. Enquanto sua saúde física definhava de dia para dia, sua alma o tornava cada vez mais semelhante aos Anjos.

A fim de que atingisse o cume do calvário, o Santo recebeu, dias antes de seu falecimento e encontrando-se ele quase já sem forças, um enviado do Arcebispo local, o qual lhe comunicou que estava suspenso do uso de ordens e, consequentemente, proibido até mesmo de confessar os irmãos. Não parece despropositado pensar que a medida se devia a antigas ou novas calúnias… Sem qualquer reclamação, São João Batista de La Salle tragou o amargo cálice.

A 7 de abril de 1719, tendo recebido os Sacramentos, ele entregou sua alma a Deus, faltando apenas alguns dias para completar sessenta e oito anos de idade.

Obra “post mortem”

Iniciava-se então a glorificação do Santo: em 1724, os Irmãos das Escolas Cristãs receberam a sanção civil e, no ano seguinte, a aprovação pontifícia, tão desejada pelo fundador em vida, das mãos do Papa Bento XIII; em 1888, Leão XIII o beatificou; em 1900, ele foi canonizado pelo mesmo Pontífice; em 1950, Pio XII o proclamou Padroeiro dos Educadores.

O instituto, fundado sobre a rocha firme e regado com o sangue do fundador, deu muito mais que cem por um. Após atravessar as mais árduas veredas – suprimiram-no durante a Revolução Francesa, em 1904 praticamente o expulsaram do solo francês, a perseguição religiosa na Espanha ceifou a vida de 165 irmãos –, o instituto conta, em nossos dias, com milhares de membros, espalhados pelos cinco continentes.

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Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n. 244, abril 2022. Por Fernando Joaquim Costa Mesquita, [disponível neste link e neste outro link].


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