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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Escola x Universidade - Instituto Hugo de São Vítor

Atual Abadia de Cluny

Escola x Universidade – Parte I

Temos universidades no Brasil? A resposta, por incrível que pareça, é não.

A academia de Platão é um exemplo de universidade. Não podemos nos confundir quanto a isso. Há uma enorme diferença entre a educação escolar e a educação universitária.

O que temos hoje em dia no Brasil são “escolas para adultos”, escolas de formação profissional. Essa educação, porém, não cumpre o propósito típico de uma universidade. Na academia de Platão, por exemplo, o aluno para poder estudar deveria ter o conhecimento de geometria, ou seja, a pessoa teria que ter passado por um conhecimento de tipo escolar. Pressupõe-se que, para ser um geômetra, o aluno já tenha sido alfabetizado, que conheça todos os grandes poetas, saiba cantar num coro, tenha participado da encenação de uma tragédia etc. Todos esses conhecimentos são adquiridos na esfera da educação escolar.

No recinto da escola, o professor que ensina determinada disciplina dispõe de um gama de preceitos que serão ensinados para que os alunos cheguem a um fim específico. O professor de matemática começa ensinando os números, a adição, a subtração, a multiplicação, divisão, logaritmo e assim por diante. Tudo isso se dá no âmbito da escola. O professor de escola normalmente está ensinando os mesmos conteúdos todos os anos e é isso que a educação escolar é e precisa ser.

No campo da universidade acontece a mesma coisa que na escola hoje em dia. Não temos mais a figura da cátedra, pois essa foi substituída pelo departamento. O que vemos nada mais é que uma “escola para adultos”, pois apenas se repete ensinamentos técnicos ano após ano.

Na universidade, portanto, não ensinamos as mesmas matérias, os mesmos conteúdos o tempo todo e o professor não repete - ou não deveria repetir - seus ensinamentos todo o semestre a cada ano. A universidade deveria ser um ambiente de ensino diferente do da escola. O problema hoje, por conseguinte, não está nas faculdades comportando-se como escola, mas está em não haver universidades genuínas.

Escola x Universidade – Parte II

O que é o ensino universitário?

O ensino universitário é como o ensino “superior” do mundo grego. A título de exemplo, a filosofia era considerada um ensino de tipo superior. Não sem fundamento até nos dias de hoje nos EUA há o título de PhD (doctor philosophiae), pois esse é o conhecimento de cunho tipicamente universitário.

O professor universitário pesquisa e publica. O que este professor, no entanto, ensina? Seria, pois, os resultados de sua pesquisa? Não!

Frequentemente um professor universitário da área do direito que ministra a disciplina de processo civil, por exemplo, irá ensinar todo o semestre a mesma coisa e repetidas vezes; mas sua pesquisa não está ligada à disciplina que ele leciona. Uma coisa é lecionar todo o ano a mesma matéria sobre o código civil, porque isto caracteriza uma tarefa de cunho escolar, porém quando este mestre está pesquisando e publicando, isto caracteriza uma atividade de cunho universitário.

Ademais, poderíamos ter uma “escola de direito” que ensine os alunos a conhecer os códigos, o ordenamento jurídico etc. A universidade, contudo, irá tratar (ou deveria tratar) dos fundamentos primeiros, das consequências últimas do direito, da justiça, das instituições etc. Isso é deveras um trabalho universitário, o qual se constitui para investigar todas essas áreas.

Hegel, por exemplo, não teria conseguido escrever sobre quase todos os assuntos se ele tivesse que ficar dando aula da mesma coisa todos os anos. Num semestre ele dava aula de filosofia do direito, no outro de estética, no outro de fenomenologia do espírito etc., e assim ele ia aplicando suas pesquisas a diferentes áreas do conhecimento, pois é isso que faz um professor universitário. Cada cadeira ministrada tornava-se um livro e assim sucessivamente.

O que acontece em nossas universidades hoje é que se confundem escola e universidade. Junto às universidades havia, antigamente, uma escola anexa para auxiliar os alunos com dificuldades em acompanhar os estudos universitários. Santo Inácio, quando estudou na universidade de Paris, morou no Colégio Santa Bárbara e tomou aulas de reforço de latim para que pudesse compreender os estudos superiores.

Escola x Universidade – Parte III

Qual é o fim da universidade?

A universidade é o lugar de busca do conhecimento universal, ou seja, um conhecimento que é aplicável a todas as coisas. Assim é uma universidade em sua essência. Hoje em dia nós temos pesquisas nas universidades; no entanto, também há nelas atividades que mais têm a ver com a atividade escolar do que com a universitária. Por causa disso, nem tudo que ocorre nas universidades nos dias de hoje pode ser chamado de atividade universitária.

A universidade é uma comunidade de doutores, e quando alguém quer tornar-se doutor, recorre a pessoas que já alcançaram esse título para que possa imitá-los e ser avaliado por eles. Enquanto houver disciplinas a serem cursadas no mestrado ou doutorado, estaremos vilipendiando aquilo que chamamos de pós-graduação. Enquanto precisarmos frequentar aulas, não teremos condições nenhuma de sermos mestres ou doutores, pois assistir a aula é uma atividade escolar. Ou seja, não há diferença entre matricular-se numa escola aos 7 anos ou num curso de doutorado, exceto quanto à complexidade dos assuntos.

Na academia de Platão fica bastante claro a divisão entre uma educação de tipo escolar e a educação de tipo universitário. Em inglês, por exemplo, temos palavras diferentes para falar da aula na escola e da aula na faculdade. A aula na escola nós chamamos “class”, enquanto uma aula na universidade é chamada de “lecture”, ou seja, na universidade se fazem leituras.

Só podemos entender o que deve ser a universidade se entendermos que o conceito de universidade vem de “universal”, ou seja, a universidade é algo que diz respeito ao que é comum a todas as coisas. Embora esse pensamento tenha sido crucial para a concepção de universidade na Idade Média, foi notavelmente pouco influente na determinação de como as universidades deveras se desenvolveram. Esse pensamento esteve presente no ensino e aprendizagem dominicanos; mas as universidades no fim da Idade Média e início do Renascimento, bem como seus currículos, foram moldados por uma variedade de influências que mudaram muito o terreno universitário.

Fonte: Parte IParte II e Parte III.


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A implausível eficácia da Matemática nas Ciências Naturais

Por EUGENE F. WIGNER Princeton University 

“A matemática, apropriadamente vista, é dotada não somente de verdade, mas de uma beleza suprema, uma beleza fria e austera, como a de uma escultura, sem suplicar a nenhuma parte de nossa fraca natureza, sem as deslumbrantes armadilhas da pintura e da música, por ora sublimemente pura e susceptível a uma severa perfeição tal qual somente a maior das artes pode revelar. O verdadeiro espírito de deleite, a exaltação, o senso de ser mais que Homem, que é o crivo da mais alta excelência, é encontrada na matemática tão seguramente quanto na poesia.” 

–BERTRAND RUSSELL, Estudo da Matemática

“e é provável que haja aqui algum segredo ainda a ser descoberto” (C. S. Peirce) 

Existe uma história a respeito de dois amigos, colegas de classe no colégio, falando sobre suas profissões. Um deles tornou-se um estatístico e estava trabalhando com estudos populacionais. Ele mostrou uma publicação ao seu antigo colega de classe. A publicação começava, como de hábito, com a distribuição gaussiana e o estatístico explicou ao colega o significado dos símbolos para a população real, para a população média e assim por diante. Seu colega se mostrava um pouco incrédulo e parecia não estar certo de que não estava sendo vítima de uma brincadeira. “Como você pode saber isso?” foi sua pergunta. “E o que é este símbolo aqui?” “Ah,” disse o estatístico, “isso é π”. “O que é isso?” “A razão entre a circunferência do círculo e seu diâmetro.” “Agora você está levando a brincadeira longe demais,” disse o colega, “certamente a população não tem nada a ver com a circunferência de um círculo.” 

Nossa inclinação natural é sorrir diante da simplicidade desse ponto de vista. No entanto, sempre que ouço essa história, sou tomado por um sentimento sinistro pois na reação do colega do estatístico não há nada mais que uma manifestação de puro e simples bom senso. Fiquei ainda mais confuso quando, alguns dias mais tarde, alguém expressou a mim seu espanto (1) com o fato de que fazemos escolhas muito restritas quando escolhemos os dados que vamos utilizar para testar nossas teorias. “Como podemos saber que não é possível, levando-se em conta o que havíamos desprezado e desprezando o que havíamos considerado, construir uma nova teoria, em tudo diferente da que temos mas que, tanto quanto ela, é capaz de explicar um grande número de fatos significativos”. Temos que admitir que não existe nenhuma evidência definitiva de que isso não é possível. 

As duas histórias precedentes ilustram duas questões principais que são o assunto do presente discurso. A primeira delas é que os conceitos matemáticos aparecem em situações totalmente inesperadas. Além disso, eles permitem, com frequência, descrições, surpreendentemente próximas e precisas, dos fenômenos em questão. A segunda é que, exatamente por causa das circunstâncias descritas e também por não entendermos as razões dessa utilidade, não podemos saber se a teoria formulada em termos desses conceitos matemáticos é a única apropriada. Estamos numa situação parecida com a do homem que recebeu um molho de chaves e que, tendo de abrir seguidamente diversas portas, sempre encontra, na primeira ou na segunda tentativa, a chave certa. Esse fato o torna cético em relação à unicidade da correspondência entre chaves e portas. 

Muito do que será dito a respeito dessas questões não será novidade; provavelmente já ocorreu, de uma forma ou de outra, para a maioria dos cientistas. Meu principal objetivo será iluminar a questão de diversos ângulos. O primeiro aspecto a ser considerado é que a enorme utilidade da matemática para as ciências naturais é algo que beira o mistério e que não pode ser racionalmente explicado. Em segundo lugar, é exatamente essa misteriosa utilidade dos conceitos matemáticos que levanta a questão da unicidade de nossas teorias físicas. Para tratar da primeira questão, que a matemática desempenha uma função na física cuja importância ultrapassa o razoável, será útil dizer alguma coisa sobre a questão “O que é a matemática?” e a seguir sobre “O que é a física?” e, em seguida, sobre como a matemática aparece nas teorias físicas e, finalmente, sobre a razão do sucesso da matemática ao tratar com a física ser tão desconcertante. Muito menos se dirá sobre a segunda questão: a unicidade das teorias físicas. Uma resposta adequada para esta questão exigiria um trabalho teórico e experimental que até hoje ainda não foi realizado. 

O que é a matemática? Alguém disse, certa vez, que filosofia é o mau uso de uma terminologia inventada exatamente com esse propósito. (2) Nessa mesma linha, eu diria que a matemática é a ciência de engenhosas operações com regras e conceitos inventados exatamente com esse propósito. A principal ênfase está na invenção dos conceitos. A matemática veria esgotar rapidamente seus teoremas interessantes se eles fossem formulados apenas em termos dos conceitos que já apareceram nos postulados. Além disso, apesar de ser inquestionável que os conceitos da matemática elementar, particularmente os da geometria elementar, são formulados para descrever entidades que são diretamente sugeridas pelo mundo real, o mesmo não parece ser verdadeiro para os conceitos mais avançados, em particular para os conceitos que desempenham um papel fundamental para a física. Assim, as regras para operar com pares de números são obviamente formuladas para fornecer os mesmos resultados que os das operações com frações que inicialmente aprendemos sem fazer referência a “pares de números”. As regras para operações com sequências, isto é, com números irracionais, ainda pertencem a categoria das regras que foram formuladas para reproduzir regras de operações de quantidades que já eram por nós conhecidas. A maior parte dos conceitos matemáticos mais avançados, tais como os números complexos, álgebras, operadores lineares, conjuntos de Borel – e a lista pode ser prolongada quase indefinidamente – foram concebidas de forma a serem entidades com as quais o matemático pode demonstrar toda sua engenhosidade e senso de beleza. De fato, a definição desses conceitos, com a percepção de que considerações engenhosas e interessantes poderiam ser a eles aplicadas, é a primeira demonstração de engenhosidade do matemático que os define. A profundidade de pensamento que entra na formulação de conceitos matemáticos é justificada, a posteriori, pela habilidade (eficácia) com que esses conceitos são utilizados. O grande matemático explora integralmente, quase implacavelmente, os domínios dos raciocínios permissíveis até o limite dos não permissíveis. Que esse atrevimento não o leve a um pântano de contradições é, em si mesmo, um milagre: é difícil de acreditar que nosso poder de raciocínio foi levado, por um processo de seleção natural Darwiniano, à perfeição que aparenta possuir. Esse não é, no entanto, o assunto de que estamos tratando. O ponto principal que terá que ser recordado mais tarde é que se o matemático não quiser que a matemática fique restrita a uns poucos teoremas interessantes, será necessário definir novos conceitos além daqueles já contidos nos axiomas, mais ainda do que isso, esses conceitos precisam ser definidos de forma a permitir hábeis operações lógicas, com forte apelo estético, tanto no que se refere as operações como também em termos de resultados de grande generalidade e simplicidade. (3)

Os números complexos fornecem um exemplo notável para o que vem a seguir. É certo que não há nada em nossa experiência que possa sugerir a introdução dessas quantidades. De fato, se pedirmos a um matemático para que justifique seu interesse por esses números ele apontará, com alguma indignação, para o grande número de belos teoremas na teoria das equações, para a teoria de séries de potências e para a teoria geral das funções analíticas cuja origem está ligada a introdução dos números complexos. O matemático não pretende abrir mão de seu interesse por essas belas criações de seu gênio. (4) 

O que é Física? O físico se interessa em descobrir as leis da natureza inanimada. Para entendermos essa afirmação é necessário analisarmos o conceito de “lei natural”. 

O mundo ao nosso redor é de desconcertante complexidade e o fato mais óbvio a seu respeito é que não podemos prever o futuro. Embora se costume dizer que somente o otimista acha o futuro incerto, o otimista está, nesse caso, certo: o futuro é imprevisível. É, como Schroedinger observou, um milagre que certas regularidades nos eventos, apesar da desconcertante complexidade do mundo, possam ser descobertas [1]. Uma dessas regularidades, descoberta por Galileu, é que duas pedras, soltas no mesmo instante, de uma mesma altura, atingem o chão simultaneamente. As leis da natureza se referem a essas regularidades. A regularidade de Galileu é um protótipo de uma grande classe delas. Por três razões, essa regularidade é surpreendente. 

A primeira razão pela qual ela é surpreendente é que ela não é verdadeira apenas em Pisa, no tempo de Galileu mas é verdadeira em todos os lugares da terra, foi verdadeira no passado e continuará, sempre, sendo verdadeira. Essa propriedade é claramente uma propriedade de invariância e, como tive a oportunidade de observar algum tempo atrás [2], sem princípios de invariância semelhantes a esse, obtido pela generalização das observações de Galileu, a física não é possível. A segunda razão para essa regularidade que estamos discutindo é surpreendente é o fato dela não depender de muitas condições que poderiam afetá-la. Chovendo ou não chovendo, sendo realizada numa sala ou na Torre Inclinada e independentemente de ser homem ou mulher a pessoa que solta a pedra, ela é válida. Continua válida também no caso das duas pedras serem soltas, simultaneamente e da mesma altura, por duas pessoas diferentes. Existem, obviamente, enumeráveis outras condições que não interferem na validade da regularidade de Galileu. A irrelevância de muitas circunstâncias que poderiam intervir num fenômeno observado também tem sido chamado de invariância [2]. Essa invariância tem, no entanto, características diferentes da anterior em virtude do fato dela não poder ser formulada como um princípio geral. A exploração das condições que afetam ou não um determinado fenômeno faz parte das pesquisas experimentais iniciais que são feitas ao se estudar de um campo. É a perícia e a argúcia do experimentador que irão indicar a ele fenômenos que dependem de um número relativamente pequeno de condições que podem ser facilmente percebidas e reproduzidas. (5) No caso presente, a restrição feita por Galileu de só trabalhar com corpos relativamente pesados, é a mais importante. Voltamos a insistir que, se não existissem fenômenos dependentes apenas de um pequeno número de condições que podemos controlar, a física não seria possível. 

Os dois pontos precedentes, embora muito significativos para o filósofo, não foram os que mais surpreenderam Galileu uma vez que eles não contém uma lei da natureza. A lei da natureza está contida na afirmação de que o intervalo de tempo necessário para um objeto pesado cair de uma determinada altura é independente do tamanho, da forma e do material de que é feito o corpo que cai. No contexto da segunda “lei” de Newton isso equivale à afirmação de que a força gravitacional que age no corpo em queda livre é proporcional a sua massa mas, independe do tamanho, da forma e do material do qual o corpo é feito. 

A discussão precedente tem a intenção de lembrar, em primeiro lugar que não é nada natural que “leis da natureza” existam e, muito menos, que o homem seja capaz de descobri-las. (6) O presente autor teve a ocasião, algum tempo atrás, de chamar a atenção para os sucessivos níveis de “leis da natureza”, cada nível contendo leis mais gerais e abrangentes do que o anterior e também para o fato de as descobertas desses níveis constituírem-se num crescente aprofundamento na estrutura do universo em relação aos níveis conhecidos anteriormente [3]. No entanto, o ponto mais importante no presente contexto é que todas essas leis da natureza, mesmo em suas mais remotas consequências, contém apenas um pequeno fragmento de nosso conhecimento da natureza inanimada. Todas as leis da natureza são afirmações condicionais que permitem, a partir do conhecimento do presente, predizer alguns eventos futuros; na realidade, apenas alguns aspectos do atual estado do mundo são necessários pois, na prática, a maioria esmagadora das condições que determinam o estado presente do mundo são, do ponto de vista da previsão, irrelevantes. A irrelevância é entendida aqui no sentido do segundo ponto da discussão do teorema de Galileu. (7) 

No que se refere ao estado presente do mundo, tal como a existência da Terra em que vivemos e onde os experimentos de Galileu foram feitos, a existência do Sol e de todos os nossos arredores, as leis da natureza nada dizem. É em consonância com isso que as leis da natureza só podem ser utilizadas para predizer eventos futuros sob circunstâncias excepcionais – quando todos os fatores que determinam o presente estado do mundo são conhecidos. É também em consonância com isso que a construção de máquinas cujo funcionamento podemos prever, constitui as mais espetaculares realizações dos físicos. Nessas máquinas, o físico cria uma situação em que todas as coordenadas relevantes são conhecidas de tal forma que o comportamento da máquina pode ser predito. Radares e reatores nucleares são exemplos desse tipo de máquinas. 

O principal propósito da presente discussão é salientar o fato de que as leis da natureza são afirmações condicionais e que se relacionam apenas com uma parte muito pequena de nosso conhecimento do mundo. Assim, a mecânica clássica, que é o mais conhecido protótipo de todas as teorias físicas, dá, a partir do conhecimento das posições, etc. dos corpos, as derivadas segundas das coordenadas de posição de todos esses corpos. Não dá porém, nenhuma informação sobre a existência, as posições no momento, nem da velocidade desses corpos. A bem da precisão precisamos mencionar que aprendemos, há mais ou menos trinta anos, que mesmo as afirmações condicionais não podem ser completamente precisas: as afirmações condicionais são leis de probabilidade que somente nos capacitam a fazer apostas inteligentes, fundadas em nosso conhecimento do presente, sobre as propriedades que o mundo inanimado terá no futuro. Elas não nos permite fazer afirmações categóricas, nem mesmo afirmações condicionais categóricas, fundadas em nosso conhecimento do presente. A natureza probabilística das “leis da natureza” se manifesta também no caso das máquinas, pelo menos no caso dos reatores nucleares quando os fazemos funcionar com potências muito baixas isso pode ser verificado. Todavia essa limitação adicional ao escopo das leis da natureza, (8) imposta pela sua natureza probabilística, não desempenhará papel algum no resto de nossa discussão. 

O Papel da Matemática nas Teorias Físicas. Após havermos analisado aspectos essenciais da matemática e da física, devemos estar em melhor posição para discutir o papel da matemática nas teorias físicas. 

É, naturalmente, corriqueiro o uso da matemática na física para calcular os resultados das aplicações das leis da natureza, isto é, para aplicar as afirmações condicionais às particulares condições que prevalecem no momento ou àquelas em que tivermos interesse. Para que isso seja possível, as leis da natureza precisam já estar formuladas em linguagem matemática. No entanto, a função de calcular as consequências de teorias já estabelecidas não é o papel mais importante da matemática na física. à matemática, ou melhor, à matemática aplicada não desempenha o principal papel nessa função: ela é apenas uma ferramente auxiliar. 

A matemática, todavia, desempenha um papel bem mais importante em física. Isso já estava implícito quando afirmamos, ao discutir o papel da matemática aplicada, que as leis da natureza já deviam estar formuladas em linguagem matemática para poderem ser por ela utilizadas. A afirmação de que as leis da natureza são escritas em linguagem matemática já foi feita, muito adequadamente, trezentos anos atrás; (9) essa afirmação é agora ainda mais verdadeira do que jamais foi. Para mostrar a importância que os conceitos matemáticos têm na formulação das leis físicas, vamos, como um exemplo, recordar os axiomas da mecânica quântica formulados, de forma explícita, pelo grande matemático von Neumann, ou, implicitamente, pelo grande físico Dirac [4,5]. Existem dois conceitos básicos em mecânica quântica: estados e observáveis. Os estados são vetores num espaço de Hilbert e os observáveis são operadores auto-adjuntos nesse espaço. Os possíveis valores das observações são os valores característicos dos operadores – é, no entanto, melhor parar por aqui para não termos que fazer uma lista de conceitos matemáticos criados pela teoria dos operadores. 

É claro que é verdade que a física escolhe certos conceitos matemáticos para formular as leis da natureza e, certamente, apenas uma pequena fração desses conceitos é utilizada na física. Também é verdade que eles não foram escolhidos, de forma arbitrária, entre os conceitos que figuram numa lista de termos matemáticos mas, ao contrário, foram, em muitos casos, se não na maioria deles, desenvolvidos, de forma independente pelo físico e, somente a posteriori, reconhecidos como tendo sido concebidos previamente pelo matemático. Não é verdade, porem, como é afirmado com frequência, que isso teria que acontecer porque a matemática utiliza os conceitos mais simples possíveis e, em virtude disso, eles teriam que aparecer em qualquer formalismo. Como já vimos, os conceitos matemáticos não são escolhidos por sua simplicidade conceitual – mesmo sequência de pares de números estão muito longe de estar entre os conceitos mais simples – e sim por se prestarem a manipulações astutas e a argumentos brilhantes. Não devemos esquecer que o espaço de Hilbert da mecânica quântica é um espaço sobre os números complexos com produto escalar Hermitiano. Certamente para o espírito despreocupado, os números complexos estão longe de ser naturais e simples e não podem ser sugeridos por observações físicas. Além disso, o uso de números complexos não é, nesse caso, um truque computacional de matemática aplicada mas se aproxima de uma necessidade na formulação das leis da mecânica quântica. Finalmente, começa agora a parecer que as chamadas funções analíticas estão destinadas a desempenhar papel decisivo na formulação da teoria quântica. Estou me referindo ao rápido desenvolvimento da teoria das relações de dispersão. 

É difícil evitar a impressão de que nos defrontamos aqui com um milagre, que pela sua surpreendente natureza, se compara com outro que é a capacidade que a mente humana tem de encadear mil argumentos sem cair em contradição ou ainda a dois outros que são a existência das leis da natureza e a capacidade da mente humana de adivinhá-las. Que eu saiba, a observação que mais se aproxima de uma explicação para o fato dos conceitos de matemática aparecerem tanto em física foi feita por Einstein que afirmou que as únicas teorias físicas que estamos dispostos a aceitar são as bonitas. Resta argumentar que os conceitos matemáticos, que convidam ao exercício de tanta argúcia, tem a qualidade de beleza. No entanto, a observação de Einstein pode, na melhor das hipóteses, explicar propriedades de teorias que queremos aceitar mas, ela não faz referência à precisão intrínseca dessas teorias. Retornaremos, mais tarde a essa questão. 

O Sucesso das Teorias Físicas é Realmente Surpreendente? Uma possível forma de explicar o uso que o físico faz da matemática para formular suas leis da natureza é que ele é uma pessoa até certo ponto irresponsável. Por causa disso, quando ele encontra uma conexão entre duas quantidades que se assemelha a uma conexão já conhecida em matemática ele conclui imediatamente, que a conexão da física é a da matemática já que ele não conhece nenhuma outra similar. Não pretendemos aqui refutar essa acusação de certa irresponsabilidade por parte do físico. Pode ser que ele seja assim. É, no entanto, importante observar que a formulação matemática de uma experiência física, às vezes rudimentar, leva, um número surpreendente de vezes, a uma descrição extraordinariamente precisa de uma classe muito grande de fenômenos. Isso mostra que a linguagem matemática tem mais a recomendá-la do que ser a única linguagem que sabemos utilizar; mostra num sentido muito real que é a linguagem correta. Vamos examinar alguns exemplos. 

O primeiro exemplo, frequentemente citado, é o do movimento planetário. As leis dos corpos em queda livre ficaram muito bem estabelecidas em consequência de experiências efetuadas principalmente na Itália. Essas experiências, em parte por causa do efeito causado pela resistência do ar e, em parte, pela impossibilidade que se tinha na época de medir intervalos de tempo muito pequenos, não poderiam ter sido muito precisas. Entretanto, não causa grande surpresa que os cientistas naturais italianos tenham adquirido familiaridade com a forma como os objetos se movimentam através da atmosfera. Foi Newton quem relacionou a lei que rege os objetos em queda livre com o movimento da Lua, notou que a parábola descrita pela pedra atirada na Terra e a trajetória circular da Lua no céu são casos particulares de um mesmo objeto matemático e, apoiado apenas numa única e, na época, pouco precisa coincidência numérica, formulou e postulou a lei da gravitação universal. Do ponto de vista filosófico, a lei de gravitação, da forma como foi formulada por Newton, era repugnante não apenas a seu tempo mas também a si próprio. Baseava-se em observações empíricas muito escassas. A linguagem matemática na qual era formulada continha o conceito de segunda derivada e aqueles de nós que já tentaram desenhar um círculo osculador de uma curva sabem que uma segunda derivada não é um conceito muito imediato. A lei de gravitação que Newton estabeleceu de forma tão relutante e que foi capaz de verificar com precisão de aproximadamente 4% provou ser correta dentro de uma aproximação de um sobre dez mil por cento e tornou-se tão associada a idéia de exatidão absoluta que apenas recentemente os físicos adquiriram coragem para questionar os limites dessa exatidão. (10) Sem dúvida, o exemplo da lei de Newton, citado tão frequentemente, deve ser o primeiro a ser mencionado como um exemplo monumental de uma lei formulada em termos que parecem simples para um matemático e que mostrou uma precisão além de qualquer expectativa razoável. Vale a pena recapitular nossa tese nesse exemplo: em primeiro lugar a lei, particularmente por conter uma derivada segunda, é simples apenas para o matemático e não para o senso comum ou para uma mente não matemática; em segundo lugar é uma lei condicional de escopo muito limitado. Ela não explica nada sobre a Terra que atrai as pedras lançadas por Galileu ou sobre a órbita circular da Lua ou sobre os planetas do Sol. A explicação dessas condições iniciais é relegada ao geólogo e ao astrônomo que enfrentam, com isso, grandes dificuldades. 

O segundo exemplo refere-se a mecânica quântica elementar. Originou-se com a observação feita por Max Born de que algumas regras de cálculo formuladas por Heisenberg eram formalmente idênticas a regras de cálculo com matrizes, estabelecidas muito antes, pelos matemáticos. Born, Jordan e Heisenberg propuseram então substituir a posição e o momento nas equações da mecânica clássica por variáveis matriciais [6]. Eles aplicaram as regras da mecânica matricial a uns poucos problemas, altamente idealizados, e os resultados foram bem satisfatórios. Entretanto, não havia naquela época nenhuma evidência racional de que essa mecânica matricial pudesse, em condições mais realistas, vir a ser correta. Eles, de fato, se perguntaram: “A mecânica, da forma proposta, em seus traços essenciais, não poderia estar correta?” Na realidade, a primeira aplicação dessa mecânica a um problema real, o do átomo de hidrogênio, foi feita, alguns meses mais tarde, por Pauli. Essa aplicação forneceu resultados concordantes com a experiência. Isso era satisfatório mas ainda compreensível porque as regras de cálculo de Heisenberg foram formuladas a partir de problemas que incluíam a antiga teoria do átomo de hidrogênio. O verdadeiro milagre ocorreu apenas quando a mecânica matricial, ou uma teoria matematicamente equivalente, foi aplicada a problemas para os quais as regras de cálculo de Heisenberg não faziam sentido. As regras de Heisenberg tinham como pressuposto que as equações clássicas do movimento tivessem soluções com certas propriedades de periodicidade. Com dois elétrons, no caso do átomo de hélio, ou um número ainda maior quando se trata de átomos mais pesados, as equações do movimento não têm essas propriedades e portanto as regras de Heisenberg não podem ser aplicadas. No entanto, o cálculo feito no nível mais baixo de energia do hélio, feito alguns meses atrás por Kinoshita em Cornell e por Bazley no Bureau of Standards, concorda com os dados experimentais dentro dos limites de precisão da observação que é de um sobre dez milhões. Desta vez, tiramos das equações, algo que, certamente, não havíamos posto nelas. 

O mesmo é verdadeiro em relação as características qualitativas dos “espectros complexos”, isto é, dos espectros dos átomos mais pesados. Desejo relatar uma conversa com Jordan que me contou, na época em que as propriedades qualitativas dos espectros foram deduzidas, que uma discordância entre as regras derivadas da teoria da mecânica quântica e as regras estabelecidas por pesquisa empírica, teriam fornecido uma última oportunidade para fazer uma mudança na mecânica matricial. Em outras palavras, Jordan sentiu que teríamos ficado, pelo menos temporariamente, perdidos caso houvesse ocorrido um inesperado desacordo na teoria do átomo de hélio. A verificação da concordância foi feita, na época, por Kellner e Hilleraas. O formalismo matemático era muito claro e imutável de forma que, não houvesse ocorrido o milagre descrito anteriormente com o hélio, uma verdadeira crise estaria instalada. Certamente, de uma forma ou de outra a física teria superado essa crise. Por outro lado é verdade que a física como a conhecemos hoje não seria possível sem a constante repetição de milagres similares ao do átomo de hélio que é provavelmente o mais extraordinário que ocorreu no desenvolvimento da mecânica quântica elementar, mas está muito longe de ser o único. De fato esse número de milagres só é limitado por nossa disposição de buscar outros. A mecânica quântica teve muitos outros sucessos, quase igualmente extraordinários, o que nos dá a firme convicção de que ela é, o que chamamos, correta. 

O último exemplo é o da eletrodinâmica quântica, ou a teoria do deslocamento de Lamb. Enquanto a teoria da gravitação de Newton ainda estava obviamente ligada a experiência, esta só participa da formulação da mecânica matricial de uma forma muito refinada ou sublimada através das prescrições de Heisenberg. A teoria quântica do deslocamento de Lamb da forma concebida por Bethe e estabelecida por Schwinger é uma teoria puramente matemática e a única contribuição experimental direta foi a demonstração da existência de um efeito mensurável. A concordância com os cálculos é melhor do que uma parte em mil. 

Os três exemplos precedentes, que poderiam ser aumentados quase indefinidamente, devem ilustrar a propriedade e a precisão da formulação matemática das leis da natureza em termos dos conceitos escolhidos pela sua manipulabilidade, sendo as “leis da natureza” de uma precisão quase fantástica mas de escopo estritamente limitado. Proponho chamar de lei empírica da epistemologia as observações que esses exemplos ilustram. Ela forma, junto com as leis de invariância das leis físicas, a indispensável fundamentação dessas teorias. Sem as leis de invariância as teorias físicas não poderiam ser fundamentadas com fatos; se a lei empírica da epistemologia não fosse correta teríamos falta de estímulo e segurança que são necessidades emocionais sem as quais as “leis da natureza” não poderiam ter sido exploradas com sucesso. O Dr. R. G. Sachs com quem discuti a lei empírica da epistemologia chamou-a de artigo de fé do físico teórico e, sem dúvida nenhuma, é isso mesmo que ela é. No entanto, o que ele chamou de nosso artigo de fé pode ser ilustrado por exemplos verdadeiros – muitos outros exemplos além dos três que mencionamos. 

A Unicidade das Teorias Físicas. A natureza empírica da observação anterior me parece óbvia. Ela certamente não é uma “necessidade do pensamento” e não deveria ser necessário para provar isso apelar para o fato de que ela somente se aplica a uma pequena parte do nosso conhecimento do mundo inanimado. É absurdo acreditar que a existência de expressões matemáticas simples para a derivada segunda da (função) posição é evidente quando nenhuma expressão similar para a posição ou para a velocidade existem. É, portanto, muito surpreendente a presteza com que o maravilhoso presente contido na lei empírica da epistemologia foi dado como evidente. A habilidade da mente humana, já mencionada anteriormente, de encadear mil argumentos de forma “correta” é um dom similar. 

Toda lei empírica tem a inquietante qualidade de não se conhecer suas limitações. Vimos que existem regularidades nos eventos do mundo que nos cerca que podem ser formuladas em termos de conceitos matemáticos com incrível precisão. Existem, por outro lado, aspectos do mundo em relação aos quais não acreditamos na existência de regularidades precisas. Esses aspectos recebem o nome de condições iniciais. A questão que se apresenta é se essas diferentes regularidades, isto é, as diferentes leis da natureza que serão descobertas irão se fundir numa única unidade consistente ou se, pelo menos, se aproximarão assintoticamente dessa fusão. Por outro lado é possível que sempre existam algumas leis da natureza que não tenham nada em comum umas com as outras. No presente, isso ocorre, por exemplo, com as leis da hereditariedade e as da física. É até mesmo possível que algumas leis da natureza, em suas implicações estejam em conflito umas com as outras mas que sejam tão convincentes em seus próprios domínios que não se queira abandoná-las. Podemos nos resignar a esse estado de coisas ou ainda mais, nosso interesse em resolver esse conflito entre as diversas teorias, pode desaparecer. Podemos perder nosso interesse pela “verdade última”, isto é, um panorama que seja a fusão consistente das diversas imagens locais formadas por cada um dos diversos aspectos da natureza. 

Pode ser útil ilustrar as alternativas por um exemplo. Temos agora, em física duas teorias de grande poder e interesse: a teoria dos fenômenos quânticos e a teoria da relatividade. Essas teorias tem suas raízes em grupos de fenômenos mutuamente exclusivos. A teoria da relatividade se aplica a corpos macroscópicos como, por exemplo, estrelas. O evento de coincidência, que é em última análise uma colisão, é o evento primitivo na teoria da relatividade e define um ponto no espaço-tempo, ou, pelo menos, definiria um ponto se as partículas em colisão forem infinitamente pequenas. A teoria quântica tem suas raízes no mundo microscópico e, de seu ponto de vista, o evento de coincidência, ou de colisão, mesmo que ele ocorra entre partículas sem extensão espacial, não é primitivo e de forma alguma nitidamente isolado no espaço-tempo. As duas teorias utilizam conceitos matemáticos diferentes – um espaço Riemanniano de dimensão 4 e um espaço de Hilbert de dimensão infinita, respectivamente. Até agora, as duas teorias não puderam ser reunidas, isto é, não existe nenhuma formulação matemática da qual ambas as teorias sejam aproximações. Todos os físicos acreditam que a união das duas teorias é inerentemente possível e que iremos conseguir fazê-la. No entanto, é possível também imaginar que nenhuma união das duas teorias possa ser encontrada. O exemplo que demos ilustra as duas possibilidades anteriormente mencionadas, união e conflito, ambas concebíveis. 

Para conseguirmos uma indicação de qual das alternativas devemos esperar que aconteça podemos fingir que somos um pouco mais ignorantes do que realmente somos e nos colocarmos num nível de conhecimento abaixo do que realmente possuímos. Se pudermos encontrar uma fusão de nossas teorias nesse nível mais baixo de conhecimento poderemos ficar confiantes de que encontraremos também uma fusão no nível do nosso conhecimento real. Por outro lado, se chegarmos, nesse nível mais baixo, a teorias mutuamente contraditórias não poderemos descartar a possibilidade de que as teorias permaneçam conflitantes no nível mais alto. O nível de conhecimento e de engenhosidade é uma variável contínua e é pouco provável que pequenas variações dessa variável transforme a imagem que podemos ter do universo de inconsistente para consistente. (11) Considerado desse ponto de vista, o fato de que algumas das teorias que sabemos serem falsas fornecerem resultados tão incrivelmente precisos, é um fator adverso. Se tivéssemos um conhecimento um pouco menor, o grupo de fenômenos que essas teorias “falsas” explicam pareceria para nós suficientemente grande para “prová-las”. No entanto, consideramos essas teorias falsas pelo fato de que elas são, em última análise, incompatíveis em contextos mais abrangentes e, se um número suficiente dessas teorias falsas fosse descoberto, elas poderiam também estar em conflito, umas com as outras. De maneira similar, é possível que as teorias que consideramos “provadas” por um número de concordâncias numéricas que aparenta ser suficientemente grande, sejam falsas por estarem em conflito com teorias mais abrangentes mas que estejam fora do alcance de nossas descobertas. Se isso for verdade deveremos esperar conflitos entre nossas teorias, sempre que seu número cresça além de um certo ponto e assim que abranjam um número suficientemente grande de grupos de fenômenos. Em contraste com o artigo de fé mencionado anteriormente, este é o pesadelo do físico teórico. 

Vamos considerar alguns exemplos de teorias “falsas” que, em vista de sua falsidade, fornecem descrições alarmantemente precisas de alguns grupos de fenômenos. Com alguma boa vontade é possível descartar algumas da evidências que esses exemplos fornecem. As idéias iniciais e pioneiras de Bohr sobre o átomo nunca tiveram grande sucesso e o mesmo pode ser dito dos epiciclos de Ptolomeu. Nossa posição privilegiada possibilita uma descrição precisa de todos esses fenômenos que essas teorias primitivas não tinham condições de oferecer. Isso não é verdade para a, assim chamada, teoria do elétron livre que fornece uma descrição incrivelmente boa de muitas, senão de todas, as propriedades dos metais, dos semicondutores e isolantes. Em particular, ela explica o fato, nunca adequadamente compreendido pela “teoria real”, de que isolantes exibem uma resistência a corrente elétrica que pode chegar a ser 10^26 vezes maior do que aquela dos metais. Não existe, de fato, nenhuma evidência experimental para mostrar que a resistência não é infinita sob as condições em que a teoria do elétron livre nos leva a crer que ela seria infinita. Apesar disso, estamos convencidos de que a teoria do elétron livre é uma aproximação muito crua e que deveria, ao descrevermos todos os fenômenos referentes aos sólidos, ser substituída por algo mais adequado. 

Vista do nosso ponto de vista privilegiado, a situação apresentada pela teoria do elétron livre é irritante mas é improvável que ela venha a apresentar alguma inconsistência que não possa ser superada. Essa teoria coloca em dúvida a importância que se deve atribuir, ao se verificar a correção de uma teoria, a concordância que ela tem com a experiência. Já nos acostumamos a essas dúvidas. 

Ocorreria uma situação muito mais difícil e confusa se pudéssemos, algum dia, estabelecer uma teoria de fenômenos da consciência ou da biologia que fosse tão coerente e convincente como nossas atuais teorias do mundo inanimado. As leis de Mendel da hereditariedade e o trabalho subsequente em genes podem muito bem se tornar o começo dessa teoria no que se refere à biologia. Além disso, é muito possível que possa ser encontrado um argumento abstrato que mostre a existência de um conflito entre essa teoria e os princípios aceitos pela física. O argumento poderia ser de uma natureza tão abstrata que não permitisse resolver o conflito, através da experiência, em favor de uma das teorias. Tal situação traria um grande abalo na fé que temos em nossas teorias e na crença da realidade de nossas concepções. Traria também um profundo senso de frustração em nossa procura pelo que chamamos de “derradeira verdade”. O que faz com que essa situação seja concebível é o fato de, na realidade, não sabermos a razão pela qual nossas teorias funcionam tão bem. O fato de fornecerem resultados precisos não é prova de sua veracidade nem de sua consistência. Na realidade, o autor acredita que, se compararmos as atuais leis da hereditariedade e as da física, algo muito próximo da situação descrita acima ocorrerá. 

Permitam-me terminar num tom mais animador. O milagre da eficiência da linguagem matemática para formular as leis físicas é algo que nem merecemos nem entendemos. Deveríamos ser gratos por ele ocorrer e esperar que continue válido na pesquisa futura e que se estenda, para o bem ou para o mal, para o nosso prazer ou talvez para o nosso espanto, à amplas áreas do conhecimento. 

O autor deseja manifestar sua gratidão ao Dr. M. Polanyi que, muitos anos atrás, influenciou profundamente seu pensamento em problemas de epistemologia, e a V. Bargmann cuja amigável crítica foi importante para atingir a clareza que possa ter sido atingida. É também muito grato a A. Shimony por ter revisto o presente artigo e chamado sua atenção para os artigos de C. S. Peirce. 

Notas:

(1) A observação a ser citada foi feita a mim por F. Werner na época em que era estudante em Princeton.

(2) Essa afirmação foi retirada de W. Dubislav’s Die Philosophie der mathematik in der Gegenwart. Junker und Dunnhaupt Verlag, Berlin, 1932, pág. 1.

(3) M. Polanyi em seu Personal Knowledge, University of Chicago Press, 1958 diz: “Todas essas dificuldades não são nada além de consequências de nossa recusa em ver que a matemática não pode ser definida sem levar em conta sua mais óbvia característica: isto é, que ela é interessante,” (página 188). 

(4) O leitor pode estar interessado, com relação a isso, nas observações muito irritadas de Hilbert em relação ao intuicionismo “que procura fracionar e desfigurar a matemática”, Abh. Math. Sem. Univ. Hamburg, vol 157, 1922 ou Gesammelte Werke, Springer, Berlin, 1935, página 188.

(5) Veja a esse respeito, o ensaio gráfico de M. Deutsch, Daedalus, Vol. 87, 1958, pág. 86. A Shimony chamou minha atenção para uma passagem semelhante em C. S. Peirce’s Essays in the Philosophy of Science, The Liberal Arts Press, New York, 1957 (pág. 237). 

(6) E. Schroedinger, em What is Life, Cambridge University Press, 1945, diz que esse segundo milagre pode, muito bem, estar além da compreensão humana (pág. 31). 

(7) O autor está seguro de que é desnecessário mencionar que o teorema de Galileu, como foi abordado no texto, não exaure o conteúdo das observações de Galileu relativas às leis dos corpos em queda livre.

(8) Veja, por exemplo, E. Schroedinger, referência [1]. 

(9) Essa afirmação é atribuída a Galileu. 

(10) Veja, por exemplo, R. H. Dicke, American Scientist, Vol. 25, 1959.

(11) Essa passagem foi escrita após muita hesitação. O autor está convencido de que é útil, em discussões epistemológicas, abandonar a idealização de que o nível da inteligência humana tem uma posição singular numa escala absoluta. E em alguns casos, pode até mesmo ser útil considerar as realizações possíveis no nível de inteligência de outras espécies. No entanto, o autor tem consciência de que suas reflexões seguindo as linhas sugeridas pelo texto são muito breves e foram insuficientemente criticadas para serem confiáveis. 

The Unreasonable Effectiveness of Mathematics in the Natural Sciences,” in Communications in Pure and Applied Mathematics, vol. 13, No. I (February 1960). New York: John Wiley & Sons, Inc. Copyright © 1960 by John Wiley & Sons, Inc

Fonte: https://www.ime.usp.br/~pleite/pub/artigos/wigner/eficacia_da_matematica.pdf

Bilíngue: https://www.ime.usp.br/~pleite/pub/artigos/wigner/wigner_bilingue.pdf


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Para entender O Trivium, por José Monir Nasser

A Filosofia apresenta as sete Artes Liberais a Boécio (c. 1460-1470).
Iluminura atribuída ao Mestre Coëtivy (ativo entre 1450 e 1485).

Prefácio de José Monir Nasser ao ‘Trivium’, de Miriam Joseph

No Brasil, nunca se comemora em excesso o lançamento de uma obra fundacional como O Trivium, da irmã Miriam Joseph (1898-1982), já que não é todo dia que a indústria editorial nacional se arrisca a penetrar na pretensa selva escura do Medievo. O desprezo da intelectualidade nacional pelos assuntos da Idade Média é a razão da esquelética oferta por aqui de obras escolásticas, comparadas por Erwin Panofsky (1) às próprias catedrais góticas, e a explicação do nosso tímido vol d’oiseau por sobre os fundamentos civilizatórios do Ocidente, entre eles a própria ideia de educação no sentido de Paideia, de formação.

Curiosamente, nada deveria parecer mais enigmático ao cidadão brasileiro medianamente informado, que vive por aí a falar em idade das trevas, do que o escandaloso fiasco deste monstrengo chamado sistema nacional de ensino. No Brasil, depois de sequestrarmos as crianças de suas casas pelo menos cinco horas por dia e gastarmos com elas um quarto do orçamento, descobrimos, oito anos depois, atônitos, que a maioria não sabe ler… E isto apesar de todas as siglas atrás das quais se esconde a bilionária incompetência pública.

O enigma da baixíssima eficiência do ensino, que não é fenômeno exclusivamente brasileiro, foi em parte resolvido na década de 1970 pelo padre austríaco Ivan Illich (1926-2002), que propôs a sociedade sem escolas tout court. (2) A tese de Illich, cujo mérito avulta na proporção direta do fracasso educacional geral, é que o sistema de ensino não tem por objetivo realmente educar, mas somente distribuir socialmente os indivíduos, por meio do ritual de certificados e diplomas. A escola formal, esta que Illich deseja suprimir, não é um meio de educação, mas um meio de “promoção” social, fato que as pessoas humildes revelam perceber quando insistem com o Joãozinho: estude, meu filho, estude…

Como se vê, vamos decifrando o mistério à medida que desprezamos a falsa equação entre ensino e educação. O sistema de ensino não produz educação, porque está ocupado demais em produzir documentos. Educação terá de ser buscada preferencialmente alhures, fora do sistema. É claro, sempre haverá um professor ou outro que, valendo-se da apatia do sistema, dará, por sua própria conta, aulas magistrais e educará de fato, contanto que seus alunos o desejem, o que, obviamente, nem sempre é o caso.

Temos aí uma espécie de lei geral com correlação inversa: a capacidade de educar alguém é inversamente proporcional à oficialidade do ato e diretamente proporcional à liberdade de adesão do educando. A educação prospera mais quando é procurada livremente. Este é o sentido da palavra “liberal” (de liber, livre) nas Sete Artes “liberais” da Idade Média, que eram ensinadas ao homem livre, por oposição às artes “iliberais”, ensinadas ao homem “preso”, controlado por guildas. Estas corporações de ofícios faziam grosseiramente o papel do sistema de ensino moderno, regulando privilégios econômicos e sociais.

Não só não existiu na Idade Média nenhuma obrigação estatal de ir à escola para aprender as Sete Artes, como ninguém imaginava usar este conhecimento como alavanca para forçar os ferrolhos do mercado de trabalho. Para ficar mais claro, com a licença da comparação, a diferença entre o ensino e a educação é a mesma que há entre a polícia e o detetive particular do cinema. A primeira tem a obrigação de desvendar o crime, e por isso precisa parecer que o está resolvendo e, enquanto tem todo esse trabalho de fingir, só consegue esclarecer uns poucos casos pingados. O detetive resolve todos porque está aí para isso mesmo e vai até as últimas consequências, acabando sempre com o olho roxo.

Tamanha despretensão econômica certamente soa estranhíssima aos modernos, que julgam tudo sob o ponto de vista da quantidade e imaginam que entre a educação medieval e a moderna só exista uma diferença de quantum. Na verdade, a diferença é de tal dimensão qualitativa que, no contrapé desse engano, perdeu-se de vista a própria ideia de educação, hoje entendida como adestramento coletivo de modismos politicamente corretos (a tal da “escola cidadã”). Nos tempos das “trevas”, educação era simplesmente ex ducare, isto é, retirar o sujeito da gaiolinha em que está metido e apresentar-lhe o mundo. Como já se disse, nem sempre o que vem depois é melhor.

A primeira condição para entender O Trivium da irmã Miriam Joseph, editado pela primeira vez no Brasil na corajosa e esmerada tradução de Henrique Paul Dmyterko, é entender que ensinar retórica, gramática e lógica fazia parte de um verdadeiro projeto de educação de que não há nada equivalente no mundo moderno.

As Sete Artes Liberais da Idade Média, divididas em trivium (retórica, gramática e lógica) e quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), tomaram esta forma por volta do ano oitocentos, quando se inaugurou o império de Carlos Magno, primeira tentativa de reorganizar o Império Romano, e são o resultado de lenta maturação a partir de fontes pitagóricas e possivelmente anteriores, com decisivas influências platônicas, aristotélicas e agostinianas e complementações metodológicas de Marciano Capela (início do século V), Severino Boécio (480-524) e Flávio Cassiodoro (490-580), até chegar a Alcuíno (735-804), o organizador da escola carolíngia em Aix-en-Chapelle.

Como essas Sete Artes estão vinculadas a conhecimentos tradicionais, apresentam grandes simetrias com outros aspectos da estrutura da realidade, permitindo, por exemplo, analogia com o sentido simbólico dos planetas, relacionando a retórica com Vênus; a gramática com a Lua; a lógica com Mercúrio; a aritmética com o Sol; a música com Marte; a geometria com Júpiter e a astronomia com Saturno. Que ninguém pense, portanto, que haja arbitrariedade na concepção septenária do sistema. Simbolicamente, o sete representa, como ensina Mário Ferreira dos Santos, (3) “a graduação qualitativa do ser finito”, isto é, um salto qualitativo, uma libertação, como um sétimo dia de criação que abre um mundo de possibilidades. Como se poderia representar a educação melhor que por esse simbolismo?

O estudante das Artes começava a vida escolar aos quatorze anos (tardíssimo para os padrões modernos, mas não sem alguma sabedoria), participava de um regime de estudo flexível com grande liberdade individual e vencia em primeiro lugar os “três caminhos” do trivium, mais tarde descritos por Pedro Abelardo (1079-1142) como os três componentes da ciência da linguagem. Para Hugo de São Vítor (1096-1141), no Didascálicon, “a gramática é a ciência de falar sem erro. A dialética (4) é a disputa aguda que distingue o verdadeiro do falso. A retórica é a disciplina para persuadir sobre tudo o que for conveniente”. (5) A irmã Miriam Joseph, muito acertadamente, diz no primeiro capítulo que “o trivium inclui aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à mente, e quadrivium, aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à matéria”. No entanto, ninguém expressou com mais contundência o valor das Artes como Honório de Autun (ca. 1080-1156), com a famosa fórmula: “O exílio do homem é a ignorância, sua pátria a ciência (…) e chega-se a esta pátria através das artes liberais, que são igualmente cidades-etapas”. (6)

De fato, uma vez vencido o desafio da mente, o trivium, o estudante medieval passava ao quadrivium, o mundo das coisas, e, dele, lá pelos vinte anos, se pudesse e quisesse, para a educação liberal superior, que, na época, se resumia a teologia, direito canônico e medicina, as faculdades das universidades do século XIII. As profissões de ordem artesanal, como construção civil, não eram liberais, mas associadas a corporações de ofícios, como a dos mestres-construtores, às vezes com conotações iniciáticas (maçons).

O trivium, de fato, funcionava como a educação medieval, ensinando as artes da palavra (sermocinales), a partir das quais é possível tratar os assuntos associados às coisas e às artes superiores. A escolástica, o mais rigoroso método filosófico já concebido, e que floresceria sobretudo no século XII, foi construída sobre os alicerces do trivium: a gramática zela para que todos falem da mesma coisa, a dialética problematiza o objeto de discussão (disputatio), e a lógica é antídoto certo contra a verborragia vazia, o conhecido fumus sine flamma.

A expressão universitária americana master-of-Arts guarda, até hoje, resquícios dessa graduação inicial, base dos estudos superiores, que convergiam para o doutorado (no sentido medieval, não no sentido moderno). A faculdade de Artes liberais, frequentemente associada às universidades medievais, sem ser um curso superior propriamente dito, era o que lhe dava sustentação e de certo modo bastava-se a si própria. Explica Jacques Le Goff:

Lá (na faculdade de Artes) é que se tinha a formação de base, daquele meio é que nasciam as discussões mais apaixonadas, as curiosidades mais atrevidas, as trocas mais fecundas. Lá é que podiam ser encontrados os clérigos pobres que não chegaram até a licença, muito menos ao custoso doutorado, mas que animavam os debates com suas perguntas inquietantes. Lá é que se estava mais próximo do povo das cidades, do mundo exterior, que se ocupava menos em obter prebendas e em desagradar à hierarquia eclesiástica, que era mais vivo o espírito leigo, que se era mais livre. Lá é que o aristotelismo produziu todos os seus frutos. Lá é que se chorou como uma perda irreparável a morte de Tomás de Aquino. Foram os artistas que, numa carta comovedora, reclamaram da ordem dominicana os despojos mortais do grande doutor. (7)

Cada elemento do trivium contém potencialmente as habilidades filosóficas da vida intelectual madura. Esta é a razão pela qual o projeto educacional da irmã Miriam, profundamente influenciado pelo filósofo americano Mortimer Adler (1902-2001), foi concebido como preparação de estudantes para a vida universitária, fosse qual fosse o curso. Em 1935, quando incorporado ao currículo do Saint Mary’s College, o curso “The Trivium” era exigido de todos os calouros e durava dois semestres, com aulas cinco vezes por semana. Santo Agostinho (354-430), mil e seiscentos anos antes, havia feito, a seu modo, a mesma tentativa de preparação intelectual com sua "Doutrina Cristã" (8), uma espécie de iniciação intelectual para estudar as Escrituras.

Na prática e salvo engano, no mundo moderno a única tentativa de recuperar o espírito do trivium foi a parceria da irmã Miriam Joseph com Mortimer Adler. Este querendo restaurar a cultura clássica na universidade americana, e aquela preparando o aluno para poder debater os conteúdos dos grandes autores com precisão gramatical e coerência, concordando com Heráclito, (9) que pregava a seus alunos a impossibilidade da retórica sem a lógica.

O mundo moderno, Brasil incluído, hipnotizado pelo esquema do ensino universal, perdeu completamente de vista a conotação individual e “iniciática” que é a alma da verdadeira educação e a essência do trivium. Mesmo nos Estados Unidos, a experiência da irmã Miriam Joseph ficou restrita a pequeno grupo de universidades católicas. Por aqui, quase não há interlocutores capacitados para debater o assunto.

Mesmo sem pretender tratar aqui fenômeno tão complexo, registre-se que o sistema educacional tradicional entrou em declínio já no século XIV, lentamente minado por fora e por dentro, sob a orquestração do nascente “humanismo”, até desabar no Renascimento, pela mão do teólogo e místico tcheco Jean Amos Comenius (1592-1670), que, em sua principal obra, Magna Didactica, não apenas faz pouco das Sete Artes como estabelece as bases das pedagogias modernas, desenhadas para fins de ensino e não de educação. Entre outras coisas, Comenius inventou o jardim da infância. Na advertência ao leitor, que abre sua Magna Didactica, o teólogo rascunha o plano mestre de seu admirável mundo novo pedagógico:

Ouso prometer uma grande didática, uma arte universal que permita ensinar a todos com resultado infalível; ensinar rapidamente, sem preguiça ou aborrecimento para alunos e professores; ao contrário, com o mais vivo prazer. Dar um ensino sólido, sobretudo não superficial ou formal, o qual conduza os alunos à verdadeira ciência, aos modos gentis e à generosidade de coração. Enfim, eu demonstro tudo isso a priori, com base na natureza das coisas. Assim como de uma nascente correm os pequenos riachos que vão unir-se no fim num único rio, assim também estabeleci uma técnica universal que permite fundar escolas universais. (10)

Mesmo uma análise rápida desta declaração descobrirá nela o DNA da pedagogia moderna nas suas características estruturantes: triunfalismo, epicurismo, massificação do ensino, uniformização do conteúdo, automatização da aprendizagem e insensibilidade às individualidades. A Unesco, naturalmente, homenageia Comenius com sua maior condecoração. Se a miséria do ensino moderno tem pai, o seu nome é Comenius. E se alguma coisa vai na direção contrária do trivium é esta “natureza das coisas” de onde vêm estas “escolas universais” e cujo resultado até agora parece ter-se limitado a produzir milhões de indivíduos idiotizados.

Visto desta perspectiva histórica, O Trivium, este tesouro redescoberto pela irmã Miriam Joseph, é mais que um manual para desenvolver a inteligência, é uma luz brilhando na escuridão dos abismos em que atiramos a verdadeira educação.

José Monir Nasser (1957-2013 - In memoriam)
Professor, escrito e autor de O Brasil que Deu Certo e A Economia do Mais (Tríade Editora). Durante anos, ministrou no Espaço Cultural É Realizações suas "Expedições pelo Mundo da Cultura", umas seria de conferências sobre grandes livros da literatura ocidental, inspirado pelo modelo de educação liberal proposto por Mortimer Adler.

Referências:

(1) Erwin Panofsky, Arquitetura Gótica e Escolástica. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

(2) Ivan Illich, Sociedade sem Escolas. Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, Vozes, 1985.

(3) Mário Ferreira dos Santos, Tratado de Simbólica. São Paulo, É Realizações, 2007. p. 240

(4) Depois da redescoberta da “nova lógica” de Aristóteles, no séc. XII, passou a denominar-se lógica.

(5) Hugo de São Vítor, Didascálicon. Petrópolis, Vozes, 2001.

(6) Em Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro, José Olympio, 2003, p. 84.

(7) Ibid., p. 144-45.

(8) Santo Agostinho, A Doutrina Cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira, C.S.A. 2. Ed. São Paulo, Paulus, 2007. (Coleção Patrística)

(9) Ernesto Sábato, Heterodoxia. Campinas, Papirus, 1993, p. 120.

(10) Jean-Marc Berthoud, Jean Amos Comenius et les Sources de l’Idéologie Pédagogique. Tradução de José Monir Nasser.

Trecho extraído do livro "O Trivium - As artes liberais da lógica, da gramática e da retórica" da Irmã Miriam Joseph. Editora É Realizações, 2014. Pág 13-18.


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Sobre o quadrivium - Didascalicon de Hugo de São Vítor

 

Filosofia e As Sete Artes liberais.
De Herrad de Landsberg da
obra Hortus Deliciarum (século XII).
Sobre o quadrivium

Se, como foi dito acima, cabe propriamente à matemática ocupar-se da quantidade abstrata, convém investigar suas espécies distintas em cada parte em que se divide a quantidade. A quantidade abstrata não é outra coisa senão a forma visível segunda a dimensão linear impressa na mente; ela se fixa na imaginação e é dividida em duas partes: uma contínua, como a árvore ou a pedra, chamada magnitude; outra descontínua, como o rebanho e o povo, chamada multitude.

Na multitude, algumas quantidades existem por si mesmas, como três, quatro, ou qualquer outro número, e outro número, e outras existes em relação, como duplo, metade, um e meio, um e um terço, ou outra quantidade semelhante. Na magnitude, com efeito, algumas quantidades são móveis, como uma esfera do universo, outras são imóveis, como a Terra.

Em vista disso, a multitude que existe por si é chamada "aritmética", e aquela que existe em relação é chamada "música". A geometria trata do conhecimento da magnitude imóvel, e a astronomia, por fim, reinvidica o conhecimento da magnitude móvel. Sendo assim, a matemática é divida em aritmética, música, geometria e astronomia.

Sobre a palavra "aritmética"

Ares, em grego, é traduzido por virtus (força) em latim, e rithmus por numerus (número). Donde "aritmética" signifique "a força do número", e que a força do número consista em todas as coisas terem sido formadas à sua semelhança.

Sobre a palavra "música"

"Música" vem da palavra "água", porque nenhuma eufonia, isto é, uma boa sonoridade, é produzida sem umidade. (23)

Sobre a palavra "geometria"

"Geometria " significa "medida da terra", isto porque esta técnica foi descoberta primeiramente pelos egípcios, os quais, quando a inundação do Nilo cobria de lama suas margens e confundia seus limites, começaram a medir a terra com varas e cordas. A partir daí seu uso foi aplicado e expandido pelos sábios para medir também extensões no mar, no céu, na terra, e noutros corpos.

Sobre a palavra "astronomia"

A diferença entre astronomia e astrologia parece consistir nisso: a astronomia assume este nome por tratar da lei dos astros, e, do mesmo modo, a astrologia assim é chamada por tratar de um discurso sobre os astros, pois nomia significa "lei" e logos, "discurso". Assim, a astronomia é a ciência que disserta sobre a lei dos astros e o movimento do céu, investigando as regiões, as órbitas, cursos, a aurora e o ocaso dos astros e o porquê do nome de cada um. A astrologia, por sua vez, é a que considera os astros relacionando-os com a observação do nascimento e da morte e de quaisquer outros eventos, ela que é parte natural e parte supersticiosa. É natural enquanto relacionada à conformação dos corpos, que varia de acordo com o arranjo dos corpos superiores, como é a saúde e a doença, a tempestade e a calmaria, a fertilidade e a esterilidade. (24) E é supersticiosa enquanto relacionada às coisas contingentes ou que dependem do livre-arbítrio; e esta é a parte da qual tratam os matemáticos. (25)

Sobre a aritmética

A aritmética tem como matéria o número par e o ímpar. O número par é ou parmente par, ou parmente ímpar, ou imparmente par. (26) O número ímpar também também tem três espécies. A primeira é o número primo e não-composto; a segunda é o número segundo e composto; e a terceira é o número que, por si, é segundo e composto e que, comparado a outros, é primo e não-composto. (27)

Sobre a música

Existem três tipos de música: a do universo, a humana e a instrumental. A do universo é encontrada nos elementos, nos planetas e nos tempos. Nos elementos, ela está no peso, no número e na medida; nos planetas, está na posição, no movimento e na natureza; e nos tempos, está nos dias, segundo a alternância de luz e escuridão, nos meses, segundo o crescer e minguar da Lua, e nos anos, segundo a variação da primavera, verão, outono e inverno.

A música humana é encontrada no corpo, na alma e na conexão entre os dois. No corpo, ela está na potência vegetal, segundo a qual cresce e que pertence a todos aqueles que nascem; está nos humores, (28) cuja conformação proporciona a subsistência do corpo humano e é comum em todos os seres dotados de sentidos; e está nas atividades, que correspondem especialmente aos seres racionais, sobre as quais reina a mecânica e que são boas se não ultrapassam seu limite justo, para que assim a avareza não seja nutrida com aquilo que a frouxidão deveria ser curada, como expressa Lucano em seu elogio a Catão: 

Para ele os banquetes eram para que dominasse a fome,
qualquer teto era um palácio para se proteger da tempestade,
e uma toda grosseira sobre o corpo era uma preciosa veste,
como usaria um nobre cidadão romano para adornar-se. (29)

A música encontrada na alma está nas virtudes, como a justiça, a piedade e a temperança, e está nas potências, como a razão, a ira e a concupiscência. A música encontrada na conexão entre corpo e alma é aquela amizade natural na qual a alma está ligada ao corpo não por vínculos corporais, mas por certos vínculos afetivos, para dotar o próprio corpo de movimento e sensibilidade, "devido a esta amizade ninguém teve ódio de sua carne". (30) Esta música existe para que seja amada a carne, mas mais o espírito, e para que seja alimentado o corpo e não destruída a virtude.

A música instrumental é encontrada no pulso, como se dá nos tímpanos e nas cordas, no sopro, como se dá nas flautas e nos órgãos, e na voz, como se dá nas líricas e nas cantigas. Três também são os gêneros de músicos: os que compõem a lírica, os que tocam os instrumentos e os que julgam a lírica e a execução dos instrumentos. (31)

Sobre a geometria

A geometria tem três partes: planimetria, altimetria e cosmometria. A planimetria mede o plano, isto é, o comprimento e a largura, o que se estende para frente e para trás, para a direita e para esquerda. A altimetria mede a altura, o que se estende para cima e para baixo. Assim é dito que o mar é alto, isto é, profundo, e que a árvore é alta, isto é, elevada. Cosmos significa mundo, (32) e daí que se tem a cosmometria, isto é, a medida do mundo. Ela mede os corpos esféricos, isto é, os globulosos e redondos, assim como a bola e o ovo. E devido à excelência da esfera do mundo foi chamada de cosmometria, não porque se ocupe somente da medição do mundo, mas porque a esfera do mundo é de todas a mais digna.

Sobre a astronomia

Isto não é contrário ao fato de termos atribuído acima a magnitude imóvel à geometria e a móvel à astronomia, porque isso foi dito devido à primeira descoberta, segundo a qual recebeu o nome de "geometria", medida da terra. Além disso, podemos dizer que o que a geometria considera na esfera do mundo, isto é, a dimensão das regiões e dos círculos celestes, é imóvel, e, assim sendo, pertence ao estudo geométrico. A geometria, então, não considera o movimento, mas o espaço. Já a astronomia observa o que é móvel, isto é, o curso dos astros e seus intervalos de tempos. E assim dizemos universalmente que a magnitude imóvel está submetida à geometria e a móvel, à astronomia, pois ainda que ambas se ocupem do mesmo objeto, uma contempla o que permanece e a outra observa o que transita.

A definição de quadrivium

A aritmética, portanto, é a ciência dos números. A música consiste na divisão dos sons e na variedade das vozes. Do outro modo, a música ou a harmonia é a concórdia da multiplicidade dos diversos reduzida à unidade. A geometria é a disciplina da magnitude imóvel e a descrição contemplativa das formas, pela qual os limites de cada coisa costumam ser declarados. Dito de outra maneira, a geometria é "a fonte dos sentido e a origem da expressão verbal". (33) A astronomia é a disciplina que investiga os espaços, os movimentos e os giros dos corpos celestes em períodos determinados.

Notas:

(23) Aqui, Hugo de São Vítor tem como subentendidas algumas relações que saíram do nosso horizonte. A música, entre todas as artes, é aquela que tem a maior capacidade de conformar a alma de quem a recebem entendendo por alma o que está entre o corpo e o espírito, ou seja, o nosso psiquismo, no mesmo sentido que Hugo de São Vítor usou acima referindo-se às três potências da alma. Portanto, a músicas está vinculada diretamente aos sentimentos, que por sua vez estão relacionados às águas, ao mar, pela sua inconstância e mutabilidade, assim com a Lua, que também possui, no simbolismo medieval, relação direta com a água e os sentimentos. Sendo assim, para que a música alcance seu objetivo, é preciso que ela tenha umidade.

(24) Vale ressaltar que esta ciência em nada é supersticiosa, como acaba de dizer Hugo de São Vítor, levando em conta esta impregnação contemporânea de qualquer estudo astrológico é supersticioso ou questão de crença. A variação de casos de uma mesma doença repetida anualmente devido mudanças de estações, a maré dos mares, e o próprio ciclo menstrual da mulher, que é regido pelo ciclo lunar, são exemplos mais concretos da validade desta astrologia que Hugo de São Vítor chama de natural.

(25) Chamaríamos vulgarmente de "astrólogos", mas são especificamente aqueles que fazem predições.

(26) Parmente par é o número que pode ser dividido várias vezes em duas partes iguais até chegar a 1, são os múltiplos de 2 (2, 4, 8, 16, 32); parmente ímpar é o número que pode ser dividido uma só vez em duas partes iguais, tornando-se logo ímpar (6, 10, 14); imparmente par é o número que pode ser dividido várias vezes por 2, mas o resultado final dessas sucessivas divisões não é 1, e sim um outro número ímpar qualquer (24, 40, 56).

(27) Primo e não-composto é o número que pode ser dividido somente por 1 ou por si mesmo (3, 5, 7); segundo e composto é o número ímpar que pode ser dividido por outros números além de 1 (9, 15, 21). Este terceiro tipo se refere ao que hoje conhecemos, na Teoria dos Números, como números primos entre si, que se dá quando o único divisor comum de dois números é a unidade, donde resulta que o MDC (máximo divisor comum) entre esses dois números é o número 1 (por exemplo, o 9 em relação ao 8). Também neste trecho Hugo de São Vítor está se baseando nas Etymologiae de Isidoro. Para aprofundamento deste tema, pode-se ler A matemática de Isidoro de Sevilha e a educação medieval, de Jean Lauand, disponível em http://www.hottopos.com/videtur30/jean-isid.htm.

(28) A acepção de "humor" usada por Hugo de São Vítor é pouco utilizada e conhecida em português: "qualquer fluido líquido contido nos corpos organizados".

(29) Lucano, De Bello Civile.

(30) Ef 5, 29.

(31) Boécio, De musica.

(32) Aqui temos o substantivo mundus, que era usado para designar o firmamento ou todo o universo, além da própria Terra. E este universo a que se refere é percebido e concebido em camadas de órbitas cada vez mais abrangentes, nas quais alguns astros realizam suas trajetórias individuais, até chegar o céu das estrelas fixas, o cristalino e o empíreo; tudo isso está contemplado em mundus.

(33) Cassiodoro, Institutiones.

Trecho extraído do livro "Didascalicon sobre a arte de ler" de Hugo de São Vítor. Edições Kírion, 2018. Pág. 77 a 89.


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Aristotelismo e Filosofia da Matemática - por Deividi Pansera

Platão e Aristóteles na Escola
de Atenas (1509–1510),  fresco
de Rafael Sanzio,  na Stanza
della Segnatura, nos Museus Vaticanos
Platonismo, Nominalismo, Aristotelismo e Conceptualismo Divino

por Deividi Pansera

Matemática é essencial para a vida intelectual e estrutura do pensamento. Todo intelectual sério, até bem pouco tempo, sabia do que se tratava Os Elementos de Euclides e, mais ainda, sabia demonstrar teoremas nele presentes. Segundo uma tradição, na Academia de Platão existia uma inscrição que proibia a entrada de pessoas que não sabiam geometria. Ademais, ao longo da República, alguns argumentos em favor do aprendizado da matemática são dados. Aristóteles, no Órganon, em Primeiros Analíticos, utiliza a demonstração da irracionalidade de raiz de dois como um exemplo de um argumento Reductio ad Absurdum. Aliás, todo o pensamento filosófico grego está, de uma forma ou de outra, entrelaçado com o pensamento matemático e vice-versa.

Diversos foram os filósofos que estudaram, e alguns até desenvolveram, matemática. Platão, Aristóteles, Boécio, Hugo de São Vitor, Roberto Grosseteste, Thomas Bradwardine, Santo Alberto Magno, Santo Tomás de Aquino, Duns Scotus, Francisco Suárez, João de São Tomás, Descartes, Leibniz, Frege, Edmund Husserl, Alfred Whitehead, Henri Poincaré, Charles Peirce, Pascal, Hilary Putnam, Alfred Tarski, Bernard Lonergan, James Franklin etc.

Matemática e filosofia são duas disciplinas antigas e abstratas. Duas grandes conquistas do espírito humano. A matemática, porém, sempre foi um problema difícil para a filosofia ao mesmo tempo que a filosofia sempre colocou reflexões pertinentes sobre o fazer matemática. Como é possível que haja tanto conhecimento que seja alcançável pelo pensamento puro, apenas com lápis e papel? O que são (ontologicamente) “números”, “funções”, “variedades diferenciáveis” e “espaços de Hilbert”? Ou ainda, o que é um infinito quantitativo? Como é possível a aplicabilidade da matemática no mundo real?

A matemática é uma invenção da mente humana? Ela é trivial, tautológica ou uma manipulação puramente formal de símbolos a partir de um conjunto de inferências? Afinal, a matemática trata do quê?

Essas, e muitas outras, são questões que a filosofia da matemática tenta responder.

A dicotomia moderna

Na História, com exceção da Idade Média, período em que a escolástica, fortemente influenciada pelo pensamento de Aristóteles, prevaleceu, duas grandes correntes disputaram o troféu da Filosofia da Matemática. O platonismo e o nominalismo.

O nominalismo sustenta que os universais não são reais, que são apenas palavras, conceitos ou classes, e que as únicas realidades são coisas particulares. Na filosofia da matemática, o logicismo e o formalismo são teorias de tendência nominalista, pois consideram a matemática não como uma realidade externa ao matemático, mas uma questão de símbolos. O principal problema para o nominalismo é sua incapacidade de explicar por que diferentes indivíduos devem ser reunidos sob o mesmo nome (ou conceito ou classe), se os universais não forem admitidos. No “nominalismo de predicados”, por exemplo (isto é, o nominalismo que considera os universais como meras palavras), “a palavra «branco» se aplica corretamente a Sócrates” é anterior a “Sócrates é branco”. Isso parece contra-intuitivo, uma vez que parece que as coisas são brancas antes da linguagem existir. E nosso reconhecimento dessa semelhança, que é uma condição para aprendermos a aplicar a palavra corretamente, surge da capacidade de todas as coisas brancas nos afetarem da mesma maneira – «a causalidade é a marca do ser». Um outro problema é que os predicados ou conceitos usados pelos nominalistas para unir os particulares são eles próprios universais – a palavra “branco” não significa uma inscrição particular em uma determinada página, mas a palavra digitada “branco” em geral.

Uma tentativa séria de mostrar que a matemática pode ser feita sob a ótica nominalista é feita por Hartry Field.

O platonismo (pelo menos em sua versão extrema, que é a versão usualmente encontrada na filosofia da matemática) sustenta que existem universais, mas são Formas puras em um mundo abstrato, sendo os objetos do nosso mundo relacionados a eles por uma misteriosa relação de “participação” ou “aproximação”. Assim, o que une todas as coisas azuis é apenas sua relação com a Forma do azul, e o que une todos os pares é sua relação com o número abstrato 2. O uso irrefletido pelos matemáticos de nomes como “2”, “o contínuo” etc., como se eles nomeassem entidades particulares com as quais os matemáticos lidam, parece apoiar uma visão platônica de tais entes.

Um dos problemas para o platonismo é a dificuldade de explicar a natureza da relação de “participação” ou “aproximação”. Epistemologicamente também, o platonismo tem dificuldades por causa de sua natureza relacional. Ou há uma intuição semelhante à percepção no reino das Formas, ou temos conhecimento delas através de algum processo de inferência. Uma espécie de “intuição matemática” que permite o acesso a tais Formas — visão defendida, por exemplo, por Kurt Gödel.

Aristotelismo

A dicotomia platônico-nominalista, desde o fim da escolástica, é dominante na maior parte da filosofia da matemática. Entretanto, há um terceiro posicionamento que está ganhando cada vez mais adeptos e já fundou uma escola: The Sydney School, liderada pelo filósofo da matemática James Franklin e fortemente influenciada pelo trabalho de David M. Armstrong. Segundo essa escola, a matemática, assim como a biologia e a física, trata do mundo real e estão intimamente conectadas com as categorias aristotélicas da quantidade e da relação. Se o platonismo significa “há objetos abstratos” e o nominalismo significa “não há”, então pode parecer que platonismo e nominalismo são posições mutuamente exclusivas e exaustivas. No entanto, as palavras “abstrato” e “objeto” desviam a atenção da alternativa aristotélica: “abstrato” ao sugerir uma desconexão platônica do mundo físico e “objeto” ao sugerir a particularidade e talvez a simplicidade sem uma universalidade. O próprio conceito de “objeto abstrato”, que é tão comum em filosofia da matemática, é uma noção recente e, na verdade, obscura. Em particular, a noção é uma criação da conclusão de Frege (um platonista) de que, uma vez que os objetos da matemática não são concretos nem mentais, eles devem habitar algum “terceiro reino” do puramente abstrato.

Os aristotélicos não aceitam a dicotomia dos objetos matemáticos em abstrato e concreto, no sentido usado para falar de “objetos abstratos”. Uma propriedade como o azul não é um particular concreto, mas também não possui as características clássicas centrais de um “objeto abstrato”, ineficácia causal e separação do mundo físico. Ao contrário, a posse de um objeto concreto da propriedade azul é exatamente o que lhe confere eficácia causal (ser percebido como azul).

Assim, uma entidade de interesse para a filosofia da matemática – digamos, a razão entre duas alturas – poderia ser um habitante de um mundo não-causal e “abstrato” dos Números ou uma relação do mundo real entre comprimentos, ou nada. As três opções – platônica, aristotélica e nominalista – precisam ser mantidas distintas e sobre a mesa, ou a discussão será confusa desde o início.

O aristotelismo, a fim de explicar o conhecimento da matemática, fundamenta-se em uma teoria da abstração. Entretanto, enfrenta um problema sério. Não consegue explicar satisfatoriamente os universais não instanciados e o conhecimento que temos deles. Por exemplo, em teoria dos conjuntos, quando falamos de cardinais transfinitos. Ou ainda, números naturais extremamente grandes que não são instanciados. Como os conhecemos pela via abstrativa? Ou um Espaço de Hilbert de dimensão infinita?

A mente divina - conceptualismo divino

Uma das soluções para o problema dos universais não instanciados é a “platonização” de Aristóteles. Ou, como também é chamado, o realismo escolástico. Ou seja, os entes da matemática são alocados na mente divina.

Ao menos por enquanto, esse campo de pesquisa é, como Pierre Hoenen disse, “um campo de pesquisa para o escolasticismo”. Não há como escapar, nessa visão, de um tratamento sobre a natureza da abstração pelo intelecto humano, sobre o uso de signos (semiótica) e sobre alguma doutrina da analogia. Se os entes da matemática residem na mente de Deus, sendo alguns instanciados no nosso mundo e outros não, sustentando a doutrina da simplicidade divina (a idéia de que Deus é simples e, assim, n’Ele não há partes, fazendo com que Ele se identifique com cada um dos Seus atributos), comum ao Teísmo clássico, é necessário concluir que Deus é a matemática.

Mas se Deus é a matemática, então só podemos falar dela analogicamente. Em termos de teorias formais que expressam entes matemáticos, isso significa que as próprias teorias matemáticas devem ser interpretadas analogicamente. Os famosos teoremas da Incompletude de Kurt Gödel e, em menor escala, o teorema de Löwenheim-Skolem parecem dar suporte à tese do conceptualismo divino (tema para outro escrito).

O campo de pesquisa está aberto e é um convite às mentes curiosas. 

[1] James Franklin, An Aristotelian Realist Philosophy of Mathematics: Mathematics as the science of quantity and structure.

[2] E. Maziarz, The Philosophy of Mathematics.

[3] Armand Maurer, Thomists and Thomas Aquinas on the foundation of Mathematics, The review of Metaphysics (1993), 43–61.

Fonte: https://deividipansera.substack.com/p/aristotelismo-e-filosofia-da-matematica


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