Monges Matemáticos: um ensinando o globo, o outro copiando um manuscrito, do manuscrito "Imagem do Mundo", ilustração da Ciência e Literatura na Idade Média e o Renascimento |
Tempo de leitura: 22 minutos
Por Ana Catarina P. Hellmeister, IME - USP, publicado pela Revista Professor de Matemática nº 42, no ano 2000, disponível no LINK.
Introdução
Estamos no ano 2000 e uma pergunta que tenho ouvido com freqüência é: como será que era determinada coisa (a medicina, o teatro, a literatura, o ensino, ...) no ano 1000?
Vamos tentar dar alguma idéia de como era o ensino de Matemática, que afinal é o que nos interessa, no ano 1000 e pouco antes dele. Obviamente, este artigo não é, nem de longe, um texto completo sobre o ensino de Matemática na Idade Média, tem apenas a intenção de mostrar alguns de seus aspectos interessantes.
I. Rosvita
Vamos começar, talvez por feminismo, apresentando Rosvita, uma monja beneditina do convento de Gandersheim, norte de Göttingen, Alemanha, que viveu aproximadamente de 935 a 1002, e é considerada a primeira poetisa da literatura alemã. Ela nasceu, muito provavelmente, em uma família aristocrata e há registros de que seu nome aparece numa gravura esculpida em madeira como Helena von Rossow.
Rosvita ingressou muito jovem no convento de Gandersheim, famoso centro de estudos, onde seu extraordinário talento encontrou abrigo e cultivo criterioso. Inicialmente Rosvita foi orientada por um professor e posteriormente ficou sob a supervisão de uma sobrinha de Otto I (monarca da época) de nome Gerberg, considerada a mulher modelo de seu tempo. Gerberg, que foi abadessa do convento entre 959 e 1001, tinha um interesse especial pela obra poética de Rosvita, a qual, segundo a abadessa, “contribuiria para o engrandecimento da glória de Deus”.
Albretch Dürer, A monja Rosvita apresenta um livro a Oto I. (Kupferstichkabinett, Berlin) |
Não cabe aqui, numa revista para professores de Matemática, discorrer com maiores detalhes sobre a extensa obra literária de Rosvita, uma das mais importantes da Idade Média. Focalizaremos uma em especial, a peça Sabedoria, que contém uma aula de Matemática para jovens estudantes, que, pelo seu espírito motivador e bem-humorado, serviria de exemplo (quem diria, 1000 anos atrás!) para nós, professores, preocupados com o ensino de Matemática.
Antes de comentar a peça em particular, para melhor ligar Rosvita à Matemática, vamos transcrever um trecho do livro Cuentos y cuentas de los matematicos, de Rodriguez Vidal, R. e Rodriguez Rigual, M. C. Editorial Reverte, 1986, pág. 137.
“[...] A idade média na Europa não islâmica limita seus conhecimentos de Matemática aos textos comentados de Alexandria e Bizâncio, sem que apareçam indícios de criação original. Desta época são os escritos de Rosvita, monja de um convento alemão, do século X, mais interessantes como literatura e filosofia do que como Matemática. Entretanto demonstram bom conhecimento da Arithmetica de Boécio e aludem a questões relativas a números deficientes e perfeitos, citando o $6, 28, 496$ e $8128$, que eram os números perfeitos conhecidos na sua época. O número perfeito seguinte é $33 550 336$ [...].”
Há divergências entre os historiadores sobre se as peças teatrais escritas por Rosvita eram mesmo encenadas ou se seriam meros textos didáticos, nada tendo a ver com o teatro. Lembrando que o ensino na Idade Média era ministrado quase que exclusivamente nos mosteiros, sem dúvida, encenados ou não, os textos de Rosvita tinham claros propósitos didáticos, como é possível perceber em Sabedoria, que passamos a transcrever de [3].
Enredo da peça:
Paixão das santas virgens Fé, Esperança e Caridade. Foram levadas à morte pelos diversos suplícios a que as submeteu o imperador Adriano em presença da sua santa mãe, Sabedoria, que, com seus maternos conselhos, as exortou a suportar os sofrimentos.
Consumado o martírio, sua santa mãe, Sabedoria, tomou de seus corpos e, ungindo-os com bálsamo, deu-lhes sepultura de honra a três milhas de Roma. Ela, por sua vez, no quarto dia, após a oração sacra, enviou também seu espírito ao céu.
Vamos transcrever apenas o trecho da peça que traz a lição de Matemática. Trata-se de um diálogo entre Sabedoria e o imperador Adriano:
Adriano: Dize, que vieste fazer entre nós?
Sabedoria: Nenhuma outra coisa a não ser conhecer a doutrina da verdade para o aprendizado mais pleno da fé que combateis e para consagrar minhas filhas a Cristo.
Adriano: Dize os nomes delas.
Sabedoria: A primeira se chama Fé; a segunda, Esperança; a terceira, Caridade.
Adriano: Quantos anos têm?
Sabedoria: (sussurrando) Agrada-vos, ó filhas, que perturbe com problema aritmético a este tolo?
Fé: Claro, mamãe. Porque nós também ouviremos de bom grado.
Sabedoria: Ó Imperador, se tu perguntas a idade das meninas: Caridade tem por idade um número deficiente que é parmente par; Esperança, também um número deficiente, mas parmente ímpar; e Fé, um número excedente mas imparmente par.
Adriano: Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números são!
Sabedoria: Não admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos números e não uma única resposta.
Adriano: Explica de modo mais claro, senão não entendo.
Sabedoria: Caridade já completou $2$ olimpíadas; Esperança, $2$ lustros; Fé, $3$ olimpíadas.
Adriano: E por que o número $8$, que é $2$ olimpíadas, e o $10$, que é $2$ lustros, são números deficientes? E por que o $12$ que completa $3$ olimpíadas se diz número excedente?
Sabedoria: Porque todo número cuja soma de suas partes (isto é, seus divisores) dá menor que esse número chama-se deficiente, como é o caso do $8$. Pois os divisores de $8$ são: sua metade – $4$, sua quarta parte – $2$, e sua oitava parte – $1$; que somados dão $7$. Assim também o $10$, cuja metade é $5$; sua quinta parte é $2$; e sua décima parte, $1$. A soma das partes do $10$ é, portanto, $8$, que é menor que $10$. Já o contrário se diz número excedente, como é o caso do $12$. Pois sua metade é $6$; sua terça parte, $4$; a quarta parte, $3$; a sexta parte, $2$; e a duodécima parte, $1$. Somadas as partes dão $16$.
Quando porém o número não é maior nem menor que a soma de suas diversas partes, então esse número é chamado número perfeito.
É o caso do $6$, cujas partes – $3, 2$ e $1$ – somadas dão o próprio $6$. Do mesmo modo, o $28, 496$ e $8128$ também são chamados números perfeitos.
Adriano: E quanto aos outros números?
Sabedoria: São todos excedentes ou deficientes.
Adriano: E o que é um número parmente par?
Sabedoria: É o que se pode dividir em duas partes iguais e essas partes em duas iguais, e assim por diante até que não se possa mais dividir por $2$ porque se atingiu o $1$ indivisível. $8$ e $16$, por exemplo, e todos que se obtenham a partir da multiplicação por $2$ são parmente pares.
Adriano: E o que é parmente ímpar?
Sabedoria: É o que se pode dividir em partes iguais, mas essas partes já não admitem divisão (por $2$). É o caso do $10$ e de todos os que se obtêm multiplicando um número ímpar por $2$. Difere, pois, do tipo de número anterior, porque, naquele caso, o termo menor da divisão é também divisível; neste, só o termo maior é apto para a divisão.
No caso anterior, tanto a denominação como a quantidade são parmente pares; já aqui, se a denominação for par, a quantidade será ímpar; se quantidade for par, a denominação será ímpar.
Adriano: Não sei o que é isto de denominação e quantidade.
Sabedoria: Quando os números estão em “boa ordem”, o primeiro se diz menor e o último, maior. Quando, porém, se trata da divisão, denominação é quantas vezes o número se der. Já o que constitui cada parte, é o que chamamos quantidade.
Adriano: E o que é imparmente par?
Sabedoria: É o que – tal como o parmente par – pode ser dividido não só uma vez, mas duas e, por vezes, até mais. No entanto, atinge a indivisibilidade (por $2$) sem chegar ao $1$.
Adriano: Oh! Que minuciosa e complicada questão surgiu a partir da idade destas menininhas!
Sabedoria: Nisto deve-se louvar a supereminente sabedoria do Criador e a Ciência admirável do Artífice do mundo: pois não só no princípio criou o mundo do nada, dispondo tudo com número, peso e medida; como também nos deu a capacidade de poder dispor de admirável conhecimento das artes liberais até mesmo sobre o suceder-se do tempo e das idades dos homens.
Observem que os números parmente pares são as nossas potências de $2$, os parmente ímpares são aqueles que são o dobro de um ímpar; os imparmente pares são os produtos de um ímpar por um parmente par. Denominação e quantidade são os atuais quociente e divisor.
Uma fala de Sabedoria que também chama atenção é sua afirmativa de que todos os números, além de $6, 28, 496$ e $8128$, são excedentes ou deficientes. Isso mostra o desconhecimento, por parte dos estudiosos da época da obra os Elementos de Euclides, que contém, no livro IX, a demonstração de que qualquer número da forma $2^{n-1}(2^n -1)$ é perfeito se $2^n - 1$ for primo. Com esse resultado, já para $n=13$, obtém-se o próximo perfeito que é o número $33 550 336$. Essa perda de contato com os ensinamentos de Euclides ficará bastante evidente nos problemas de geometria da seção a seguir.
II. Já existia Educação Matemática no século VIII
Ainda para mostrar que na Idade Média se entendia de ensino de Matemática, voltemos um pouco no tempo mudando o século e os personagens.
É extremamente interessante a seleção de Problemas para aguçar a inteligência dos jovens, encontrada em Patrologiae cursus completus, séries latina, atribuída a Beda, qualificado de O Venerável, que nasceu e viveu na Inglaterra entre 673 e 735, tornando-se um dos maiores professores das escolas religiosas medievais. As soluções apresentadas também estão em Patrologiae cursus completus, séries latina (ver [3]) e são algumas atribuídas a Beda e outras a Alcuíno (séculos VIII-IX).
Os enunciados dos problemas traduzem bem a cultura popular da época, com a pouca Matemática que se conhecia apresentada e ensinada de modo atraente e bem-humorado, privilegiando o desenvolvimento da inteligência dos alunos, como pretendemos fazer hoje. Também já contemplavam a idéia hoje muito difundida de usar situações do cotidiano como motivadores do aprendizado.
Vejamos, então, alguns dos problemas da seleção de Beda, encontrados em [3], que certamente surpreenderão muitos dos leitores que acreditam que certos problemas e soluções são de épocas mais recentes.
Este problema mostra bem o espírito brincalhão da época.1. Problema do lobo, da cabra e da couve: Certo homem devia passar, de uma a outra margem de um rio, um lobo, uma cabra e um maço de couves. E não pôde encontrar outra embarcação, a não ser uma que só comportava dois entes de cada vez, e ele tinha recebido ordens de transportar ilesa toda a carga. Diga, quem puder, como fez ele a travessia?
Solução: Não apresentamos a solução por ser bem conhecida, pois esse problema é proposto até hoje em diferentes versões. O surpreendente é que seja tão antigo.
2. Problema do boi: Um boi que está arando todo o dia, quantas pegadas deixa ao fazer o último sulco?
Solução: Nenhuma em absoluto. Pois o boi precede o arado e o arado segue o boi; e, assim, todas as pegadas que o boi faz na terra trabalhada, o arado as apaga. E, deste modo, não se encontrará no último sulco nenhuma pegada.
Reconhecem aqui os leitores a famosa solução de Gauss, aos sete anos de idade, respondendo ao problema de somar $1 + 2 + ... + 100$?3. Problema da escada de 100 degraus: Numa escada de $100$ degraus, no 1º degrau está pousada $1$ pomba; no 2º, $2$; no 3º, $3$; no 4º, $4$; no 5º, $5$; e assim em todos os degraus até o 100º. Diga, quem puder, quantas pombas há no total?
Solução: Calcule-se assim: tome a pomba do 1º degrau e some-a às $99$ do 99º, o que dá $100$. Do mesmo modo, as do 2º com as do 98º somam $100$. E assim degrau por degrau, juntando sempre um de cima com o correspondente de baixo, e obterá sempre $100$. Some-se tudo junto com as $50$ do 50º degrau e as $100$ do 100º degrau que ficaram de fora, e obter-se-á $5 050$.
4. Problema dos dois caminhantes que viram cegonhas: Dois homens andando pelo caminho viram cegonhas e disseram entre si: Quantas são? E, contando-as, disseram: Se fossem outras tantas, e ainda outras tantas; e, se somasse metade de um terço do que deu e ainda se acrescentassem mais duas, seriam $100$. Diga, quem puder, quantas cegonhas foram vistas por eles inicialmente?
Solução: $28$. Pois $28$ com $28$ e $28$ dá $84$. Metade de um terço, $14$, que somado com $84$, dá $98$, que, acrescido de $2$, resulta $100$.
5. Problema do comprador: Disse certo negociante: Quero com $100$ denários comprar $100$ suínos; mas cada porco custa $10$ denários, cada leitoa, $5$, e cada $2$ porquinhos, $1$ denário. Diga, quem entendeu, quantos porcos, leitoas e porquinhos devem ser comprados para que o preço seja exatamente $100$ denários, nem mais nem menos?
Solução: $9$ leitoas e $1$ porco custam $55$ denários e $80$ porquinhos, $40$. Já temos $90$ suínos por $95$ denários. Com os restantes $5$ denários compram-se $10$ porquinhos.
6. Problema da tela: Tenho uma tela de $100$ cúbitos de comprimento e de $80$ de largura. Quero daí fazer telinhas de $5$ por $4$. Diga pois, ó sabido, quantas telinhas podem-se fazer?
Solução: De $400$, $5$ é a octogésima parte e $4$, a centésima parte. Seja $80$ multiplicado por $5$, ou $100$ por $4$, sempre encontrará $400$.
Problemas como o $4$, $5$ ou $6$ eram resolvidos sem equações, incógnitas, etc., recursos desconhecidos na época, mas por processos de tentativa. É interessante observar que esse procedimento medieval é bastante recomendado pelos educadores de hoje para incentivar o raciocínio e a criatividade dos estudantes.
O problema a seguir mostra que as soluções obtidas por tentativa nem sempre eram completas, deixando de lado alternativas válidas.
7. Certo pai de família tinha $100$ dependentes, a quem mandou distribuir $100$ medidas de provisões do seguinte modo: que os homens recebessem $3$ medidas; as mulheres, $2$; e as crianças, meia. Diga, quem for capaz, quantos homens, mulheres e crianças eram?
Solução: $11$ vezes $3$ dá $33$; $15$ vezes $2$, $30$; $74$ vezes meio, $37$. $11$ vezes mais $15$ mais $74$ é $100$; e, do mesmo modo, $33$ mais $30$ mais $37$.
Hoje, usando equações e incógnitas, faríamos:
$m$: número de mulheres.
$c$: número de crianças
Então,
$3h + 2m + c/2 = 100$
que implica $100 = 5h + 3m$, que fornece as soluções:
$h=17, \ \ m=5, \ \ c=78$
$h=14, \ \ m=10, \ \ c=76$
$h=11, \ \ m=15, \ \ c=74$
$h=8, \ \ m=20, \ \ c=72$
$h=5, \ \ m=25, \ \ c=70$
$h=2, \ \ m=30, \ \ c=68$
Os problemas 8 e 9 a seguir mostram, em suas soluções incorretas, as deficiências da época em questões de geometria, denunciando o desconhecimento dos resultados da escola grega.
8. Problema do campo triangular: Um campo triangular mede de um lado $30$ pérticas, de outro também $30$ e de frente $18$. Diga, quem puder, quantos aripenos [um aripeno eqüivale a $144$ “pérticas quadradas”] compreende?
Solução: Os dois lados de $30$ somados perfazem $60$, cuja metade é $30$ que multiplicado por $9$ (que é a metade de $18$) dá $270$ (que é o cálculo da área em “pérticas quadradas”). Para expressar a área em aripenos é necessário dividir por $144$, etc.
Observem que no cálculo da área do triângulo a medida da altura relativa a um dos lados era substituída erroneamente pela média das medidas dos outros dois lados.
9. Problema do campo circular: Quantos aripenos tem um campo circular de $400$ pérticas de circunferência.
Solução: A quarta parte de $400$ é $100$; $100$ multiplicado por $100$ dá $10 000$, que é a área. Para expressar em aripenos, divide-se por $144$, etc.
Aqui a área do círculo seria dada por $\bigg(\dfrac{2\pi r}{4} \bigg)^2 = \dfrac{\pi}{4}\pi r^2$, que embute um aproximação de $\pi$ por $4$, que é bastante grosseira.
Os progressos nos textos geométricos, na Idade Média, só se iniciaram com Gerberto (950-1003) mas aí já é uma outra história...
Referências bibliográficas:
[2] Boyer, C. B. História da Matemática. São Paulo: Editora Edgar Blucher, 1996.
[3] Lauand, L. J. Educação, teatro e Matemática Medievais. São Paulo: Editora Perspectiva., 1986.
[4] Internet:
- The Catholic Enciclopedia – Hroswitha.
- Roswitha # 2/2 by Julio Gonzalez Cabillon
***
Leia mais em A divisão da Aritmética - por Boécio
Leia mais em A Matemática de S. Isidoro de Sevilha e a Educação Medieval
Leia mais em Uma Enciclopédia Matemática esquecida na História
Leia mais em A incrível história do papa matemático