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O declínio da escola tradicional


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O declínio da escola clássica por Claudio Titericz, disponível no LINK.

A educação atual veio decaindo desde o início do século passado e encontra-se em uma situação lastimável nos dias de hoje. Os alunos atuais se formam e não fazem ideia do que adquiriram como saber, apenas lhes interessa o fazer. Também já escrevi alhures sobre a importância de se conhecer a antropologia humana para realizar uma boa educação, mas outro assunto relevante para se conhecer e comentar é a psicologia humana.

A economização atingiu em cheio as instituições educacionais, sejam as escolas ou as famílias, fazendo-as escravas da economia e estimulando que se ensine apenas uma profissão aos nossos alunos e filhos. Isto não seria possível sem um conhecimento sobre psicologia, principalmente psicologia de massa, com o objetivo de secundarizar a sociedade.

Já comentamos, também, que a antiga Escola Clássica, constituída na Idade Média pelos jesuítas e que adentrou ao mundo contemporâneo, trazendo a humanidade ao século XX, foi sendo substituída por uma escola profissionalizante, e que esta seria muito mais eficiente para a sociedade moderna se desenvolver do que aquela.

E assim foi nos Estados Unidos, que iniciou o processo de desconstrução desta filosofia educacional que havia construído o mundo contemporâneo.  Foram valorizadas as figuras de Wilhelm Wundt, Tom Parker, Henry Goddard, Lewis Terman, Robert Yerkes, Alfred Binet, Jean Piaget, John Watson, B. F. Skinner, Paulo Freire, Ivan Illich, John Dewey, Edward Lee Thorndike e outros, com recursos “filantrópicos” das Fundações Carnegie, Ford e Rockefeller. Mas para quê? Simplesmente para mudar os conceitos educacionais americanos. Uma vez alterada a filosofia dos Estados Unidos, o mundo todo seguiria este novo padrão, que se prolifera até hoje, que é a utilização da “psicologia experimental” na educação. Para se alterar o modelo da sociedade era preciso entrar na educação com meios psicológicos eficientes.

Em um livro chamado “The Leipzig Connection” (1980), Paolo Lionni apresenta o que seria a psicologia experimental e como esta veio a sedimentar-se no ambiente educacional americano e europeu. Esta psicologia considera o ser humano como um animal e a educação, nesta perspectiva, deve ser realizada de forma a levar o instruendo a uma experiência educacional padrão igual a todos os outros e se espera um resultado padrão nesta experiência, neste ensino.

Ou seja, ao não considerar a criança e o jovem como um ser racional, este modelo os considera como seres irracionais. E é isso que se busca no ensino, fazendo-os um contingente a ser adestrado para o trabalho e sem questionamentos. Foi na Escola de Chicago que ocorreu o surgimento da “psicologia educacional” e da chamada “educação progressiva” emanada do Teachers College de Columbia que durou mais de meio século, sendo absorvida por grande parte das escolas americanas.

O alemão Wilhelm Maximilian Wundt, nascido em 1832, foi o precursor desta nova ciência, quando a psicologia significava apenas o estudo da alma ou da psiqué. Com seu laboratório em Leipzig, em 1875, conseguiu transformá-lo no primeiro laboratório psicológico do mundo. Começou a medir as respostas fisiológicas do indivíduo quando tinha suas experiências sensitivas e sentimentais, julgando que estava conseguindo medir os resultados de estímulos provocados em seres humanos, dando a impressão de criar uma ciência exata que era a psicologia experimental com ares de ciência exata. Wundt acreditava que o homem era desprovido de espírito e autodeterminação, mas apenas somas das experiências que eram introduzidas na consciência e subconsciência.

Este trabalho foi considerado de maneira geral um grande estudo do cérebro e do sistema nervoso humano e rapidamente foi levado para a educação, pois o estudante teria de ser exposto às experiências significativas para se assegurar um aprendizado adequado. Deveria ser criada uma “situação-resposta” para cada tipo de aprendizagem.

Assim, se só existe o corpo, temos que tentar induzir sensações no sistema nervoso para provocar a aprendizagem. Pavlov bebeu desta base filosófica para formular os princípios do condicionamento e, também, os psicólogos behavioristas americanos Watson e Skinner, como para a lobotomia e a terapia eletroconvulsiva. Estava aberta a direção rumo à gratificação dos prazeres sensíveis, às custas da responsabilidade e da finalidade humana.

Neste contexto, a chamada educação clássica estava totalmente contrária a esta filosofia educacional, mas tudo ficou ainda pior, quando se começou a acreditar que os caminhos da mente poderiam ser medidos por experimentos. Um dos alunos de Wundt que retornou para os Estados Unidos foi G. Stanley Hall que em 1887 organizou um laboratório deste modelo na Universidade Johns Hopkins, além de fundar o American Journal of Psychology. Ele estabeleceu, em 1904, uma relação entre a psicologia experimental com a educação infantil.

Foi Hall que promoveu a carreira de uma personagem importantíssima da educação americana que foi John Dewey, que com financiamento dos Rockfeller, cria um laboratório de educação na Universidade de Chicago para aplicar princípios psicológicos e técnicas experimentais ao estudo do aprendizado.

Dewey desejava que as crianças tivessem os fatores psicológicos e sociais coordenados na escola com a finalidade de que elas expressassem fins sociais. Os professores teriam de mudar seu papel tradicional de educador para serem guias para a socialização da criança. Tanto para Wundt como Dewey, o ser humano não passa de um animal abandonado às suas reações e inteiramente dependente de seus dados experienciais.

Ainda mais, nesta linha materialista, as habilidades naturais derivavam da hereditariedade como são as limitações do mundo orgânico. A eugenia começava dar seus passos. Entretanto, foi da mente de outro wundtiano chamado Edward Lee Thorndike, que em Harvard, começou a pesquisar galinhas, gatos, ratos, testando seu comportamento, criando o que seria a “psicologia animal”, pois como dizia: “a psicologia era a ciência da inteligência, caráter e comportamento dos animais, incluindo o homem”.

Estes estudos tiveram eco em outros pesquisadores que se convenceram de que isto era digno de ser testado em humanos e, em 1903, já havia resultados na aplicação destas técnicas sendo realizadas em crianças e jovens. A escola começa a ensinar que o que é agradável é bom e o desagradável não é bom. Esta é a base do ensinamento de estímulos-respostas de Thorndike e que foi transmitido a centenas de milhares de professores espalhados pelo mundo por meio da “psicologia educacional”. O educador brasileiro Anísio Teixeira foi um deles e trouxe ao Brasil algumas destas ideias nos anos 1930.

Estamos vendo que a educação neste nível, considera o ser humano um animal social que deve aprender a adaptar-se ao seu meio ambiente, ao invés de descobrir como adaptar eticamente o ambiente às necessidades suas e da comunidade. O individualismo e o desenvolvimento de habilidades individuais cedem espaço à conformidade social e à adaptação, dizendo de outra forma, as crianças devem ser “bem-ajustadas” ou condicionadas. Daí a necessidade de dar uma “vocação”, uma carreira vocacional a cada um, visando o bem social. A escola mudou seu fim, agora é a socialização do estudante, entendendo isto como dar-lhe uma função social, ou seja, um emprego remunerado, não importando a necessidade do indivíduo.

Muito preocupado com a evolução destas ideias na educação americana, Albert Jay Nock escreve os fundamentos que deveriam existir na educação em seu livro The Theory of Education in the United States.

No livro, escrito em 1932, Nock fala da decadência dos últimos 35 anos justamente pela introdução nos currículos das matérias ditas científicas em detrimento daquelas que compunham a estrutura da chamada Escola Clássica. Os propósitos apenas vocacionais estavam sendo priorizados. Mas esta reforma que altera o objetivo, o espírito e a estrutura da educação americana estava sendo conduzida de forma empírica, fazendo testes pedagógicos sem qualquer parâmetro e por vezes utilizando processos psicológicos observados em animais. E tudo voltado para o trabalho, substituindo educação por treinamento.

Toda uma tradição escolar voltada para o desenvolvimento intelectual foi sendo abandonada. Albert Jay Nock falou da vontade desta nova teoria de ensino de se buscar o igualitarismo e a democracia. Entretanto, ele diz que nem todos são educáveis, mas todos são treináveis. Assim, a ideia de se treinar a todos é mais fácil e economicamente melhor para se obter um retorno financeiro, além de ser uma forma igualitária e de se manter a teoria viável. A teoria que passou a dominar era a de que treinar um cidadão é equivalente a educação para a cidadania, pois eu daria ao jovem uma profissão na qual ele ajudaria a sociedade a crescer.

A teoria educacional também falava sobre democracia e poucas pessoas parecem realmente entender o que seja. E, para não entrar muito a fundo no tema, podemos facilmente ver que a antítese de democracia é o absolutismo. Parece, na visão de Nock, que não se está sendo nem igualitário, nem democrático, neste novo sistema educacional. Ao contrário, se está impondo de forma absoluta sobre todos os estudantes um padrão, quando isto é impossível, pois cada indivíduo é exclusivo e não um membro de um rebanho.

E aí se observa a grande diferença entre a chamada “Grande Tradição” da Escola Clássica e a atual, que era a disciplina voltada para os “conhecimentos formativos” e esta nova tendência voltada para “conhecimentos instrumentais”. Mas a disciplina serve apenas para educar pessoas, mas como existem pessoas que não são educáveis, a disciplina não tem efeito, assim as escolas deveriam formar o “homem para o seu tempo” e “prepará-lo para a vida” e isto seria descartar a disciplina “antiga e medieval” da velha escola. Esta disciplina leva a pessoa educável a ter pensamento corretos, limpos, lógicos, maduros e profundos e, na concepção vocacional moderna, apenas lhe dá uma visão extremamente limitada de uma atividade humana.

A educação que estava em andamento nos Estados Unidos no começo do século passado ainda se manteve competente, pois havia uma herança educacional e os processos profissionais estavam sendo colocados de maneira correta e responsável, isto até cerca de 1950. Com o passar do tempo toda a geração antiga que houvera sida educada na educação clássica foi sendo ultrapassada pela idade.

Ao chegarmos na década de 1980, não se encontrava-se mais ninguém que tivesse passado por aquela educação e somente se ensinava uma profissão e, o que é pior, introduziu-se a ideologia dentro da pedagogia. Ora, isto faz com que a cada geração se perca a seriedade do que se faz e nestas duas décadas do 21º século, estamos colhendo o que sai das escolas e que podemos chamar de ignorância funcional e sequer uma profissão ou instrução correta os jovens aprendizes têm condição de responder. O nível geral está em queda livre e até mesmo o ensino tem decaído.

Verificamos, com estes dois livros, como se iniciou naquele momento grandes modificações em uma estrutura secular, dando início a uma nova fase do sistema educacional e de ensino no mundo.

Um último aspecto que gostaria de apontar é sobre a grande preocupação que havia na Escola Clássica com relação ao bem da sociedade e que neste novo modelo se perdeu. Ao tentar educar os jovens para a sociedade, formando-os para uma vocação, está se formando pessoas que só se importam consigo mesmas e não com a sociedade.

A chamada virtude cívica que o Barão de Montesquieu falava e que formou a cultura americana foi deixada de lado com este sistema de ensino puramente econômico. Não há mais amor à Pátria e o respeito solidário, tudo que o trabalhador deve fazer é trabalhar e todas as outras preocupações são do Estado. Todos sabemos que o importante não é o que se ensina, mas como se ensina, dessa maneira este modelo de ensino considera todos como um só e que deve respeitar um currículo único e deve ser instruído de forma única, descartando ou abafando os expoentes para mais ou para menos.

Para finalizar, gostaria de citar o último parágrafo do livro de Lionni, no qual enfatiza que:

Educação não é psicoterapia obrigatória universal imposta pelo governo. A incultura de nossos líderes e de seus eleitores é a raiz de todas as nossas dificuldades. A Terra está, em matéria de educação, desprovida de seus direitos, por planos que são próprios de uma ignorância universal. Precisamos de nada menos do que um completo renascimento educacional.

E continua Paolo Lionni, como que profetizando: 

Dentro de meio século a delinquência juvenil explodiria, hordas de analfabetos transbordariam de nossas escolas. Os professores já não aprenderiam a ensinar e, geração após geração, os adultos, privados dos frutos de uma educação de qualidade, abandonariam toda a esperança de escapar do pântano da educação “moderna”.

*

Sobre o autor: Claudio Titericz é coronel da reserva do Exército Brasileiro, bacharel, mestre e doutor em Ciências Militares, bacharel em Teologia, estudante permanente de Filosofia da Educação, ex-servidor do Ministério da Educação e um dos fundadores do Instituto de Biopolítica Zenith. 

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Leia mais em O que é Educação?

Leia mais em Elementos de crise na educação



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Matemática e Cristianismo


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Texto disponível no LINK.

Matemática, um exercício de fé? Texto de Ricardo Perna

Com mais de quatro mil anos de existência, a Matemática assume-se como uma das mais antigas ciências conhecidas da Humanidade. Afinal de contas, até os caçadores-recoletores dos primórdios da nossa História precisavam de contar quantas peças caçavam, para saberem o que traziam para casa e o que pretendiam depois trocar. Desde aí, o pensamento tem-se desenvolvido no sentido de compreender que grande parte do mundo se entende numa universalidade matemática. Esta ciência tão exata e entendível por todos, na sua formulação mais básica, atingiu, no entanto, nos últimos séculos, um desenvolvimento tal que a concepção de teorias matemáticas adquiriu contornos abstratos, impossíveis de provar em termos físicos. «Apesar de ser uma ciência muito objetiva, [a Matemática] chega a níveis de abstração muito elevados, onde não se consegue visualizar aquilo em que se está a trabalhar. Acreditamos que determinado tipo de aspetos são verdades indesmentíveis, os axiomas, e a partir daí construímos teorias que não são contraditórias», explica-nos Luís Ramos, matemático e professor de Probabilidade e Estatística na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.

A razão para esta pequena conversa foi a edição, por parte da Paulus Editora, do livro Deus e o hipercubo, da autoria de Francesco Malaspina, um matemático que procura fazer «um exercício de analogias entre marcos importantes do Cristianismo e objetos matemáticos». «O que ele tenta demonstrar é que, tal como na Matemática há aspetos muito abstratos, que não se conseguem visualizar, ele faz o mesmo a aspectos do Cristianismo, que aceitamos sem os conseguirmos visualizar», explica-nos Luís Ramos.

O exercício feito para a Matemática pode ser extensível a outras áreas da ciência, para explicar que, tal como no Cristianismo, aquilo que não se vê não é necessariamente dispensável. Também nestas áreas do saber, até mais objetivas do que a Religião, as bases que sustentam a maioria das teorias mais avançadas são construídas com teorias que nunca poderão ser provadas. «Quando falamos de aspectos tão complexos como as variações topológicas, em que se trabalha em espaços abstratos, que não correspondem a coisas que a gente conheça em termos reais, e o autor faz essa comparação com a Santíssima Trindade, com a relação de Deus conosco, que nos ensina o Amor, a forma de chegar a Ele é através dos outros, e faz essa analogia com as funções de transição, que são funções que aparecem nas variações topológicas, o que ele nos mostra é que existe toda uma complexidade tanto na Matemática como nos mistérios de Deus. Nós acreditamos que as coisas são assim, mesmo sem as visualizarmos num contexto real», sustenta este matemático, que é também um crente.

O paralelismo da religião com uma ciência exata não significa que se procure uma explicação de uma pela outra, ao contrário do que sucede com outras áreas do conhecimento, que são explicáveis pela Matemática. «A Matemática e a Religião traçam caminhos idênticos, por trilhos muito complexos, mas paralelos, que não se contam. Ao contrário de outras matérias, onde tudo o que se faz tem tradução matemática, como a música ou a natureza, e há expressões matemáticas que modelam essas coisas, aqui não existem modelos para definir o que é indescritível, aqui apenas se procuram analogias interessantes, até porque, se Deus criou tudo, também criou a Matemática», refere Luís Ramos, com um sorriso.

Esta é uma lição válida principalmente para quem procura criar uma clivagem entre ciência e religião, uma clivagem que, aliás, nunca sucedeu ao longo da nossa história da parte de religião, já que foram homens de Deus alguns dos responsáveis pelas mais importantes descobertas científicas na História da Humanidade.

A dificuldade em conhecer tudo é outra das coisas que aproximam Religião e Matemática. «O conhecimento que temos das coisas é limitado. Na Matemática, apesar da evolução dos últimos séculos, é extremamente limitado. E na religião também, porque o conhecimento que temos de Deus é extremamente limitado. Nós acabamos por aderir, e acreditamos nisto como os matemáticos acreditam nos axiomas que estão na base de tudo», defende Luís Ramos. A própria existência de dogmas na Matemática, ali chamados de axiomas, mostra o quão paralelo tem sido o percurso das duas matérias, e o porquê deste matemático italiano, também ele crente, após a sua tese de doutoramento nas áreas matemáticas, resolve «falar do amor de Cristo através da Matemática e vice-versa», como o próprio diz na publicação agora editada pela Paulus Editora.

*

Sinopse do livro: Neste livro, o autor confronta de modo sério e competente dois temas complexos e aparentemente sem relação: matemática e Deus. Neste esforço consegue-se traçar um fascinante paralelismo entre matemática e fé. A matemática fala de entes abstratos, mas fortemente ligados à realidade. Ainda que Deus possa parecer abstrato, longe do mundo, está, pelo contrário, profundamente inserido no Homem através da Encarnação de Jesus Cristo. Como duas linhas paralelas não se encontram nunca senão no infinito, assim é belo pensar que a matemática e Deus terão um ponto comum na eternidade.

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A Pedagogia das artes liberais

Iluminura do livro Núpcias de Mercúrio e a Filosofia
de Marciano Capella, Biblioteca Nacional de São Marcos,
Veneza. 1485–1490. MS 4054


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Texto retirado do LINK.

Josef Pieper: A pedagogia das artes liberais por Jean Lauand [1].

Introdução

Na primeira conferência deste evento [2] vimos como o abalo filosófico – e seus afins – movido pelo princípio da admiração, nos leva a transcender o mundo do trabalho. Nesta, prosseguiremos essa análise.

Essa situação do filosofar, que de início colocamos como algo negativo (não estar imerso no mundo do trabalho, não estar a serviço de nenhuma finalidade prática), é, na realidade, uma distinção de dignidade que é necessário reivindicar, afirmar e defender. Formulando de modo positivo, filosofar é algo que tem sentido em si mesmo, sua legitimidade não decorre de que sirva para isto ou para aquilo e, precisamente por isso, é livre. Aí tocamos um dos pontos mais fundamentais da filosofia da educação de Pieper: da afirmação da liberdade da Filosofia decorrerá boa parte da Filosofia da Educação pieperiana - a pedagogia das artes liberais.

É esse o sentido da “liberdade” das artes liberales em oposição às artes serviles, artes servis, as quais, como diz S. Tomás estão ordenadas para uma utilidade que se alcança pela atividade (In Met. I, 3, 59). A Filosofia sempre foi entendida como a mais livre dentre as artes liberais (PIEPER: 1980, 27).

É importante notar que Pieper, ao utilizar as expressões “artes liberais” e “artes servis”, não lhes dá nenhum sentido de discriminação social, referindo-se unicamente ao fim do conhecimento. Como, aliás, afirma de modo explícito:

Este adjetivo “servil”, que compreensivelmente e não por acaso nos causa algum desgosto (...), não tinha originariamente o menor sentido pejorativo, antes seu significado exato era apenas o de atitude que serve a um fim, atividade que serve a alguma outra coisa, razão pela qual seu sentido reside fora de si mesma (o que com bastante precisão costuma-se denominar útil (...) (Do mesmo modo) liberalis é a atividade que não se dirige a um fim externo a si mesma, que tem sentido em si e, por isso não é strictu sensu “útil” nem se põe ao serviço de outra coisa (PIEPER: 1964, 21-2).

Note-se que Pieper também não considera as artes liberais primariamente como um elenco de disciplinas enfatizando antes o espírito de liberdade que as caracteriza.

É o momento de nos determos no caráter contemplativo do filosofar e do homem. Pois se o filosofar tem uma face negativa (não estar a serviço da práxis), tem também sua dimensão positiva, que é precisamente o voltar-se para o conhecimento teorético, contemplativo da realidade.

Em palavras do próprio Pieper:

Essa não disponibilidade, essa liberdade da Filosofia – e afirmar isto parece-me da mais extrema e atual importância – está intimamente relacionada e até identificada com o caráter teorético da Filosofia. Filosofar é a forma mais pura de theorein, de speculari, do puro olhar receptivo da realidade (PIEPER: 1980, 30).

A Contemplação

O homem é um ser tal que a sua realização, “a sua suprema felicidade se encontra na contemplação” (PIEPER: 1957, 9).

Exclusivamente à interpretação e justificação dessa sentença, Pieper escreveu a obra Glück und Kontemplation [Ócio e Contemplação]. Contemplação é simplesmente outro nome para teoria. Pieper faz notar que contemplatio é a tradução latina de theoria, que é livre e “orientada exclusivamente para a verdade, algo que tem sentido em si mesmo” (PIEPER: 1963, 63).

Ora, o que é “bom em si mesmo” deve afetar o todo da existência humana, o que é bom não para isto ou aquilo, mas, em última instância, bom. Pieper assente à antiqüíssima resposta de Anaxágoras sobre o bem último do homem:

“Para que estás na terra?” A resposta de Anaxágoras foi: para a consideração contemplativa, eis theorian, do céu e da ordem do universo. Pois bem, exatamente o mesmo queremos expressar aqui com a tese que vamos examinar, a saber, que a consideração filosófica (...) é não só parte essencial do “bem do homem” (entendido como bem em si), mas também elemento imprescindível do bem comum (PIEPER: 1963, 65).

E é que conhecer, contemplar, ver com olhar de amor a realidade tal como é – e aí se dá uma total coincidência entre os grandes da tradição ocidental –, é, como diz Tomás de Aquino (In Liber de causis, 18): “nobilissimus modus habendi aliquid”, o modo mais nobre de se ter algo.

Ao final do cap. VII de Glück und Kontemplation, Pieper explica que o conhecimento é, no sentido mais estrito, assimilação: um assimilar em que o mundo objetivo, enquanto conhecido, chega a ser o próprio ser do sujeito cognoscente. Os entes não-cognoscentes limitam-se à sua própria forma; já os cognoscentes, além de possuírem (de modo natural) sua própria forma, possuem também (de modo intencional) as dos objetos conhecidos. Com especial profundidade e sem fronteiras, no caso do sujeito espiritual.

Aí onde está o espírito, aí está também a totalidade das coisas, aí “é possível que num só ente tenha existência a plenitude do universo (De Veritate II, 2). Aqui cabe também aquela grande sentença de Aristóteles que se tornou proverbial no Ocidente: “A alma é, no fundo, todos os entes, anima est quodammodo omnia” (Sobre a alma 3, 8; 341-b) (PIEPER: 1957, 68).

Ao comparar a contemplação própria da bem-aventurança final com a teoria filosófica, Pieper as conjuga, evitando, porém, identificá-las: se a visio beatifica é a plenitude de posse do anseio que já se dá no homo viator em prefiguração, o dirigir-se para a contemplação que se dá no filosofar é pergunta e procura e não ainda pleno achado e resposta (PIEPER: 1966, 70).

Tendo falado da contemplação e do ter, podemos entender melhor o que Pieper diz a respeito da verdadeira riqueza do homem: “A verdadeira Filosofia se apoia na crença de que a riqueza própria do homem (...) está em que sejamos capazes de ver aquilo que é, a totalidade daquilo que é” (PIEPER: 1980, 33).

Lazer (skholé) como atitude do espírito

Ao avanço do totalitarismo do mundo do trabalho, até mesmo sobre a vida espiritual do homem, Pieper opõe “um dos fundamentos da Cultura Ocidental”, o lazer (conceito de especial importância, pois na skholé aristotélica radica a distinção entre artes liberais e servis).

Desde logo convém ressaltar que Pieper considera o lazer – como também o seu contrário: a concepção que vê no trabalho a característica dominante de toda a existência do homem – não como categoria sociológica, mas uma atitude humana:

O lazer é, como atitude da alma (e é necessário deixar bem estabelecido algo que é claro: que o lazer não se deve somente a fatos externos como pausa no trabalho, tempo livre, fim de semana, férias; lazer é um estado de alma) precisamente o oposto do tipo do “trabalhador” (PIEPER: 1952, 51-2).

Para caracterizar, por contraste, o espírito do lazer recorreremos à breve descrição da figura do “trabalhador”, feita em Was heisst Akademisch?. Esse tipo nada tem que ver com camadas sociais e Pieper desfaz qualquer eventual mal-entendido que pudesse surgir a respeito:

Não é a camada social do operariado, ou do povo simples em geral, que é aqui tomada como o oposto do espírito acadêmico e excluída do seu domínio. Estamos, pelo contrário, convencidos de que o homem simples, o povo, enquanto é capaz realmente de conservar esta simplicidade (o que só ocorre sob determinadas condições), tem uma capacidade toda particular de abrir-se ao mundo como um todo, com espírito contemplativo e “festivo”, o que justamente constitui o melhor e mais íntimo da atitude verdadeiramente acadêmica (PIEPER: 1964a, 40-1).

“Trabalhador” não significa aqui o homem que trabalha, mas uma concepção ideal-abstrata onde o fator determinante da vida deve ser visto no total entrosamento do Homem nos maquinismos de planejamento (PIEPER: 1964a, 42).

Ao exclusivismo do trabalho como função social, opõe-se a atitude de lazer que, ao contrário da pausa ou do tempo livre (no fundo ordenados ao trabalho), corta-o verticalmente. A justificação do lazer não é a de repor forças ao trabalhador, mas sim a de favorecer que continue sendo homem, capaz de contemplar o mundo como totalidade (PIEPER: 1964a, 56-7).

Acadêmico significa filosófico-teorético

A concepção básica de Pieper é a de que as características da educação universitária são as mesmas do filosofar: “Formação acadêmica significa o mesmo que formação filosófica” (PIEPER: 1964a, 22). Dois parágrafos decisivos são os que se encontram em Musse und Kult [Ócio e culto], onde categoricamente se afirma:

Falar do lugar e do direito da Filosofia é, ao mesmo tempo, falar de nada mais nada menos que do lugar e do direito da Universidade, da formação acadêmica, e da formação em geral no sentido próprio da palavra, a saber, naquele sentido pelo qual, por princípio a formação se distingue da simples instrução profissionalizante e a ultrapassa. Instruído é o funcionário e a instrução (profissional) se caracteriza por dirigir-se a um aspecto parcial e específico no ser humano e, ao mesmo tempo, a um determinado setor recortado do mundo. Já a formação se dirige ao todo: culto e formado é aquele que sabe o que acontece com o mundo em sua totalidade. A formação atinge o homem todo enquanto é capax universi, enquanto é capaz de apreender a totalidade das coisas que são (PIEPER: 1964, 42-3).

Em busca do genuíno conceito de Universidade em Was heisst Akademisch?, Pieper inicialmente mostra a continuidade histórica – quanto ao ideal do espírito acadêmico – que se dá no Ocidente desde a Academia de Platão até as universidades de hoje: não é por acaso que chamamos nossas atuais instituições de ensino superior de acadêmicas. E, além disso, a escola de Platão tem sido, ao longo da História, constantemente apontada como paradigma de todas as escolas superiores do Ocidente (PIEPER: 1964a, cap. I). Em que consiste esse caráter paradigmático?

Como vimos, o homem, por natureza, tende para a contemplação (o que se mostra na índole teorética do filosofar) e a Universidade realiza (deve realizar) em termos institucionais este anseio fundamental da natureza humana. Daí que a Academia de Platão – para além da mera continuidade histórica e independentemente de quais tenham sido suas formas, programas de ensino e didática – constitua, em seu núcleo mais essencial, um modelo atemporal, válido também para o nosso tempo: “o modo filosófico de encarar o mundo” (PIEPER: 1964a, 17).

De tal modo que “uma formação não baseada na Filosofia, não perpassada de Filosofia, não pode ser chamada de acadêmica” (PIEPER: 1964a, 18).

Na medida em que se aplica à Educação e à Universidade, “teoria” se traduzirá por “artes liberais”. Pois acadêmico significa filosófico e filosófico significa essencialmente (entre outras coisas) teorético e, portanto, algo voltado unicamente para a captação da realidade e alheio a fins práticos, e este é o sentido das artes liberais.

A Pedagogia das Artes Liberais

Inicialmente convém desfazer alguns possíveis equívocos que poderiam surgir da leitura do ponto anterior.

Ao afirmar que a Universidade deve ser filosófica, não estamos com isso dizendo que não deva integrar seus fins a formação de profissionais competentes (médicos, físicos, juristas, etc.) nem tampouco que, ao lado da formação propriamente profissional do médico ou do jurista, sejam-lhes ministrados alguns cursos da disciplina Filosofia (o que poderia e talvez deveria ocorrer, mas não é o essencial).

E é que a proposta pieperiana dirige-se ao modo de realizar-se a formação universitária. Esse modo é que deve ser filosófico, se pretendemos que a Universidade seja “algo mais que simples instituição de formação de profissionais. Em que se encontra a legitimação de uma tal pretensão, e onde está o ‘mais’ das universidades senão no acadêmico-filosófico?” (PIEPER: 1964a, 24). E explica:

O caráter acadêmico é constituído unicamente pelo fato de todas as ciências, também as ciências particulares, precisamente estas, serem tratadas de maneira acadêmica, o que significa de maneira filosófica (PIEPER: 1964a, 31).

Somente à luz desses critérios pode-se compreender a crescente descaracterização, a perda de identidade que a Universidade vem sofrendo face à “concorrência” que as indústrias, empresas e bancos vem-lhe fazendo no tocante à formação profissional de seus quadros. Hoje, cada vez mais, as empresas dão cursos para seus funcionários. Evidentemente, esses cursos não têm um caráter “livre”; antes estão totalmente voltados para a realização de finalidades práticas. Se também a Universidade mergulha no mundo da utilidade, então – é a percuciente indagação de Pieper – que diferença há entre um curso, digamos, de Química na Universidade e o mesmo curso dado pelo setor de formação de pessoal de uma grande indústria farmacêutica?...

Na resposta – para quem se ativesse à estrita realidade fática –, tristemente, talvez só se encontre a diferença de que a indústria está melhor aparelhada e provida de recursos do que a Universidade (PIEPER: 1964a, 30-31).

No entanto, caso a Universidade se volte para a realização daquele anseio da natureza humana a que corresponde, se ela realiza sua vocação filosófica, ficará nítida a sua própria especificidade:

O que o distingue (um estudo especializado qualquer, realizado à maneira filosófica) é antes de tudo, a ausência de vínculos que o liguem a qualquer fim utilitário. Essa é a verdadeira liberdade acadêmica; essa liberdade é, per definitionem, destruída no momento em que as ciências se tornam um simples disfarce utilitário para qualquer espécie de poder (PIEPER: 1964a, 28).

Esse caráter teorético do filosofar aplicado à Universidade, ao tratamento de cada disciplina particular, é o que designamos pela expressão “Pedagogia das Artes Liberais”.

Aqui a contribuição de Pieper é especialmente esclarecedora e interessante: atinge o mais profundo núcleo constitutivo das artes liberais, deixando de lado características acidentais a que historicamente estiveram associadas essas artes. É o espírito das artes liberais o que hoje e sempre terá atualidade (mais não seja a atualidade do corretivo).

Assim, a proposta de uma Educação Liberal (no sentido indicado: o do espírito das artes liberales) tal como Pieper a formula hoje, não se refere a um elenco de disciplinas, nem, muito menos, a qualquer tipo de discriminação social com que se pôde confundir outrora o conceito de Artes Liberais. Refere-se, sim, a um sentido que já aparece em Santo Tomás: “Illae solae artes liberales dicuntur, quae ad sciendum ordinantur” (In Met. I, 3, 59), só se designam como liberais as artes que se dirigem somente ao saber e não à utilidade prática.

E, afirma Pieper, é neste sentido que “verdade e conhecimento, por um lado, e, liberdade, por outro, se encontram em mútua conexão” (PIEPER: 1966, 50). E, complementarmente, “as artes serviles, artes servis, como diz Santo Tomás, estão ordenadas para uma utilidade que se alcança pela atividade” (PIEPER: 1980, 27).

O fundamento filosófico da Pedagogia das Artes Liberais reside no fato de as ciências particulares, também elas, poderem ser em alguma medida tratadas filosoficamente, isto é, teoreticamente, participando desse modo da liberdade da Filosofia. É nesse sentido que deve ser entendida a afirmação aristotélica de que só a Filosofia é livre, o que, na realidade, significa que a Filosofia é livre de modo máximo, pois nas ciências também pode ser encontrado um elemento filosófico de teoria e liberdade.

Certamente, uma ciência particular pode ser – contrariamente ao que ocorre com a Filosofia – legitimamente tomada ao serviço de fins utilitários. Não há nada na natureza da ciência particular que seja violado por isso. A Pedagogia das Artes Liberais enfatizará não esse aspecto utilitário, mas o elemento filosófico, livre da aplicação prática, com que podem (e também devem) ser estudadas a Matemática, o Direito, a Física etc. Como diz Pieper:

Há também na Ciência, no seu núcleo mais íntimo, um elemento que não pode ser tomado para a utilidade prática: é o elemento filosófico da teoria, que se dirige para a verdade e nada mais. Isto é: a Ciência tem, em virtude de sua essência, exigência de liberdade, por ser não prática, mas teorética (PIEPER: 1954, 36-7).

Como primeira aproximação, podemos dizer que o espírito das artes liberais leva à pesquisa, ao estudo, à docência das ciências particulares de um modo filosófico, que se realiza (pode se realizar...) na atitude do professor e do aluno, que se voltam, sim, para o particular aspecto desta ou daquela disciplina ou especialidade, mas sem se enclausurarem nele; antes, ao contrário, deixando abertura para reflexões e diálogo sobre o todo do real permitidos ou até exigidos pelo assunto, se se trata de uma Universidade.

Tal modo filosófico de encarar uma ciência particular distingue-se do não-filosófico, antes de tudo, pela “ausência de vínculos que o liguem a qualquer fim utilitário” e por “nos abrirmos ao céu aberto da realidade como um todo” (PIEPER: 1964a, 28).

Claro que, tratando-se de um espírito, de uma atitude, o exemplo verdadeiro vem no contato vivo com os grandes mestres que realizam em si as virtudes do genuíno professor universitário. No entanto, pode ser útil, a título de mero exemplo (e, pelas razões apontadas, apenas indicativo e muito limitado), a consideração de uma situação concreta. Suponhamos o caso de um professor que leciona Matemática para um curso universitário de Economia. Naturalmente, ele irá proporcionar a seus alunos o instrumental científico-matemático que os habilite a resolver um exercício (didático e banal) como o seguinte: “A função de demanda de determinado bem é $q = 20 - p$ e a função de Custo total de produção desse bem é $C = 2q + 17$. Determinar o valor de q para que o Lucro total, $L$, seja máximo”.

O problema se resolve relacionando a função de Lucro com as de Custo e Receita, lembrando que esta, por sua vez, obtém-se a partir da função de preço (como função inversa da demanda), efetuando as operações de derivação pertinentes etc. Mas, pode ser, que em meio a esses cálculos e operações, surja na aula universitária (o que seria impensável dentro do quadro de objetivos de um curso que uma empresa ministrasse sobre a mesma matéria para seus gerentes) o debate sobre outras questões: em que medida a liberdade humana deixa-se expressar em fórmulas como $q = f (d)$? Ou, que realidades humanas são passíveis de serem tratadas por modelos? E por quê? Se “normal” significa situar-se numa determinada região de uma “curva de Gauss”, ou, pelo contrário, refere-se ao ser do homem? Qual o lugar do lucro entre os fins de uma empresa? Etc.

Ou como jocosamente dizia o outro: se ela (uma colega, autêntica professora universitária) for dar um curso de empadinha, ela vai passar os dois primeiros meses discutindo se a azeitona é natureza ou cultura.

Os exemplos poderiam multiplicar-se e aplicar-se a todas as áreas do saber (é claro que há assuntos com maior e menor potencial de abertura à totalidade, à maneira filosófica de tratamento, elemento que também originariamente se encontrava contido no conceito de Artes Liberais).

Dir-se-á que discussões como as que apontávamos não costumam ocorrer nas nossas universidades e que nossos professores – de que, em geral, mal se pode esperar competência técnica – não estão absolutamente preparados para tal diálogo. Se for realmente assim, então diremos que nossas universidades, na realidade, não o são, não realizam o espírito da Academia de Platão e, afinal de contas, em nada diferem dos cursos ministrados por bancos, empresas e indústrias.

O que caracteriza o verdadeiro professor universitário é a capacidade do participar desse diálogo (desse diálogo polifônico e aberto).

Para além de toda qualificação científica, ele deve ser capaz de reconhecer que os resultados particulares de seu próprio trabalho podem servir a uma consideração global do todo. Sem sucumbir ao diletantismo sempre pronto a fazer generalizações gratuitas, deve aprender a arte de colocar seu próprio saber a serviço de um colóquio de caráter filosófico.

Universidade e formação profissional

Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, quando se propõe uma Pedagogia das Artes Liberais, não se está, de modo algum, a descuidar a formação do profissional competente. Pois tal formação ocorre apesar de (ou, como se corrige Pieper nessas ocasiões: “apesar de”, não: “precisamente por”) não se estar diretamente a buscá-la.

Uma importante distinção feita por Pieper a propósito dessa e de outras realidades humanas é a que se dá entre “não querer que algo ocorra” e “querer que algo não ocorra”: a sentença “Quem quiser salvar sua vida perdê-la-á” não vige só no âmbito religioso, mas também em muitas outras situações do homem, onde aquilo que se busca diretamente não se obtém; há bens que só alcançamos como dons, “por assim dizer, como fruto de uma procura endereçada para outra finalidade” (PIEPER: 1964a, 25).

Assim, por exemplo, no seu estudo sobre a virtude da fortaleza, recolhe a constatação feita pela Psicologia: “nunca o eu está tão exposto como quando solícito pela sua própria proteção” (PIEPER: 1964b, 189). No que toca ao nosso caso,

Naturalmente a “habilidade” profissional do médico, do cientista, do jurista é um fruto altamente desejável do estudo acadêmico. Mas não será o caso de que tal habilidade enquanto supera o nível do medíocre e do que é possível alcançar por um aprendizado meramente técnico, dependa, de fato, de um aprofundamento de admiração e totalmente desinteressado e despreocupado dos fins práticos, no terreno puramente “teorético” do ser? Será que a utilidade prática não depende, justamente, de que a teoria seja antes realizada em toda a sua pureza? (PIEPER: 1964a, 26)

Um estudo que visa obter a utilidade prática e por isso se estrutura de modo a excluir o elemento acadêmico-teorético não consegue obter sequer o fim útil que almejava.

A excessiva especialização – e o excesso está também na recusa do caráter liberal do estudo – leva à ruína não só do espírito acadêmico, mas também da qualificação profissional especializada que se propunha.

O filosofar: abertura para a totalidade

Prosseguindo na exploração do filosofar, encontraremos outros elementos que constituem também temas centrais da Filosofia da Educação e da Antropologia Filosófica.

Um desses elementos essenciais, que pode até ser entendido como a própria definição do filosofar (PIEPER: 1963, 13) é a abertura para o todo, nota que integra também a essência do Homem (PIEPER: 1964a, 91) e a da Universidade (PIEPER: 1964a, 98).

A Universidade, como todas as grandes instituições que pautam a vida social dos homens, recolhe em si grandes experiências que o homem tem da realidade e de si mesmo, experiências que não estão a nível consciente, antes condensam-se nas instituições (PIEPER: 1963, 7 ss.).

O trabalho do filósofo, que pergunta pelo ser “em Si mesmo e em suas últimas razões”, no caso, pelo ser da Universidade, é penetrar para além da película superficial do modo fático como se apresentam as Universidades e, “para além dos resultados da estatística social”, procurar “a essência e a nota distintiva de que é Acadêmico” (PIEPER: 1964a, 16). Captar as experiências, as grandes e fundamentais experiências existenciais que se fundiram na instituição universitária e que se tornaram mais ou menos invisíveis (PIEPER: 1963, 9).

Como já indicamos, a propósito do caráter filosófico-teorético, a Universidade surge e se mantém como herdeira direta da Academia de Platão. É certo que o termo “Universidade”, por ocasião do surgimento das universidades, tem inicialmente um significado sociológico (grêmio, corporação de mestres e estudantes) e depois, muito cedo, também o significado de universitas litterarum. “Universidade” liga-se a “um termo fundamental da linguagem humana: universum” que, por sua vez, indica a profunda unidade da totalidade do real (PIEPER: 1963, 10). E é isto, em que pesem todas as naturais e profundas diferenças, que une a Universidade de hoje à medieval e à Academia de Platão.

O texto-chave que expressa a grande intuição, a grande experiência de Platão, que até hoje marca a diferença específica do ideal de Universidade, encontra-se na República, quando Platão aponta como característica fundamental do verdadeiro filósofo o permanente impulso “para alcançar o todo das coisas divinas e humanas em universal” [3].

Como dizíamos, não deve causar surpresa, ao leitor de Pieper, que o texto fundamental sobre a Universidade seja uma afirmação sobre o filosofar, e mais, uma sentença que expressa ao mesmo tempo “a própria natureza do espírito humano” (PIEPER: 1963, 12).

Quanto ao filosofar, diz Pieper: “A totalidade do ente é o objeto da teoria filosófica: por filosofar não se entende outra coisa que não a consideração do todo na realidade” (PIEPER: 1966, 71).

Uma tal formulação não deve ser mal entendida: certamente a pergunta filosófica pode versar sobre uma realidade particular e não necessariamente sobre o tema formalmente assumido da totalidade do real. Mas, “não é possível perguntar ou pensar filosoficamente sem que entre em jogo a totalidade do ser, a universalidade das coisas, ‘Deus e o mundo’” (PIEPER: 1980, 59 [4]). É esse um ponto decisivo para a distinção entre a Filosofia e as ciências particulares. Alfred North Whitehead – certamente um mestre do rigor lógico – caracterizou a Filosofia do seguinte modo: “Philosophy asks the simple question: what is it all about?” e o problema que se coloca a quem filosofa é “to conceive a complete fact” (PIEPER: 1963, 15; 76).

A formação what is it all about é particularmente feliz: por um lado sugere a totalidade; por outro, instala-se em um neutro que transcende os particulares pontos de vista das ciências, aproximadamente como em nossa gíria: “Qual é a dele?”

Se se trata, por exemplo, do problema da liberdade humana, em lugar de a estudar simplesmente sob seus aspectos psicológicos, jurídicos, é necessário (para quem filosofa) que se considere ‘em si mesma’ de todo ponto de vista pensável (PIEPER: 1963, 20).

Já quem pensa cientificamente se limita a considerar seu objeto sob um aspecto particular: “Enquanto saber especializado toda ciência está feita de formulações que dizem respeito a um aspecto determinado sob o qual ela considera o real; cada ciência existe, por assim dizer, em função dos limites que a separam das outras ciências” (PIEPER: 1963, 14-5). Não entram aí em jogo “Deus e o mundo”.

Tomemos como exemplo a distinção que Pieper indica entre o tratamento científico e o filosófico de um mesmo tema: a morte.

Na medida em que me interrogo, sob o ponto de vista fisiológico, o que acontece quando morre um homem, quer dizer, na medida em que, como cientista, eu formulo um aspecto parcial, não só não estou obrigado a falar de “Deus e o mundo”, como isso nem sequer me é permitido: seria algo claramente não-científico (PIEPER: 1964a, 96).

Já no seu próprio tratado filosófico sobre a morte, onde a pesquisa não se faz do ponto de vista clínico científico, mas é filosófica (e a Filosofia não tem um ponto de vista, mas é abrir-se para a totalidade), então o filósofo deve imbuir-se da firme vontade de tomar em consideração absolutamente todos os aspectos a seu alcance, que possam de alguma forma dizer-nos algo sobre o fenômeno da morte ou, pelo menos, não deixar de lado nada do que for capaz de dar-nos alguma informação; sejam os dados procedentes da fisiologia clínica, da patologia, ou da experiência do médico, do sacerdote ou do capelão de prisões, ou o que se possa obter da legítima tradição sagrada: enfim, a experiência humana onde quer que se encontre.

Abertura para o todo: essência do espírito

Essa “abertura para a totalidade”, esse “não deixar de considerar nada” serão constitutivos da Universidade porque o são do próprio homem.

Acadêmico significa exatamente que a verdadeira riqueza do homem consiste em compreender o ser, as coisas em si; a nobreza do homem funda-se em que ele seja capax universi, capaz de se apoderar do todo, convenire cum ommni ente (PIEPER: 1964a, 44-5).

Repitamos ainda uma vez: discutir o ser e os fins da Educação é discutir em que consiste afinal a verdadeira riqueza do homem, ou seja, aquilo que por natureza o homem está chamado a ser. Ora, um observador atento reparará que as expressões de S. Tomás de Aquino “convenire cum omni ente” e “capax universi”, recolhidas na citação anterior, são as mesmas que se empregam (em outras obras de Pieper) para caracterizar não já a Universidade mas a própria essência do espírito:”A alma espiritual – diz S. Tomás na sua pesquisa sobre a verdade – está essencialmente disposta a ‘convenire cum omni ente’ (...) o ser espiritual ‘é capaz de apreender a totalidade do real’” (PIEPER: 1980, 44). E “ser capaz de conhecimento espiritual quer dizer: viver diante e em meio à realidade total. O espírito, e só ele, é capax universi” (PIEPER: 1951, 84).

Conclusão: abertura para o todo: a chance da universidade

A conexão de tudo isto com a pergunta pelo ser da Universidade torna-se agora bastante clara: o espírito humano, ao tratar filosoficamente, universitariamente, uma questão, realiza sua potencialidade de “convenire cum omni ente”, de relacionar-se com tudo que é. E esta é, como dizíamos, a grande experiência, a grande intuição que se realiza institucionalmente na Universidade:

A reivindicação de ser, no sentido apontado, um “ensino superior”, um lugar de cultura, um lugar onde se efetua a formação daquilo que é verdadeiramente humano, – tal reivindicação, também ela, só se legitima na medida em que se dê a confrontação com o todo do real, o que permite ao espírito realizar suas virtualidades últimas (PIEPER: 1963, 17).

Não é, pois, pela justaposição ou concatenação das ciências tomadas uma a uma que se constituirá o universum que institucionalmente a Universidade deve realizar.

Pieper indica – no Cap. IV de Offenheit für das Ganze –, brevemente e sem sugerir modos concretos de realização, quatro pontos que distinguem a atitude filosófica universitária:

1) O filosofar – e nisto também a Filosofia se distingue da Ciência – não cessa de colocar questões que jamais poderão receber resposta definitiva.

2) O trabalho da ciência consiste em esclarecer, através de contínuo progresso, o que até então era desconhecido. Surgem assim, com o progresso da ciência, conhecimentos realmente novos: o sistema periódico dos elementos, a circulação do sangue, etc. Já no filosofar, não se trata de descobrir uma realidade nova, mas de ver mais claramente o que, de modo obscuro, já se sabia pelo conhecimento comum.

3) O filosofar – ao contrário da ciência – não comporta aplicação prática.

4) O poder educador da ciência versa, como já dissemos, sobre a disciplina, a objetividade e a clareza do pensamento; já a Filosofia que visa a uma apreensão intuitiva do objeto em si mesmo requer que “se saiba escutar em perfeito silêncio, que o espírito apresente aquela total ‘simplicitas’, que por nada é turbada, de receptividade ao todo e ao mundo” (PIEPER: 1963, 24-5).


Referências bibliográficas

PIEPER, J. Wahrheit der Dinge. München: Kösel, 1951.

________. Musse und Kult. München: Kösel, 1952. [Publicado em português com o título Ócio e contemplação - Ócio e culto, felicidade e contemplação pelas Edições Kírion em 2020].

________. Weistum-Dichtung-Sakrament. München, Kösel, 1954.

________. Glück und Kontemplation. München: Kösel, 1957. [Publicado em português com o título Ócio e contemplação - Ócio e culto, felicidade e contemplação pelas Edições Kírion em 2020].

________. Offenheit für das Ganze – Die Chance der Universität. Essen: Fredebeul & Koenen, 1963.

________. Zustimmung zur Welt. Eine Theorie des Festes. München: Kösel, 1964 12ª. ed.

________. Was heisst Akademisch? Zwei Versuche über die Chance der Universität heute. München: Kösel, 1964a.

________. Das Viergespann. München: Kösel, 1964b.

________. Verteidigungsrede für die Philosophie. München: Kösel, 1966.

________. Felicidad en el mirar. Folia Humanistica. No. 166, 1976, Barcelona: Glarma.

________. Was heisst Philosophieren? Vier Vorlesungen. München: Kösel, 8ª. ed., 1980, 132 pp. [Publicado em português com título Que é filosofar? pelas Edições Loyola em 2007]

________. Buchstabier-Übungen. München: Kösel, 1980a


Notas:

[1] Professor Titular aposentado da Fac. de Educação da USP. Professor do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo. Professor das Faculdades Integradas “Campos Salles”.

[2] Conferência no XII Seminário Internacional: Filosofia e Educação (set-2011), dedicado a Josef Pieper e seu conceito de universidade. Aqui trataremos apenas de aspectos complementares da correlação pieperiana: antropologia – filosofar – universidade; tendo em conta nossa outra conferência (“Universidade e filosofar em Josef Pieper: o princípio na admiração”) e as análises do tema nas demais conferências do evento.

[3] PLATÃO. A República, 486a. “Ciência das coisas divinas e humanas” é, talvez, a mais clássica das definições de Filosofia, mil vezes citada pelos antigos.

[4] A consideração citada segue-se ao exemplo: “Que é, afinal, em última análise o ensino? Alguém diz: ‘O homem não pode absolutamente ensinar nada; é como quando saramos: não foi o médico que nos curou, mas a natureza, cuja força curativa o médico somente pôs em andamento’ (será?). Vem um outro e diz: ‘Deus é quem ensina interiormente – por ocasião do ensino humano’. Vem Sócrates e diz: o professor só faz com que o educando se lembre, ‘extraia de si mesmo o saber; não há estudo, há só uma recordação’...”.

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Apologia da Matemática, de GH Hardy


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Tempo de leitura: 6 minutos. 

Texto retirado do livro Apologia da Matemática, de GH Hardy, publicado pela Editora Elementos, 2023.

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA, por Sérgio Morselli

Se eu começasse esse prefácio lhe perguntando o que é a matemática, o que faz um matemático e o que caracteriza uma matemática bela, como você responderia a essas questões?

Talvez a inclinação geral seja afirmar que a matemática é uma ciência prática; que um matemático é um cientista frio e que a matemática bela é algo muito platônico. Godfrey Harold Hardy, um matemático que viveu entre 1887-1947, teria respostas muito distintas para oferecer.

Em Apologia da Matemática, tradução do original "A mathematician's apology", Hardy faz uma defesa da matemática de seu ponto de vista pessoal assim como Sócrates fez sua defesa em Apologia de Sócrates, livro de Platão.

Segundo Hardy, um matemático seria mais semelhante a um poeta ou a um pintor, sendo a criatividade uma de suas principais características e exigência para sua profissão. Os critérios para a beleza matemática são claros e óbvios - e não há permanência no mundo para uma matemática feia.

Para entender esse livro escrito há mais de 80 anos, contudo, é preciso antes entender um pouco de filosofia da matemática.

Podemos afirmar, de forma simplificada, que existem duas filosofias da matemática: a realista, que defende a existência de universais independentes de nós, quer sejam números, propriedades ou relações; e a nominalista, que defende que os universais são apenas nomes ou etiquetas para projeções da mente, e jamais são instanciadas ou exemplificados por coisas particulares. Ressalva apenas ao conceptualismo, posição filosófica que defende que os universais são somente entes da razão, isto é, existem apenas na mente.

A matemática clássica está relacionada à filosofia realista; a matemática progressista está relacionada à filosofia nominalista.

Hardy era um matemático platônico por excelência. Seus posicionamentos justificam-se por seu entendimento filosófico da matemática. Estando a filosofia realista em desuso nos tempos recentes, Hardy tem muito que nos ensinar.

Além de falar sobre o que faz um matemático e sobre beleza na matemática, Hardy nos dará um vislumbre dessa beleza conforme comenta alguns dos mais belos teoremas já descobertos: o Teorema da Irracionalidade da Raiz de Dois; o Teorema Fundamental da Aritmética; o Teorema de Euclides, entre outros.

Também Hardy justifica o porquê a matemática permanecerá para sempre, dizendo: "A matemática permanecerá para sempre, assim como os grandes clássicos da literatura, porque ela continua a causar emoção intensa e satisfação para geração após geração mesmo depois de milhares de anos".

Quer dizer que demonstrar um Teorema é uma experiência tão satisfatória quanto ler um clássico. Ler os Elementos de Euclides hoje e demonstrar os teoremas é tão prazeroso quanto era aos gregos há mais de dois mil anos atrás. Isso justifica, inclusive, o porquê a matemática grega permaneceu mais do que a literatura grega.

Há apenas mais alguns comentários a serem feitos an- tes de liberá-lo para sua leitura. São observações:

1) Hardy defende que a matemática aplicável é apenas a mais trivial, e que a matemática superior inclusive a sua especialidade, teoria dos números não possui aplicações práticas. "A julgar a vida dos matemáticos pela aplicabilidade de seu trabalho, todos desperdiçaram suas vidas", escreveu. Tendo falecido em 1947, Hardy não viveu para observar a grande utilidade prática de sua própria área de estudo. Hoje, se você compra pela internet com segurança, é porque seus dados bancários são criptografados - e isso devemos aos matemáticos puros.

2) Hardy defende que comentar matemática é um trabalho de segunda ordem, e que os matemáticos devem fazer matemática, e não comentar o que outros matemáticos fazem. Hoje, contudo, com as modificações do ensino de matemática no sistema educacional, estudar a história da matemática recente tornou-se um trabalho de primeira importância, a fim de compreendermos o rumo do ensino dessa disciplina, e garantirmos que os novos estudantes aprendam a matemática de forma correta.

3) C. P. Snow, o prefaciador original da obra, conviveu com Hardy e justificou as afirmações de Hardy sobre a matemática ser uma disciplina de jovens como sendo essa obra "um lamento apaixonado pelos poderes criativos que se foram [do próprio Hardy] e não mais voltarão", dada sua condição de saúde prejudicada quando da escrita do livro (o livro foi escrito em 1940, e em 1939 Hardy teve um ataque cardíaco).

Esse é um livro de leitura leve e descontraída; acessível a leigos, interessante para matemáticos, e ideal para todos aqueles que buscam cultura e desejam educar-se.

SERGIO MORSELLI

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O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 3


Esta imagem da segunda metade do século IV é uma das primeiras de que se têm registro que apresenta Cristo barbado. Fica localizada nas catacumbas de Comodila, em Roma.

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Tempo de leitura: 42 min. 

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas em 2017). Este texto é a continuação desses textos aqui: 

O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 1  

O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 2.

O FIM DA ESCOLA ANTIGA

Toda investigação histórica, conquanto possa não conduzir o leitor “até nossos dias”, deve, para terminar, responder à pergunta: “Que aconteceu em seguida?” Esta história da educação na Antiguidade encerrar-se-á, naturalmente, no momento em que soubermos quando e como se operou a substituição das escolas de tipo clássico por esta educação religiosa de tipo medieval que acabei de definir.

A EDUCAÇÃO BIZANTINA

Por mais espantoso que possa parecer, existe, desde logo, todo um setor em que, para falar com propriedade, a escola antiga jamais teve fim: no Oriente grego, a educação bizantina prolonga, sem solução de continuidade, a educação clássica (1). Isto não passa, aliás, de um aspecto particular do fato fundamental: não há hiato, nem mesmo diferenciação, entre a civilização do Baixo Império romano e a alta Idade Média bizantina. 

Nada o mostra melhor que a história do ensino superior, aliás o que mais estudamos até aqui e, de resto, o mais bem documentado. A Universidade de Constantinopla, de 425 a 1453, foi sempre um centro de estudos fecundos e, por assim dizer, a viga mestra da tradição clássica. Não há dúvida que, no curso desse milenário, passou por muitas vicissitudes, por períodos de declínio e mesmo de desaparição momentânea, resgatados por brilhantes empreendimentos: foi, principalmente, reorganizada por César Barda em 863, por Constantino IX Monômaco em 1045, muito provavelmente no século XIII e, no início do XIV, pelos Paleólogos.

Viveu, modificou-se, mas sempre permaneceu fiel ao espírito que havia inspirado sua fundação, ao tempo de Teodósio II. Seu ensino permanece fixado pelas normas clássicas: na base, as artes liberais; no cume, a retórica, a filosofia e o direito. Seu papel na sociedade permanece o mesmo: formar uma elite na qual o Império possa recrutar seu corpo de funcionários. Ignorará ela sempre os estudos eclesiásticos: o fechamento da escola neoplatônica de Atenas por Justiniano em 529 [1] prende-se à luta contra o paganismo agonizante, mas não expressou, da parte do Império cristão, vontade de imprimir um sentido mais religioso ao ensino superior.

Conhecemos muito menos os graus inferiores do ensino, mas não podemos duvidar de que a tradição antiga haja também sobrevivido: veremos que certos aspectos da pedagogia helenística persistiram, no escalão primário, ao longo de todo o período turco, até os tempos modernos; quanto ao ensino secundário, permanece baseado na gramática e no comentário dos clássicos: os manuais e comentários helenísticos são sempre utilizados ou imitados.

O modelo ideal do homem culto remanesce clássico: Miguel Pselo (nascido em 1018), ao evocar, na oração fúnebre consagrada a sua mãe, as recordações de sua infância de estudante [2], informa-nos que havia decorado a Ilíada inteira, reeditando assim, depois de catorze séculos, a façanha do Nicorato de Xenofonte. Ana Comnena, aproximadamente um século mais tarde, recebeu, ela também, uma cultura cujo horizonte é o de um humanismo bem antigo: os clássicos, o grego, a retórica, Aristóteles e Platão, as quatro disciplinas matemáticas... [3]. 

Uma tradição continua liga assim os letrados helenísticos aos humanistas, aliás bem “modernos”, do tempo dos Paleólogos, como, entre tantos outros, Nicéforo Gregora († por volta de 1360) (2).

Com surpresa descobrimos que esta sociedade bizantina, tão profundamente cristã, que dá tanta importância às questões propriamente religiosas e especialmente à teologia, continuou obstinadamente fiel às tradições do humanismo antigo: tal adesão não era isenta de perigo, uma vez que a escola bizantina é tão fiel a seus mestres pagãos que periodicamente (no século IX com Leão, o matemático, no século XI com João Ítalo,... no século XV com Gemístio Pléton) vemos esboçar-se Renascenças mais ou menos paganizantes, tão suspeitas à ortodoxia cristã quanto o pôde ser a nossa própria Renascença ocidental dos séculos XV e XVI, que, aliás, como se sabe, nutriu-se abundantemente da contribuição bizantina.

Face à escola de tipo clássico existe, sem dúvida, outro foco de cultura, este de inspiração plenamente cristã: a escola monástica. Ela permanece, no decorrer da Idade Média, tal como a conhecemos em suas origens, hostil ao humanismo, ao “século” (as Vidas de santos bizantinos cuidam sempre de reduzir ao mínimo a cultura profana dos seus heróis), dominada por preocupações espirituais e primacialmente ascéticas. Em princípio ela permanece fechada, reservada aos jovens aspirantes à vida religiosa: a proibição, imposta pelo Concílio de Calcedônia, de receber, para educá-las, crianças “do mundo”, continua em vigor.

Inquieto-me apenas por constatar que foi necessário por várias vezes, em 806, em 1205 (3), renová-la: pois tinham tendência a infringi-la! De fato, seria fácil mostrar que isto realmente se verificou: assim, em 1238, vemos o imperador João III Vatatzés confiar ao arquimandrita de São Gregório de Éfeso, Nicéforo Blêmides, a educação de cinto jovens, entre os quais o futuro historiador Jorge Acrópolita, que viria a fazer uma brilhante carreira de alto funcionário laico.

Entretanto, se procuramos um centro de educação religiosa que contrabalance a educação tão profana da Universidade imperial, faz-se mister procurá-lo menos nos conventos que na instituição muito original que foi a escola patriarcal. Suas origens, ainda pouco esclarecidas, remontam talvez (4) ao século VII; ela aparece, em todos os casos, em plena luz e perfeitamente constituída no século XI. É normal nessa época opor-se aos “filósofos do senado” (porque, como no século IV, é o senado quem nomeia os professores do Estado) os “didáscalos da Grande Igreja” (ensinam à sombra da Santa Sofia) ou “do catálogo episcopal”. Nomeados pelo patriarca, constituem uma verdadeira faculdade de teologia, de cunho escriturário: encontramos professores especializados na exegese do Evangelho, do Apóstolo, do Saltério.

À diferença do ascetismo puritano dos claustros, a escola patriarcal também sofreu, profundamente, a influência do humanismo tradicional, Seu ensino não se limita apenas ao programa religioso: quer também assegurar toda uma formação de base: sua faculdade de teologia justapõe-se a uma faculdade de artes, dirigida por um “mestre (μαΐστωρ) dos retóricos” (que tem também, sob suas ordens, gramáticos) e um “mestre dos filósofos” (que não negligencia o ensino propedêutico das matemáticas). Diante do humanismo clássico da Universidade, a escola patriarcal representa um esforço em favor de um humanismo cristão, esforço muitas vezes original e assim, saboroso, mas que continua sendo, apesar de tudo, profundamente influenciado pelos modelos antigos.

Assim, em meados do século XII, vemos Nicéforo Basilaques (que se tornará professor de exegese evangélica) compor um manual de Progymnasmata, inteiramente conforme à mais pura tradição helenística. Quando muito, vemo-lo, no capítulo da etopéia, unir aos assuntos costumeiros sobre Atalanta, Dânae ou Xerxes, certo número de temas hauridos na história santa: “Palavras de Sansão quando foi cegado pelos filisteus...; de Davi encontrando seu inimigo Saul adormecido numa caverna...; da mãe de Deus quando Cristo mudou a água em vinho nas bodas de Caná [4]”.  Eustácio de Tessalônica, o grande comentador de Homero e de outros clássicos, é para os modernos uma das figuras mais representativas do humanismo bizantino: no entanto, tinha sido educado num mosteiro e foi “mestre dos retores” da escola patriarcal...

Somente com a conquista turca se configurou uma situação comparável à que conhecera, mil anos antes, o imundo ocidental. Depois de 1453, a tradição interrompeu-se: o mundo grego encontra-se colocado na mesma situação que a Gália merovíngia; por faltar escolas, o recrutamento do clero e, por isso, até a continuidade da vida cristã, acham-se em perigo. É notável que a Igreja grega tenha reagido exatamente do mesmo modo que o Concílio de Vaison, na Gália, em 529: em cada aldeia, à sombra da igreja, o padre reúne as crianças e empenha-se, o mais possível, em ensiná-las a ler — o saltério e os demais livros litúrgicos —, de modo a “preparar para si um sucessor competente” (5).

Mas, fato extraordinário, e que mostra a profundeza das raízes mergulhadas no: Oriente pela tradição antiga, em pleno século XVIII ouviam-se as criancinhas gregas cantarolar o alfabeto, tomando-o simultaneamente pelas duas extremidades, como ao tempo de Quintiliano ou de São Jerônimo; ou então a se exercitar repetindo fórmulas deste gênero:

Ἐκκλησία μολυβδοκαντηλορεκμένη... 
Ó minha igreja cinzelada e esculpida em chumbo,
que cinzelou e esculpiu em chumbo,
o filho do cinzelador e escultor em chumbo,
se eu tivesse também o filho do cinzelador e escultor em chumbo,
eu a cinzelaria e esculpiria em chumbo, mais belamente
que o filho do cinzelador e escultor em chumbo,

síntese bem reconhecível de dois exercícios característicos da escola grega clássica: o “freio de língua” e a “declinação”.

A ESCOLA MONÁSTICA DA IRLANDA

Na outra extremidade do mundo cristão, contrastando absolutamente com Bizâncio, a Irlanda apresenta-nos a situação inversa: mantendo-se fora do Império, a Irlanda céltica não chegara a conhecer a cultura clássica; por mais notável e, sob certos aspectos, evoluída que fosse sua civilização própria, a Irlanda pagã permanecera um país “bárbaro”, ignorando a civilização escrita: foi o cristianismo, pregado principalmente por São Patrício († 460-470), que lhe levou o Livro, e, dessarte, a escola. Diferentemente das demais partes do Ocidente, a Irlanda nunca conheceu outra tradição letrada a não ser a de suas escolas cristãs.

Escolas cristãs, ou, melhor dizendo, escolas monásticas, pois, como se sabe, as cristandades célticas desenvolveram-se inteiramente enquadradas pelas instituições monásticas. Como as do Egito e de alhures, são escolas estritamente religiosas, cujo ensino se dirige essencialmente a futuros monges (embora filhos de chefes fossem nelas admitidos por tolerância); funda-se, como texto de base, sobre a Sagrada Escritura, e precipuamente, sobre o Saltério. Não me compete descrever (6) aqui a vida destas escolas. (Aliás muito curiosa: as crianças, muitas vezes, eram levadas ao convento desde o nascimento; havia ali verdadeiras creches monásticas: tudo é excessivo nesse ambiente ferozmente ascético). Bastar-me-á constatar que a história da cultura irlandesa pertence inteiramente à Idade Média: da “ilha dos Santos”, onde ela progressivamente se firmou e se enriqueceu, esta cultura vai-se irradiar, enxamear e fecundar, aos poucos, o Ocidente; começa desde o século VI, pela Grã-Bretanha, onde coloniza primeiro as regiões setentrionais, a parte da Escócia que, também, se mantivera estranha à dominação romana, antes de descer, pouco a pouco, rumo ao sul, para reerguer as ruínas acumuladas pelas invasões germânicas.

AS INVASÕES DESTRUÍRAM A ESCOLA ANTIGA

Isto se deu porque na Bretanha romana, as escolas e a cultura clássica não conseguiram sobreviver às devastações causadas pela chegada dos anglo-saxões, que subverteram tão profundamente a estrutura, não só política mas também etnográfica, da ilha: toda a primeira metade do século V é, para a Grã-Bretanha, um período de violências no qual a barbárie adensa velozmente suas trevas.

O mesmo passou-se no continente: em toda parte, foi a efetivação da conquista do solo do Império pelos povos germânicos que provocou, com a ruína da vida romana, o desaparecimento das escolas antigas.

É na Gália que melhor se pode estudar o acontecimento (7). Muito antes da data fatal de 31 de dezembro de 406, data da grande invasão, a partir da qual o Império nunca mais conseguirá restabelecer seu poder sobre o conjunto da Gália, a estrutura do sistema clássico já se achava abalada. A partir de 276, quando a fronteira do Reno foi violada pela primeira vez, as incursões dos bárbaros multiplicaram-se, devastando a Gália inteira e fazendo-a viver longos períodos de insegurança: as cidades condensam-se e fecham-se no estreito recinto de suas novas muralhas, os ricos latifundiários fortificam-se em suas villae, que se convertem em burgi.

Sem dúvida, estas provações e transformações não bastaram para interromper a tradição cultural, mas minam a vitalidade das instituições escolares, que não podem, sem prejuízo, suportar o desaparecimento da vida brilhante das cidades, a cujo crescimento elas haviam estado tão intimamente ligadas. De outro lado, na medida em que estas instituições e, com elas, toda a educação clássica, haviam passado gradativamente do setor privado ao domínio público, elas dependiam, para seu bom funcionamento, da intervenção e dos subsídios do Estado e das municipalidades: elas estavam portanto unidas à sorte da estrutura política do Império.

Não puderam elas sobreviver ao desmoronamento de seu poder. Pode-se dizer, com bastante certeza, que a geração educada por Ausônio († 395) foi a última que ainda chegou a conhecer o sistema normal das escolas romanas com seus três graus: o magister ludi, o gramático, o retor. Este sistema desapareceu na geração seguinte, devido à grande invasão e às catástrofes que assinalaram o início do século V: o neto de Ausônio, Paulino de Pela, dá testemunho disso, pelo menos no que concerne à região de Marselha, onde se refugiou por volta de 422 [5].

Todavia, embora as escolas oficiais, regularmente organizadas sob a égide das municipalidades, tenham desaparecido, a educação clássica subsiste ainda durante um século, pois a classe “senatorial” dos grandes latifundiários permanece profundamente apegada a ela; na falta de escolas públicas, há sempre mestres que ensinam particularmente, reunindo alguns alunos em sua própria casa: é assim que Sidônio Apolinário (nascido em Lyon por volta de 430) recorda a seu antigo condiscípulo Probo seus estudos comuns, possivelmente em Arles, na casa de seu mestre Eusébio, inter eusebianos lares [6]. Pouco a pouco, porém, a clientela torna-se mais rara: o historiador é levado a se perguntar se tais “professores”, que aparecem cá e lá na obra do mesmo Sidônio, não são sobretudo preceptores ligados ao serviço de uma grande família (8).

A sorte do ensino de tipo clássico acha-se doravante ligada à existência de um modo de vida ainda antigo, no seio da aristocracia galo-romana. Mas esta, pelo contato com seus novos mestres germânicos, barbariza-se rapidamente: quando ainda vivia Sidônio, já existiam “colaboradores” que admiravam os bárbaros e até mesmo passavam a falar germânico... [7]. Talvez a vida romana se tenha mantido por mais tempo em certas regiões como a Auvérnia de Sidônio e sobretudo a Aquitânia, menos convulsionada pelas invasões e menos diretamente submetida aos reis bárbaros. Pouco a pouco, porém, também os últimos focos da cultura antiga se extinguem e, no século VI, não existe nenhum outro ensino a não ser aquele que doravante a Igreja se esforça por patrocinar.

As coisas passaram-se de modo muito semelhante alhures: as províncias que margeiam o Danúbio e as do interior, abandonadas desde o fim do século IV à ocupação dos “federados” germânicos, e nas quais tantas raças e tribos diferentes se sucedem, ficaram profundamente desorganizadas a partir do início do século V, e a vida romana foi ali, como na Gália, sufocada pela barbárie, consoante nos damos conta, por exemplo, graças à Vida de São Severino († 482), de Eugípio. Igualmente na Espanha, a invasão e ocupação germânica, que começam com a chegada dos suevos, álanos e vândalos, em 409, abatem a romanidade e a escola: a cultura intelectual da Espanha visigótica será inteiramente eclesiástica (9).

RESSALVADA A ÁFRICA

A educação antiga sobreviveu ainda, por certo tempo, unicamente em duas regiões: na África vândala e na Itália. Quaisquer que tenham sido as violências da conquista, é certo que o reino africano, organizado por Genserico, não merece a má reputação que lhe acarretou, junto a cronistas eclesiásticos, sua política de perseguição ariana contra os católicos (10). Em particular, do ponto de vista intelectual, temos a certeza de que Cartago, pelo menos, conheceu, sob a “paz vândala”, uma atividade intensa, testemunhada principalmente pela compilação da Antologia latina: por ela conhecemos a existência de um meio professoral inteiramente conforme à tradição clássica. Logo depois das vitórias de Belisário, o imperador Justiniano preocupa-se em devolver a este ensino seu caráter oficial: uma constituição de 533-534 prevê a manutenção, em Cartago, de dois gramáticos e de dois retores [8].

Pode-se, entretanto, notar que esse corpo docente é por demais reduzido, e observar, por outro lado, que Justiniano nada faz fora de Cartago. A ocupação do solo africano na época bizantina foi, comparativamente à do Alto Império, bem mais lenta; já a dominação vândala tivera de contemporizar-se com o surto de independência das populações berberes do interior. Sem dúvida, alguns vestígios da romanidade (o cristianismo, o uso do latim, certas tradições municipais) parecem ter sobrevivido em Marrocos e Orã, até o momento da invasão árabe (11). Contudo, é visível que a existência da tradição escolar clássica tornou-se bastante precária, e só se manteve verdadeiramente em torno da capital, Cartago. Pelo menos aí, ela se conservou até a queda do domínio bizantino: a tomada de Cartago (695-697) assinala seu fim; se até em pleno século XI o cristianismo e, com ele, o uso do latim, seu uso escrito, e portanto também o seu ensino, lograram manter-se em África, a cultura destes últimos “Roumi” terá, porém, essência estritamente religiosa (12).

Esta relativamente prolongada sobrevivência do classicismo africano não deixa de ter importância para a história da cultura no Ocidente: do século V ao século VII, a África pode exportar, e de fato exportou, muitos letrados, e com eles preciosos manuscritos, para a Gália do sul, e mais ainda para a Espanha ou para a Itália meridional, e assim contribuiu para preparar as reservas de que devia nutrir-se mais tarde o humanismo medieval.

E SOBRETUDO A ITÁLIA

Muito mais importante ainda foi o papel desempenhado pela Itália: foi sobretudo neste país que a escola antiga teve seu crepúsculo mais prolongado e onde pode melhor preparar inconscientemente, o caminho para O futuro. Foi na Itália, com efeito, que a tradição clássica desenvolvera raízes mais profundas: estas puderam resistir aos danos das invasões que, a partir de 401, não lhe foram poupadas. Ali, porém, a ocupação germânica não acarretou o desaparecimento da vida antiga: ainda mais que a África vândala, a Itália pode continuar vivendo segundo suas normas tradicionais, sob a dominação dos ostrogodos e, em particular, durante o longo reinado de seu primeiro rei, o grande Teodorico (493-526): este reinou verdadeiramente “para o bem de Roma” (bono Romae) [9], conforme a legenda dos sinetes dos tijolos com que fizera restaurar os monumentos da velha capital.

Iletrado embora, Teodorico compreendeu a grandeza da cultura clássica: como Estilicão, quis que sua própria filha, Amalaswinthe, recebesse a mais completa educação. Data de seu tempo o último grande reflorescer das letras e do pensamento latinos, que conheceram então um verdadeiro renascimento — cujos frutos serão devidamente explorados pela Idade Média —, graças aos grandes trabalhadores (cujos serviços, aliás, Teodorico bem soube utilizar) que foram Boécio e Cassiodoro.

Graças a este último, nomeado magister officiorum, chefe da chancelaria, em 523, Teodorico favoreceu os estudos [10], manteve em função as cátedras do Estado, que atraíam a Roma os estudantes provinciais; nomeado prefeito do pretório em 533, após a morte do grande rei, pela regente Amalaswinthe, Cassiodoro fez com que o subsídio dos professores, por um momento negligenciado, fosse assegurado com regularidade [11] e o imperador Justiniano, com sua Pragmatica Sanction, reorganizando a Itália após a reconquista (535), não pode senão determinar que se adotasse o dos tempos de Teodorico [12]

Constatamos assim que a vida escolar antiga perpetuou-se em Roma até meados do século VI: há sempre, remunerados pelo Estado, professores de gramática, de retórica, de direito e de medicina [13]. Conhecemos ainda o nome de um dos últimos titulares da cátedra de eloquência, inaugurada outrora por Quintiliano, um certo Félix, que vemos, em 534, resenhar o texto de Marciano Capela (13). Ensinam sempre em salas dispostas em torno do fórum de Trajano [14], que são também sede de recitações públicas [15], pois os costumes literários da Roma imperial sobreviveram tanto quanto suas escolas.

Roma conserva sempre seu primado no tocante ao ensino universitário [16], mas a vida escolar não é menos ativa nas demais grandes cidades da Itália. Em Milão, o arlesiano Enódio, futuro bispo de Pavia (473/4 — 521), faz-nos conhecer a escola, auditorium, do gramático e retor Deutério [17]; seus alunos perlustram o programa habitual dos estudos clássicos: latim, grego, gramática e retórica [18] e “declamam” como nos belos dias de Sêneca o Pai, sobre os mesmos eternos assuntos de controvérsias e suasórias: o filho ingrato, o tiranicídio, Diomedes ou Tétis [19]. O próprio Enódio, apesar de ter-se tornado advogado [20], não desdenha de compor modelos corrigidos, suas Dictiones, para a edificação dos jovens amigos cujos estudos orienta.

Como Milão, Ravena, onde um dos discípulos de Enódio, o futuro poeta Arator, fará seus estudos de direito [21]: as escolas aí são sempre florescentes, até uns trinta anos mais tarde, como podemos julgar pela cultura de Fortunato, que também aí vem estudar, pouco depois de 552 (14).

A INVASÃO LOMBARDA

Todavia, a prosperidade da Itália havia sido abalada pela longa e áspera resistência gótica à reconquista bizantina (535-555): foi definitivamente destruída pela invasão do mais tardio dentre os povos germânicos, os lombardos; estes entram na Itália em 568, conquistam a planície do Po, infiltram-se ao longo da cordilheira apenina, atingindo Benevente em 572. Com eles, a península conheceu horrores análogos aos que a Gália e o resto do Ocidente padeceram 150 anos mais cedo. É então que a barbárie se estende sobre a Itália; durante quase mais de um século, do fim do século VI ao fim do século VII, este país, por tanto tempo guardião da tradição clássica, vê o nível intelectual da cultura degradar-se até um nível quase que merovíngio. Este corte tão nítido marca o momento em que se efetuou a substituição e em que a educação se torna, ali onde dela subsiste algo, fundamentalmente religiosa.

Por todo tempo em que tinha persistido a tradição clássica, a Itália do século VI tinha apresentado o mesmo dualismo rigoroso que o Baixo Império ou Bizâncio, entre uma educação profana, fiel ao humanismo herdado do paganismo e uma educação religiosa, ascética, em violenta ruptura com a precedente, e ministrada, não ainda em verdadeiras escolas, mas no seio do clero ou dos mosteiros.

Enódio, Cassiodoro, São Gregório Magno, por sua dupla carreira, primeiramente profana, depois eclesiástica, ilustram este antagonismo, cada um de seu modo. Desde que ingressa nas Ordens (é então um simples diácono do bispo Epifânio de Pavia, seu mestre espiritual, ao qual deverá suceder), Enódio rompe, solenemente, com as pompas da eloquência profana [22]; recusa-se, com horror, a ocupar-se, como fizera com muitos outros, dos estudos literários de um de seus jovens sobrinhos, cuja mãe achara bom ordenar clérigo: “Envergonhar-me-ia, diz ele, de dar uma instrução secular a um homem da Igreja! [23] (15)”

O próprio Cassiodoro, que vimos tão preocupado em manter a atividade regular das cátedras profanas de Roma, inquieta-se por ver os estudos sagrados carecerem tão completamente de instituições apropriadas. Em 534, ele se associa à curiosa tentativa do papa Agapito, de criar na própria Roma, à sombra de uma biblioteca erudita, algo análogo às escolas cristãs de Nisibe (16). Alguns anos mais tarde, afastado das ocupações e do mundo, funda em seu domínio de Vivário, no canto mais recôndito da Itália, sobre a costa jônia da Calábria, um duplo mosteiro, onde instala a mais rica biblioteca, toda uma equipe de tradutores e de copistas, tentando criar um centro de estudos propriamente religiosos, votados ao estudo da Bíblia, que aproveitará a contribuição do humanismo tradicional numa síntese cristã: o plano de seus livros de Institutiones retrata o quadro desta notável tentativa de cultura monástica (17).

Mais radical, já menos estreitamente vinculado à cultura antiga, São Gregório o Grande, depois de ter-se convertido à vocação monástica, rompe com todos os elos com a cultura clássica: nascido por volta de 540, pôde ele ainda receber em Roma uma educação cujos quadros são ainda os do humanismo tradicional [24]; mas sob uma forma já esvaziada de substância pela decadência... Deste humanismo, São Gregório ignora, sem qualquer dúvida, os valores subjacentes: além disso, como já vimos, sua cultura religiosa está em violento conflito com ele. Aliás, foi em seu mosteiro do Clivus Scauri que se iniciou nesta cultura, pelos cuidados dos primeiros abades que colocou à frente de sua fundação — Hilário e Maximiano [25].

Chegam os tenebrosos dias da conquista lombarda; a escola profana, e com ela a tradição antiga, desmorona-se. A Igreja, única força organizada, sobrevive à tormenta, salvando consigo a educação religiosa. Os centros de ensino que subsistem são, primeira e essencialmente, os conventos: na Calábria, Vivário (apesar de que, morto Cassiodoro, seu papel pareça ter sido bastante passivo: conservou e depois transmitiu seus tesouros — o que já é muito), em Nápoles o mosteiro de Pizzofalcone, ilustrado outrora por Eugípio, mais ao norte, São Vicente do Volturno, Monte Cassino, o convento de Bobbio, que, em 612, São Colombano, procedente da Grã-Bretanha, viera fundar, uma vez que a irradiação do monaquismo céltico desdobra-se doravante sobre o continente

Com as escolas monásticas, como já anteriormente na Gália, desenvolvem-se as escolas episcopais: apenas um ensino mostra-se vivo na Roma decadente do tempo de São Gregório, a saber, aquele que, como na Gália, se deve ministrar ao coral dos jovens clérigos, a esta schola cantorum, por cuja reorganização a tradição glorifica o grande papa. Na Itália, por toda parte encontramos vestígios de tal ensino eclesiástico, inspirado pelo bispo, ministrado à sombra mesma de sua catedral e evidentemente destinado a promover, antes de tudo, o recrutamento e a formação imediata do clero: em 678-679, um bispo de Fiesole informa ter sido assim educado na igreja de Arezzo: per plures annons in ecclesia Sancti Donati nutritus et litteras edoctus sum [26].

Importa, porém, advertir que a passagem da Itália antiga à Itália medieval não se efetuou de modo tão flagrante quanto a mudança que observamos alhures. Por mais atroz que tenha sido a barbárie lombarda, ela jamais interrompeu inteiramente a tradição literária. Primeiro, porque nunca recobriu toda a península: protegidas pela frota bizantina, as regiões costeiras resistiram durante muito tempo: Ravena até 751; Nápoles, Salerno, o extremo sul e, sobretudo, Roma, jamais foram verdadeiramente barbarizadas: algo da continuidade bizantina se pode observar nestes centros privilegiados.

Quando a situação se estabiliza, no fim de um século, quando, timidamente, a Corte lombarda de Pavia tenta restabelecer a tradição letrada deixada por Teodorico, o rei Cunincperto (678-700) arranja um “magister”, Estevão, para exercitar-se, canhestramente sem dúvida, no papel de poeta áulico [27]; em 680, o mesmo rei oferece uma bengala tauxiada de ouro e prata ao gramático Félix [28]. Esboça-se já uma renascença lombarda (18).

Para que ela se tornasse possível, não é sequer necessário supor que uma tênue corrente de tradição escolar se haja perpetuado através do século de ferro: a educação doméstica, familiar, bastou para transmitir através de algumas gerações um mínimo de conhecimentos e de amor às letras. Assim, é-nos revelado que antes de ter sido levado à vida religiosa, Atálio de Bobbio, o sucessor de São Columbano, tinha sido instruído nas letras profanas pelos cuidados de seu próprio pai, na Borgonha, é verdade, e não na Itália [29], Algo desta transmissão no interior da família perpetuar-se-á ainda: o próprio gramático Félix de Pavia formou nas letras seu sobrinho, Flaviano, que viria a ser mais tarde o mestre do grande Paulo Diácono [30].

PRELÚDIOS DO RENASCIMENTO CAROLÍNGIO

Mas estas circunstâncias que colocam a Itália numa situação particular em relação ao resto do Ocidente, não somente tornaram possível o renascimento lombardo mas facilitaram também o desenvolvimento, o progresso contínuo e tão notável! da cultura e do ensino das escolas britânicas.

Desde as primeiras escolas da Irlanda até as dos Scoti e dos anglo-saxões do tempo de Carlos Magno, o progresso é continuo. Não é devido unicamente a uma elaboração original. Esse progresso foi nutrido por uma contribuição, quase contínua, vinda das regiões outrora romanas, onde algo ainda subsistia dos tesouros acumulados pelo classicismo,

As primeiras gerações de clérigos irlandeses receberam assim, indubitavelmente, a princípio reforço da Bretanha e da Gália; mais tarde, sobretudo — a coisa foi curiosamente observada — da Espanha. Mas o papel da Itália na elaboração desta primeira cultura medieval, pré-carolíngia, foi capital: aparece em primeiro plano desde a célebre missão enviada por São Gregório Magno aos ingleses, em 597, e chefiada por Santo Agostinho, primeiro arcebispo de Cantuária, que teve, entre seus sucessores, Teodoro de Tarso (669-690), um grego. Nesta data, Roma é uma província bizantina. Pode-se imaginar sem dificuldades qual campo de influências, qual contribuição de cultura, um tal fato representa. Desde então um contato direto estabelece-se entre a Itália e a Grã-Bretanha; peregrinos circulam incessantemente de uma a outra e carregam consigo, muitas vezes, livros, manuscritos antigos ou recentes (penso nos livros litúrgicos) que as bibliotecas da velha Roma, apesar de tantas pilhagens, conservavam em abundância. Assim, Benedito Biscop, fundador das abadias de Wearmouth e de Jarrow, visitou Roma nada menos de seis vezes na segunda metade do século VII, dali levando, em cada viagem, numerosos volumes [31]

O longo crepúsculo italiano ligou-se, pois, à prematura aurora que se dealbara além-Mancha, O futuro da civilização ocidental foi determinado por esta conjunção: os Scoti e seus alunos ou êmulos anglo-saxões não foram abandonados apenas às suas forças; não tiveram de reinventar a gramática, as ciências, de redescobrir o grego: tudo isto, e mais ainda, o tesouro maravilhoso dos clássicos, puderam recebê-lo desde que sua curiosidade e sua maturidade os tornaram disso dignos, das mãos dos mediterraneanos.

Por esta dupla via, as benesses da tradição clássica puderam assim sobreviver à destruição de sua Forma e ser reinvestidas na nova síntese que representa a cultura medieval de inspiração cristã. Esta começa a esboçar sua Forma original a partir da renascença carolíngia, e foi realmente da confluência das contribuições lombardas e insulares que esta renascença surgiu: o encontro, na côrte de Carlos Magno, do inglês Alcuíno e do lombardo Paulo Diácono (e, com o primeiro, os Scoti Clemente, José, Dungal; com o segundo, Pedro de Pisa, Paulino de Aquiléia) assume, a este respeito, o valor de um símbolo.

Disto decorre um dos traços dominantes da cristandade medieval, diríamos melhor, de toda a civilização ocidental: por mais original que ela seja por sua primitiva inspiração, por mais estranha que ela se suponha, ou se julgue, ao espírito do humanismo antigo, ela não lhe é radicalmente heterogênea. Ela não representa, na história das civilizações, um recomeço absoluto, uma nova partida do zero. Ela foi, desde sua origem, e, depois, tão continuamente alimentada por suas fontes antigas que nos aparece, antes de tudo, como uma Renascença. Assim se reatou, para além da ruptura bárbara, uma certa continuidade, na matéria, senão na forma, que faz do homem ocidental um herdeiro dos Clássicos.


Notas:

[1] MALALAS, Crônica (ed. Dindorf, t. XV da Bizantina de Bonn), XVIII, 151. 

[2] Miguel Pselo, Discursos Fúnebres (ed. K. N. Sathas, Bibliotheca Graeca medii aevi, t. V), E, 14. 

[3] Ana Comnene, Alexíada (ed. Leib), 1, p. 3.

[4] Rhetores Graeci (ed. Spengel), I, 566 s.; 480; 517; 499.

[5] Paulino de Pela, Eucharisticon, 68-69.  

[6] Simônio APOLINÁRIO, Cartas, IV, 1, 3. 

[7] Idem, V, 5; IV, 20.

[8] Código Justiniano, I, 27, 1, 42.

[9] E. DIEHL, Inscriptiones Latinae Christiane Veteres, CG.

[10] Cassiodoro, Cartas Variadas, 1, 39. 

[11] Idem, IX, 21. 

[12] JUSTINIANO, Novelas, Ap. 7, 22. 

[13] Ibidem.  

[14] São Venâncio Fortunato, Poemas, VIII, 8, 26.

[15] Idem, III, 18, 8. 

[16] Enódio de Pavia., Cartas, V, 9; VI, 33; IX, 2.

[17] Declamações, VII; IX-X; Poemas, 1, 2; II, 104. 

[18] Cartas, I, 5, 10. 

[19] Declamações, XVII-XVIII; XXIV-XXV.

[20] Cartas, II, 27, 4.

[21] Cassiodoro, Cartas Variadas, VIII, 12.

[22] Enódio de Pavia, Cartas, III, 24; IX, 1. 

[23] Idem, IX, 9.  

[24] São Gregório de Tours, História dos Francos, X, 1; Paulo Diacro, Vida de São Gregório o Grande, 2. 

[25] João Diacro, Vida de São Gregório o Grande, I, 6. 

[26] C. Troya, Codice diplomatico longobardo (ed. Schiaparelli, t. 1, p. 71, 1, 29-30, Fonti per la storia d'Italia, t. 62), III, 201-2. 

[27] Monumenta: Germaniae Historica, Antiquitates, Poetae Latini medii aevi, IV, 731, 

[28] Pauto Diacro, História dos Lombardos, VI, 7. 

[29] Acta Sanctorum Mart.../sic pri ed, franc./, II, 42. 

[30] Paulo Diacro, História dos Lombardos, loc. cit.

[31] São Beda o Venerável, História dos Abades de Wearmouth e Jarrow (Migne, Patrologie Latine, t. 94), 716 A; 717 B, 720 B, 721 C.


Notas Complementares

(1) Sobre a educação bizantina e, particularmente, o ensino superior: F. FucHs, Die höheren Schulen von Konstantinopel im Mittelalter, Byzantinisches Archiv (supl. da Byzantinische Zeitschrift), VII, Leipzig, 1926; J. M. Hussey, Church and learning in the byzantine Empire, 867-1185, Oxford-Londres, 1937; L. BRÉHIER, L'Enseignement classique et l'Enseignement religieux à Byzance, ap. Revue d'Histoire et de Philosophie religieuses, XXI (1941), ps. 34-69 (enquanto se espera a publicação dos tomos W-III de seu Monde Byzantin, na coleção “L"Évolution de "Humanité”).

Há um ponto sobre o qual convém chamar a atenção dos bizantinistas: estes salientam de bom grado o paralelismo entre o programa dos altos estudos bizantinos e o da escola filosófica neo-platônica (cf.: O. SCHISSEL VON FLESCHENBERG, Marinos von Neapolis und die neuplatonischen Tugendgrade, Atenas, 1928). Isto significa que a cultura filosófica se tornou, daí por diante, a regra, ou melhor, que Platão, tenha, tardiamente, vencido Isócrates? Ou a filosofia continua sendo um coroamento reservado à elite? Seria preciso examinar como se tornou, na época bizantina, a tensão dialética que mostrei tão profunda na época helenística e romana, entre os dois pólos da cultura clássica.

Sobre o ensino elementar, ainda mal conhecido, cf. algumas indicações ap. F. DVORNIK, Les Légendes de Constantin et de Méthode vues de Byzance, Byzantinoslavica, Supl., I, Praga, 1933, ps. 25-33. Excelente exposição de G. BUCKLER, Byzantine Education, em N, H. BAYNES e H. ST. L. B. Moss, Byzantium, an Introduction to East Roman Civilization, Oxford, 1948, p. 200-220; pelo contrário, deve ser utilizado com precaução, o livro pouco crítico de PH. Koukoulés, Vie et civilisation byzantines (em grego), tomo I, fascículo 1, Atenas, 1948 (Collection de l'Institut français d'Athènes), tomo 10, ps. 35-137.

(2) Sobre o humanismo na época dos Paleólogos, cf. R. Guilland, Essai sur Nicéphone Grégoras, l'Homme et l'Oeuvre, Paris, 1926, ps. 55 e segs, 111 e segs.

(3) Proibição de receber “crianças do século” nos mosteiros de Bizâncio: cf. os fatos apresentados por L. BRÉHIER, art. citado, ap. Revue d'Histoire et de Philosophie religieuses, 1941, ps. 63-64.

(4) Origens da escola patriarcal de Constantinopla: cf. sempre BRÉHIER, ibid., ps. 42-44, que remete ao testemunho de ANANIAS DE SCHIRAG (cerca de 600-650), Autobiographie, trad. CONYBEARE, ap. Byzantinische Zeitsherift, VI (1897), ps. 572-573.

(5) Sobre a escola grega depois de 1493: G. CHASSIOTIS, L'Instruction publique chez les Grecs depuis la prise de Constantinople par les Turcs jusqu'à nos jours, Paris, 1881, ps. 14 e segs. Notar-se-á que, ao contrário do Ocidente, o ensino superior jamais desapareceu no Oriente, porquanto, logo após a tomada de Constantinopla, Maomé II restabelecia o patriarcado em beneficio de Genádio Escolário, o qual se apressava em reconstituir, no Phanar, a escola patriarcal: CHASSIOTIS, Op. Cit., p. 4; 34-42. Sobre os exercícios escolares de tipo sempre antigo, o mesmo remete a F. POUQUEVILLE, Voyage de Morée, Paris, 1805, ps. 267-270,

(6) Sobre La Vie scolaire dans les monastêres d'Irlande aux V-VlIle siècles, que me baste citar o memorial de meu aluno A, LORCIN, ap. Revue du Moyen-Áge latin, t. I, 1945, ps. 221-236, não obstante as criticas que lhe foram dirigidas por P. GROSJEAN, ap. Analecta Bollandiana, t. LXIV (1946), p. 323 (a exposição de J. RYAN, Irish Monasticism, Origins and early development, Dublin, 1931, ps. 200-216, 360-383, à qual nos remete o P. Grosjean, é bastante falaciosa),

(7) O fim das escolas antigas na Gália: o trabalho básico continua sendo a tese, já citada no capítulo precedente (n. 10) de M. ROGER, L'Enseignement des Lettres classiques d'Ausone à Alcuin, introduction à l'Histoire des écoles carolingiennes, Paris, 1905.

(8) Os professores contemporâneos de Sidônio Apolinário seriam algo mais do que  preceptores privados? Cf. A. LOYEN, Sidoine Apollinaire et l'esprit précieux en Gaule, Paris, 1943, p. 93.

(9) Sobre o fim da romanidade nas províncias danubianas, cf. A. ALFÔLDI, Der Untergang der Römerherrschaft in Ponnorien, II (Ungarische Bibliothek, I R., 12), Berlim, 1926, p. 575.

Sobre as escolas na Espanha visigótica: R. MENÉNDEZ PIDAL, Historia de España, t. III, España Visigoda, Madrid, 1940, ps. 343 (M. TORRES), 391, 397 (n. 88), 398, 416, 418-423 (J. PÉREZ DE URBEL).

(10) Sobre la Paix Vandale, cf. o artigo, animado sem dúvida por algum exagêro polêmico, de C. SAUMAGNE, ap, Revue Tunisienne, 1930, e o livro, êste também em certos pontos levado até o paradoxo, de E. GAUTIER, Genséric, roi des Vandales, Paris, 1932.

Sobre o meio intelectual e universitário de Cartago na época dos vândalos, cf. os materiais recolhidos por A. AUDOLLENT, Carthage romaime, Paris, 1901, ps. 749-766.

(11) Sobrevivências do cristianismo ce da latinidade em Marrocos e em Orã: J. CARCOPINO, Le Maroc antique, Paris, 1943, ps. 288-301.

(12) Sur les derniers temps du christianisme en Afrique, cf. sob este título o excelente memorial de W. SESTON, ap. langes d'Archéologie et d'Histoire, LIII (1936), ps. 101-124, bem como: C. COURTOIS, Grégoire VII et l'Afrique du Nord, remarques sur les communautés chrétiennes d'Afrique au Xle siècle, ap. Revue historique, CKCV (1943), ps. 97-122, 193-226.

(13). As últimas escolas clássicas de Roma: sobre Félix, cronologicamente o último dos titulares conhecidos da cadeira oficial de retórica em Roma, cf. meu artigo Autour de la Bibliotheque du pape Agapit, ap. Mélanges d'Archéologie et d'Histoire, XLVIII (1931), ps. 157-165; já o encontramos em recesso no ano de 534; e, de maneira geral, F. ERMINI, La Scuola in Roma nel VI secolo, ap. Archivum Romanicum, 1934, ps. 143-154.

(14) Estudos de Fortunato em Ravena: of. D. TARDI, Fortunat, Paris, 1928, p. 62.

(15) A mesma oposição entre cultura clássica e cultura cristã subsiste igualmente na Gália pelo tempo em que ali sobrevive algo da tradição antiga: cf. por volta de 408, a sátira de SÃO PAULINO (de Béziers?), Ad Salmonem (CSEL., XVI, 1), v. 76-79,

(16) Sobre o centro de altos estudos religiosos que o papa Agapito e Cassiodoro tentaram instaurar em Roma, cf. ainda o memorial citado acima, n. 13, ps. 124 e segs.

(17) Sobre a obra de Cassiodoro, cf. em primeiro lugar, P. COURCELLE, Les Lettres grecques en Occident, de Macrobe à Cassiodore, Paris, 1943, ps. 313-388; cf. também A. VAN DE VYVER, Cassiodore et son oeuvre, ap. Speculum, VI (1931), ps. 244-292; Les Institutiones de Cassiodore et sa fondation à Vivarium, ap. Revue Bénédictine, LXIII (1941), ps. 59-88.

(18) Sobre a “renascença” lombarda, cf. A. VISCARDI, na Storia Letteraria d'Italia do editor VALLARDI, t. I, Le Origini, Milão, 1939, pass., e, principalmente: R. BEZZOLA, Les origines et la Formation de la littérature courtoise en Occident (500-1200), I, La Tradition impériale de la fin de Pantiquité au Xle siêcle (BEHE., fasc. 286), ps. 24-33. O autor só descreve um aspecto dela, mas o mais curioso: mostra-nos ele que um tênue fio de tradição escolar profana se manteve, em suma, ao longo das idades obscuras, ligando assim a cultura antiga ao setor laico da cultura medieval, que se não poderia, sem excesso, limitar apenas ao veio religioso.

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