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Notas sobre a Filosofia da Natureza em Aristóteles

Aristóteles em sua escrivaninha
- 1457 - Autor Desconhecido

Baseadas no Comentário de S. Tomás de Aquino à Física de Aristóteles


LIVRO PRIMEIRO DA FÍSICA

1. A determinação dos princípios da natureza segundo os antigos filósofos.

Aristóteles inicia o Livro I da Física fazendo um apanhado das principais colocações que os antigos filósofos fizeram sobre os princípios da natureza. Alguns disseram que estes princípios seriam o ar, a água, o fogo, um princípio indeterminado, os átomos ou ainda outros. Em todos estes casos, Aristóteles afirma que a consideração destes filósofos não ultrapassou a abordagem da causa material.

Houve ainda outros filósofos que falaram da natureza de um modo não natural, como Parmênides, que negou a multiplicidade dos entes e a existência das mutações na natureza, afirmando que tratavam-se de ilusões e que só havia na realidade um único ser imóvel e eterno. Quem fala assim, diz Aristóteles, na verdade nega a natureza pois ela é, conforme afirma mais adiante o Filósofo, um princípio intrínseco de movimento.

2. Determinação dos primeiros princípios da natureza, segundo Aristóteles.

Em seguida Aristóteles passa à consideração dos princípios da natureza, entendidos estes em sua abordagem mais fundamental possível. Sejam quais forem os primeiros princípios da natureza, os quais terão que ser também os primeiros princípios do movimento, terão que possuir as seguintes características:

1. Que não sejam a partir de outros;

2. que não sejam a partir um do outro;

3. que todas as coisas sejam a partir deles.

Ora, qualquer coisa que se torna a partir de outra coisa o faz a partir da negação desta coisa. Neste sentido, dizemos que o branco se torna branco a partir do não branco. Todas as coisas da natureza, portanto, ou são contrários ou se tornam a partir de contrários. Temos assim dois princípios necessários em qualquer mutação: o término para o qual tende o movimento e o oposto deste término a partir do qual se iniciou o movimento. A natureza, pois, supondo o movimento, pressupõe também, como princípios, a existência de dois contrários entre os quais se realiza o movimento.

Não basta, porém, a existência de dois contrários para explicar o movimento. É necessário também tomar como um terceiro princípio o sujeito destes contrários, pois não é o próprio branco que se torna negro, mas alguma coisa branca que deixa de ser branca e se torna negra. Os contrários transformam um terceiro, que é o sujeito de ambos, e este sujeito é, assim, o terceiro princípio que deve ser postulado para explicar o movimento.

Desta maneira, todas as gerações das coisas naturais podem ser explicadas colocando-se a existência de um princípio material e de dois princípios formais. Estes princípios podem ser chamados de

Princípio material:

  • o sujeito

Princípios formais:

  • o término
  • o oposto do término.

Ou, ainda melhor,

Princípio material:

  • o sujeito

Princípios formais:

  • a forma
  • a privação da forma

3. A matéria, a forma e a privação da forma como princípios da natureza.

Deve-se considerar, porém, a hipótese que em algumas transformações da natureza pode ocorrer não apenas uma passagem de uma forma para a privação desta forma ou vice-versa, conservando-se o sujeito, mas também que o próprio sujeito mude e se torne outro sujeito.

Isto, porém, só poderá ser explicado se se admitir que haja uma composição de sujeito e forma naquele sujeito, e que haja um sujeito absolutamente primeiro na natureza. Este sujeito absolutamente primeiro é chamado de matéria primeira. Ele é pura indeterminação, mera potência ao ser em ato, que não pode existir por si só, necessitando ser determinado por uma forma para poder existir efetivamente. Ele deve entrar, porém, necessariamente na composição de todos os entes naturais. Desta maneira, os princípios últimos da natureza são os seguintes:

  • a matéria primeira,
  • a forma,
  • a privação da forma.

A matéria primeira, não existindo separadamente sem estar em composição com a forma, não pode ser conhecida em si mesma. Apenas podemos inferir a sua natureza indiretamente por analogia.

4. Substância e acidente.

Chama-se com o nome de substância ao ente que em primeiro lugar entra efetivamente na existência, que por primeiro e por si mesmo existe em ato, e não apenas em potência como a matéria primeira.

Por este motivo chama-se também de forma substancial à primeira forma que entra em composição diretamente com a matéria primeira para dar a existência em ato ao sujeito.

Já existindo um sujeito em ato composto de matéria primeira e forma substancial, outras formas podem advir ao sujeito já existente, chamadas de formas acidentais, as quais constituem aquelas realidades às quais chamamos de acidentes. São acidentes atributos tais como a cor, a temperatura, as diversas qualidades sensíveis de que está dotado o sujeito, suas dimensões geométricas, e outras. Estas diversas qualidades e atributos chamam-se de acidentes por contraposição à substância, pois os acidentes não subsistem por si mesmos, mas necessitam de um sujeito, que neste caso é uma substância já existente em ato, para poderem subsistir nela.

5. O cuidado que devemos ter em não interpretar a forma substancial como algo identificável pelos sentidos ou por experimentação laboratorial.

Segundo a doutrina de Aristóteles, a matéria primeira não pode ser conhecida senão indiretamente por analogia, a forma substancial só pode ser conhecida pela atividade da inteligência, e o que vemos ou captamos dos diversos entes pelos cinco sentidos, ou, por extensão, por instrumentos de laboratório, são apenas as formas acidentais dos entes.

A matéria é, em si mesma considerada, puro ente em potência.

A forma é aquilo que faz o ente em potência tornar-se ente em ato.

O terceiro princípio necessário para explicar as mutações encontradas na natureza, que é a privação, não entra na essência da coisa feita, sendo um princípio dos entes apenas por acidente.


LIVRO SEGUNDO DA FÍSICA

1. A natureza é um princípio de movimento.

Segundo o Filósofo, as coisas são ditas serem pela natureza quando parecem ter em si mesmas um princípio de movimento.

Temos desta sentença um exemplo se considerarmos o caso de uma mesa. Na medida em que uma mesa é um produto da arte humana, ela é imóvel. A mesa se corrompe com o tempo não por ser mesa, mas por ser feita de madeira ou de ferro, apodrecendo ou enferrujando na medida em que pertence às coisas da natureza e que possuir, pela natureza, um princípio intrínseco de mutação.

2. A natureza não é um princípio exterior de movimento.

O princípio de movimento que afirmamos ser a natureza não é um agente exterior, se bem que sempre seja necessário haver um agente exterior para haver movimento.

Assim, para a água aquecer-se, é necessário haver um agente exterior que a aqueça. Este agente exterior é, inegavelmente, um princípio de movimento, mas a natureza não é este agente exterior. A natureza é um princípio interno, não externo de movimento. O aquecimento da água é um movimento natural, mas o princípio de movimento que afirmamos ser a natureza é uma potência natural que ordena o ente que a possui à forma que será o término do movimento e que faz com que o movimento possa ser dito natural.

3. Todo movimento necessita de um agente exterior, e os movimentos observados nos corpos leves e pesados não são uma exceção a esta regra.

Acabamos de afirmar que para haver um movimento deve sempre existir um agente exterior. Que afirmar, porém, dos corpos leves ou pesados? Pois aparentemente, na época de Aristóteles, em que não se postulava a existência de uma possível força de gravidade que poderia ser um agente externo, deveria parecer aos gregos que estes corpos caíssem ou subissem sem a existência de um motor externo, pelo simples fato de serem pesados ou leves, isto é, por um princípio intrínseco que seria a sua forma natural.

Encontramos em Aristóteles, a este respeito, a explicação segundo a qual não é a forma natural pela qual são pesados ou leves que é o motor de seus movimentos; o fato de serem pesados ou leves não lhes é um princípio para se moverem, mas para serem movidos.

4. A natureza é um princípio interno de movimento. A natureza é também princípio interno de movimento e de repouso.

A natureza, conforme vimos, é um princípio de movimento. Não é, porém, o princípio externo do movimento, não obstante este deva sempre existir, mas um princípio interno. Pode-se dizer também que a natureza é princípio não só de movimento como também de repouso, porque é pela natureza que os corpos repousam ao alcançarem o término de seus movimentos naturais.

5. A natureza pode ser dita da matéria e da forma, mas não do composto.

Sendo a natureza princípio interno de movimento, e sendo os princípios internos de movimento a matéria, a forma e a privação da forma, a natureza pode ser dita tanto da matéria como da forma, e pode ser dita mais da forma do que da matéria, na medida em que aquilo pelo qual algo é em ato é mais ente do que aquilo pelo qual este algo é em potência.

Mas a natureza não pode ser dita do composto, porque o composto de matéria e forma não é princípio, mas algo que provém dos princípios.

6. A mesma Filosofia da Natureza que se ocupa da matéria se ocupa também da forma, pois a matéria se ordena à forma assim como a um fim.

Neste sentido, pode-se dizer também que a Física, a Ciência Natural ou a Filosofia da Natureza, sendo o estudo dos princípios do movimento, é o estudo da matéria e da forma. Não são porém duas ciências diferentes, uma que trata da matéria e outra que trata da forma, mas uma só ciência tendo a ambos estes princípios como objetos, porque compete à mesma ciência o estudo do fim e o estudo das coisas que se ordenam a este fim. Ora, a matéria se ordena à forma como a um seu fim. Portanto, haverá uma só ciência natural que trate de ambas.

7. Demonstração de que a matéria se ordena à forma. Fundamento da demonstração.

Pode-se demonstrar que a matéria se ordena à forma por comparação com a arte, a qual imita a natureza. Ora, na arte vemos claramente que a matéria se ordena à forma. Portanto, na natureza também a matéria se ordenará à forma.

8. Demonstra-se que nas artes a matéria se ordena à forma.

Vemos que na arte a matéria se ordena à forma porque nas artes encontramos artes do uso e artes da construção. A arte do uso é aquela, por exemplo, pela qual usa-se um navio para navegar. Aqueles que possuem esta arte são aqueles que julgam e ditam as normas sobre qual a forma que deve possuir o navio para poder bem navegar. Estes julgamentos sobre o uso passam para aqueles que possuem a arte da construção, que julgam então sobre qual a matéria de que deve ser construído o navio para poder adquirir aquela forma. Ora, todos percebem que a arte da construção se ordena à arte do uso, e, portanto, pelo menos nas artes, a matéria se ordena à forma.

9. Demonstra-se, por comparação à arte, que na natureza a matéria também se ordena à forma.

O que demonstramos acima para as artes também vale para a natureza, porque a arte, ao proceder conforme descrevemos, nada mais faz do que imitar a natureza.

Isto ocorre basicamente porque o princípio da arte é o conhecimento.

Vemos porém que a natureza, na medida em que os diversos entes que nela existem se ordenam uns aos outros, como ocorre quando as diversas partes de um todo se ordenam cada qual ao seu próprio fim, tem a mesma estrutura das obras cujo princípio é o conhecimento, que é o caso das artes.

De onde que deve-se concluir que também na natureza a matéria se ordena à forma, e por este motivo, a ciência que terá como objeto o estudo da matéria e da forma como de dois princípios da natureza será uma só e a mesma ciência.

10. Até que ponto se estendem as considerações da Física sobre a forma. Onde começa a Metafísica.

As considerações da ciência da natureza se estendem à forma apenas até o ponto em que estas formas estiverem unidas à matéria. A partir daí não se pode mais dizer que elas são princípios dos movimentos da natureza. As formas que existem independentemente da matéria são objeto de consideração da Metafísica.

11. O movimento não pode ser explicado apenas por causas intrínsecas. A explicação total de sua causalidade envolve o pressuposto da existência de quatro gêneros de causas.

Os princípios intrínsecos do movimento são a matéria e a forma, as quais, neste sentido, constituem a natureza, a qual é princípio intrínseco de movimento. Mas para explicar inteiramente o movimento é necessário a postulação de outras causas extrínsecas. O movimento só é inteiramente explicável mediante um total de quatro gêneros de causas. Estas são as seguintes:

  • A matéria, ou causa material;
  • a forma, ou causa formal;
  • a causa eficiente;
  • a causa final.

12. O que são a causa material e formal.

Sobre a causa material e formal, ou a matéria e a forma, já falamos o bastante. Elas explicam suficientemente o movimento do ponto de vista dos princípios intrínsecos. São os princípios passivos do movimento.

13. O que é a causa eficiente.

A causa eficiente é o princípio ativo do movimento e do repouso. É aquilo que efetivamente faz com que o ente se mova, atuando como agente externo que provoca o movimento. Quando alguém empurrar uma mesa está sendo a causa eficiente do movimento da mesa; quando o fogo aquece a água, o fogo é a causa eficiente do aquecimento da água.

14. O que é a causa final.

Uma causa é dita final na medida em que algo é um fim para um determinado movimento. Quando vamos a algum lugar para tratar de algum assunto, dizemos que este assunto se torna a causa final do movimento, porque todo o movimento é realizado tendo em vista a este fim. Este exemplo é tirado da psicologia humana, e é exato, porque o assunto a ser tratado foi verdadeiramente o fim em função do qual se deu o movimento e pelo qual este movimento se explica como em uma de suas causas. No entanto, o exemplo tem uma extensão muito mais geral, porque não são apenas os atos humanos que se realizam tendo em vista a algum fim, mas também todos os movimentos da natureza tendem a um fim, ainda que as causas eficientes neles envolvidos não sejam inteligentes, e, por isto mesmo, conscientes do fim ao qual se dirigem como ocorre no caso dos homens. No caso dos movimentos inconscientes da natureza a causalidade final também existe porque a ação do agente externo que age como causa eficiente provém de uma determinada forma que ele possui e, por este motivo, ela está determinada, por algo que já reconhecemos anteriormente como sendo um dos princípios da natureza, para um determinado fim. Neste sentido, a ação da forma de que é dotado o fogo é orientada por sua própria natureza para o aquecimento, que é a causa final do movimento de que ele é causa eficiente.

15. A causalidade final é a causa que move todos os gêneros de causa.

A causa final é a causa de todas as outras causas. Ela é, simplesmente, a causa das causas. Sempre existe causalidade final nos movimentos porque nada é movido da potência ao ato a não ser por um agente externo que esteja em ato. A causalidade material e formal, portanto, para resultarem num movimento, necessitam do agente externo ou da causa eficiente. A causa eficiente, porém, agindo na medida em que está em ato através de sua própria forma, tende necessariamente para algo determinado, e esta é a causa final do movimento. No caso dos seres inteligentes a explicação é essencialmente a mesma, sendo que a forma que é a causa eficiente do movimento é a própria forma apreendida pela inteligência daquele que, através de sua vontade, causa o movimento; a diferença reside apenas no fato de que, enquanto esta forma nos seres inanimados é única e sempre predeterminada a um fim único, nos seres inteligentes dotados de vontade ela não é necessariamente predeterminada.

Desta maneira, vemos que em Aristóteles temos uma concepção de natureza essencialmente teleológica, um termo que vem da palavra grega teles, que significa fim. A concepção das ciências experimentais modernas a respeito da natureza, ao contrário desta, é fundamentalmente centrada na causalidade eficiente.

Pode-se consultar ainda com proveito, sobre a teoria da causalidade, o Apêndice ao segundo capítulo da Educação segundo a Filosofia Perene.


LIVRO TERCEIRO DA FÍSICA

1. Concepção ampla de movimento na Física de Aristóteles.

Chamamos de movimento não apenas ao movimento local, isto é, aquele movimento pelo qual um móvel muda de lugar, mas a todo e qualquer tipo de mutação, como seria o caso, por exemplo, de uma mudança de cor ou de uma mudança de temperatura.

2. Os consequentes intrínsecos e extrínsecos do movimento: o infinito, o lugar, o vazio e o tempo.

Entendido neste sentido mais amplo, pode-se dizer que o movimento possui um consequente intrínseco e três extrínsecos.

O consequente intrínseco do movimento é

  • o infinito.

O infinito é consequente intrínseco do movimento porque todo movimento é algo contínuo, e o contínuo é algo infinitamente divisível. Todo movimento, portanto, contém intrinsecamente o infinito.

Os consequentes extrínsecos do movimento são os seguintes:

  • o lugar,
  • o vácuo
  • o tempo.

O tempo é uma medida externa do próprio movimento.

Já o lugar e o vácuo são uma medida externa não do movimento, mas do móvel. Embora nem todo movimento seja movimento local ou segundo o lugar, todo móvel, entretanto, tem que estar necessariamente em algum lugar, e, por este motivo, o lugar será sempre uma medida do móvel.

3. Objetivo principal do Livro III da Física: obter uma definição rigorosa do movimento.

Um dos principais objetivos do Livro III da Física é a obtenção de uma definição rigorosa do movimento.

Para isto, deve-se considerar, em primeiro lugar, que o ser pode ser convenientemente dividido tanto pela potência e pelo ato como pelas 10 categorias, de tal maneira que, porém, as categorias, sendo os gêneros supremos do ser, também possam ser divididas pela potência e pelo ato.

4. Quais são as 10 Categorias.

As categorias ou gêneros supremos do ser, são as seguintes, agrupadas em substância e nove acidentes:

  • Substância

  • Quantidade ou magnitude
  • Qualidade
  • Relação
  • Lugar
  • Tempo
  • Posição
  • Hábito
  • Ação
  • Paixão

As nove últimas categorias são entes que não podem subsistir por si mesmas; só podem existir como acidentes de uma substância. Daí serem chamadas de acidentes, por contraposição à primeira categoria, que é chamada de substância, a qual é o ente que está sob os acidentes. Daqui vem o próprio nome de substância, que significa sub stare.

São substâncias uma árvore, uma pedra. São quantidades o tamanho desta árvore, o tamanho desta pedra. São qualidades suas cores, suas durezas. As qualidades e as quantidades, assim como todos os demais acidentes, não subsistem por si mesmas, só podendo existir acrescentadas à substância que elas supõem.

5. O movimento existe apenas em quatro das 10 categorias.

O que se chama de movimento é algo possível de ser dividido segundo as categorias. Ele existe apenas nas seguintes categorias:

  • Substância
  • quantidade
  • qualidade
  • lugar.

6. Uma definição de movimento, aparentemente correta, efetivamente errônea.

Segundo Aristóteles, houve quem tivesse definido o movimento como sendo

"A passagem da potência ao ato
de uma maneira não súbita".

Esta definição, porém, não é correta, porque só podemos definir alguma coisa corretamente através de outras noções que lhe são anteriores. Ora, ao dizer passagem já estamos falando em movimento, pois uma passagem é um movimento. Ao dizer não súbita estamos incluindo o tempo na definição de movimento, sendo que porém, na verdade, é o tempo que se define pelo movimento e não vice-versa.

7. Define-se o movimento segundo a única maneira corretamente possível.

A dificuldade frequentemente não percebida para se alcançar uma definição correta de movimento é que o movimento é dividido pelas categorias, que são os gêneros supremos do ser. De onde que não pode ser definido a não ser por noções anteriores à categorias. Ora, só o ser, que pode ser dividido tanto pelas categorias como pela potência e pelo ato, é anterior às categorias. Do que se deduz que o movimento só poderá ser definido pela potência e pelo ato, noções que dividem cada uma das categorias, assim como dividem ao ser.

O único modo possível de definir o movimento, desta maneira, é o modo como o faz Aristóteles, utilizando-se apenas das noções de potência e ato:

"O movimento é o ato
do existente em potência
enquanto tal".

8. O movimento é ato do móvel.

O movimento é, assim, ato. É o ato do "existente em potência enquanto tal". Quem é, porém, o "existente em potência enquanto tal" da definição do movimento?

É, em primeiro lugar, o móvel, por contraposição ao movente, móvel que, durante o movimento, está em potência ao ato ao qual tende o movimento. Neste sentido, o movimento é ato do móvel.

9. O movimento também é ato do movente.

Mas deve-se dizer também que o movimento é igualmente ato do movente, e não apenas do móvel.

Para entender isto, deve-se explicar que tudo o que é movido tem que ser movido por uma causa eficiente que lhe é externa, porque todo movimento pressupõe uma passagem da potência ao ato e a pura potência não pode passar sozinha ao ato. Se o contrário fosse verdade, isto suporia na potência uma determinação já existente pela qual já não seria pura potência, mas ato. Esta determinação, necessária para desencadear o movimento, que pelo fato de já ser uma determinação por isso mesmo teria natureza de ato, é necessária ao movimento e, não podendo vir da própria potência, supõe um agente externo em ato que cause o movimento. Assim se demonstra, portanto, que tudo o que é movido tem que ser movido por um agente externo e o movimento, entendido neste sentido, é tanto ato do móvel como do movente.

10. O movimento é ato do móvel e do movente, mas situa-se no móvel.

Embora o movimento seja tanto ato do móvel como do movente, ele situa-se apenas no móvel, pois trata-se de apenas um só movimento, e não de dois, o qual provém do movente e situa-se no móvel.

11. O ente movido pode mover, por sua vez, o movente que o moveu. Isto não significa uma contradição com o princípio segundo o qual o movimento está situado no móvel e não no movente.

Circunstancialmente um movimento pode implicar em dois movimentos, na medida em que o móvel, sendo tocado pelo movido ao movê-lo, é, por sua vez, movido por este.

Na Física Clássica Newtoniana, o movente ao mover o móvel sempre será, por sua vez, movido também pelo móvel, porque na Física de Newton a cada ação corresponde uma reação igual e contrária, esta última exercida, porém, não no mesmo corpo que sofreu a ação, mas sobre o corpo que produziu a ação. Assim, se a Terra atrai pela gravidade a Lua mediante uma força atrativa exercida sobre a Lua, a Lua por sua vez terá que atrair a Terra com uma força igual e contrária exercida sobre a Terra. Do mesmo modo, se um homem empurra um barco com uma força exercida sobre o barco, o barco terá que empurrar o homem com uma reação exercida do barco sobre o homem. Na Física de Aristóteles este princípio é reconhecido, mas, ao contrário do que ocorre com a Física de Newton, não se trata de um princípio universal. Ele só ocorre, nas palavras de Aristóteles, se o movente, ao tocar o móvel, "também for tocado por este". Deixará, pois, de ocorrer, se o movente, ao mover o móvel, não for "tocado, por sua vez, pelo móvel".

No caso em que existam tanto a ação como a reação, ou que, na terminologia aristotélica, o movente também seja movido pelo móvel, não se configura aqui uma violação do princípio de que o movimento está situado apenas no móvel, porque estão ocorrendo na realidade dois movimentos distintos, e cada um dos dois movimentos situa-se apenas no respectivo móvel e não no movente, embora cada um deles seja ato dos dois.

12. Por que não existe movimento nas categorias da ação e paixão.

O movimento, na medida em que é ato do móvel, chama-se paixão e é a própria décima categoria. Não existe movimento na categoria da paixão porque a paixão é o próprio movimento, na medida em que é ato do móvel.

O movimento, na medida em que é ato do movente, chama- se ação e é a própria nona categoria. Não existe, também pelo mesmo motivo, movimento na categoria da ação porque a ação é o próprio movimento, na medida em que é ato do movente.


LIVRO TERCEIRO DA FÍSICA

- Teoria do Infinito -

1. Razões pelas quais o infinito existiria.

A opinião corrente dos homens admite a existência do infinito. Esta suposição usualmente baseia-se nas seguintes considerações:

  1. Porque os homens costumam supor que o tempo seja infinito, demonstrando com isto, pela existência do tempo, a possibilidade da existência do infinito. Supõem também que qualquer magnitude possa ser infinitamente dividida com o que demonstra-se por outro exemplo a existência do infinito.
  2. Supõem, ademais, que todo corpo finito tem que estar incluído em algo, e este sucessivamente em outro, afirmação que parece não ser possível de ser feita se o infinito não pudesse existir.

2. Razões pelas quais o infinito não existiria.

Por outro lado, pode-se refutar estes argumentos dialeticamente dizendo, em primeiro, lugar que não pode existir um corpo infinito porque todo corpo é algo confinado por uma superfície. Ora, nenhum corpo confinado por uma superfície pode ser infinito. Portanto, não existe corpo infinito. Se, porém, um corpo infinito não pode existir, parece também que não pode existir o infinito, absolutamente falando.

Ademais, se houvesse um número infinito de coisas, cada uma delas teria sua individualidade e, portanto, poderia ser numerada. Se cada uma delas fosse numerada, porém, o número correspondente a cada uma seria certamente um número finito. Ora, se o número correspondente a cada uma de todas elas fosse finito, não poderia existir o infinito.

3. A verdade sobre o infinito.

Devemos, pois, dizer que a verdade em relação a esta questão é que o infinito é algo que não existe em ato, mas apenas em potência.

O infinito se encontra nos números apenas no sentido em que, a cada número dado, sempre é possível achar um número maior do que este. O mesmo ocorre no infinito pela divisão: a cada divisão feita de uma magnitude contínua, o infinito existe apenas em potência, no sentido em que sempre poderá ser feita uma divisão seguinte.

Mas o infinito não existe em ato, no sentido em que jamais surgiu alguém que tivesse mostrado uma magnitude já infinitamente dividida ou um número já infinitamente numerado.


LIVRO QUARTO DA FÍSICA

- Teoria do Lugar e do Vazio -

1. Razões pelas quais o lugar existiria.

Problemas semelhantes ao do infinito surgem ao se determinar o que seja ou se existe o lugar e o vazio.

Os homens costumam admitir que o lugar seja algo existente porque, embora somente vemos os corpos e não os lugares, o lugar poderia ser conhecido por analogia assim como conhecemos a matéria primeira por analogia, isto é, examinando a mudança das formas e deduzindo a existência de um sujeito primeiro destas transformações. Neste sentido, quando de um recipiente sai a água e entra o ar mostrar-se-ia, com isto, a existência de um lugar.

2. Razões pelas quais o lugar não existiria.

Muitas coisas, porém, poderiam ser objetadas a estes argumentos.

Primeiramente, poderia dizer-se que, se o lugar existe e é algo, deveria ser um corpo, porque a ele se atribuem três dimensões. Mas neste caso, haveria dois corpos coexistindo juntos, o corpo que está no lugar e o próprio lugar. Porém, se este lugar fosse um corpo, deveria estar em um lugar assim como o primeiro corpo, e, deste modo, deveria haver infinitos lugares coexistindo no mesmo lugar.

Ademais, tudo o que existe tem que ser feito de algo. Se o lugar existe, e é feito de algo, teríamos que explicar então como duas coisas poderiam ocupar o mesmo lugar no espaço, e por qual motivo isto seria uma exceção a uma regra que só ocorre se uma destas duas coisas for o próprio lugar. Se dissermos, por outro lado, que o lugar não é feito de nada, não se entenderia como uma coisa que fosse feita de nada poderia existir.

Ademais, o lugar não é causa de nada. Ora, se tudo pode ser explicado pelas demais causas sem necessidade de recorrer à existência real do lugar, o lugar e os diversos lugares constituiriam um cosmos paralelo ao próprio cosmos visível. Vemos, porém, que na natureza tudo possui razão de ser. Teríamos, com isto, que desenvolver uma teoria que explicasse qual a razão de existir deste outro cosmos paralelo, imerso dentro do primeiro, que nenhuma relação de causalidade tem com este primeiro, ou então explicar por que este é o único caso conhecido em que existe algo sem razão de ser.

Ademais, se o lugar existe, supõe-se que tudo o que existe deva estar em um lugar. Se o lugar existe, portanto, ele também terá que estar por sua vez em um lugar. Para cada corpo haveria infinitos lugares, e o universo dos lugares seria muitíssimo maior do que o que efetivamente vemos.

3. A verdade sobre o lugar.

A verdade que explica estes paradoxos é que o lugar é apenas

"a extremidade imóvel
do continente primário".

Neste sentido, um corpo só está em um lugar quando for adjacente a outro corpo que o contém pelo lado externo.

4. Consequências cosmológicas. Inexistência do espaço vazio.

A esfera última do Universo, por estes motivos, ou a totalidade do cosmos, não podendo ser infinita, por já termos visto que não existe infinito em ato, não pode estar contida dentro de outro corpo que lhe seja adjacente e portanto, não pode estar em lugar nenhum.

Pelos mesmos motivos já apontados, não existe o espaço vazio como uma realidade independente.

5. Considerações de Física Moderna.

A partir do fim do Renascimento e do início do Iluminismo estas notáveis conclusões passaram a ser vistas como simples como ingenuidades provindas de povos primitivos, desprovidos de sofisticados equipamentos de laboratório.

Elas foram definitivamente descartadas pela Física de Newton, o qual, nos seus Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, postulou de partida a existência de um espaço vazio infinito como uma entidade real na qual estariam contidos os astros e todos os demais corpos do Universo.

6. Textos de Isaac Newton, tirados dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural.

No prólogo dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural de Isaac Newton encontramos afirmações como as seguintes:

"Resta-nos definir,
como conhecidíssimos de todos,
o tempo, o espaço, o lugar e o movimento.

Temos que dizer, porém,
que o vulgo não concebe estas quantidades
senão pelas relações com as coisas sensíveis.

É daí que nascem certos prejuízos,
para cuja remoção convém distinguir
as mesmas entre absolutas e relativas.

O tempo absoluto,
verdadeiro e matemático,
flui sempre igual por si mesmo
e por sua natureza,
sem relação com qualquer coisa externa.

O espaço absoluto,
por sua natureza,
sem nenhuma relação com algo externo,
permanece sempre semelhante e imóvel.

O lugar é uma parte do espaço
que um corpo ocupa.

O movimento absoluto
é a translação de um corpo
de um lugar absoluto
a outro lugar absoluto.

Assim como a ordem das partes do tempo
é imutável,
assim também é a ordem
das partes do espaço.

Pertence à essência deles serem lugar,
e é absurdo que os lugares se movam,
embora estas partes do espaço
não possam ser vistas pelos sentidos
e distinguidas umas das outras
por nossos sentidos.

Na Filosofia Natural, porém,
devemos fazer abstração dos nossos sentidos.

Os lugares imóveis são aqueles que,
por toda a infinidade,
conservam as posições mútuas,
pelo que sempre permanecem imóveis,
constituindo o espaço que chamo imóvel.

É dificílimo, porém,
conhecer os verdadeiros movimentos
de cada um dos corpos,
dado que as partes do espaço imóvel
em que os corpos se movem de verdade
não caem sob os sentidos".

7. Reviravolta do pensamento científico no fim do século dezenove e no início do vinte.

Somente no fim do século dezenove os homens voltaram a tecer dúvidas sobre tais afirmações, quando um astrônomo amador perguntou porque o céu não brilhava de noite.

O seu raciocínio foi o seguinte.

Supondo que houvesse estrelas preenchendo todo o espaço infinito do cosmos, haveria um valor que mediria a densidade média das estrelas no Universo. Independentemente de se conhecer de fato o valor desta densidade, sabe-se que, qualquer que seja este valor, a intensidade da luz de uma estrela que é recebida na Terra diminui com o quadrado da distância desta estrela à Terra. Isto acontece porque a luz da estrela, à medida em que se afasta de sua fonte, se espalha sobre a superfície de uma esfera imaginária, superfície esta que aumenta com o quadrado de seu raio. A fórmula que fornece a área da superfície de uma esfera, é, de fato, quatro vezes o número $\pi$ PI (3,14) vezes o quadrado do raio da esfera.

Por outro lado, porém, à medida em que nos afastamos da Terra, o número de estrelas existente no espaço que circunda a Terra a uma dada distância aumenta de acordo com o aumento do volume de espaço que circunda a Terra a esta mesma distância. Ora, o volume do espaço que circunda a Terra a cada determinada distância em que nos situamos dela aumenta à medida que nos afastamos da Terra, pois este é o volume das camadas mais externas da esfera de espaço que circunda a Terra, camadas que se tornam cada vez maiores à medida em que aumenta o raio desta esfera. O volume de uma esfera, porém, diferentemente da área de sua superfície externa, aumenta proporcionalmente ao cubo de seu raio. A geometria nos diz, de fato, que o volume de uma esfera é igual a $4/3$ vezes o número $\pi$ (pi) vezes o cubo raio desta esfera.

À medida, pois, em que nos afastamos da Terra, embora a intensidade da luz que nos chegue de cada estrela, individualmente considerada, diminua com o quadrado de sua distância, o número total destas estrelas aumenta com o cubo desta mesma distância. Deste raciocínio deveria concluir-se que, à medida em que nos afastamos da Terra, o aumento do número total de estrelas deveria produzir um efeito mais do que compensatório sobre a diminuição da intensidade da luz que nos chega individualmente de cada uma. À noite, portanto, deveria haver mais luz do que durante o dia, supondo que, conforme se observa, seja verdade que a luz com que o dia é iluminado seja essencialmente apenas aquela que nos chega do Sol.

Nada disso, porém, acontece, e o astrônomo que levantou esta questão pedia insistentemente aos seus colegas que lhe explicassem o motivo.

A única, ou uma das poucas, explicações possíveis para este paradoxo, se quisermos preservar as suposições contidas na Física de Newton, seria que só uma pequena parte do espaço vazio do Universo estaria efetivamente preenchida de estrelas, e esta parte seria justamente o espaço próximo à Terra. Mas o paradoxo que esta e que as outras poucas soluções possíveis restantes criam, por sua vez, não são menores do que o paradoxo original. Pois, por maior que fosse esta região nas vizinhanças da Terra que estivesse efetivamente preenchida de estrelas, ela seria um nada em comparação com a vastidão do Universo infinito. Se postulamos que o espaço é verdadeiramente infinito, qualquer que fossem as dimensões desta vizinhança estelar, esta, diante do infinito, seria precisamente idêntica a nada. De onde que o Universo infinito consistiria essencialmente de um espaço vazio, essencialmente do nada.

Ora, que sentido de realidade se poderia atribuir a uma entidade deste gênero? Se o Universo jamais tivesse existido, em que ele diferiria do existir segundo este modo?

Os físicos não conseguiram dar nenhum tipo de resposta a estes paradoxos até o surgimento da Teoria da Relatividade Generalizada de Einstein, com a qual se retornou a uma concepção do Universo muito semelhante, senão mesmo idêntica, nestes pontos, às da Filosofia Aristotélica.


LIVRO QUARTO DA FÍSICA

- Teoria do Tempo -

1. Razões a favor e contra a existência do tempo.

Há quem afirme que o tempo não existe, porque é composto de coisas que não existem, que são o passado e o futuro.

Há outros que dizem que só existe efetivamente uma pequena parcela indivisível do tempo, chamado o agora. Porém, mesmo isto não pode ser dito sem dificuldades, pois o agora que passou então deveria ter-se corrompido e, neste sentido, deveríamos ser capazes de determinarmos em que momento ele teria-se corrompido. Não é possível que o agora se tivesse corrompido no mesmo agora em que ele havia existido, porque neste caso ele teria existido e não existido ao mesmo tempo. Se ele se corrompeu, porém, em um agora posterior, então aquele agora não era indivisível. Portanto, deveríamos ser forçados a dizer que o agora não se corrompe; é sempre o mesmo agora que existe todo o tempo. Mas se o agora é sempre o mesmo, por outro lado, não há sentido em se falar de tempo, porque o tempo implica em uma sucessão.

2. A verdade sobre a realidade do tempo.

Devemos dizer que o tempo não é uma realidade conhecida em si. Ele é conhecido como consequência de se conhecer o movimento. Nós conhecemos o tempo quando distinguimos no movimento um antes e um depois, quando tomamos duas partes no movimento com algo no meio. Neste sentido,

"O tempo é o número do movimento
em relação ao antes e ao depois".

O tempo, deste modo, não é o movimento, mas consequência do movimento, na medida em que o movimento é numerado.

O tempo é o número do movimento.

3. A verdade sobre a realidade do agora.

A realidade do agora em relação ao tempo é a mesma que a do objeto móvel em relação ao movimento. Em um movimento, o objeto móvel é o mesmo no sujeito, mas difere pela razão. Assim também é a realidade do agora dentro do tempo.


CONCLUSÃO DESTA RESENHA

Fizemos uma pequena resenha contendo algumas considerações importantes sobre tópicos abordados nos quatro primeiros livros da Física de Aristóteles, apoiando-nos no texto do Comentário que Santo Tomás de Aquino escreveu a este tratado.

O Tratado de Física de Aristóteles contém ao todo oito livros, o último dos quais consiste em uma demonstração pela qual se evidencia que o movimento na natureza não pode ser suficientemente explicado se não se admitir a existência de um ente, situado além da natureza, dotado, conforme vai deduzindo o Filósofo, de incorruptibilidade, eternidade, imutabilidade, impossível de ser movido per se ou per accidens, dotado de potência infinita, não dotado de magnitude geométrica, não podendo ser corpo nem uma potência situada em um corpo, indivisível e não dotado de composição de partes.

Mais adiante, na Metafísica, Aristóteles volta a demonstrar de outro modo a existência deste ente notável situado além da natureza. Seu ponto de partida não será mais o movimento observado nas coisas da natureza, mas o próprio ser delas. Ele irá mostrar que, independentemente do movimento, o ser de todas as coisas que são dadas à observação dos homens não pode também ser suficientemente explicado senão admitindo a existência daquele mesmo ente que havia sido deduzida no término do tratado de Física. Devido, porém, ao novo ponto de partida desta outra demonstração, as conclusões a que chega Aristóteles apontam para mais longe. O Filósofo conseguirá entrever, no final da Metafísica, outros atributos da causa primeira do ser de todas as coisas a que ele não havia podido chegar na Física. Entre elas, que a causa primeira é necessariamente um ente dotado de vida e inteligência.

Não é de se admirar, em vista disso, a alegria com que Santo Tomás de Aquino, no fim de seu Comentário à Física, encerra o seu livro oitavo e último:

"E assim",

conclui Tomás de Aquino,

"Aristóteles termina a sua discussão geral
das coisas naturais com o primeiro princípio
de toda a natureza,
que é,
sobre todas as coisas,
Deus,
bendito seja para sempre.
Amém. "


Texto retirado do link.


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Matemática: Ciência da Quantidade - Prof. Pedro Miranda

Criação do Cosmos - Cristo criando
o cosmos Gênesis 1 No princípio
- por Ted, 4 de março de 2011

Transcrevemos abaixo trechos da aula do prof. Pedro Miranda sobre Matemática: Ciência da Quantidade

O vídeo pode ser encontrado aqui: Link.

Interlocutor Pablo Cânovas: Sejam muito bem-vindos a mais um podcast da Contra Errores. Estamos aqui novamente com o professor Pedro. Dessa vez, como nós falamos no final do nosso último podcast, para falar sobre matemática. O professor Pedro também é professor de Matemática. O que o nosso professor vai fazer hoje é apresentar o desenvolvimento da Matemática de Aristóteles até hoje.

Professor Pedro Miranda: Bom dia, boa tarde, boa noite a todos os ouvintes. Agradeço mais uma vez ao Pablo por essa oportunidade de falar com vocês e de tratar desse assunto tão interessante, e que poucos falam nos dias de hoje. As Matemáticas são já bem desenvolvidas em diversas civilizações. Podem notar isso pelas descobertas arqueológicas. Como se observa os egípcios, os povos mesopotâmicos e os povos que formaram a civilização chinesa. Isso é algo que é cosmopolita esse trato com essas Matemáticas. No entanto, as Matemáticas, que são duas, estiveram sempre em torno de sua aplicabilidade. A Geometria deveu muito à agrimensura para delimitar o terreno para o plantio. A Aritmética deveu muito à contagem de quantidades de material para comercialização, quantidade de unidades de rebanho ou com unidades fixas de quantidade de grãos, por exemplo. 

A primeira coisa que deve-se salientar é que as técnicas matemáticas se desenvolveram primeiro que sua conceituação. Na Índia antiga tiveram algoritmos que permitem a técnica da divisão, para o mesmo cálculo de áreas de polígonos ou a determinação dos poliedros. Tudo isso é bem cosmopolita. O que eu farei hoje em pouco tempo, pelo menos no meu ponto de vista, é investigar como Aristóteles considera a Matemática. Nós estamos com o pressuposto de que as Matemáticas têm como sujeito de sua ciência o ens quantum em latim ou το ποσό em grego. [ente quantidade]

Em Aristóteles, evidentemente, no seu Tratado dos Complexos nas Categorias, a primeira categoria que nós estudamos é a substância. Não vamos adentrar na substância. A segunda categoria na listagem de Aristóteles, nesta obra, é a quantidade. No entanto, é importante que nós saibamos de antemão que na Metafísica, Aristóteles coloca quantidade em segundo plano enquanto acidente. Acidente é aquilo que acontece na substância, é aquilo que acontece em outro. Ele coloca em primeiro lugar a qualidade. Por quê? Porque já na altura de sua vida ele escreve Metafísica e já estabelece a doutrina de forma e matéria. De onde a qualidade flui imediatamente da forma, enquanto a quantidade flui imediatamente da matéria. Então uma substância, quando possui a categoria quantidade, podemos chamá-la de certo aspecto de corpo. Um exemplo: os anjos não são exatamente corpóreos. Eles não estão restritos à categoria quantidade. Por isso que dizemos que são substâncias separadas. Quando um anjo age, ele não age com base na localidade, pois ele intensifica sua ação no lugar que ele deseja. Ou às vezes ele pode aparecer em forma corpórea, não por necessidade corpórea, mas para se apresentar de uma forma racionalizado para nós.

O que é quantidade? Para Aristóteles, a quantidade é o acidente, cuja característica central é ter parte, pode ser divisível. Vamos fazer uma comparação para podermos enxergar essa afirmação. Quando eu pego uma qualidade, por exemplo, o branco que está na parede. Vou ter uma parede branca diante de mim. A qualidade branca pode ser separada? Ela não tem parte para ser separada. A parede é branca. Mas existe uma tendência linguística de que se diz que essa parede é muito branca, quer dizer que há uma amplitude. A superfície em que ela que é branca é grande. Então, no fundo, muitas vezes a gente diz que é muito branca, porque ela é extensa. A superfície da parede é extensa. É nesse sentido e isso também faz sentido na sintaxe grega. Os gregos falavam que isso aqui é muito branco, no sentido de que a superfície, que tem a qualidade branca, é muito extensa. Notem que a superfície é uma quantidade.

A quantidade é o acidente que têm partes e pode ser dividida em discreta e contínua. E também de acordo com suas partes a quantidade pode ter posição entre as partes ou não. O que é essa posição? Pode haver ordem entre as partes. Pode ser primeira, segunda, terceira, quarta ou não.

Pois bem, então vamos aqui tratar de alguns exemplos de quantidades discretas. Aristóteles chama a atenção para dois tipos de quantidades, que são caracteristicamente discretas que são os números e o discurso. O discurso que ele está se referindo é ao texto mesmo. O número vai quantificar certas unidades. Quando Aristóteles fala [unidade], entenda aqui um número natural: um dois, três, quatro, cinco... Não têm $0,7$. Não temos números reais aqui em Aristóteles. Quando ele fala números, ele está se referindo aos naturais que são aqueles que nós podemos contar. Por outro lado, temos os números contínuos que são os nossos lugares geométricos. A linha, a superfície, o corpo, o tempo e os ciclos. Os ciclos porque tem aspecto de quantidade, a localização, posição dentro do espaço. Que podemos discernir quantidade discreta de quantidade contínua? Quando eu escrevo $5$. Isso aqui é um algarismo que indica um número. O símbolo é o algarismo. (Em algarismo romanos V). O símbolo pode mudar, pois o símbolo corresponde ao número.  O número, no sentido aristotélico, é aquilo que se obtém a partir de uma contagem. [o professor desenha cinco pontos no quadro] O que significa? Indica que alguém contou cinco unidades de alguma coisa, de pessoas, objetos, qualquer coisa que você quiser.

Recapitulando: uma coisa é o algarismo que simboliza o número, são algarismos arábicos e romanos ($5$ e V). Esses algarismos são símbolos que indicam o número. Do ponto de vista aristotélico, o número é o resultado de uma contagem. O que é uma contagem? Uma contagem é quando eu escolho uma unidade de critério de contagem. Por exemplo, aqui na minha mesa eu tenho diversos objetos. Eu crio um critério: o critério de contagem é o objeto individual. Eu vou começar a contar os objetos individuais que estão sob minha mesa: um celular, uma caneta, mouse, uma garrafa d'água. Toda vez que eu identifico uma das unidades, eu apreço uma unidade no meu número.

Notem uma coisa: quando eu desenho assim um “bifurcamento discreto” [há cinco pontos no quadro no formato da letra W], que é um exemplo de representação de uma contagem discreta. É possível notar que cada parte [ponto] não tem um limite em comum. Elas não tem um limite em comum. No entanto, quando estou considerando elas juntas, isso para mim é quantidade. Qual é a característica da quantidade discreta? As partes dessa quantidade não tem um limite em comum.

No caso do discurso, o discurso é composto por letras, por sílabas ou fonemas. O discurso falado são fonemas. Eu posso dividir? Posso tranquilamente. Qualquer palavra pode ser dividida em partes. Essas partes são discretas. Por que são discretas? As sílabas não têm um limite em comum entre elas. Então, por exemplo, a palavra: Nú-me-ro. Não existe nada que a separa, não existe algo que separa essas sílabas ou mesmo esse fonema: Nú-me-ro. É claro que quando eu falo rapidamente, vai diminuindo o intervalo entre os sons para formar a palavra articulada “Número”. Esses são os dois exemplos que Aristóteles traz de quantidades discretas. Hoje em dia a gente tem uma disciplina chamada Matemática Discreta, cujo princípio não mudou. O princípio é o mesmo. É claro que vamos ter teoremas, corolários, proposições acerca do que nós podemos fazer com as quantidades discretas.

Agora vamos para as quantidade contínuas. Temos caracteristicamente exemplos importante. Aqui nós damos o nome de lugares geométricos. A primeira delas é a linha. A linha é potencialmente infinita. O infinito aqui é matemático. Cuidado com isso. Já vou explicar. Agora temos aqui as quantidades contínuas. Nas quantidades contínuas, nós temos três elementos importantes a serem aprendidos. Aqui eu representei uma linha ou reta. Cuidado com isso [o professor desenha uma reta no quadro]. Na Matemática, a linha reta é potencialmente infinita. Significa que ela continua para um lado e para outro lado indefinidamente. É claro que não é possível que eu desenhe uma reta ou linha [por completa]. Eu posso representar um segmento de reta, representando a reta. Eu desenhei um pedaço dela, mas eu quero dizer que ela continua de um lado e continua do outro lado. A linha ou reta é uma quantidade contínua. Se ela é uma quantidade, por definição, ela possui partes, quer dizer, que eu posso dividir ela quantas vezes eu quiser. Quantas partes eu posso potencialmente dividir uma reta ou linha? Infinitas. Não tem limite para isso. Isso vai ser de fato infinito? Não. Em Matemática, dizemos que tende indefinidamente a crescer.

Interlocutor: Eu me lembrei de uma aula de Química que eu tive no Ensino Médio. Nessa aula de química, ele compara a teoria do átomo com uma suposta teoria de Aristóteles, que era justamente quanto a infinitude das divisões da quantidade contínua. Ele dizia que, quando se descobriu o átomo, refutou Aristóteles, porque se descobriu que tinha um limite na divisão.

Professor: Eu vou falar sobre isso. Esse assunto será a cereja do nosso bolo hoje. De fato, nós podemos potencialmente dividir uma reta e infinitas partes. Potencialmente, isso pode ser atualizado, isso pode ser feito? Não. Por que falta tempo e falta ato para isso. Bom, eu tenho infinitas partes, quando eu divido uma reta, quando eu corto* uma reta. Vamos supor que eu pegue uma faca e passe a faca [numa reta]. Eu vou ter quantas partes se eu cortar aqui? Eu vou ter duas partes. Uma de um lado, outra do outro lado. Note uma coisa: se eu cortei eu tenho um ponto. O ponto é uma intersecção da parte à esquerda e da parte da direita. Esse ponto pertence tanto à parte à esquerda quanto à parte direita. Então, qual é a característica essencial da quantidade contínua? Eu sempre terei um limite entre as partes. Existe um limite. Na quantidade discreta, não existe um limite. No caso de entes de uma dimensão que é a reta, (a reta é um ente de uma dimensão) o limite de entes de uma dimensão são entes de dimensão zero que são pontos.

De modo completamente análogo, quando eu tenho uma superfície como plano ou superfície [o professor desenha uma plano no quadro]. A superfície continua é indefinidamente para lá e para cá, mesma coisa (todas as direções). Ela é infinita também e eu desenho ela como um pedaço dela, um fragmento da nossa superfície. Se eu estabelecer uma divisão em nossa superfície, vamos supor agora que eu passe uma reta aqui cortando [o professor desenha no plano uma reta o intersectando diagonalmente]. Portanto, superfície ou área é um ente geométrico de duas dimensões. Enquanto que o limite que eu coloquei na superfície é um ente de uma dimensão. Porque agora o limite das partes que contém essa superfície, (tenho duas partes: a parte de cá [à esquerda] e a parte de cá [à direta]) o limite entre as partes é uma reta.

Eu tenho um sólido, [o professor desenha um cubo no quadro] um cubo torto, um paralelepípedo, agora um tijolo. O sólido é um lugar geométrico de três dimensões. Como é que eu corto* um sólido de modo a produzir partes? Eu tenho que vir aqui agora e traçar um plano no meu sólido [o professor desenha plano intersectando o sólido]. O plano é um ente geométrico de dimensão dois. Se eu quiser, eu posso continuar em todas os lados, mas pode ser do tamanho que eu quiser. Potencialmente infinito. Infinito quantitativamente. Cuidado com isso. Uma coisa é o infinito na Teologia e na Metafísica, outra coisa é o infinito usado na Matemática. Aproveitando para falar sobre o infinito, tem uma pergunta sobre o infinito que daqui a pouco vou responder. 

Interlocutor: Uma pergunta: quando você divide uma quantidade contínua, ela já pode ser considerada como quantidade discreta, enquanto duas partes discretas?

Professor: Não. A quantidade contínua [quando dividida] continua sempre sendo contínua, por que ela continua tendo partes cujos limites existem. Eu não separei o sólido. Eu só identifiquei um limite entre duas partes do sólido aqui. Ele não se tornou discreto.

O que mais que Aristóteles considera como contínuo? O tempo é contínuo para Aristóteles. O tempo pode ser visto de certo ângulo, como uma quantidade. Cuidado com isso. Quais são as partes do tempo? Os instantes. Só que eu posso ter instantes intermediários. Qual é o limite entre passado e futuro? É o instante presente e esse instante presente está sempre caminhando adiante em direção ao futuro. Se eu imaginar o instante presente como um ponto, ele vai caminhando e vai se unindo simultaneamente. Ele vai conectar passado e futuro. Então, nesse sentido, eu posso considerar o tempo como uma quantidade contínua. O que mais é quantidade? O situs, o lugar também é quantidade continua, porque eu posso localizar corpos ou coisas usando pontos dentro do espaço. O espaço é contínuo porque o espaço, as partes do espaço possuem o limite em comum. Quando é uma reta, o limite em comum são pontos. Quando é uma superfície, o limite em comum é uma reta. O que quer dizer limite em comum? Significa que essa reta pertence tanto a esta parte [à esquerda] quanto a esta parte [à direita] (o professor se refere ao plano interceptado por uma reta). No sólido, esse plano vermelho aqui [na lousa] pertence tanto à parte de trás quanto à parte da frente. Então, existe um limite em comum entre as partes da quantidade contínua.

Além disso, existem quantidades cujas partes têm posição recíproca entre si. O que é posição recíproca? Eu tenho uma ordem. Eu posso associar uma reta ou uma direcionalidade, por exemplo, a reta dos números reais. Nós [a] simbolizamos assim [o professor desenha a reta real no quadro]. Hoje se coloca uma direção aqui no meio, o zero. Então, do zero adiante [à direita], eu tenho os números que são positivos e aumentam indefinidamente. Do zero à esquerda, eu tenho os números negativos, que também "aumentam". Na verdade, diminui indefinidamente. Aqui vai para menos infinito ($-\infty$) [lado esquerdo] e mais infinito ($+\infty$) [lado direito]. Quando um matemático e um físico usam esse símbolo ($\infty$), não estão se referindo ao infinito da Metafísica e da Filosofia. [Isso] está querendo dizer que para cá, [esquerda da reta real] os números decrescem indefinidamente. Ou seja, potencialmente tem um potencial infinito para crescer para cá [direita da reta real] para aumentar. Então aqui temos os números grandes [positivos] e para cá, os números pequenos, menores [negativos].

Tudo o que nós falamos até agora, pelo menos para Aristóteles, são quantidades em sentido próprio, per si. Mas nós usamos a quantidade de modo incorreto como, por exemplo, isso aqui é mais branco, ou é mais rápido ou o movimento é mais longo. Então, linguisticamente falamos certas coisas, pronunciamos certas coisas como se fossem quantidades, mas não são. É um recurso linguístico, mas do ponto de vista lógico é incorreto usá-los. 

Agora vamos às três propriedades da quantidade. A primeira propriedade da quantidade é que a quantidade não admite o contrário. Por exemplo, se eu tenho uma quantidade de dois metros, qual é o contrário de dois metros? Não tem sentido lógico. Não é $-2$! O $-2$ também é uma quantidade diferente de dois metros. Na verdade, $-2$ metros não existe. Não existe comprimento negativo. Usamos os números negativos na Matemática, porque são entes de razão, devido a necessidade algébrica. Mas os números negativos não representam coisas. Eles representam a ausência de coisas. Quando eu tiver um saldo negativo no meu banco, vai aparecer um número negativo, mas ele não corresponde a uma concretude, em grego, σύνολον. Ele não representa um σύνολον. Ele é um ente de razão, assim como a privação que vemos na filosofia. A privação também é um ente de razão.

Segunda propriedade da quantidade: a quantidade não admite mais ou menos. Esses são os termos de Aristóteles. O que significa mais ou menos? Se eu tenho a quantidade dois, eu contei dois feijões e depois contei duas vacas. Sobre os dois feijões, o número dois que eu abstraí dessa contagem é mais dois do que as duas vacas que eu contei? Não, são o mesmo. Uma vez que eu tenho uma quantidade igual a outra, não é mais do que a outra. Então não cabe, não faz sentido lógico, dar intensidade às quantidades.

Propriedade três da quantidade. É característico da quantidade (dizemos que é um τόπος, é o modo característico de usar linguisticamente e logicamente a quantidade) a seguinte coisa: é o mais próprio poder ser igual ou desigual. Eu posso comparar duas quantidades ou elas são iguais ou desiguais. Em Matemática, nós desenvolvemos sinais para isso. Nós temos o sinal de igualdade ($=$). Quando uma relação matemática possui um sinal de igualdade, nós damos o nome a essa expressão matemática de equação. Eu tenho sinais de desigualdade, menor ($<$) e maior ($>$). Quando uma relação matemática possui esses sinais, nós damos o nome a essa expressão de inequação, porque expressam desigualdades. Uma desigualdade implica que os números comparados ou um é menor do que outro, ou um é maior do que o outro. Acho que isso é uma das coisas mais importantes a serem ditas a partir das Categorias de Aristóteles. 

É sempre importante relembrar que, quando Aristóteles escreve as Categorias (na verdade, são notas de aula, por isso que a tradução é difícil). Existem diversas interpretações das Categorias e os materiais que nós temos traduzidos e vertido ao português não são muito bons. Eu estou sendo sincero com vocês. O ideal é que vocês aprendam grego e leiam direto para não ter que fazer esse esforço de ter que interpretar a visão do tradutor. Nas Categorias, Aristóteles coloca a quantidade como a segunda categoria. Primeiro a substância, depois a quantidade e depois a qualidade. No entanto, na altura de sua vida, quando ele está escrevendo a Metafísica, ele coloca a qualidade em primazia, porque a qualidade é informada pela forma do ente (do σύνολον), enquanto que a quantidade pela matéria. Aristóteles dá primazia quase sempre para a forma que é o princípio de comunicação do ato daquele ente. Por que isso? Em Aristóteles, temos a quantidade discreta e contínua, mas entre as duas, qual é mais quantidade, caracteristicamente quantidade? É a quantidade continua. A quantidade contínua é mais quantidade do que a quantidade discreta, mas no sentido (é claro que isso é uma figura de linguagem) mais caracteristicamente quantidade.

A nossa realidade física é fundamentalmente contínua. No entanto, como havia colocado o Pablo anteriormente, nós temos unidades que são os átomos. Até hoje em dia, nós imaginamos que os átomos são coisas discretas, mas isso não faz o menor sentido. Na visão de Demócrito e Leucipo, que foram os primeiros a propor a teoria atômica, eles imaginavam que realmente era uma unidade indivisível. Átomos (ἄτομος) . O prefixo “a” é negação e “tomos” vem de parte: sem parte, indivisível. Isso foi encontrado alguma vez, de verdade? Verificamos isso experimentalmente? Não. O que dá a entender, de acordo com os estudos mais avançados, é que cada vez mais há mais partes, que há mais subpartículas. Cada vez mais se estuda, cada vez mais que se divide os átomos, encontramos mais e mais partes. Isso deixa os físicos doidos. Porque daí não conseguem compor o modelo padrão do átomo, da teoria atômica. A realidade, pelo menos, o espaço, nós sabemos que ele é contínuo. Todos os entes contidos no espaço também são contínuos, caracteristicamente contínuos. Os entes contados, as quantidades discretas são arbitrárias. Quem define a unidade é uma arbitrariedade humana. Eu tenho que escolher uma unidade de contagem. A quantidade discreta é mais artificial, por assim dizer, do que a quantidade contínua. Por isso que se dá primazia à caracterização da quantidade, pela quantidade contínua.

Agora vamos à pergunta que foi nos passada. A pergunta é seguinte: o conjunto dos naturais e dos reais possui infinitos elementos, mas a cardinalidade dos naturais é menor que a dos reais, porque não é possível preencher o corpo dos reais com uma bijeção do domínio dos naturais, dando certa ideia de que aquele ser “menos denso” que esse?

É uma excelente pergunta. Estudamos essa questão em Análise. O conjunto dos naturais, que são os números que naturalmente são produzidos pela contagem, é potencialmente infinito. Então eu posso contar, em matemática, indefinidamente. No entanto, na reta real entre o número $1$ e o número $2$, por ser o número real, eu tenho infinitos números. Melhor colocado: tenho potencialmente infinitos números. Significa, como [colocado] nessa pergunta, parece que o [conjunto dos] números reais é mais denso devido a bijeção. Eu posso estabelecer uma bijeção entre reais, entre intervalos dentro dos números reais, mas nenhum entre [intervalos de números] reais e naturais. Isso acontece porque existem em Matemática diferentes tipos de infinitos. Para isso, usamos a primeira letra do alfabeto hebraico. Para os números naturais, usa-se $\aleph_1$ [álefe 1], para os números reais, usa-se $\aleph_3$ [álefe 3]. Esse álefe é o conceito que nós atribuímos a esses conjuntos numéricos, para “estabelecer” quão infinitos eles são, que tipo de infinitude estamos tratando. Aqui é a infinitude matemática. Cuidado com isso. Acho que está respondida a pergunta.

Interlocutor: Importante falar que na Suma Teológica, São Tomás se pergunta se mesmo um corpo infinitamente extenso seria comparável à infinitude de Deus. É óbvio que não, porque mesmo se existisse um corpo infinitamente extenso, ele só pode ser infinitamente extenso se houver uma contagem de suas partes. Em certo momento, para algo ser três, precisou ser um e adicionou um e chegou a dois, adicionou outro e chegou a três. Enquanto Deus é simultaneamente todas suas partes, simultaneamente todas suas qualidades, melhor dizendo. Então essa é a maior diferença entre o infinito da Matemática, das quantidades e o infinito da Teologia: Deus é simultaneamente as perfeições, enquanto na quantidade há sucessão das perfeições. 

Professor: Exatamente. Essa questão também nos induz a falar sobre a questão do universo. O universo não pode ser infinito, do ponto de vista espacial. Isso é impossível pela Física moderna e é conhecido astronomicamente, porque as galáxias estão se afastando. Nós temos notícia experimental de que o universo está se expandindo. Se o universo é infinito, ele não aumenta: é uma contradição lógica. Se você olhar para o céu e ver o espaço, o universo físico está se expandindo e ao mesmo tempo você afirma que ele é infinito, tem que escolher [entre as duas condições]. Muitos físicos caem nisso, porque não pensaram direito sobre isso. O universo que é todo o espaço é finito. No entanto, [o universo] é imenso. O que significa imenso? Analisando a palavra imenso é não mensurado, “menso” é mensuração e “i” negação no português, imenso é sem medida. Porque todas as medidas são feitas dentro do universo. Não tem como sair fora do universo para medir ele. Isso implica em duas coisas: que o universo não pode ser medido de fora e que o universo não tem formato. Não tem formato geométrico, ele não é um cubo, ele não é uma esfera.

Interlocutor: Como diz o professor Nougué: a figura do universo é não ter figura.

Professor: Exatamente porque ele é imenso. Não faz sentido atribuir mensidão ao universo. Isso implica em uma terceira coisa que quase não é falada. O universo é auto-contido espacialmente. O que é auto-contido? Ele não tem um limite, tipo uma parede. Daqui para cá é o nada, daqui pra lá é o universo. Não dá pra fazer isso. O universo é auto-contido. Ele não tem um limite, no sentido de fora dele. Isso é um conceito difícil de ver e difícil de enxergar.

Esses são os três atributos fundamentais do universo. O universo é finito quantitativamente. Ele se apresenta para nós como infinito potencial. Parece que é potencialmente infinito, mas não é. Ele é finito de fato, e tem uma extensão dada. Tem o número que representa a sua extensão. Esse é o ponto. Existe esse número. Nós conhecemos ele? Não, mas ele existe. Então ele é finito.  Ele é imenso, não tem medida e não tem formato ou figura. O termo também usado é figura, como o Carlos Nougué usa. Em consequência de não ter figura e não ter formato, ele é auto-contido. As suas localizações são todas conectadas. 

Uma coisa importante de notar sobre essa questão das quantidades, é que o próprio espaço, visto como conjunto de τοποσ, de τοποι, é contínuo. Ele não é discreto. Então a natureza quantitativa das coisas é fundamentalmente contínua, como havia dito anteriormente.

É sempre importante ressaltar que Aristóteles diz que a Matemática não serve como ferramenta para a Física. A Física tem que usar outros métodos. Por que ele faz isso? Por que ele considera a Matemática uma ciência, um conhecimento que trabalha com quantidades bem conhecidas. Por que ele exclui a questão, por exemplo, da probabilidade. A probabilidade é uma quantidade também. Ela se caracteriza por ser uma quantidade. Como ele desconsidera a probabilidade, a questão de usar a Matemática dentro da Física é excluída.

No entanto, com a Física moderna, com a ciência moderna, tem a exclusão das outras categorias. Não importa mais a qualidade. Todas as qualidades que nós temos são reflexos da quantidade. Todas as relações, todo o tempo, espaço, lugar, posse. Então, dentro da mentalidade moderna, nós temos só quantidade. Essa é uma das pedras fundamentais do materialismo filosófico. Nem a substância eles consideram. 

Interlocutor: Já começa com Descartes, ele que dividiu as coisas entre res extensa e res cogitans, como se o seu mundo concreto fosse só extensidão, só quantidade contínua, do ponto de vista do Descartes.

Professor: É claro que isso é uma loucura. Você tem a substância que existe em si. Os predicamentos ocorrem sobre a substância. Então isso é uma inversão. É claro que a ciência moderna permitiu certos conhecimentos. Só que eles são metafisicamente limitados. Quando ouvimos aquela frase: “o ser humano é poeira estelar”. Você está vendo o ser humano em termos de sua extensão. Compare a minha massa com a massa de uma estrela. Claro que vai ver uma diferença gigantesca. Mas por que eles pensam assim? Porque eles estão considerando, às vezes sem saber, que o tudo o que existe é a quantidade. É claro que vai sair uma afirmação dessa. “O ser humano é poeira de estrelas”. Claro, você está reduzindo o ser humano às suas quantidades e às suas extensões mensuráveis ainda.

Essa é a mentalidade que nós devemos primeiro entender e como é que ela funciona para saber responder essa gente. O Carl Sagan tem uma visão materialista das coisas. Mas se nós pudéssemos falar com ele: “Escuta, por que o senhor afirmou isso? O senhor afirmou isso porque o senhor pegou o ser humano e reduziu ele a suas quantidades. O Senhor pegou as estrelas e reduziu elas a suas quantidades. Aí você comparou essas quantidades. A massa do ser humano é muito menor que a massa da estrela. E disso, você tira esse bordão que nós somos poeira estelar”. Ele não nota quando ele faz isso, ele não sabe disso. 

Interlocutor: É algo poeticamente algo tão pobre. Se for comparar isso com nosso próprio linguajar cristão: “o homem é o pó da terra”. Tem uma mística, um valor poético muito diferente. 

Professor: É porque ele usa a palavra estrela. Nessa tentativa de ser humilde, na verdade, ele está colocando que ele conhece as estrelas. É isso que está por detrás dessa mentalidade materialista quando se arrisca a produzir esses adágios. Só sai coisa ridícula e totalmente desvirtuosa, fora do padrão, desequilibrado. 

Então é importante que conheçamos bem a quantidade, porque a nossa formação escolar é muito fraca nisso. Os professores só ensinam as técnicas de resolução de problemas matemáticos. Nunca nenhum professor me falou que há uma quantidade. Uma vez eu perguntei para um matemático: “o que é a quantidade?” Ele falou que nunca viu isso em nenhum livro. “Que teoria é essa?” Não é nenhuma teoria. Isso é uma coisa com uma categoria muito básica. E aquilo nunca tinha passado pela cabeça dele.

Interlocutor: É o fundamento do que ele faz.

Professor: Eu pensei: “isso é a Matemática, é o ens quantum, é o sujeito da ciência matemática!” O pessoal da universidade, de exatas, têm boa formação porque eles têm boas técnicas nesse sentido. Técnicas, computacionais, teoréticas, lógicas, mas eles mesmos não sabem muito da natureza daquilo que eles estão tratando. Esse é o ponto. Nós devemos estar formados, preparados para isso, para quando encontrarmos um desse, podermos fazer as perguntas certas e darmos as respostas certas também. Eu sei que entre nós, que temos uma formação um pouco mais tomista, tem pouca gente que trabalha com o conhecimento da categoria quantidade e com a própria Matemática. 

Hoje a Matemática está muito desenvolvida. Só que é uma Matemática descolada no seu fundamento. Ela tem a sua conexão com o fundamento que é o ens quantum, mas cada vez mais ela se tornou descolada desse fundamento. Em Matemática, nós temos os constructos, por exemplo, estudamos em álgebra: anéis, grupos, corpos, álgebra mesmo, que são conjuntos estruturados como operações. 

Interlocutor: Professor, antes de entrar em álgebra, eu gostaria de fazer uma pergunta que cai em meus interesses. Eu não sei exatamente qual seria o conceito estrito de álgebra, mas o fato é que mesmo eu trabalhando em pesquisa linguística, tenho de usar algo que eles chamam de álgebra. Tenho de fazer cálculos, seja para mexer em programa de computador, para ele ficar rodando ou para demonstrar alguma coisa. Eles chamam isso de álgebra. O que me parece mesmo eu não tendo nenhum conhecimento técnico aprofundado nisso, é que a álgebra é só uma técnica que pode ser usada em várias ciências. Não é exatamente algo, uma parte da Matemática, mas é uma técnica. Pode ser usado pela Linguística, pela Computação ou pela Matemática. Para o senhor, o que é a álgebra?

Professor: Bom, primeiramente, a Álgebra é uma palavra de origem árabe al-jabr. Que significa a recuperação no sentido de repor um equilíbrio. Esse é o conceito original de Álgebra. A Matemática é dividida em Geometria que vai se aprofundar em Topologia; é dividida em Álgebra, que é um aprofundamento da Aritmética. Primeiro a noção de Álgebra é um aprofundamento da Aritmética. Temos a Análise e temos a Matemática Aplicada. A Álgebra trata de conjuntos estruturados. Esse é o sujeito da ciência Álgebra. E a Álgebra tem suas técnicas.

A palavra álgebra hoje tem conotações que não é a álgebra matemática. Por exemplo, quando você tem que fazer um processo de decisão e você tem um algoritmo. Você pode chamar isso de modo muito aproximado de álgebra. Mas é uma espécie de figura de linguagem. Não é um termo técnico bem definido. Eu vou fazer algo que é uma álgebra dos lugares comuns ou uma álgebra dos topoi. Isso é uma figura de linguagem, porque a álgebra mesmo é a álgebra matemática.

É aquela coisa que falamos na reunião passada da palavra emergência. Hoje em dia, a palavra emergência é usada em diversos contextos que não cabe a ela, porque é um termo bem definido. Isso faz parte de uma língua viva. Esses usos não ortodoxos do conceito principal da palavra. Nesse caso, emergência, e noutro caso, álgebra. Não sei se respondi [sua pergunta].

Por hoje, é isso. É suficiente. Tem bastante coisa.

Obs.: Os grifos e as partes entre colchetes são nossos.

* Quando o professor se refere a corta a reta, ele está se referindo a intersecção desta reta com uma outra, no caso aquela reta pertencente a referida faca. De modo análogo, com o sólido.


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