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A Matemática na Europa Medieval

Iluminura do Livro de Jogos, obra do scriptorium de Afonso X.
A imagem mostra três copistas trabalhando.

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Tempo de leitura: 18 min.

Trecho retirado do livro Uma História da Matemática da Florian Cajori, publicado pela Editora Ciência Moderna, em 2007.

A Europa durante a Idade Média

Com o terceiro século depois de Cristo começou uma era de migração de nações na Europa. Os poderosos godos abandonaram os seus pântanos e florestas no norte e, em marcha constante em direção ao sul, desalojaram os vândalos, os suecos, e os borgonheses. Cruzando o território romano, pararam e recuaram somente quando alcançaram as praias do Mediterrâneo. Dos Montes Urais, hordas selvagens varreram as terras até o Danúbio, o Império Romano caiu em pedaços indicando a Idade das Trevas. Embora possa parecer tenebroso, foram eles os responsáveis pela criação das instituições e das nações da Europa Moderna. Assim como os gregos e os hindus foram os grandes pensadores da antiguidade, o mesmo também se aplica aos povos latinos, que foram o embrião de um forte e luxuriante acontecimento, ou seja, as modernas civilizações do norte dos Alpes e a da Itália passaram a ser os grandes líderes dos tempos modernos.

INTRODUÇÃO À MATEMÁTICA DOS ROMANOS

Consideraremos agora como as nações do norte, ainda bárbaras, gradualmente conseguiram se apossar dos tesouros intelectuais da antiguidade. Com a expansão do cristianismo, a língua latina foi introduzida não só eclesiástica, como também cientificamente em todas as importantes transações mundiais. Naturalmente a ciência da Idade Média foi largamente extraída das fontes latinas. Com isto, durante os primeiros tempos da Idade Média os autores romanos eram os únicos escritores lidos no Ocidente. Embora o grego não fosse totalmente desconhecido, mesmo assim, antes do século XIII nenhum trabalho grego foi lido ou traduzido para o latim. Por ser na verdade escassa a ciência de que se poderia extrair dos escritores romanos, tivemos de esperar vários séculos antes que qualquer progresso matemático fosse feito.

Depois da época de Boécio e Cassiodório [Cassiodoro], a atividade matemática Itália morreu completamente. O primeiro tênue sopro de ciência entre as tribos que vieram do norte foi uma enciclopédia intitulada Orígenes [Etimologias], escrita por Isidoro (morto em 636 como bispo de Sevilha). Este trabalho é baseado nas enciclopédias de Martiano Capella de Cartago e a de Cassiodório e parte dele é dirigido ao quadrivium, aritmética, música, geometria, e astronomia. O autor apresenta definições e explicações gramaticais de termos técnicos, e mais os modos de computação usados na época. Depois de Isidoro, seguiu um século de obscurantismo um pouco dissipado pela presença de Beda, o Venerável (672-735), o mais erudito homem do seu tempo. Era um nativo de Wearmouth, na Inglaterra, seus trabalhos contêm tratados sobre o Computus, ou cálculo da data da Páscoa e prática da contagem com os dedos. Parece que o simbolismo com os dedos foi então largamente usado para os cálculos. A correta determinação da data da Páscoa naqueles dias era um problema crucial para a Igreja. Tornou-se mandatório que pelo menos um monge em cada monastério soubesse calcular o dia dos festivais religiosos, bem como o calendário. Tais cálculos requerem algum conhecimento de aritmética. Portanto achamos que a arte do cálculo sempre teve um papel importante na educação dos monges.

O ano em que Beda morreu é também o ano em que Alcuíno (735- 804) nasceu. Alcuíno foi educado em York, e depois chamado à corte de Carlos Magno, que foi um grande patrono da educação, e ele próprio um homem culto. Nas grandes catedrais e monastérios criaram-se escolas nas quais eram ensinados os salmos, a escrita, o canto, o cálculo (computus) e a gramática. Por computus significa aqui, provavelmente, não meramente o cálculo da data da Páscoa, mas a arte do cálculo em geral. Exatamente o que era, não temos como saber. Não se sabe igualmente se Alcuíno estava familiarizado com os ápices de Boécio ou com o modo romano de calcular pelo ábaco. Ele pertence à extensa lista dos sábios que moldaram a teoria dos números na teologia. Assim, o número de seres criados por Deus, que criou também todas as coisas, é $6$, porque $6$ é um número perfeito (cuja soma dos seus divisores é $1 + 2 + 3 = 6$); $8$, por outro lado, é um número imperfeito $(1 + 2 + 4 < 8)$; portanto a segunda origem da humanidade vem do número 8, que é o número de almas dito ter estado na arca de Noé.

Há uma coleção de "Problemas para estimular a mente" (propositiones ad acuendos invenes), que é tão velha quanto 1000 d.C. ou talvez mais. O historiador Cantor é de opinião que foram escritos muito antes por Alcuino. O que se segue é um desses "Problemas": Um cão corre atrás de um coelho que tem uma vantagem de $50$ m, e avança por cada pulo $3$ metros, enquanto o coelho ao dar um pulo avança $2,5$ metros. Para calcular em quantos pulos o cão alcança o coelho, $50$ é dividido por $0,5$ [1]. Nessa coleção de problemas, as áreas de terras triangulares ou quadrangulares são calculadas pelas mesmas fórmulas aproximadas usadas pelos egípcios fornecidas por Boécio em sua geometria. Um antigo problema é o da "cistema" (dado o tempo em que cada uma de várias bicas podem encher uma cistema, calcular o tempo que todas juntas levariam para enchê-la), que fora previamente encontrado em Herão, na Antologia grega, e em trabalhos hindus. Muitos dos problemas indicam que a coleção foi compilada principalmente de fontes romanas. O problema que em razão de sua unicidade dá o mais positivo testemunho de sua origem romana é o da interpretação de um testamento, no caso dos dois herdeiros serem gêmeos. O problema é idêntico aos dos romanos, exceto no que diz respeito às proporções de divisão estabelecidas no testamento. Como exemplo de problemas recreativos, mencionamos o do lobo, da cabra e da couve que devem fazer a travessia de um rio em um bote que os transporte, além do seu piloto, apenas mais um dos três. Pergunta: Quais podem ir no barco em cada travessia de modo que a cabra não coma a couve e nem o lobo a cabra? As soluções dos "problemas para estimular a mente" requerem não mais conhecimento do que algumas poucas fórmulas usadas em agrimensura, a habilidade de resolver equações lineares e o domínio das quatro operações fundamentais com inteiros. Extrações de raízes em nenhuma parte eram exigidas; e frações dificilmente ocorriam.

O grande império de Carlos Magno foi ameaçado de ruir logo após a sua morte em virtude da guerra e confusão que assumiram o poder. As pesquisas científicas foram abandonadas, e não retomadas até o final do século X, quando sob o domínio saxônico na Alemanha e dos capetianos na França, surgiu mais uma época de paz e a espessa escuridão da ignorância começou a desaparecer, e o zelo com o qual o estudo de matemática foi tomado deve-se principalmente a energia e influência de um homem Gerbert, nascido em Auvergne (França). Depois de receber uma educação monástica engajou-se no estudo, principalmente de matemática na Espanha. De volta ensinou em Reims por dez anos, tornando-se notável por sua grande cultura e elevado a mais alta posição. Pelo rei Oto I e seus sucessores, foi eleito bispo do Reino, depois de Ravena, sendo por fim, eleito papa sob o nome de Silvestre II, pelo último imperador Oto III. Considerado como o maior matemático da Europa do século X. sua matemática foi considerada maravilhosa pelos seus contemporâneos. Morreu em 1003 depois de uma vida atribulada, envolvendo-se em muitas disputas políticas e religiosas, acusado de conluios criminosos com os espíritos do diabo.

Gerbert aumentou seus conhecimentos com a leitura de livros raros. Assim, em Múntua, encontrou a geometria de Boécio, e embora isto fosse de menor valor científico, possuía, contudo, uma grande importância histórica. Foi, na época, o livro principal no qual os sábios europeus podiam aprender os elementos de geometria. Gerbert estudou-o com afinco, e é aceito, em geral, que ele próprio tenha sido o autor de uma geometria. H. Weissenbonn, um historiador, nega essa teoria, e garante que o livro em questão consiste em três partes que não podem ter vindo de um mesmo e único autor. Estudos mais recentes admitem Gerbert como o autor e adiantam que ele o tenha compilado de diferentes fontes. A sua geometria contém pouco mais do que a de Boécio, mas o fato de erros ocasionais nesta última e corrigidas na de Gerbert demonstra que o autor dominara o assunto. "O primeiro texto matemático da Idade Média que merece este nome", diz Hankel, "é uma carta de Gerbert a Adalbold, bispo de Utrecht", na qual é explicada a razão porque a área de um triângulo, obtida "geometricamente" tomando-se produto da base pela metade da altura difere da área calculada "aritmeticamente", pela fórmula $\dfrac{1}{2} a (a + 1)$, usada pelos agrimensores onde $a$ representa o lado de um triângulo equilátero. A carta fornece corretamente a explanação que na última fórmula todos os pequenos quadrados, nos quais é suposto o triângulo ser dividido, são contados inteiramente, embora parte deles saia fora dos limites da figura. D. E. Smith chama a atenção para um grande jogo numérico medieval; chamado Aritmancia: suposto por alguns ser de origem grega, foi praticado até tardiamente como no século XVI. Esse jogo exige considerável habilidade aritmética, tendo sido conhecido por Gerbert, Oronce Fine, Thomas Bradwardine e outros. Um tabuleiro semelhante ao de xadrez era usado. Relações como $81=72+ \dfrac{1}{8}$ de $72$, $42 = 36 + \dfrac{1}{6}$ de $36$ eram envolvidas no jogo.

Gerbert fez um cuidadoso estudo dos trabalhos de Boécio, e ele próprio publicou o primeiro, talvez ambos, dos dois trabalhos seguintes, Um Pequeno Livro sobre Divisão de Números: e o Regras de Cálculo Para o Ábaco. Estes livros dão idéia dos métodos de cálculos praticados na Europa antes da introdução dos numerais hindus. Gerbert usou o ábaco que provavelmente não era conhecido por Alcuíno. Bernelino, um aluno de Gerbert, descreve o ábaco como consistindo em uma prancha lisa sobre a qual os geômetras estavam acostumados a espalhar areia azul para desenhar os seus diagramas. Para os propósitos aritméticos, a prancha era dividida em $30$ colunas, das quais três eram reservadas para frações enquanto as $27$ restantes, divididas em grupos com três colunas em cada. Em cada grupo, as colunas são marcadas respectivamente pelas letras C (cento), D (dez), e S (unidades) ou M (monas). Bernelino apresenta os nove numerais usados que são os ápices de Boécio, e relembra que as letras gregas podem ser empregadas nos lugar daqueles. Com a utilização das colunas, qualquer número pode ser escrito sem o zero, e todas as operações da aritmética podem ser executadas sem as colunas do mesmo modo que fazemos hoje, empregando o zero. Na verdade, os modos de adicionar, subtrair, e multiplicar em voga entre os abacistas concordam substancialmente com os de hoje. Mas para a divisão existe uma grande diferença. As primitivas regras para a divisão parecem ter sido elaboradas para satisfazerem as três seguintes condições: (1) O uso de tabelas para a multiplicação seriam restritas, pelo menos, à prática de nunca se pedir a multiplicação mental de um número de dois dígitos por outro de um dígito. (2) As substrações deveriam ser evitadas tanto quanto possível e substituídas por adição. (3) A operação deveria ser feita de modo puramente mecânico, não sujeita a tentativas. Que tais condições fossem pedidas pode nos parecer estranho; mas deve ser lembrado que os monges da Idade Média não freqüentavam a escola na infância e aprendiam a tabuada enquanto a memória estava fresca. As regras para a divisão de Gerbert são as mais antigas ainda existentes. Elas são tão lacônicas que se tornam obscuras para o não iniciado. Foram provavelmente criadas simplesmente para ajudar a memória na chamada das sucessivas etapas do trabalho. Nos manuscritos posteriores foram instituídas com mais detalhes. Na divisão de um número qualquer por outro de um algarismo digamos $668$ por $6$, o divisor era primeiro aumentado para $10$ com o acréscimo de $4$. O processo era apresentado com uma figura ao lado. Na continuação do processo, devemos imaginar os dígitos que deveriam ser cortados, apagados e substituídos pelo que estava abaixo. Seria como segue: $600\div 10 = 60$, mas para corrigir o erro, $4 \times 60$, ou $240$, deveria ser adicionado; $200 \div 10 = 20$, mas $4 \times 20$, ou $80$, adicionado. Agora, escreve-se para $60 + 40+ 80$, cuja soma é $180$, e continuava-se assim: $100 \div 10 = 10$; a correção necessária é $4 \times 10$, ou $40$, que somada a $80$, dá $120$. Novamente $100 \div 10 = 10$, e a correção $4 \times 10$, junto com $20$, resulta $60$. Procedendo como antes, $60 \div 10 = 6$; a correção é $4\times 6 = 24$. Agora $20 \div 10 = 2$, a correção passa a ser $4\times 2 = 8$. Na coluna das unidades temos aqui $8 + 4 + 8$, ou $20$. Como antes $20 \div 10 = 2$; a correção é $2 \times 4 = 8$, que não divisível por $10$, mas somente por $6$, fornecendo o quociente $1$ e o resto $2$. Todos os quocientes parciais tomados juntos fornecem $60 +20 + 10 + 10 + 6 + 2 + 2 + 1 = 111$, e o resto $2$.

Semelhante, mas mais complicado, é o processo quando o divisor é formado por dois ou mais algarismos. Quando o divisor for $27$, por exemplo, então o múltiplo mais próximo de $10$, ou $30$, deve ser tomado como divisor, mas as correções para $3$ são impostas. Aquele que tivesse paciência para levar uma tal divisão até o fim, entenderia por que se tem dito de Gerbert que "Regulas dedit, quae a sudantibus abacistis vix intelliguntur" [2]. Perceberá também por que o método de divisão árabe, quando foi introduzido, era chamado de divisio aurea, mas para o ábaco, de divisio ferrea.

Em seu livro sobre o ábaco, Bernelino separou um capítulo para frações. Estas eram, naturalmente, as duodecimais, primeiramente usadas pelos romanos. Sem uma notação adequada, o cálculo com elas era muito difícil. Mesmo para nós que estamos acostumados a lidar com frações, pela aplicação de nomes, tais como uncia para $\dfrac{1}{12}$ quincunx para $\dfrac{5}{12}$ e dodrans para $\dfrac{9}{12}$.

No século X, Gerbert foi a figura central dos sábios. No seu tempo, o Ocidente entrou na posse segura de todo o conhecimento matemático dos romanos, e durante o século XI esse saber foi estudado assiduamente. Apesar dos numerosos trabalhos que foram escritos sobre aritmética e geometria, o conhecimento matemático era ainda muito insignificante, na verdade escassos tesouros matemáticos obtidos das fontes romanas.


Notas:

[1] Está subentendido que o cão e o coelho, na corrida, executam os saltos concomitantemente. (N. T.)

[2] Estabeleceu regras que são compreendidas apenas por esforçados abacistas. (N. T.)

***

Leia mais em O que é o Quadrivium? - por Roberto Helguera

Leia mais em Boécio e Cassiodoro

Leia mais em Alcuíno de York: difusor do Trivium e Quadrivum

Leia mais em Papa Silvestre II - O Papa Matemático



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A Educação e a Verdade

 

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Tempo de leitura: 7 minutos.

Texto retirado do livro A ideia de verdade e a educação de Ruy Afonso da Costa Nunes, publicada pela editora Kírion, em 2019.

O conceito de verdade através do tempo

João Pedro da Fonseca
O Estado de São Paulo, 28 de janeiro de 1979.

Quando lemos jornais ou revistas e conhecemos várias versões de um mesmo fato, quando confrontamos opiniões divergentes a respeito de um mesmo assunto, quando lemos a exposição de motivos de uma lei e o editorial de um jornal a respeito do mesmo documento, quando tomamos conhecimento de dados estatísticos, contestados por especialistas, quando estudamos doutrinas divergentes a respeito dos mais diferentes problemas, quando comparamos as "verdades” da situação e da oposição, enfim, quantas vezes não teremos perguntado a nós mesmos: onde está a verdade? O que é a verdade? 

Que relação existe entre a verdade e a educação? Em que consiste o papel da escola e do professor diante da verdade?

Ruy Afonso da Costa Nunes nos apresenta neste livro um denso estudo a respeito das concepções de verdade de vários autores da Antigüidade, da Idade Moderna e Contemporânea. O autor declara que "não tivemos a intenção de elaborar uma exposição exaustiva a respeito das concepções de verdade através dos tempos. Dada a dimensão do tema e a extensão deste trabalho, procuramos cingir-nos ao essencial".

O livro é dividido em três partes, em que são tratados sucessivamente os seguintes temas: a concepção clássica da verdade, as concepções modernas da verdade e as concepções contemporâneas da verdade. Na conclusão, o autor correlaciona a verdade e a educação, sobre verdade e educação e magistério e verdade, sendo que este último merece destaque especial.

Os principais autores estudados são: na concepção clássica da verdade, Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino; na concepção moderna: Bacon, Descartes, Hegel, Marx, William James, John Dewey e Kierkegaard; na concepção contemporânea, Husserl, Karl Jaspers, Heidegger, Sartre, Gabriel Marcel, os do Círculo de Viena, Ayer, Bertrand Russell e Tarski.

Pela relação de nomes, é fácil perceber a impossibilidade de se aprofundar estudo de cada filósofo, mas, com as limitações reconhecidas do autor, temos uma visão geral muito boa das concepções de verdade ao longo dos tempos. Isso é conseguido, principalmente, graças à clareza de pensamento, ao caráter didático da obra, à quantidade de pesquisas efetuadas, à riqueza de informações e ainda à veia crítica presente nos comentários, não faltando, às vezes, boa dose de ironia.

O autor não poupa severas críticas a alguns filósofos, por exemplo, aos do Círculo de Viena: "augustos cientistas que resolveram fazer filosofia das ciências sem a filosofia", a Ayer:

Nessa obra de juventude [Linguagem, verdade e lógica], escrita com o fervor adquirido no Círculo de Viena, Ayer pontifica que nada existe na natureza da filosofia que justifique a existência de 'escolas' filosóficas rivais, e assegura, do alto de sua insuficiência juvenil, que ele, Alfred Jules Ayer, vai apresentar a solução definitiva dos problemas que no passado causaram controvérsias entre os filósofos. Durmam tranquilos Platão e Aristóteles, Duns Scotus, Descartes, Hume, Kant, e tantos outros, pois Alfred Jules Ayer chegou para acabar com as dúvidas e resolver para sempre a questão da filosofia.

Ao discorrer sobre Heidegger, além de criticar sua linguagem arrevesada, não poupa seus endeusadores:

Fala-se muito do grande momento representado pelo opúsculo Sobre a essência da verdade, como se Heidegger tivesse feito uma descoberta do outro mundo, e como se a concepção clássica da verdade tivesse sido exorcizada para sempre como puro avantesma. Além disso, há quem chegue ao delírio, ao tecer ditirambos à incalculável profundeza desse opúsculo heideggeriano. De fato, parece-me que a coisa é mais simples do que freqüentemente se quer fazer acreditar.

Esses exemplos dão uma idéia do estilo franco e aberto do professor Ruy Afonso que pode agradar ou não agradar aos leitores. Louve-se, porém, o fato é um autor que interpreta e que assume posições elogiando, criticando, de que às vezes, ironizando, como faz ainda ao comentar Ayer:

É pena que o filósofo não tenha percebido, e nenhum dos seus consultores o tenha advertido antes da publicação do livro, o engano filosófico de sua concepção de verdade [...]. Até mesmo um filósofo inglês não consegue, às vezes, ter senso de humor para rir dos próprios enganos.

Quanto à correlação entre verdade e educação, o autor trata do tema em dois capítulos, tendo apresentado algumas idéias gerais que precisam ser mais aprofundadas e merecem momentos de reflexão, principalmente o segundo. Neste capítulo, o problema do magistério é tratado de forma quase dramática, com muita felicidade, equilíbrio e lucidez. Às vezes, o capítulo tem o caráter de denúncia:

Os governos, pelo menos em nossa pátria, preocupados com o desenvolvimento econômico, e apesar das numerosas advertências feitas pelos educadores, continuam de ouvidos moucos aos apelos do professorado, de tal modo que os mestres não dispõem de recursos que lhes permitam uma vida tranquila e consagrada ao estudo e ao ensino.

Não são apenas os direitos do professorado que o autor defende, mas chama a atenção também para os seus deveres. Se afirma que o professor "precisa ganhar um salário que lhe permita trabalhar tranqüilo", adverte que ninguém "pode almejar tornar-se um argentário através do magistério".

Apresentando a fragilidade humana, a má vontade e a má fé como as principais responsáveis pela derrota da verdade, diz que precisamos de mestres de "mente límpida e de personalidade retilínea". Condena a hipocrisia, a duplicidade, a dissimulação, as criaturas de natureza viscosa e conclui:

O erro e o dolo provêm principalmente das nossas paixões, do amor-próprio, do espírito de campanário, da inveja, da preguiça, da sensualidade e do ódio, muito mais que dos desvios lógicos, do pensamento, da falta de atenção ou da acuidade intelectual.

*

Sobre o Autor: Ruy Afonso da Costa Nunes nasceu em Sorocaba no dia 13 de maio de 1928, filho de Heitor José da Costa Nunes e Cassilda Lobo da Costa Nunes. Realizou os primeiros estudos no Colégio Santa Escolástica — onde, muitos anos mais tarde, viria a lecionar —, e fez ali sua primeira comunhão. Com a morte do pai, em 1934, a família transferiu-se para Belém do Pará, onde residiam os familiares da mãe. Aos 12 anos, ingressou no Seminário Metropolitano Nossa Senhora da Conceição, dirigido pelos salesianos, e concluiu, em 1947, o estudo de humanidades e filosofia. Aos 19 anos decidiu regressar para a terra natal: mudou-se para São Paulo — onde vivia o tio Carlos Alberto da Costa Nunes — e iniciou o curso de filosofia na Universidade de São Paulo, no Centro Universitário Maria Antônia. Bacharel e licenciado em filosofia, Doutor em educação e Livre-docente de filosofia e ciências da educação da Faculdade de Educação da USP, foi também catedrático de filosofia do Instituto de Educação Dr. Júlio Prestes de Albuquerque, professor fundador da antiga Faculdade de Ciências e Letras de Sorocaba, hoje UNISO, e membro da Academia Sorocabana de Letras; proferiu as aulas inaugurais da Faculdade de Filosofia de Brusque e da Universidade São Judas Tadeu. Além dos quatro volumes de sua História da Educaçãona Antigüidade Cristã (1978), na Idade Média (1979), no Renascimento (1980), e no Século XVII (1981) — publicou A formação intelectual segundo Gilberto de Tournai (1970), Gênese, significado e ensino da filosofia no século XII (1974), A idéia de verdade e a educação (1978), além de inúmeros ensaios e artigos para os principais jornais do país e para as revistas culturais mais relevantes de sua época. Em fevereiro de 2006 celebrou as bodas de ouro com sua esposa Leonor Bruneli da Costa Nunes e suas filhas Maria Cecília, Maria Eleonor e Maria Heloísa, e faleceu no mesmo ano aos 11 de setembro, com 78 anos de idade. Ruy Nunes deixou uma imensa e rara biblioteca, de aproximadamente 30.000 volumes.

***

Leia mais em Definição de educação

Leia mais em A verdadeira filosofia da educação



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Livro A Vida Intelectual

Capa do livro A Vida Intelectual

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Tempo de leitura: 30 min.

Trecho retirado do Prefácio e Introdução do livro A Vida Intelectual de A.-D. Sertillanges publicado pela editora É Realizações, em 2010.

Sinopse: A Vida Intelectual, do padre A.-D. Sertillanges, redigida originalmente em 1920, ainda se mantém atual para os leitores do novo milênio. Para aqueles que desejam não apenas um manual prático que permita esboçar orientações de como entrar na vida dos estudos, o livro vai além e também oferece um exemplo de vida bem-sucedida no mundo intelectual – a do próprio padre Sertillanges, que por meio de dicas preciosas permite e disponibiliza, para qualquer pessoa que tenha abertura e coragem necessárias, uma nova forma de viver que abrange gradualmente a dimensão intelectual e todos os percalços que essa vida traz consigo. A vida intelectual não é uma dimensão separada da vida prática, e sim abarca e transcende esta, trazendo novas possibilidades e responsabilidades diante de si, dos outros e do mundo. Assim, o espírito de uma vida intelectual está no fato de que se ela transcende a vida prática, deve ser no sentido de propiciar um maior entendimento dela. Suas condições são os valores éticos, como a honestidade intelectual e a sinceridade. Seu método consiste nos exemplos que percorrem toda a escrita do padre Sertillanges. Este livro é dedicado a todos aqueles que desejam uma vida plena – em todas as suas potencialidades, e não há nada mais atual que esse desejo.

Prefácio à terceira edição

Será este o momento certo para reeditar um escrito assim? Quando o universo está em chamas, será oportuno jogar sobre as brasas umas folhas de papel para serem queimadas em vez de formar uma fila e bombear água do poço?

O que se há de fazer? De qualquer forma a sensação que se tem é de esmagadora impotência. Mas se o presente só traz tormento e desconcerto, não se deveria passar através de tudo e preocupar-se com o porvir?

O porvir cabe a Deus e a nós, mas numa dada ordem. Ele não cabe antes de tudo à força, e sim ao pensamento. Após uma medonha devastação, será preciso reconstruir. Todos os elementos da civilização devem ser retomados na base. Arquitetos aventurosos virão com projetos. Já alguns se alardeiam. Poderão nossos mestres de obra chegar a um acordo condizente com a amplidão, a harmonia e a solidez que seria de se esperar? Queira Deus! Em todo caso, haverá muito trabalho para a reflexão. Há futuro para o conhecimento sob todos os aspectos que ele pode assumir em nossas complexas civilizações, quer passadas, quer em vias de renascer. O pensamento católico não terá o direito de cruzar os braços, tampouco o terão outros. Para todos os homens de boa vontade a lide vai ser imensa. Convicto de ser detentor da verdade essencial a ele confiada pelo Cristo, o católico tem mais responsabilidade que qualquer um e, para estar à altura de assumi-la, ele tem de estar de posse de todos os seus meios, conferir seus métodos e preparar seu coração pela meditação sobre suas possibilidades bem como sobre suas obrigações.

Este livro não tem outro objetivo senão o de ajudá-lo nessa tarefa. Como em épocas mais calmas e entretanto necessitadas, o leitor saberá avivá-lo com uma chama nova que jorrará de sua própria consciência. Por si só, um texto não é nada, tal como uma viagem por si só tampouco é nada. Uma alma se faz necessária para concatenar entre si os méritos desta e as frases daquele, fazendo jorrar do contato essa luz misteriosa que se chama verdade ou que tem por nome beleza.

O efeito de um livro depende de cada um de nós. A última etapa definitivamente não é a do impresso que sai do editor, mas a do verbo mental que o próprio leitor elabora. Ante o chamado dos acontecimentos e em meio à aflição atual, mais do que nunca no dia seguinte a uma paz adquirida a tão alto preço e que recobrirá tantos destroços, confiamos que as considerações aqui expostas no tocante à vida intelectual encontrarão em nossos moços uma compreensão renovada e uma eficácia superior.

Eis porque reeditamos este trabalho. Sabemos que ele tem de se difundir em outros lugares, bem longe daquele onde veio ao mundo, e é-nos uma alegria pensar que amanhã, a necessidade devendo tornar-se universal, como hoje o caos, nosso humilde esforço poderá se unir ao dos melhores numa atmosfera comum renovada e nos dois mundos.


A.-D. SERTILLANGES, O.P.
Membro do Instituto
1944


Prefácio à segunda edição

A pequena obra hoje reeditada foi reimpressa já muitas vezes. Ela data de 1920. Eu não a havia relido. Eu me perguntava, ao abordá-la com um novo olhar e uma experiência quinze anos mais velha, se nela reconheceria meu pensamento. Encontro-o integralmente, salvo certos matizes que eu não deixarei de levar em consideração na revisão que ora assumo. A razão disso é que estas páginas, na verdade, não têm data. Elas saíram de meu âmago. Já as trazia em mim havia um quarto de século quando eclodiram. Escrevi-as como alguém que expressa suas convicções essenciais e abre seu coração.

O que me dá a confiança de que elas tiveram alcance é, com toda a certeza, sua repercussão de amplas proporções; mas é sobretudo o testemunho de cartas inumeráveis, umas me agradecendo pela ajuda técnica que eu levava até os obreiros do espírito, outras pelo calor que me diziam ter sido transmitido a ânimos jovens ou viris, a maioria por aquilo que parecia ao leitor a revelação dentre todas a mais preciosa: a do clima espiritual próprio à eclosão do pensador, a sua elevação, a seu progresso, a sua inspiração, a sua obra.

Eis aí efetivamente o principal. O espírito tudo rege. É ele que inicia, executa, persevera e conclui. Como ele preside a cada aquisição, a cada criação, ele dirige o trabalho mais secreto e mais exigente que opera sobre si o trabalhador por toda a sua carreira.

Não cansarei, assim espero, o leitor ao insistir uma vez mais nesse todo da vocação de pensador ou de orador, de escritor e de apóstolo. É verdadeiramente a questão prévia; é depois a questão de fundo, e é consequentemente o segredo do sucesso.

Querem os senhores compor uma obra intelectual? Comecem por criar em seu interior uma zona de silêncio, um hábito de recolhimento, uma vontade de despojamento, de desapego, que os deixem inteiramente disponíveis para a obra; adquiram esta disposição das faculdades mentais isenta do peso de desejos e de vontade própria, que é o estado de graça do intelectual. Sem isso, não farão nada, em todo caso, nada que valha.

O intelectual não é filho de si mesmo; ele é filho da Ideia, da Verdade eterna, do Verbo criador e animador imanente a sua criação. Quando pensa corretamente, o pensador segue Deus à risca; ele não segue sua própria quimera. Quando tateia e se debate no esforço da busca, ele é Jacó lutando com o anjo e “forte contra Deus”.

Não é natural, nessas condições, que o homem que recebeu o chamado repudie e esqueça deliberadamente o homem profano? Que deste ele rejeite tudo: sua leviandade, sua inconsciência, seu desleixo no trabalho, suas ambições terrenas, seus desejos orgulhosos ou sensuais, a inconsistência de seu querer ou a impaciência desordenada de seus desejos, suas complacências e suas antipatias, seus humores acrimoniosos ou seu conformismo, toda a inumerável rede de impedimenta [1] que obstruem o caminho do vero e impossibilitam sua conquista?

O temor a Deus é o começo da sabedoria, diz a Escritura. Esse temor filial não é no fundo senão o medo de si. No campo intelectual pode-se chamá-lo de atenção liberada de todas as preocupações inferiores e de fidelidade perpetuamente apreensiva ante a possibilidade de decair. Um intelectual deve estar sempre de prontidão para o pensar, isto é, para receber uma parte da verdade que o mundo carreia em seu curso e que lhe foi preparada, para tal ou qual curva desse curso, pela Providência. O Espírito passa e não volta. Feliz de quem está pronto para não perder, para de preferência até provocar e aproveitar o milagroso encontro!

Toda obra intelectual começa pelo êxtase; só depois se exerce o talento do arranjador, a técnica dos encadeamentos, das relações e da construção. Ora, o que é o êxtase senão um elevar-se para longe de si mesmo, um esquecimento de se viver, de si próprio, para que viva no pensamento e no coração o objeto de nossa embriaguez?

A memória mesma participa desse dom. Existe uma memória baixa, uma memória de papagaio e não de inventor: esta aí causa obstrução, tapando as vias por onde flui o pensamento em proveito de palavras e fórmulas fechadas. Mas há uma memória engatilhada em todas as direções e à espera de uma eterna descoberta. Em seu conteúdo, nada há que venha “já pronto”; suas aquisições são sementes de futuro; seus oráculos são promessas. Ora, tal memória é também extática; ela funciona pelo contato com as fontes de inspiração; de modo algum se compraz de si mesma; o que encerra é novamente intuição, sob o nome de lembrança, e o eu de quem é hóspede se entrega por seu intermédio à exaltante Verdade tanto quanto à busca.

O que é verdadeiro para as aquisições e as consecuções era já verdadeiro para o chamado no início do percurso. Depois das hesitações da adolescência, quase sempre angustiada e perplexa, foi inevitável chegar à descoberta de si, à percepção desse impulso secreto que persegue em nós não sei qual resultado longínquo que a consciência ignora. Supõem que isso seja simples? ”À escuta de si mesmo” é uma outra formulação para esta expressão: À escuta de Deus. É no pensamento criador que jaz nosso ser verdadeiro e nosso eu na forma autêntica. Ora, essa verdade de nossa eternidade, que domina nosso presente e prevê nosso porvir, é-nos revelada tão somente no silêncio da alma, silêncio dos vãos pensamentos que levam ao “divertimento” pueril e dissipador; silêncio dos barulhos de chamada que as paixões desordenadas não se cansam de fazer-nos escutar.

A vocação pede o atendimento, que, num esforço único para sair de si, escuta e atende. 

O mesmo se dará por ocasião da escolha dos meios para ser bem-sucedido, da estruturação de seu modo de vida, de seus relacionamentos, da organização de seu tempo, da partilha entre a contemplação e a ação, entre a cultura geral e a especialização, entre o trabalho e os descansos, entre as concessões necessárias e as intransigências ferozes, entre a concentração que fortalece e as expansões que enriquecem, entre o retrair-se e o relacionar-se com gênios, pessoas com quem se tem afinidade de ideias, com a natureza ou a vida social etc. etc. Tudo isso só é avaliado com sabedoria quando em êxtase também, perto do eternamente verdadeiro, longe do eu que cobiça e é tomado de paixão.

E ao final a dádiva dos resultados e sua extensão estipulada lá no alto exigirão a mesma virtude de acolhida, a mesma postura desinteressada, a mesma paz em uma Vontade que não seja a nossa. Chega-se ao que se pode, e nosso poder precisa avaliar-se, para não se subestimar, de um lado, ou, inversamente, transbordar de presunção e jactância vazia. De onde vem esse julgamento senão de um olhar fiel à verdade impessoal e da submissão a seu veredicto, mesmo que isso nos custe um esforço ou um desapontamento secreto?

Os grandes homens nos parecem ter uma grande ousadia; no fundo, eles são mais obedientes que os outros. A voz soberana os alerta. É porque um instinto provindo dela os aciona que eles tomam, com coragem sempre e às vezes com grande humildade, o lugar que a posteridade lhes conferirá mais tarde, ousando atitudes e arriscando inovações com muita frequência contrárias a seu meio, sendo até mesmo alvo de sarcasmos. Eles não têm medo porque, por mais isolados que pareçam, não se sentem sozinhos. A seu favor está o que tudo decide no final. Eles pressentem seu futuro poder.

Nós temos sem dúvida de lidar com uma humildade de natureza totalmente diversa, nós devemos entretanto ir colher nossa inspiração nas mesmas alturas. É a altitude que mede a pequenez. Quem não possui o sentido das grandezas se deixa exaltar ou abater facilmente, quando não as duas coisas ao mesmo tempo. É para não pensar no escaravelho gigante que a formiga acha o ácaro demasiadamente pequeno, e é para não sentir o vento dos cumes que o caminhante se demora languidamente nas encostas. Sempre conscientes da imensidão da verdade e da exiguidade de nossos recursos, jamais empreenderemos o que está além de nosso alcance, e iremos até o fim do nosso poder. Seremos felizes, então, com o que nos terá sido oferecido à nossa altura.

Não se trata aqui de pura mensuração. O motivo da observação é o fato de que o trabalho insuficiente ou pretensioso é sempre um trabalho malfeito. Uma vida empurrada muito para o alto ou largada muito lá embaixo é uma vida que se desorienta. Uma árvore pode ter uma rama e uma floração medíocre ou magnífica: ela não as chama e não as constrange; sua alma vegetal desabrocha pela ação da natureza no geral e das influências do ambiente. Nossa própria natureza geral é o pensamento eterno; recorremos a ele com as forças que dele provêm e com os instrumentos que ele nos fornece: deve haver concordância entre o que recebemos em matéria de dons – incluindo-se a coragem – e o que devemos esperar em matéria de resultados.

O que não haveria para se dizer sobre essa disposição fundamental, ante um destino inteiramente dedicado à vida pensante! Mencionei as resistências e as incompreensões que agem contra os grandes; mas elas atingem também os pequenos: como resistir a elas sem um puro apego ao verdadeiro e sem autoesquecimento? Quando não se procura agradar o mundo, ele se vinga; se por acaso se consegue agradá-lo, ele ainda assim se vinga nos corrompendo. A única saída é trabalharmos longe dele, tão indiferentes a seu julgamento quanto prontificando-nos a ser-lhe úteis. O bom é, talvez, que ele nos repele e nos obriga assim a retirar-nos para nosso próprio interior, a crescermos por dentro, a controlar-nos, a aprofundar-nos. Esses benefícios vêm à proporção que nosso desinteresse se torna superior, isto é, que nosso interesse se centra naquilo que é o unicamente necessário.

Estaríamos nós mesmos sujeitos, para com outrem, às tentações da difamação, da inveja, das críticas sem fundamento, das disputas? Teríamos então de nos lembrar que inclinações como essas, ao perturbar o espírito, são nocivas à verdade eterna e são incompatíveis com seu culto.

É preciso observar nesse particular que a difamação, até um determinado nível, é mais aparente do que real e tem algum valor para a formação da opinião geral. Nós nos enganamos com frequência sobre o modo como os mestres falam uns dos outros. Eles se criticam severamente, mas bem sabem, mutuamente, o que valem, e criticam os outros quando não atribuem importância a isso.

Seja como for, o progresso em comum precisa de paz e de ação conjunta e sofre grande atraso por conta de estreitezas. Diante da superioridade de outrem, só resta uma atitude honrosa: amá-la, e ela se torna assim nossa própria alegria, nossa própria fortuna.

Uma fortuna diferente poderá nos tentar: a que se obtém mediante um êxito exterior, a bem dizer, hoje em dia, bastante raro, quando se trata de um verdadeiro intelectual. O público, de modo geral, é vulgar e só gosta da vulgaridade. Os editores de Edgar Poe diziam ser obrigados a pagar-lhe menos do que a outros, porque ele escrevia melhor que os outros. Conheci um pintor a quem um marchand de arte dizia: “Seria bom tomar umas aulas.” – ?... – “Sim, para aprender a não pintar tão bem”. O homem dedicado à perfeição não entende essa linguagem; ele não aceita por preço algum, sob forma alguma, ser um seguidor do que Baudelaire chamava de zoocracia. Mas e se essa dedicação esmorecesse?...

Mesmo não dando importância aos juízos de terceiros, não estamos nós à mercê, quando a sós, dos tolos julgamentos da vaidade e da puerilidade instintiva? “Nunca cales, nunca escondas de ti o que se pode pensar contra teu próprio pensamento”, escreve Nietzsche. Já não se trata mais aí dos incompetentes e dos curiosos, e sim de nosso próprio testemunho em estado vigilante e íntegro. Quantas vezes não gostaríamos de desconversar, de alcançar a autossatisfação mesmo que enganosa, de dar-nos a preferência conquanto indevidamente! A severidade para consigo, tão propícia à retidão dos pensamentos e à preservação destes contra os mil riscos da busca, é um ato de heroísmo. Como declarar-se culpado e amar sua condenação sem o amor desvairado daquilo que julga?

Isso se corrige, é verdade, por um apego intransigente às nossas persuasões profundas, às intangíveis intuições que se encontram na base de nosso esforço e até de nossa crítica. Não se constrói sobre o nada, e os retoques do artesão não afetam os primeiros alicerces. O que está assimilado e averiguado deve ser resguardado de retratações infundadas e de escrúpulos. É o mesmo amor pela verdade que assim o quer; é o mesmo desinteresse que se interessa, em nós, por aquilo que nos supera e que nem por isso deixou de vir alojar-se em nossa consciência. Apreciações como essas são delicadas; elas são porém necessárias. Sob hipótese alguma as elevadas certezas sobre as quais se assenta todo o trabalho da inteligência devem ser abaladas.

É inclusive o caso de defender-se, em nome desse mesmo apego, contra este melhor que se chamou muito adequadamente de inimigo do bom. Pode ocorrer, ao ampliar-se o campo da pesquisa, que ela se enfraqueça, e pode ocorrer, ao aprofundar-se nela para além de determinados limites, que o espírito fique perturbado e não consiga alcançar nada além de perplexidade. A estrela que se fita de modo por demais ardente e contínuo pode, em razão desse próprio fator, pôr-se a piscar cada vez mais e acabar desaparecendo do céu.

Não decorre daí que se deva evitar aprofundar-se, nem tampouco desprezar essa vasta cultura que é uma condição para o aprofundamento em qualquer setor; mas alerto contra os excessos, e aponto que o puro apego ao que é verdadeiro, sem paixão pessoal, sem frenesi, é o que constitui sua especificidade.

Existe ainda uma outra defesa contra a precipitação nos julgamentos e na elaboração das obras. Ninguém se deixa ofuscar, quando ama a verdade, por uma ideia brilhante à qual se deu por auréola meras banalidades. Não é assim que uma obra adquire seu valor. Pode acontecer que o mais medíocre dos seres encontre uma ideia, como se fosse um diamante bruto ou uma pérola. O difícil é lapidar essa ideia e sobretudo engastá-la na joia da verdade que será a verdadeira criação.

“Na categoria dos leitores precipitados de uma obra”, diz o sr. Ramon Fernandez usando uma formulação divertida, “eu incluiria de bom grado o autor da mencionada obra”. Está muito bem! Mas de onde provém essa pressa negligente, que absolve de antemão um leitor menos interessado e menos responsável? Ela deverá ser evitada, por uma dedicação mais profunda tão somente à verdade.

Será preciso igualmente abster-se de se lançar sobre um tema específico que se gostaria de desenvolver sem ter investigado seus antecedentes gerais e seus vínculos. Ser múltiplo por longo tempo é a condição para ser uno sem perder a riqueza. A unidade do ponto de partida não é senão um vazio. Isso se sente quando a elevada e misteriosa verdade tem nosso culto. Se não utilizarmos então tudo quanto aprendemos, restará no que dissermos uma ressonância secreta, e a confiança recompensa essa plenitude. É um grande segredo o de saber fazer com que uma ideia se irradie graças a seu fundo feito de noite crepuscular. Outro segredo é o de fazer-lhe conservar, apesar desse fulgor, sua força de convergência.

O fracasso nos espreita, ou chega a ser sequer sentido? É hora de se refugiar no culto imutável, incondicionado, que havia inspirado o esforço. “Meu cérebro se transformou num retiro para mim”, escreve Charles Bonnet. Acima do cérebro está aquilo a que ele se consagra, e o retiro, então, é de uma segurança toda especial. Mesmo à custa de muita dor, a criação é uma alegria, e, mais do que a criação, a veneração da ideia de onde ela procede.

De mais a mais, como observava Foch, “é com resíduos que se ganham as batalhas”. Um fracasso em tal coisa é o que prepara para uma vitória em tal outra, para uma vitória, em suma, como fica assegurado a qualquer um que tenha mérito e faça esforço.

*

Quero assinalar um último efeito da submissão absoluta da qual acabo de tecer o elogio. Ela limita nossas pretensões não apenas pessoais, mas também humanas. A razão não pode tudo. Sua última ação, segundo Pascal, consiste em constatar seus limites. Ela o faz tão somente se ela se entregou à sua primeira lei, que não é sua verdade própria, encarada como propriedade ou como conquista, mas a Verdade impessoal e eterna.

Aqui, mais nenhuma limitação para a honra, pelo próprio fato de se haver renunciado à fatuidade. O mistério compensa. A fé substituída à busca arrasta o espírito em vastidões que ele jamais teria conhecido por si mesmo, e a luminosidade de seu próprio plano só tem a ganhar com o fato de que astros longínquos o obriguem a voltar o olhar para o céu. A razão tem por ambição apenas um mundo; a fé lhe dá a imensidão.

*

Não quero prolongar mais esse discurso. Tornar-se-á necessariamente a encontrá-lo, visto ser seu objeto o de assinalar onde está o todo.

Este todo, defendi-lhe os direitos com uma incapacidade de que tenho plena consciência e pela qual peço desculpas. Faço votos de que minhas sugestões no que toca a ele, por mais insuficientes que sejam, contribuam para trazer até ele melhores panegiristas e mais ardentes servidores.


A.-D. Sertillanges
Dezembro de 1934


Introdução

Encontra-se entre as obras de Santo Tomás uma carta a um certo frei João, onde são enumerados Dezesseis Preceitos para Adquirir o Tesouro da Ciência. Essa carta, seja ela autêntica ou não, pede para ser examinada em si mesma; ela não tem preço; gostar-se-ia de deixar gravados todos os seus termos no íntimo do pensador cristão. Acabamos de publicá-la mais uma vez na sequência das Orações do mesmo Doutor, nas quais se condensa seu pensamento religioso e transparece sua alma [2].

Tivemos a ideia de comentar os Dezesseis Preceitos a fim de anexar-lhes o que pode vir a ser útil lembrar aos estudiosos modernos. Na prática, esse procedimento nos pareceu um tanto limitado, preferimos agir mais livremente. Mas a substância desse pequeno volume nem por isso deixa de ser totalmente tomista; nele se encontrará o que nos Dezesseis Preceitos, ou em algum outro escrito, o mestre sugere quanto aos caminhos por onde conduzir o espírito.

*

Este livrinho não tem a pretensão de substituir As Fontes; ele em parte faz referência a elas. O autor não esqueceu, não mais que muitos outros sem dúvida, a comoção de seus vinte anos, quando o padre Gratry estimulava nele o ardor pelo saber.

Numa época que tanto necessita de luz, vamos lembrar tão frequentemente quanto possível as condições que permitem obter-se luz e preparar sua difusão por meio de obras.

*

Não se tratará aqui da produção em si mesma: seria o objeto de um outro trabalho. Mas a mente é sempre a mesma, quer ao propiciar o enriquecimento, quer ao proceder a um sábio dispêndio.

Devendo dizer mais para a frente que o dispêndio é nesse caso um dos meios da aquisição, não podemos duvidar da identidade dos princípios que tornam, em ambas as situações, nossa atividade intelectual fecunda.

É uma razão para ter a esperança de ser útil a todos.


CHANDOLIN, 15 de agosto de 1920


Notas:

[1] Em latim no original. (N. E.)

[2] Les Prières de Saint Thomas d’Aquin [As Orações de Santo Tomás de Aquino]. Tradução e apresentação de A.-D. Sertillanges. Paris, Librairie de l’Art Catholique.


Sobre o autor: Antonin-Dalmace Sertillanges, conhecido também como Antonin-Gilbert Sertillanges ou Antonin Sertillanges (Clermont-Ferrand, 16 de novembro de 1863 – Sallanches, 26 de julho de 1948), foi um filósofo e teólogo francês, considerado como um dos maiores expoentes do neotomismo da primeira metade do séc. XX.

Em 1883 ingressa na ordem dos dominicanos, mudando o próprio nome para Antonin-Gilbert. Chefe de redação da Revue Thomiste, em 1900 é nomeado professor de Ética do Institut Catholique de Paris, onde permanecerá até 1922. A publicação do seu monumental Thomas D’Aquin (1910) dá-lhe notoriedade nacional e internacional. Em 1918 é eleito membro da Académie des Sciences Morales et Politiques. Depois de um longo período em Jerusalém (1923), transfere-se para o convento de Le Saulchoir como professor de Ética Social, fazendo-se cada vez mais notar como um dos principais representantes do neotomismo francês, ao lado de Jacques Maritain e Etienne Gilson. De volta a Paris em 1940, falece oito anos depois, aos 85 anos, de parada cardíaca durante uma convenção num convento de Haute Savoie.

Segundo Sertillanges, toda atividade humana e todo saber encontram a própria razão de ser no cristianismo. Em Le Christianisme et les Philosophies, publicado em dois volumes, em 1939 e em 1941, trata os dados do próprio pensamento segundo as relações entre cristianismo e filosofia. Depois da aparição dos Evangelhos não pode haver filosofia alguma que possa prescindir dos seus ensinamentos. Segundo Sertillanges: “Sem o cristianismo não haveria nenhuma filosofia aceitável (...) todas as que apareceram depois do Evangelho, por mais úteis que sejam se fundidas com ele, jamais poderiam sozinhas trazer qualquer benefício à nossa civilização (...)”.

O teólogo francês é também um profundo conhecedor e admirador de Santo Tomás, de quem se aproximou desde que, no final do séc. XIX, foi nomeado chefe de redação da Revue Thomiste. A sua biografia do santo, publicada, como já se disse, em 1910, é uma obra imprescindível a todos que desejam aprofundar-se no estudo da vida e da obra do Aquinate. Voltará a ocupar-se de Santo Tomás em La Philosophie Morale de Saint Thomas D’Aquin (1916) e Les Grandes Thèses de la Philosophie Thomiste (1928). De Santo Tomás, Sertillanges aprecia sobretudo a aguda inteligência amparada em sólida fé e em vigorosa tensão espiritual. Logra, além disso, extrair a radical modernidade da metafísica tomista do ser (em latim, esse) e sua profunda autonomia em relação a Aristóteles, que, não obstante, o santo tinha por modelo. Escreve o filósofo francês: “[Santo Tomás] não hesita em afastar-se da autoridade de Aristóteles sempre que lhe pareça justo (...) ele engrandece a doutrina de Aristóteles e a enriquece infinitamente (...)”.

Sertillanges também é conhecido por seus estudos sobre Pascal (Blaise Pascal, 1941) e sobre Bergson (Henri Bergson et le Catholicisme, 1941), a quem era ligado por uma profunda amizade. Os seus ensaios de divulgação têm tido difusão enorme, como os teológicos Catéchisme des Incroyants (1930) e Dieu ou Rien? (1933), além de La Vie Catholique (1921) e Recueillement (1935), de inspiração moral. O teólogo também tratou de aspectos estéticos do culto cristão, sobretudo em Un Pèlerinage Artistique à Florence (1895) e Art et Apologétique (1909).

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Leia mais em Matemática e Vida Intelectual

Leia mais em DICAS E SUGESTÕES PARA ESTUDAR SOZINHO (Para alunos do ensino fundamental e médio)



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Lista de Livros Clássicos, segundo o Instituto Hugo de São Vitor

Um bom livro - Walther Firle

Continuando nossas listas de livros, temos uma excelente que foi retirada do livro Coleção de Artes Liberais Vol. 2: Gramática do Instituto Hugo de São Vitor, 2020. Estes livros moldaram e formaram a Civilização Ocidental. Recomendo fortemente que leia também as lições (contida no vol. 2 do livro citado) que estão diretamente atreladas a esta lista. Essas lições trazem consigo comentários e justificativas para leitura de tais livros.

Abaixo segue algumas listas já publicadas.

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 1

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 2

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 3

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 4

Livros para aprender bem Matemática


1. Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões.

2. Ilíada, de Homero. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 

3. Odisseia, de Homero. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 

4. Eneida, de Virgílio. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

5. O Mundo de Homero, de Andrew Lang.

6. A Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo.

7. História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides.

8. Fábulas, de Esopo

9. Contos dos Irmãos Grimm.

10. Sete contra Tebas, de Ésquilo.

11. Édipo Rei, de Sófocles.

12. As Bacantes, de Eurípedes.

13. Trilogia das Barcas, de Gil Vicente.

14. Divina Comédia, de Dante Alighieri.

15. Confissões, de Santo Agostinho.

16. Dom Casmurro, de Machado de Assis.

17. Quincas Borba, de Machado de Assis.

18. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

19. Metamorfoses, de Ovídio.

20. As Odes, de Horário.

21. Gênesis em latim e em português, livro da Bíblia.

22. Salmos, livro da Bíblia.

23. Rimas, de Luiz Vaz de Camões.

24. As Poesias Satíricas, de Gregório de Matos.

25. Segundo volume das obras de Manuel Maria Barbosa Du Bocage, editado por Theophilo Braga.

26. Mensagem, de Fernando Pessoa.

27. A Cinza das Horas, de Manuel Bandeira.

28. Os Escravos, de Castro Alves.

29. Últimos Cantos, de Gonçalves Dias.

30. Evangelho segundo Mateus, livro da Bíblia.

31. Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.

32. Folhas Caídas, de Almeida Garret.

33. Rei Lear, de William Shakespeare.

34. Dom Quixote, de Miguel Cervantes.

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Leia mais em O que é educação clássica

Leia mais em A Educação em Ilíada e Odisseia

Leia mais em Matemática Sagrada na Divina Comédia de Dante



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O que é Educação?

Mãe e filha, George Goodwin Kilburne (1839 - 1924)



Tempo de leitura: 12 minutos.

Prefácio do livro O problema da Educação Brasileira, de Cláudio Titericz, Editora ISA, 2023.

O QUE É EDUCAÇÃO?

Depois de mais de 33 anos de vida militar, alguns deles passados na sala de aula como professor de Escolas Militares, resolvi me dedicar ao estudo da educação. Esta vontade me veio ao saber das constantes ingerências do Ministério da Educação no ensino nacional, da minha curta passagem por aquele órgão e pelo interesse em estudar Filosofia, principalmente Filosofia da Educação. Este livro é fruto direto deste tempo dedicado a este estudo.

Inicialmente, descobri que há uma profunda diferença entre Educação e Ensino. Observei, então, que o nosso Ministério da Educação não estava, e não está ainda hoje, preocupado com a educação, mas, tão somente, com o ensino. E, qual é a diferença básica? Posso responder de forma muito coloquial, que educar é mudar o comportamento, enquanto o ensinar é transmitir uma habilidade ao indivíduo.

Verifiquei que a educação, assim entendida, é uma obra de toda a vida porque envolve a construção de todo o ser da pessoa que é educada. Dessa maneira, podemos ser educados até o fim de nossa existência terrena e, uma vez educado, pode-se melhorar como ser humano. Claro que precisei aprender qual era e é a natureza deste ser humano, qual o seu fim último, qual a história de como se educou antes de nós e cheguei a algumas conclusões preocupantes.

A primeira coisa que fiz foi entender como funciona o ser humano, uma vez que teria que mudar seu comportamento, caso quisesse educar alguém. Grandes obstáculos surgiram uma vez que as ciências atuais classificam o ser humano cada qual como um objeto distinto. Ou seja, as ciências biológicas pensam em uma máquina biológica, as ciências sociais imaginam como um ser social, as psicológicas como ser emocional, as ciências religiosas como um ser imortal, as ciências econômicas como um ser trabalhador, entre outras.

Mas, afinal, o que é o ser humano? Qual o seu fim? A resposta para esta pergunta é fundamental, pois irá definir claramente o que deve, ou deveria, ser a educação. Ao caminharmos com os gregos antigos observei que entendiam que este ser era especial em relação a todo o restante da natureza. Tinha uma psicologia diferente que podia ser moldada por meio de um processo chamado educação. Uma palavra em especial me chamou a atenção nesta parte inicial do estudo grego que era a "arete", a qual poderíamos traduzir por virtude. Não poderia haver educação ("Paideia") sem "arete". E este conjunto de virtudes que levava este nome passava pela coragem, pela eloquência e pelo discernimento, que fazia a pessoa ser conduzida ao seu mais alto grau de potencialidade intelectual. Este estado intelectual era chamado de contemplação. Ficava claro para os gregos que o ser humano era corpo ("soma") e alma ("psique"). O corpo estava relacionado ao material e a alma era a parte mais importante porque era ali que se encontrava o intelecto capaz de contemplar. Esta alma era considerada imortal, justamente por não ser material e, na morte, não se corromperia. O fim do ser humano era, para os gregos, a contemplação natural, atingida por intermédio do desenvolvimento máximo da inteligência.

Continuando na busca de entender o que é a antropologia humana, verifiquei que no Cristianismo a interpretação do que é o ser humano ganhou algo a mais. Além de entender que existia corpo e alma, São Paulo (1Ts 5,23) acrescentou o espírito ("pneuma") que é algo sobrenatural. Neste caso, a educação que os cristãos desenvolveram por determinação do Cristo (Mt 28,20), incluiu este fator no processo educativo. Com o espírito, podia se ter a infusão de virtudes diretamente na alma que iam além da "arete" e estas eram as virtudes infusas apresentadas tão bem por Santo Tomás de Aquino. Este fator espiritual influenciou sociologicamente toda a história do ocidente e, porque não dizer, de todo o mundo. O fim do ser humano, para o cristão, é unir-se a Deus por meio de Jesus Cristo, para isto precisaria desenvolver uma vida espiritual. Mas foi nesta época, e por diversas razões, que esta educação foi sendo atacada e o entendimento de que o ser humano seria muito mais que corpo e alma foi decrescendo. Diante da Reforma Protestante, a Igreja Católica tentou retomar, por meio dos jesuítas, a mesma educação cristã do primeiro milênio, mas não conseguiu. Atingiu o que podemos chamar de Escola Clássica, a qual era muito semelhante à dos gregos, entretanto, sem a consideração adequada do espírito.

O processo de parar a derrocada da educação cristã foi retardado, mas não parou. O Barão de Montesquieu algum tempo depois, já próximo da Revolução Francesa, definiu que para haver uma nação sólida e democrática a virtude que deveria ser passada de geração em geração seria a virtude chamada de cívica. O fim, para este filósofo, era formar um cidadão de alto nível intelectual e que tivesse um grande apresso pelo bem comum. E foi com estas ideias que se formaram e desenvolveram os Estados Unidos da América, fato que os levou a ser a primeira potência mundial. Verifiquei que neste país, a escola clássica foi adotada juntamente com as ideias de virtude cívica, levando a concluir que este sucesso global deve ter sido atribuído a este modelo educacional adotado. Esta conclusão é baseada na ideia de que se uma nação for educada convenientemente irá progredir.

Entretanto, o processo de decadência educacional foi continuando. Mesmo nos Estados Unidos, a educação foi apagando a ideia de alma, ficando apenas com o corpo. Isto ocorreu com o surgimento de um movimento econômico iniciado na Revolução Industrial e veio paulatinamente alterando a ordem social, tornando-a secundarizada e a educação começou a preocupar-se apenas com o lado material e econômico e é isto o que chamamos ensino. Esquecendo-se da alma e do espírito, o que resta é o corpo material. Desta forma, para o ensino não é mais necessário receber nem a virtude cívica, nem a virtude infusa e nem a "arete". Verifiquei que foi necessário nesta mudança educacional uma nova formulação cosmológica, a qual se adaptasse a esta nova estrutura sociológica.

Ao chegar com meu estudo à atualidade, observei meu equívoco em confundir educação e ensino. Estava crendo que o ser humano era apenas corpo e que, portanto, não precisa desenvolver a inteligência que está na alma, bastava ensinar o corpo, bastava ensinar aos meus filhos uma profissão e pronto. Mas os educadores americanos também viram isto e admitiram que a educação nacional estava sendo tratada como uma linha de montagem, onde se colocava um "input" e se esperava no fim do processo de ensino apenas um "output". O objetivo era colocar a criança o mais cedo possível na produção econômica e retirá-la do convívio familiar o quanto antes, pois este atrapalhava o ensino voltado para o consumo. O fim último deste ser humano atual é ser um agente econômico.

Como conclusão simples, rápida e óbvia, verifiquei que o ensino atual, centralizado e voltado exclusivamente para a economia, o qual muitos ainda pensam tratar-se de educação, considera os estudantes como seres humanos incompletos que têm uma finalidade muito diferente daquela dos gregos, dos cristãos ou da escola clássica. E uma pergunta me veio ao finalizar este estudo: será que temos uma saída para resgatar este ser humano e elevá-lo ao patamar que sua dignidade merece?

Este livro traz uma síntese de como responder esta questão, além de pretender introduzir o leitor no mundo da educação. Várias pessoas auxiliaram em algum momento o trabalho e desde já agradeço suas colaborações. Este é um conjunto de temas que contém uma sequência que se inicia com uma ideia de como se formou a educação no Brasil. Depois, passamos pela legislação pertinente, mostrando a evolução da mesma e pelo estudo da montagem de um currículo e dos problemas da avaliação. Em seguida, veremos o atual estágio da economização da educação no nosso país e no mundo e provaremos a ampla e determinante influência desta na nossa situação atual. Seguindo no estudo básico sobre a educação no Brasil, temos que entender como pensava um verdadeiro educador que é Anísio Teixeira e, chegando ao final, mergulhamos nas diversas siglas que perpassam o ambiente acadêmico e do dia a dia da educação e do ensino nacionais.

Cada um dos capítulos pode ser estudado independentemente, mas ficará melhor entendido quando feito em conjunto com os demais, pois, de uma forma ou de outra se complementam. São conhecimentos iniciais para quem deseja adentrar no ambiente educacional atual.

Espero que tenha um bom proveito no estudo.

Curitiba, PR, 30 de abril de 2022. 
CLAUDIO TITERICZ [1]

Notas:

[1] Coronel da reserva do Exército Brasileiro, Dr. Cláudio é bacharel, mestre e doutor em Ciências Militares, bacharel em Teologia, estudante de Filosofia da Educação, ex-diretor de Programas da Secretaria-Executiva do Ministério da Educação e um dos fundadores do Instituto de Biopolítica Zenith (Nota da Revisora).

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O Xadrez e a Matemática

Templários disputando uma partida de Xadrez
— Iluminura do “Libro de los Juegos

Tempo de Leitura: 24 minutos

Texto retirado do livro O homem que calculava de Malba Tahan, Editora Record.

Contextualizando, no capítulo XV, Beremir, o homem que calculava, estava falando sobre quadrados mágicos e agora contará ao rei sobre a origem do jogo de xadrez.

***

A seguir, o brilhante calculista tomou do tabuleiro de xadrez e disse, voltando-se para o rei:

— Este velho tabuleiro, dividido em 64 casas pretas e brancas, é empregado, como sabeis, no interessante jogo que um hindu chamado Lahur Sessa, inventou, há muitos séculos, para recrear um rei da Índia. A descoberta do jogo de xadrez acha-se ligada a uma lenda que envolve cálculos, números, e notáveis ensinamentos.

— Deve ser interessante ouvi-la! — atalhou o califa. — Quero conhecê-la!

— Escuto e obedeço — respondeu Beremiz.

E narrou a seguinte história:

Capítulo XVI 

Onde se conta a famosa lenda sobre a origem do jogo de xadrez. A lenda é narrada ao califa de Bagdá, Al-Motacém Bilah, Emir dos Crentes, por Beremiz Samir, o Homem que Calculava.

Difícil será descobrir, dada a incerteza dos documentos antigos, a época precisa em que viveu e reinou na Índia um príncipe chamado Iadava, senhor da província da Taligana. Seria, porém, injusto ocultar que o nome desse monarca vem sendo apontado por vários historiadores hindus como dos soberanos mais ricos e generosos de seu tempo.

A guerra, com o cortejo fatal de suas calamidades, muito amargou a existência do rei Iadava, transmutando-lhe o ócio e gozo da realeza nas mais inquietantes atribulações. Adstrito ao dever, que lhe impunha a coroa, de zelar pela tranquilidade de seus súditos, viu-se o nosso bom e generoso monarca forçado a empunhar a espada para repelir, à frente de pequeno exército, um ataque insólito e brutal do aventureiro Varangul, que se dizia príncipe de Caliã.

O choque violento das forças rivais juncou de mortos os campos de Dacsina e tingiu de sangue as águas sagradas do Rio Sandhu. O rei Iadava possuía — pelo que nos revela a crítica dos historiadores — invulgar talento para a arte militar; sereno em face da invasão iminente, elaborou um plano de batalha, e tão hábil e feliz foi em executá-lo, que logrou vencer e aniquilar por completo os pérfidos perturbadores da paz do seu reino.

O triunfo sobre os fanáticos de Varangul custou-lhe, infelizmente, pesados sacrifícios; muitos jovens quichatrias [1] pagaram com a vida a segurança de um trono para prestígio de uma dinastia; e entre os mortos, com o peito varado por uma flecha, lá ficou no campo de combate o príncipe Adjamir, filho do rei Iadava, que patrioticamente se sacrificou no mais aceso da refrega, para salvar a posição que deu aos seus a vitória final.

Terminada a cruenta campanha e assegurada a nova linha de suas fronteiras, regressou o rei ao suntuoso palácio de Andra, baixando, porém, formal proibição de que se realizassem as ruidosas manifestações com que os hindus soíam festejar os grandes feitos guerreiros. Encerrado em seus aposentos, só aparecia para atender aos ministros e sábios brâmanes quando algum grave problema nacional o chamava a decidir, como chefe de Estado, no interesse e para felicidade de seus súditos.

Com o andar dos dias, longe de se apagarem as lembranças da penosa campanha, mais se agravaram a angústia e a tristeza que, desde então, oprimiam o coração do rei. De que lhe poderiam servir, na verdade, os ricos palácios, os elefantes de guerra, os tesouros imensos, se já não mais vivia a seu lado aquele que fora sempre a razão de ser de sua existência? Que valor poderiam ter, aos olhos de um pai inconsolável, as riquezas materiais que não apagam nunca a saudade do filho estremecido?

As peripécias da batalha em que pereceu o príncipe Adjamir não lhe saíam do pensamento. O infeliz monarca passava longas horas traçando, sobre uma grande caixa de areia, as diversas manobras executadas pelas tropas durante o assalto. Com um sulco indicava a marcha da infantaria; ao lado, paralelo ao primeiro, outro traço mostrava o avanço dos elefantes de guerra; um pouco mais abaixo, representada por pequenos círculos dispostos em simetria, perfilava a destemida cavalaria chefiada por um velho radj [2] que se dizia sob a proteção de Techandra, a deusa da Lua. Ainda por meio de gráficos esboçava o rei a posição das colunas inimigas desvantajosamente colocadas, graças à sua estratégia, no campo em que se feriu a batalha decisiva.

Uma vez completado o quadro dos combatentes, com as minudências que pudera evocar, o rei tudo apagava, para recomeçar novamente, como se sentisse íntimo gozo em reviver os momentos passados na angústia e na ansiedade.

À hora matinal em que chegavam ao palácio os velhos brâmanes para a leitura dos Vedas [3], já o rei era visto a riscar na areia os planos de uma batalha que se reproduzia interminavelmente.

— Infeliz monarca! — murmuravam os sacerdotes penalizados. — Procede como um sudra [4] a quem Deus privou da luz da razão. Só Dhanoutara [5], poderosa e clemente, poderá salvá-lo!

E os brâmanes erguiam preces, queimavam raízes aromáticas, implorando à eterna zeladora dos enfermos que amparasse o soberano de Taligana.

Um dia, afinal, foi o rei informado de que um moço brâmane — pobre e modesto — solicitava uma audiência que vinha pleiteando havia já algum tempo. Como estivesse, no momento, com boa disposição de ânimo, mandou o rei que trouxessem o desconhecido à sua presença.

Conduzido à grande sala do trono, foi o brâmane interpelado, conforme as exigências da praxe, por um dos vizires do rei.

— Quem és, de onde vens e que desejas daquele que, pela vontade de Vichnu [6], é rei e senhor de Taligana?

— Meu nome — respondeu o jovem brâmane — é Lahur Sessa [7] e venho da aldeia de Namir, que trinta dias de marcha separam desta bela cidade. Ao recanto em que eu vivia chegou a notícia de que o nosso bondoso rei arrastava os dias em meio de profunda tristeza, amargurado pela ausência de um filho que a guerra viera roubar-lhe. Grande mal será para o país, pensei, se o nosso dedicado soberano se enclausurar, como um brâmane cego, dentro de sua própria dor. Deliberei, pois, inventar um jogo que pudesse distraí-lo e abrir em seu coração as portas de novas alegrias. É esse o desvalioso presente que desejo neste momento oferecer ao nosso rei Iadava.

Como todos os grandes príncipes citados nesta ou naquela página da História, tinha o soberano hindu o grave defeito de ser excessivamente curioso. Quando o informaram da prenda de que o moço brâmane era portador, não pôde conter o desejo de vê-la e apreciá-la sem mais demora.

O que Sessa trazia ao rei Iadava consistia num grande tabuleiro quadrado, dividido em sessenta e quatro quadradinhos, ou casas, iguais; sobre esse tabuleiro colocavam-se, não arbitrariamente, duas coleções de peças que se distinguiam, uma da outra, pelas cores branca e preta, repetindo, porém, simetricamente, os engenhosos formatos e subordinados a curiosas regras que lhes permitiam movimentar-se por vários modos.

Sessa explicou pacientemente ao rei, aos vizires e cortesãos que rodeavam o monarca em que consistia o jogo, ensinando-lhes as regras essenciais:

— Cada um dos partidos dispõe de oito peças pequeninas — os peões. Representam a infantaria, que ameaça avançar sobre o inimigo para desbaratá-lo. Secundando a ação dos peões vêm os elefantes de guerra [8], representados por peças maiores e mais poderosas; a cavalaria, indispensável no combate, aparece, igualmente, no jogo, simbolizada por duas peças que podem saltar, como dois corcéis, sobre as outras; e, para intensificar o ataque, incluem-se — para representar os guerreiros cheios de nobreza e prestígio — os dois vizires [9] do rei. Outra peça, dotada de amplos movimentos, mais eficiente e poderosa do que as demais, representará o espírito de nacionalidade do povo e será chamada a rainha. Completa a coleção uma peça que isolada pouco vale, mas se torna muito forte quando amparada pelas outras. É o rei.

O rei Iadava, interessado pelas regras do jogo, não se cansava de interrogar o inventor:

— E por que é a rainha mais forte e mais poderosa que o próprio rei?

— É mais poderosa — argumentou Sessa — porque a rainha representa, nesse jogo, o patriotismo do povo. A maior força do trono reside, principalmente, na exaltação de seus súditos. Como poderia o rei resistir ao ataque dos adversários, se não contasse com o espírito de abnegação e sacrifício daqueles que o cercam e zelam pela integridade da pátria?

Dentro de poucas horas o monarca, que aprendera com rapidez todas as regras do jogo, já conseguia derrotar os seus dignos vizires em partidas que se desenrolavam impecáveis sobre o tabuleiro.

Sessa, de quando em quando, intervinha respeitoso, para esclarecer uma dúvida ou sugerir novo plano de ataque ou de defesa.

Em dado momento, o rei fez notar, com grande surpresa, que a posição das peças, pelas combinações resultantes dos diversos lances, parecia reproduzir exatamente a batalha de Dacsina.

— Reparai — ponderou o inteligente brâmane — que para conseguirdes a vitória, indispensável se torna, de vossa parte, o sacrifício deste vizir!

E indicou precisamente a peça que o rei Iadava, no desenrolar da partida — por vários motivos —, grande empenho pusera em defender e conservar.

O judicioso Sessa demonstrava, desse modo, que o sacrifício de um príncipe é, por vezes, imposto como uma fatalidade, para que dele resultem a paz e a liberdade de um povo.

Ao ouvir tais palavras, o rei Iadava, sem ocultar o entusiasmo que lhe dominava o espírito, assim falou:

— Não creio que o engenho humano possa produzir maravilha comparável a este jogo interessante e instrutivo! Movendo essas tão simples peças, aprendi que um rei nada vale sem o auxílio e a dedicação constante de seus súditos. E que, às vezes, o sacrifício de um simples peão vale mais, para a vitória, do que a perda de uma poderosa peça.

E, dirigindo-se ao jovem brâmane, disse-lhe:

— Quero recompensar-te, meu amigo, por este maravilhoso presente, que de tanto me serviu para alívio de velhas angústias. Dize-me, pois, o que desejas, para que eu possa, mais uma vez, demonstrar o quanto sou grato àqueles que se mostram dignos de recompensa.

As palavras com que o rei traduziu o generoso oferecimento deixaram Sessa imperturbável. Sua fisionomia serena não traía a menor agitação, a mais insignificante mostra de alegria ou surpresa. Os vizires olhavam-no atônitos e entreolhavam-se pasmados diante da apatia de uma cobiça a que se dava o direito da mais livre expansão.

— Rei poderoso! — redargüiu o jovem com doçura e altivez. — Não desejo, pelo presente que hoje vos trouxe, outra recompensa além da satisfação de ter proporcionado ao senhor de Taligana um passatempo agradável que lhe vem aligeirar as horas dantes alongadas por acabrunhante melancolia. Já estou, portanto, sobejamente aquinhoado e outra qualquer paga seria excessiva.

Sorriu, desdenhosamente, o bom soberano ao ouvir aquela resposta que refletia um desinteresse tão raro entre os ambiciosos hindus. E, não crendo na sinceridade das palavras de Sessa, insistiu:

— Causa-me assombro tanto desdém e desamor aos bens materiais, ó jovem! A modéstia, quando excessiva, é como o vento que apaga o archote cegando o viandante nas trevas de uma noite interminável. Para que possa o homem vencer os múltiplos obstáculos que se lhe deparam na vida, precisa ter o espírito preso às raízes de uma ambição que o impulsione a um ideal qualquer. Exijo, portanto, que escolhas, sem mais demora, uma recompensa digna de tua valiosa oferta. Queres uma bolsa cheia de ouro? Desejas uma arca repleta de joias? Já pensaste em possuir um palácio? Almejas a administração de uma província? Aguardo a tua resposta, por isso que à minha promessa está ligada a minha palavra!

— Recusar o vosso oferecimento depois de vossas últimas palavras — acudiu Sessa — seria menos descortesia do que desobediência ao rei. Vou, pois, aceitar, pelo jogo que inventei, uma recompensa que corresponde à vossa generosidade; não desejo, contudo, nem ouro, nem terras ou palácios. Peço o meu pagamento em grãos de trigo.

— Grãos de trigo? — estranhou o rei, sem ocultar o espanto que lhe causava semelhante proposta. — Como poderei pagar-te com tão insignificante moeda?

— Nada mais simples — elucidou Sessa. — Dar-me-eis um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro; dois pela segunda, quatro pela terceira, oito pela quarta, e assim dobrando sucessivamente, até a sexagésima quarta e última casa do tabuleiro. Peço-vos, ó Rei, de acordo com a vossa magnânima oferta, que autorizeis o pagamento em grãos de trigo, e assim como indiquei!

Não só o rei como os vizires e venerandos brâmanes presentes riram-se, estrepitosamente, ao ouvir a estranha solicitação do jovem. A desambição que ditara aquele pedido era, na verdade, de causar assombro a quem menos apego tivesse aos lucros materiais da vida. O moço brâmane, que bem poderia obter do rei um palácio em uma província, contentava-se com grãos de trigo!

— Insensato! — clamou o rei. — Onde foste aprender tão grande desamor à fortuna? A recompensa que me pedes é ridícula. Bem sabes que há, num punhado de trigo, número incontável de grãos. Devemos compreender, portanto, que com duas ou três medidas de trigo eu te pagarei folgadamente, consoante o teu pedido, pelas sessenta e quatro casas do tabuleiro. É certo, pois, que pretendes uma recompensa que mal chegará para distrair, durante alguns dias, a fome do último pária [10] do meu reino. Enfim, visto que minha palavra foi dada, vou expedir ordens para que o pagamento se faça imediatamente, conforme teu desejo.

Mandou o rei chamar os algebristas mais hábeis da corte e ordenou-lhes calculassem a porção de trigo que Sessa pretendia.

Os sábios calculistas, ao cabo de algumas horas de acurados estudos, voltaram ao salão para submeter ao rei o resultado completo de seus cálculos.

Perguntou-lhes o rei, interrompendo a partida que então jogava:

— Com quantos grãos de trigo poderei, afinal, desobrigar-me da promessa que fiz ao jovem Sessa?

— Rei magnânimo! — declarou o mais sábio dos matemáticos. — Calculamos o número de grãos de trigo que constituirá o pagamento pedido por Sessa, e obtivemos um número [11] cuja grandeza é inconcebível para a imaginação humana. Avaliamos, em seguida, com o maior rigor, a quantas ceiras [12] corresponderia esse número total de grãos, e chegamos à seguinte conclusão: a porção de trigo que deve ser dada a Lahur Sessa equivale a uma montanha que, tendo por base a cidade de Taligana, seria cem vezes mais alta do que o Himalaia! A Índia inteira, semeados todos os seus campos, taladas todas as suas cidades, não produziria em dois mil séculos a quantidade de trigo que, pela vossa promessa, cabe, em pleno direito, ao jovem Sessa!

Como descrever aqui a surpresa e o assombro que essas palavras causaram ao rei Iadava e a seus dignos vizires? O soberano hindu via-se, pela primeira vez, diante da impossibilidade de cumprir a palavra dada.

Lahur Sessa — rezam as crônicas do tempo —, como bom súdito, não quis deixar aflito o seu soberano. Depois de declarar publicamente que abriria mão do pedido que fizera, dirigiu-se respeitosamente ao monarca e assim falou:

— Meditai, ó Rei, sobre a grande verdade que os brâmanes prudentes tantas vezes repetem: os homens mais avisados iludem-se, não só diante da aparência enganadora dos números, mas também com a falsa modéstia dos ambiciosos. Infeliz daquele que toma sobre os ombros o compromisso de uma dívida cuja grandeza não pode avaliar com a tábua de cálculo de sua própria argúcia. Mais avisado é o que muito pondera e pouco promete!

E, após ligeira pausa, acrescentou:

— Menos aprendemos com a ciência vã dos brâmanes do que com a experiência direta da vida e das suas lições de todo dia, a toda hora desdenhadas! O homem que mais vive mais sujeito está às inquietações morais, mesmo que não as queira. Achar-se-á ora triste, ora alegre; hoje fervoroso, amanhã tíbio; já ativo, já preguiçoso; a compostura alternará com a leviandade. Só o verdadeiro sábio, instruído nas regras espirituais, se eleva acima dessas vicissitudes, paira por sobre todas essas alternativas!

Essas inesperadas e tão sábias palavras calaram fundo no espírito do rei. Esquecido da montanha de trigo que, sem querer, prometera ao jovem brâmane, nomeou-o seu primeiro-vizir.

E Lahur Sessa, distraindo o rei com engenhosas partidas de xadrez e orientando-o com sábios e prudentes conselhos, prestou os mais assinalados benefícios ao povo e ao país, para maior segurança do trono e maior glória de sua pátria.

Encantado ficou o califa Al-Motacém quando Beremiz concluiu a história singular do jogo de xadrez. Chamou o chefe de seus escribas e determinou que a lenda de Sessa fosse escrita em folhas especiais de algodão e conservada em valioso cofre de prata.

E, a seguir, o generoso soberano deliberou se entregasse ao calculista um manto de honra e 100 cequins de ouro.

Bem disse o filósofo:

— Deus fala ao mundo pelas mãos dos generosos! [13]

A todos causou grande alegria o ato de magnanimidade do soberano de Bagdá. Os cortesãos que permaneciam no divã eram amigos do vizir Maluf e do poeta Iezid: era, pois, com simpatia que ouviam as palavras do calculista persa, por quem muito se interessavam.

Beremiz, depois de agradecer ao soberano os presentes com que acabava de ser distinguido, retirou-se do divã. O califa ia iniciar o estudo e julgamento de diversos casos, ouvir os honrados cádis [14] e proferir suas sábias sentenças.

Deixamos o palácio real ao cair da noite. Ia começar o mês de Chá-band [15].


NOTAS:

[1] Militares, uma das quatro castas em que se divide o povo hindu. As demais são formadas pelos brâmanes (sacerdotes), vairkas (operários) e sudras (escravos).

[2] Chefe militar.

[3] Livro sagrado dos hindus.

[4] Escravo.

[5] Deusa.

[6] Segundo membro da trindade bramânica.

[7] Nome do inventor do jogo de xadrez. Significa “natural de Lahur”.

[8] Os elefantes foram mais tarde substituídos pelas torres.

[9] Os vizires são as peças chamadas bispos. A rainha não tinha, a princípio, movimentos tão amplos.

[10] Indivíduo pertencente a uma das castas mais ínfimas da costa de Coromandel. Corresponde, na escala social, à casta dos poleás. Na Europa emprega-se o termo no sentido de “homem expulso de sua casta ou classe” (B. A. B.)

[11] Para se obter esse total de grãos de trigo, devemos elevar o número $2$ ao expoente $64$, e do resultado tirar uma unidade. Trata-se de um número verdadeiramente astronômico, de vinte algarismos, que é famoso em Matemática:

$$18.446.744.073.709.551.615$$

Chamamos especialmente a atenção dos matemáticos para a nota do Apêndice, intitulada O Problema do Jogo de Xadrez.

[12] Ceira ou cer — Unidade de capacidade e peso usada na Índia. Seu valor variava de uma localidade para outra.

[13] Esse pensamento é de Gibran Khalil Gibran.

[14] Cádis — Juízes. Denominação dada aos magistrados.

[15] Chá-band — Um dos meses do calendário árabe.


APÊNDICE

O Problema do Jogo de Xadrez


Aquele que deseja estudar ou exercer a Magia deve cultivar a Matemática [1] Matila Ghyka


É esse, sem dúvida, um dos problemas mais famosos nos largos domínios da Matemática Recreativa. O número total de grãos de trigo, de acordo com a promessa do rei Iadava, será expresso pela soma dos sessenta e quatro primeiros termos da progressão geométrica:

$$:: 1 : 2 : 4 : 8 : 16 : 32 : 64$$

A soma dos 64 primeiros termos dessa progressão é obtida por meio de uma fórmula muito simples, estudada em Matemática Elementar [2].

Aplicada a fórmula obtemos para o valor da soma S:

$$S = 2^{64} - 1$$

Para obter o resultado final devemos elevar o número $2$ à sexagésima quarta potência, isto é, multiplicar $2\times 2\times 2\times ...$ tendo esse produto sessenta e quatro fatores iguais a $2$. Depois do trabalhoso cálculo chegamos ao seguinte resultado:

$S = 18.446.744.073.709.551.616 - 1$

Resta, agora, efetuar essa subtração. Da tal potência de dois tirar $1$. E obtemos o resultado final:

$$S = 18.446.744.073.709.551.615$$

Esse número gigantesco, de vinte algarismos, exprime o total de grãos de trigo que impensadamente o lendário rei Iadava prometeu, em má hora, ao não menos lendário Lahur Sessa, inventor do jogo de xadrez.

Feito o cálculo aproximado para o volume astronômico dessa massa de trigo, afirmam os calculistas que a Terra inteira, sendo semeada de norte a sul, com uma colheita, por ano, só poderia produzir a quantidade de trigo que exprimia a dívida do rei, no fim de 450 séculos! [3]

O matemático francês Etienne Ducret incluiu em seu livro, bordando-os com alguns comentários, os cálculos feitos pelo famoso matemático inglês John Wallis, para exprimir o volume da colossal massa de trigo que o rei da Índia prometeu ao astucioso inventor do jogo de xadrez. De acordo com Wallis, o trigo poderia encher um cubo que tivesse 9.400 metros de aresta. Essa respeitável massa de trigo deveria custar (naquele tempo) ao monarca indiano um total de libras que seria expresso pelo número:

$$855.056.260.444.220$$

É preciso atentar para essa quantia astronômica. Mais de 855 trilhões de libras [4].

Se fôssemos, por simples passatempo, contar os grãos de trigo do monte $S$ à razão de $5$ por segundo, trabalhando dia e noite sem parar, gastaríamos, nessa contagem, 1.170 milhões de séculos! Vamos repetir: mil cento e setenta milhões de séculos! [5]

De acordo com a narrativa de Beremiz, o Homem que Calculava, o imaginoso Lahur Sessa, o inventor, declarou publicamente que abria mão da promessa do rei, livrando, assim, o monarca indiano do gravíssimo compromisso. Para pagar pequena parte da dívida, o soberano teria que entregar ao novo credor o seu tesouro, as suas alfaias, as suas terras e seus escravos. Ficaria reduzido à mais absoluta miséria. Em situação social, ficaria abaixo de um sudra [6].


NOTAS

[1] Esse pensamento famoso poderá ser lido no livro de Matila Ghyka, Philosophie et Mystique des Nombres, Col. Payot, Paris, 1952, pág. 87.

[2] Cf. Thiré e Mello e Souza, Matemática, 4.ª série.

[3] Cf. Robert Tocquet, Les Calculateurs Prodiges et leurs Secrets, Ed. Pierre Amiot, Paris, 1959, pág. 164.

[4] Cf. Etienne Tucret, Récréations Mathématiques, Paris, s.d., pág. 87. Convém ler, também: Ighersi, Matemática Dillettevola e Curiosa, Milão, 1912, pág. 80.

[5] Cf. Tocquet, ob. cit.

[6] Veja a análise completa desse problema no livro Problemas Famosos e Curiosos da Matemática.


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