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O Heliocentrismo: O cônego Nicolau Copérnico

Sistema heliocêntrico copernicano do
universo, século XVII - Johannes Hevelius
"Tão grande é sem dúvida esta obra
divina do Sumo Artífice".
-- Nicolau Copérnico

A ideia da revolução copernicana que chega ao grande público é sinteticamente esta: o heliocentrismo proposto por Nicolau Copérnico teria, de certo modo, desequilibrado a estrutura do mundo como entendia a Bíblia. Além disso, distanciando o homem do centro geográfico do universo, o teria destronado, negando assim, implicitamente, a sua origem divina (e por conseguinte a sua diferença ontológica em relação às outras criaturas). Copérnico seria, portanto, um daqueles cientistas -- na verdade, o primeiro deles -- que colocou em crise a fé num Deus transcendente, Criador e Providência, própria da Europa cristã, alargando o universo ao infinito, no qual o homem ia se reduzindo. Assim escreveu recentemente Umberto Veronesi, em Scienza e futuro dell'uomo (2010): com Copérnico a "posição" do homem "que diríamos quase divina enquanto criatura de Deus, desmorona para voltar a ser parte de um processo evolutivo que inclui animais, plantas e todos seres vivos. O homem é assim redimensionado, daí nasce o pensamento científico moderno". Essa interpretação da revolução copernicana é absolutamente anti-histórica e totalmente falsa. Não se encontra nenhuma verificação quando se lê o próprio Copérnico, e nem em Galileu Galilei, muito menos nos devotíssimos Kepler e Pascal, para citar apenas alguns dos primeiros e mais célebres "copernicanos". "Deve-se dizer com clareza -- escreve o historiador da ciência Paulo Musso -- que o fim do geocentrismo não significou absolutamente, como hoje se busca insistentemente fazer crer, o fim do antropocentrismo, entendido no sentido de uma radical desvalorização do homem e da sua importância na concepção global do cosmo". Para um cristão, de fato, na época de Copérnico, como antes e depois dele, "o valor do homem não pode depender da sua colocação geográfica, nem de algum outro fato material, mas somente de sua relação com o infinito" [1].

Um dos dos temores de Copérnico, escreve a sua biógrafa Dava Sobel, é que

seus colegas astrônomos [ligados ao sistema aristotélico-ptolomaico, N.d.A] teriam observado que a Terra estava bem no centro de tudo, não porque a morada do gênero humano merecesse um lugar de honra, mas bem ao contrário, porque no centro era o lugar onde caía e perecia as coisas materiais e, por isso, a ruína, a mudança e morte estavam no destino dos habitantes da Terra. Em suma, a Terra era o centro não porque era o auge, mas porque era a parte baixa da criação, e não se devia ter a ousadia de meter o Sol, que muitos chamavam de luz celeste, no buraco infernal posto no centro do cosmo [2].

Portanto, a perda da centralidade física da Terra não significa, para Copérnico, uma perda da verdadeira centralidade do homem, ligada à sua natureza espiritual, a suas peculiaridades excepcionais e únicas (pensamento, liberdade, razão...) e nem exatamente a sua posição geográfica.

Muitos anos depois, observando os céus com o telescópio, Galileu Galilei descobriu que existem depressões e asperezas na Lua e que o Sol tem manchas, e isso significa que ele vai se apagando. Tal descoberta irá afastar definitivamente a ideia pagã dos planetas divinos, sem que com isso a dignidade d Terra fosse rebaixada -- "nobilíssima e admirável", e não mais, como para os aristotélicos, "esgoto de sordidezas terrenas e de feiura" [3]. Isso a elevará ao nível dos outros corpos celestiais, reafirmando indiretamente a centralidade não apenas geográfica e material, mas, sobretudo, substancial e espiritual do homem. Não são as estrelas-divindades que controlam os homens (como o corolário para a astrologia, o horóscopo etc.), mas como já era claro aos primeiros cristãos, são os homens que, em vez de diminuírem-se, honram-se, reconhecendo o rastro da própria origem divina, de poder ler e compreender as leis que regulam os astros, por um lado reduzido à matéria criada em movimento, e por ouro, como repetirá insistentemente Kepler, que gostava de citar o Salmo Coeli enarrant gloriam Dei (Sl 18), enaltecendo os sinais evidentes da grandeza e da beleza do Criador.

Também é exatamente esse o pensamento de Copérnico quando na sua obra mais célebre, o De revolutionibus, no capítulo I, renega o vitalismo pagão e assim define o cosmo: "A máquina do universo (machina mundi), que foi criada para nós pelo melhor  e mais perfeito Artífice".

Mas quem é Copérnico? Quem é o homem que primeiro propõe vivamente um sistema complexo baseado sobre a hipótese heliocêntrica (apesar de não demonstrada), e que expande, por assim dizer, o universo, embora continue considerando-o finito?

Arthur Koetler o define como um "clérigo conservador e tímido", ou seja, tudo menos um revolucionário como Francesco d'Arcais, Margherita Hack e Francesco Barone, que concordavam com ele. Ulianich recorda que Copérnico foi um clérigo pertencente à Congregação reformada dos Cônegos Agostinianos, e que, como filósofo, sustentava a necessidade de buscar a verdade em todas as coisas, quatenus id a Deo rationi humanae premissum est [4]. Seu objetivo como cientista era "buscar e colher, através da experiência, uma realidade que já foi constituída no seu ser 'ab optimo et regularíssimo omnium Opifice' "[5]. 

***

Nascido em 1473 em Torùn, na atual Polônia, muito cedo Copérnico fica órfão de pai. Quem cuida dele e dos irmão é um tio materno, Lukasz Watzenrode, clérigo que depois se tornou bispo de Vármia. Em 1497, depois dos estudos na Universidade de Cracóvia, e direito canônico em Bolonha, torna-se cônego em Frombork. Em 1500, nós os encontramos empregado na chancelaria pontifícia de Roma. Inicia os estudos de medicina em Pádua, e conclui os de Direito em Ferrara, enquanto colabora com o tio bispo, tornando-se seu físico privado.

É nesse período, por volta de 1507, que começa a elaborar a sua teoria heliocêntrica. Em 1512, torna-se chanceler do capítulo de cônegos da catedral de Frombork, enquanto em 1513, a pedido do Concílio de Latrão e de Paulo de Midelburgo, matemático e astrônomo, seu admirador e bispo de Fossombrone, copila uma proposta de reforma do calendário que envia a Roma.

O calendário em questão é o gregoriano, assim nomeado porque fora promovido pelo Papa Gregório XII, com a ajuda de grandes cientistas eclesiásticos como Calvius e Danti. O calendário, recorda Paolo Musso, "foi o primeiro verdadeiramente preciso que a humanidade tinha visto em toda a sua história, tanto é verdade que o usamos ainda hoje em plena era espacial, ainda que com alguma pequena modificação" [6].

Em 1523, Copérnico foi nomeado administrador geral para a sé arquidiocesana de Vármia. Em 1537, o seu nome está na lista dos quatro candidatos ao título de Bispo de Vármia. Enquanto exercia várias funções eclesiásticas e atividades médica, cuidando dos enfermos frequentemente de forma gratuita, segundo o seu primeiro biógrafo (sacerdote e astrônomo Pierre Gassendi, 1654), em 1543 publicou e, Nuremberg, por seu discípulo Rethicus, o seu De revolutionibus orbium coelestium, Morre no mesmo ano em Frombork [7] e é sepultado na catedral da cidade, próximo ao altar de São Venceslau, na qual tinha sido designado cônego, para provar mais uma vez, se fosse necessário, a sua fé e a estima da qual gozava.

Mas por que Copérnico havia publicado o seu pequeno e inovador volume tão tarde? Em parte, devia temer perseguições e ataques. Porém, mais do que ser perseguido, talvez temesse não ser compreendido. Foi o próprio Copérnico a escrever que não faltaria quem, vendo contradizer a opinião comum e a cosmologia de Aristóteles e Ptolomeu, teria zombado das suas opiniões. Mas essas resposta é incompleta e parcial.

Na verdade, Copérnico já tinha na época inúmeros admiradores como, por exemplo, Johann A. Widmannstetter, secretário do Papa, conquistando louvor e sucesso. Porém, já era consciente de quanto as suas  observações eram ainda imprecisas. As demonstrações da teoria heliocêntrica viriam, de fato, somente em 1850, graças ao físico Jean-Bernard Léon Foucault e o seu famoso Pêndulo.

A obra de Copérnico, depois de muitas incertezas, apareceu com uma dedicatória ao Papa Paulo III.

Também podemos dizer que talvez não teria sido publicada se não fosse pelas pressões de um cristão protestante como Rheticus e por alguns clérigos. Em primeiro lugar, o cônego Tiedemann Giese, que se tornou depois Bispo de Julme, que é talvez o seu amigo mais íntimo, o primeiro a quem Copérnico havia revelado os "secretos conhecimentos astronômicos" [8] --- Giese foi também o autor, com outros clérigos depois dele, de um tratado sobre a compatibilidade entre o sistema heliocêntrico e a Bíblia ---; além dele, o Cardeal Nikolaus vom Schönberg, Arcebispo de Cápua e homem de confiança de três papas, que no dia 1º de novembro de 1536 escreveu a Copérnico para convidá-lo formalmente a publicar o livro de que tonha ouvido Widmannstetter falar tão bem (a carta de Von Schönberg foi colocada precisamente na abertura do De revolutionibus).

Nos primeiros anos que seguiram a publicação da obra, a hipótese de Copérnico sofreu, como é óbvio, os ataques quase exclusivamente dos aristotélicos, de inúmeros pares, de Melanchthon e de Lutero. 

Em 1616, durante o caso Galilei, uma comissão de teólogos da Sagrada Congregação condenou algumas teses do De revolutionibus, ordenando que o livro não fosse destruído, mas interditado "até que fosse corrigido". Em particular, as correções, que cabiam numa página, implicavam a supressão do capítulo VIII do livro I (que consistia na refutação do geocentrismo dos antigos) [9]. O teólogos se enganaram (justificados pelo fato de que a tese de Copérnico não fora comprovada) não tanto no universo pudesse lhe diminuir a importância, mas simplesmente porque sustentavam que alguma passagens da Bíblia devia ter tomada literalmente. Mas isso não tira de Copérnico ter sido uma das glórias da Igreja: filho, não por acaso, da Europa cristã e das suas universidades; filho da Igreja, na qual foi educado e onde viveu sempre seguindo suas próprias hipóteses cosmológicas, a partir da fé grega e cristã no ordenamento racional do mundo, que traz em si, com sua "maravilhosa simetria", os sinais da harmonia e da beleza do seu Artífice [10].

Um primado nos estudos astronômicos que a Igreja conservou por longo tempo. É verdade que por alguns séculos serão as catedrais católicos a agir como embrionários de observatórios astronômicos [11], enquanto que os primeiros "organizados com critérios profissionais" nasceram na Itália somente na segunda metade do século XVIII, e graças a três sacerdotes: Padre Beccaria em Turim, Padre Boscovich em Milão e D. Piazzi em Palermo [12]. Piazzi será também o primeiro a descobrir um pequeno planeta (Ceres, 1801), como o jesuíta Padre Angelo Secchi será o pai da espectroscopia e o sacerdote Georges Henri Joseph Édouard Lemaître o teórico do Big Bang e o pai da cosmologia contemporânea.


Notas:

[1] Paolo Musso, La scienza e l'idea di ragione. Mimesis, Milão, 2011.

[2] Dava Sobel, Il segreto di Copernico. Rizzoli, Milão, 2012.

[3] Diálogos sobre os dois grandes sistemas do mundo.

[4] "Até o quanto é permitido à razão por Deus".

[5] Mesa redonda com Francesco d'Arcais, Francesco Barone, Margherita Hack, Emilio Segrè, Boris Ulianich (filósofo, historiador e ex-senador da esquerda independente), La conoscenza dell'universo, em "Civiltà delle macchine", ano XXI, nn. 1-2, 1973. É claríssimo, portanto, para Copérnico, continua Ulianich, que a "máquina do mundo" do universo "remete a um Criador, postula um Criador".

[6] Musso, op. cit., p. 43.

[7] Copernico e lo studio di Ferrara, Clueb, Bolonha 2003.

[8] Sobel, op. cit., p. 34.

[9] Nicolau Copérnico, La struttura del cosmo, comentado por J. Seidengart, Olschki, Florença, 2009, p. 17. 

[10] Copérnico sustenta em várias ocasiões que a sua visão do universo tinha sido guiado pela ideia de que o sistema aristotélico-ptolomaico fosse muito complexo e portanto, "feio"; por outro lado, muito mais simples, unitário, elegante e belo, seria um universo em que o Sol estivesse no centro, como todas as consequências que isso poderia trazer. Ele escreveu: "Encontramos, portanto, nesta ordem uma maravilhosa simetria do universo e uma forte ligação de harmonia que une o movimento e a grandeza das esferas, que não se pode encontrar de outro modo" (De revolutionibus, livro I, cap. X). Comenta Seidegart: "Eis o critério decisivo que consagra o sucesso do sistema heliocêntrico porque permite reduzir toda irregularidade aparente a uma mesma e única causa sem nenhum resíduo. Copérnico descobriu, portanto, a ordem autêntica dos corpos celestes que exprime as perfeições do amor divino" (Copérnico, op. cit.). O capítulo X termina assim: "Tão grande é sem dúvida essa obra divina do sumo Artífice".

[11] J. Heilbron, Il sole nella Chiesa: Le grandi chiese come osservatori astronomici. Compositori, Bolonha, 2005.

[12] Piero Bianucci, Storia sentimentale dell'astronomia. Longanesi, Milão, 2012, p. 159.

***

Texto retirado de AGNOLI, Francesco; BARTELLONI, Andrea. Cientistas de batina: de Copérnico, pai do heliocentrismo, a Lemaìtre, pai do Big Bang. 1 ed. Ecclesiae, 2018.


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Nicolau de Oresme, precursor de Copérnico

Nicolau de Oresme (1400-1420)
Em pleno medievo: Nicolau de Oresme, precursor de Copérnico

 "A criação de Deus é a mais parecida àquela
de um homem que constrói um relógio e 
lhe permite funcionar continuando
o seu movimento autonomamente".
-- Nicolau de Oresme

Há um século, o historiador e filósofo francês Pierre Duhem [1] começou a esclarecer as raízes cristãs do pensamento científico moderno e, desde então, inúmeras publicação aprofundaram esses  temas. De modo particular, a estreita ligação entre a tradução das obras científicas e filosóficas greco-árabes e o desenvolvimento da ciência com a conhecemos hoje. Uma destas obras, As origens medievais da ciência moderna, [2] escrita por Edward Grant, docente de história e filosofia das ciências na Indiana University, é inteiramente dedicada a reconhecer a contribuição da Europa medieval na fundação da ciência e na formação dos cientistas modernos, de Galileu em diante. Uma contribuição construídas, de fato, sobre as traduções dos textos científicos do mundo grego e árabes, com o nascimento da universidade a reelaboração do pensamento aristotélico. Muitos estudiosos concordam com esta afirmação [3]. Transcorrendo o índice analítico desse volume, embarramos com numerosas referências ao texto de um nome pouco conhecido para a maioria: Nicolau de Oresme (1323 - 1382).

Nicolau Oresme é apresentado como um dos pilares fundadores do nascente católico da ciência, precisamente por suas traduções de textos antigos, em especial os de Aristóteles, e também por seus comentários refinados. É considerado uma personagem de importância capital na passagem da ciência medieval para a moderna [4] pela riqueza de suas ideias, que contêm muitas novidades importantes [5]. A época em que vive é aquela que os historiadores definem como escolástica tardia e que é caracterizada pela busca da consistência na discussão filosófica. Consequência dessa busca é o fermento suscitado exatamente na pesquisa científica [6]; a esse propósito, além de Oresme, é preciso recordar de João Buridam (1290 - 1358) e Alberto da Saxônia (1316 - 1390). Foram justamente os escolásticos do século XIV, na sua originalidade, que prepararam o caminho par o advento da ciência europeia do Renascimento a partir de Copérnico [7].

Oresmo nasceu em Allemagne, antigo nome de Fleury-sur-Orne, vilarejo francês da Baixa Normandia, que devia seu nome a uma guarnição de soldados alemães estabelecida pelos romanos entre os séculos II e IV. Muito pouco se conhece de sua juventude, a não ser que frequentou a Universidade de Paris [8], e foi nomeado grão-mestre no Collège de Navarre em 1355, depois de ter obtido o doutorado em teologia [9]

Durante sua permanência no Collège publicou obras sobre astrologia, teologia e matemática, escritas em latim, a língua em vigor nos colégios da sua época [10]. Também publicou um tratado sobre moedas, que despertou a atenção de Delfim de França, o futuro Carlos V, chamado o Sábio, que muito mais interessado que o pai, João II, chamado o Bom, nas reflexões de caráter moral e racional. Esse fato abriu as portas da corte para Oresme. Em 1362, deixou o colégio e se estabeleceu em Rouen como cônego da catedral, tornando-se decano do capítulo dois anos depois [11]. Neste período, Oresme começa a publicar as traduções comentadas dos livros de Aristóteles e algumas obras em francês.

Em 28 de janeiro, é sagrado bispo de Lisieux (33º bispo e 19º Conde de Lisieux) [12] numa cerimônia que contou com a presença do rei que presenteou com dois anéis de ouro [13]. Tomou posse do bispado em julho do mesmo ano e ali permaneceu até a morte, em 11 de julho de 1382. Seus restos mortais repousaram na catedral, próximos da porta à esquerda do coro [14], até a metade do século XVII, quando o bispo de Leonor II de Martignon, além de fazer substituir os antigos vitrais que eram muitos escuros, também removeu todos os túmulos que ficavam no interior da nave (1677) [15]; e assim se perderam os vestígios de sua sepultura e também de sua memória.

Oresme traduziu a Ética, a Política e a Economia de Aristóteles e também as obras de Francisco Petrarca, de quem havia se tornado amigo [16]. O uso do vernáculo representa sua característica mais original, se consideramos que naquele período todos os textos científicos eram ainda escritos em latim. Também compôs um tratado sobre a Imaculada Conceição de Maria, cento e quinze sermões, um tratado contra as ordem mendicantes [17], e três contra a astrologia, elogiados por Pico della Mirandola [18], nos quais polemiza contra o determinismo astral.

O rei da França, João II, que o consultava frequentemente sobre os negócios mais espinhosos e seguia os seus conselhos, o enviou a Avinhão (1363), onde Oresme pronunciou, diante do Papa Urbano V, um discurso eloquente e ousado contra a desordem e a falta de regras na cúria romana. Por fim, sabemos que Carlos V encomendou-lhe uma tradução da Bíblia em francês para prevenir as distorções que os valdenses e outros heréticos faziam dos textos sagrados.

Mas a primeira passagem fundamental para o nascimento da ciência nos séculos XII e XIII é, como dissemos, a tradução em latim das obras científicas e de filosofia natural gregas e árabes [19]. Oresme foi um dos primeiros a seguir esse caminho que levou ao nascimento da universidade e do pensamento científico medieval. Foram as traduções, em particular as de Aristóteles, que permitiram a institucionalização da ciência e da filosofia natural, além de fornecerem um currículo de estudos pronto para as novas universidades da época [20].

Assim, a revolução científica acaba se consolidando graças ao aparecimento dos filósofos teológicos-naturais que aceitaram confrontar-se com o pensamento pagão e estudaram o mundo físico sem encontrar obstáculos na Teologia [21]. A ciência e a matemática, especificamente, foram muito beneficiadas, e é precisamente nelas que Oresme aplicou sua grande genialidade. No seu tratado Sobre a comensurabilidade e incomensurabilidade dos movimentos celestes, faz-nos compreender como a aritmética é a ciência, nascida antes da geometria, que permite medir o movimento das esferas celestes [22].

Entre as suas obras no campo da ciências naturais, temos que citar Parva naturalia, o comentário à Física (perdido), Meteorica, De anima, De caelo et mundo, Tratado da Esfera e De uniformitate et difformitate intensionum [23].

No tratado De uniformitate et difformitate intensionum, expõe a mais conhecida prova geométrica do teorema da velocidade média, "talvez a mais extraordinária contribuição do Medievo à história da física matemática" (chamada Regra de Oresme) [24]. A prova geométrica de Oresme faz rapidamente um giro pela Europa e é possível que Galileu Galilei também a tenha conhecido [25]. No Tratado se encontra a representação gráfica das variações da velocidade do movimento ou da intensidade de uma quantidade (por exemplo, o calor) com linhas verticais postas sobre a reta horizontal à distância, que corresponde a intervalos temporais determinados, Deste modo, um retângulo representa o movimento uniforme e um triângulo, o movimento uniformemente acelerado. Esse método terá grande difusão do século XIV ao XVI, e contribuirá para preparar os esquemas matemáticos da nova física [26].

Oresme escreveu um comentário à Física de Aristóteles, pondo em discussão algumas de suas conclusões e fornecendo demonstrações alternativas às leis aristotélicas do movimento, recorrendo a um uso correto da razão. Isso o leva, sobretudo, a repelir os argumentos aristotélicos a favor da eternidade do mundo [27].

Para Oresme, as quaestiones, um gênero literário que se tornou sinônimo do método escolástico medieval, não se prestam para analisar profundamente os vários aspectos do intelecto humano [28], por isso, escolhe a forma de "tratado".

Mas o âmbito no qual o contributo do Bispo de Lisieux resultará clamoroso para a época é aquele da rotação terrestre e da posição das esferas celestes. Entre 1370 e 1373, Carlos V o convida a traduzir do latim para o francês as obras de Aristóteles e, dentre elas, o De Caelo, que recebe um grande número de comentários. Assim nasce O tratado do céu e do mundo (1377) [29], obra que lhe rendeu a nomeação a bispo.

A importância desse volume reside no fato de ser a primeira vez que uma obra científica aparecia em francês [30]. Igualmente fundamentais são as críticas dirigidas ao filósofo grego. A primeira delas deriva do princípio da inércia para explicar o movimento, que não era conhecido a Aristóteles. Então, Oresme acolhe, com algumas modificações, a teoria do impetus do seu mestre Buridan para explicar o movimento local, afirmando que um corpo no curso de seu movimento adquire um impetus [31]. Uma outra crítica diz respeito ao ao movimento dos astros que era considerado eterno. Oresme contesta, seguindo a outro bispo, Roberto Grosseteste, e propõe que os astro têm um movimento inicial.

Porém, a ideia mais revolucionária, que faz de Oresme um verdadeiro precursor das teorias copernicanas, é a hipótese do movimento rotatório da Terra em torno do seu eixo.

A esfera celeste, para realizar um rotação completa em torno do Sol em 24 horas, deveria ter uma velocidade elevadíssima, coisa que não é crível. Portanto, é mais razoável pensar que é a própria Terra que está a girar [32]. Oresme enfrenta também a interpretação do episódio da Bíblia com a detenção do Sol por parte de Josué, dizendo que a hipótese do movimento da Terra o tornaria mais razoável, se tomado em forma literal. É o que dirão mais tarde os copernicanos Galileu e também o Padre Paolo Antonio Foscarini [33]. Na ausência de demonstrações irrefutáveis, termina por aceitar as posições tradicionais mais próximas ao texto da Bíblia.

Oresme também deu uma grande contribuição à teoria monetária [34], com um tratado sobre a origem do dinheiro, o De mutationibus monetarum [35], imediatamente traduzido em francês e definido um marco histórico na ciência do dinheiro. Foi utilizado por Carlos V para restaurar a segurança nos negócios [36]. Ainda antecipou o princípio conhecido como Lei de Gresham, segundo a qual, havendo duas moedas na mesma economia, aquela que fosse superestimada debilitaria a menos estimada. Assim, Oresme compreendeu e descreveu quais danos acabam decorrendo da inflação [37].

Como teólogo escreve o tratado De communicatione idiomatum, no qual investiga as relações entre os atributo (idiomata) da natureza divina e os da natureza humana de Cristo [38].

Todas as obras de Oresme foram publicadas no início do século XVI, exceto o Tratado do céu e do mundo, que fora traduzido e publicado somente no século XX [39].

Nicolau Oresme tornou-se nome da Regra que citemos no início do capítulo, e também de uma cratera lunar aberta pelo impacto de um asteroide. É justo reconhecimento de um grande cientista e sua obra. 


Notas:

[1] S. Jaki, Scientist and Catholic: Pierre Duhem, Christendom Press, Front Royal, 1991.

[2] E. Grant, The Foundations of Modern Science in the Middle Ages -- Their Religious, Institutional and Intellectual Contexts, Cambridge University Press, 1996.

[3] S. Jaki, Patterns or Principles and Other Essays, Interconllegiate Studies Institute, Bryn Mawr, 1995, citado em Thomas E. Woods, Come la Chiesa cattolica ha costruito la civiltà occidentale, Cantagalli, Siena, 2007.

[4] Alain Costé, L'oeuvre scientifique de Nicole Oresme, "Bullettin de la société Historique de Lisieux", fasc. 37, 1997.

[5] Johan Huizinga, Autunno del Medioevo, Sansoni, Florença, 1987, p. 450.

[6] Cornelio Fabro, Introduzione a san Tommaso, Ares. Milão, 1983, pp. 235, 246.

[7] Christopher Dawson, La formazione della Cristianità occidentale, D'Ettoris Editori, Crotone, 2009, p. 284.

[8] Nicole Oresme, Traictie de la première invention des monnoies, publicado e anotado por M. L. Wolowsky, Paris, 1864 (ver Introdução).

[9] Fundado em 1304 por Joana, condessa de Navarra e mulher de Filipe, o Belo. Estes colégios que nasceram no século XII, eram destinados a hospedar somente estudantes necessitados que queriam estudar gramática, lógica ou teologia, bem decididos a trabalhos duros e a submeter-se as regras de vida particularmente austeras. Um famoso dito dizia: "A ciência cresce mais na pobreza que na riqueza". Em 1500, o seu número chegou, só em Paris, a 68 (Leo Moulin, La vita degli studenti nel Medioevo, Jaca Book, Milão, 1992, pp. 20-21).

[10] Oresme, op. cit.

[11] Id.

[12] Richard Séguin, Histoire des évéques-conte de Lisieux, 1832, reproduzida em Oresme, op. cit., p. XXX

[13] Id.

[14] Id.

[15] Ibid., p. XIX.

[16] Huizinga, op. cit., p. 450.

[17] A controvérsia sobre as ordem mendicantes (dominicanos e franciscanos) na Universidade de Paris remonta à metade do século XIII. Os mestre seculares não toleravam a sua presença porque a sua dedicação e superioridade doutrinal os colocava na sombra. (J. A. Weisheeipl, Tommaso d'Aquino: Vita, pensiero, opere. Jaca Book, Milão, 1988, pp. 86, 87). Com o tempo foram aceitos, mas com reservas, que se manifestaram também nos tempos de Oresme.

[18] Oresme, op. cit.

[19] Edward Grant, The Foundations od Modern Science in the Middle Ages. Citada a edição italiana: Le origini medievali della scienza moderna, Einaudi, Torino, 2001, p. 257.

[20] Ibid., p. 258.

[21] Ibid., p. 262

[22] Ibid., pp. 71, 72.

[23] M. De Wulf, Storia della filosofia medievale, Libreria Editrice Fiorentina, Florença, 1948, vol. III, p. 129.

[24] Grant, op. cit., p. 153.

[25] Cf. Ibid., p. 156.

[26] Cf. De Wulf, op. cit., p. 130; Universidade de Sena, manual de filosofia on-line, no verbete "Nicola Oresme" (www.unisi.it).

[27] Cf. Grant, op. cit., pp.246-247, 300.

[28] Cf. Ibid., p. 197.

[29] Costé, op. cit.

[30] Ibid.

[31] Cf. De Wulf, op. cit., p. 130.

[32] Grant, op. cit., p. 173.

[33] Frei Carmelita e cientista (1565 - 1616).

[34] Woods, op. cit.

[35] Oresme, op. cit.

[36] P. Larousse, Grand dictionnaire universel du XIX siècle, vol. XI.

[37] Sir Thomas Gresham, conselheiro da rainha Isabel I da Inglaterra, em 1558 afirmou que "a moeda má expulsa a moeda boa", referindo-se a uma iniciativa do governo de manter o valor da moeda, diminuindo o seu respectivo peso. Segundo Gresham, o povo guardaria as moedas antigas por perceberem que elas teriam maior valor, causando inflação -- NE.

[38] De Wulf, op. cit., p. 131.

[39] Le livre du ciel et du monde, editado por A. D. Menut e A. Denomy. Madison, Milwaukee and London. The University of Wisconsin, 1968.

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Texto retirado de AGNOLI, Francesco; BARTELLONI, Andrea. Cientistas de batina: de Copérnico, pai do heliocentrismo, a Lemaìtre, pai do Big Bang. 1 ed. Ecclesiae, 2018.


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INTRODUÇÃO À ASTRONOMIA CLÁSSICA

Astrônomo Copérnico, ou conversa com Deus -
 Jan Alojzy Matejko - 1872

Texto retirado da Introdução do livro Os Lusíadas - vol. I Comentários de Francisco de Sales Lencastre, edição de Renan Santos. Editora Concreta, 2018.

IV. COSMOGRAFIA

Para complemento da interpretação dos Lusíadas, é indispensável proporcionar aos indoutos algumas breves noções do sistema cosmográfico exposto pelo poeta, as quais não poderiam caber em notas de cada estância. Às vezes exprime-se Camões na linguagem mitológica e até na linguagem da humanidade primitiva, cujas idéias sobre a forma do universo eram as duma criança ignorante. [8]

“O céu parece uma abóbada azul posta em cima da Terra chata e circular. Vemo-nos no meio deste disco da Terra. Assim supõem os povos antes de terem viajado. Cada um deles se julga no centro do mundo. A que distância chega o céu ao horizonte? A resposta é vaga, porque, para qualquer lado que se caminhe, não se chega a esse limite aparente. E a própria Terra onde pousa? É o que não se sabe, e ninguém ousa perguntá-lo; supõe-se primeiramente que ela é infinita em profundidade.

“Depois, vendo-se que o Sol, a Lua e as estrelas se levantam no horizonte, passam por cima das nossas cabeças, vão mergulhar no lado oposto e tornam a aparecer no dia seguinte outra vez no Oriente, sente-se que esses astros têm necessariamente uma passagem por baixo da Terra. Supõe-se então que esta não tem raízes infinitas, mas que é sustentada sobre montanhas ou colunas, entre as quais passam os astros.” [9]

Homero (séc. IX a.C.) afirmava que a Terra era um disco rodeado pelo Oceano e coberto por uma abóbada, debaixo da qual os astros do dia e da noite giravam sobre carros. A escola de Pitágoras, na antiga Grécia (séc. VI a.C.), foi a primeira que professou a idéia da esfericidade do globo terrestre.

No Canto X finge o poeta que a deusa Tétis, na Ilha dos Amores, está mostrando a Vasco da Gama um globo translúcido, que se sustenta no ar e que representa a estrutura do universo conforme a astronomia do tempo de Ptolomeu (séc. II d.C.).

Vinte nove anos antes da publicação dos Lusíadas, já fora impressa (1543) a obra de Copérnico – astrônomo polaco, fundador da astronomia moderna; mas adiante se dirá o motivo provável do ter adotado o poeta, na sua descrição cosmográfica, as antigas teorias.

Agora expliquemos, para inteligência do texto, qual era o sistema chamado de ptolomaico, e como se fundou.

Formada a idéia de que a abóbada celeste girava em volta de nós em 24 horas e de que as estrelas estavam aderentes a essa abóbada – que se supunha sólida –, admitia-se que a Terra era um globo – o qual, sem apoio algum, pairava no meio do universo – e que a esfera celeste o envolvia completamente.

Este sistema de aparências era consolidado pelas observações dos navios no mar, as quais confirmam ser esférica a Terra, visto que as montanhas vão desaparecendo pela parte inferior à proporção do afastamento.

“A observação das estrelas que descem para baixo do horizonte ao norte, aparecendo outras diferentes ao sul à proporção que o viajante vai caminhando das nossas latitudes para o equador; e a observação da sombra da Terra – que se desenha em círculo negro sobre a Lua eclipsada – acrescentam novas confirmações à idéia de que habitamos um globo colocado no meio da esfera estrelada.

“Nota-se mais tarde que alguns astros se deslocam entre as estrelas. O primeiro em que se notou o deslocamento foi Vênus – a radiante estrela da tarde e da manhã –, cuja mudança de sítio é sensível de dia para dia, pois umas vezes aparece depois do Sol posto, outras vezes precede o nascer do Sol.

“O segundo astro errante que se notou foi o brilhante Júpiter, que faz lentamente a volta do céu em doze anos.

“Observou-se depois um terceiro astro errante, com menos brilho do que os dois precedentes, mas às vezes muito rutilante: Marte, de irradiação avermelhada, que faz o giro do céu em dois anos.

“Depois um quarto: Saturno, que se move através da esfera celeste com tal lentidão, que emprega não menos de 30 anos em percorrer a sua órbita.

“Mais tarde notou-se ainda um quinto astro móvel: Mercúrio, que ora aparece de tarde a Oeste, ora de manhã a Leste, da mesma maneira que Vênus – mas menos brilhante –, e que se afasta menos do Sol; por isso mais difícil de se distinguir e reconhecer.

“Estes astros foram denominados planetas, vocábulo que significa ‘errantes’ – por oposição às outras estrelas (denominadas fixas, por se conservarem sempre no mesmo lugar respectivo da abóbada celeste).

“Em conseqüência de aparecer o Sol todas as manhãs mais tardiamente do que as estrelas e de não voltar ao mesmo ponto do céu senão depois de 365 dias e 6 horas, supunha-se que ele estava adstrito a um círculo distinto da esfera estrelada, e dentro desta se movia de leste para oeste em um ano.

“A Lua – executando uma revolução análoga em 27 dias e quase 8 horas – supuseram-na adstrita a um círculo colocado mais próximo da Terra e girando nesse círculo.

“A combinação deste movimento com o do Sol dava conta da série de fases lunares, que se realizam em 29 dias e meio. A mais destes dois círculos (do Sol e Lua) acrescentavam-se cinco para os cinco planetas que ficam nomeados, o que perfazia ao todo sete círculos (sete céus) sucessivos a partir da Terra para o céu, por esta ordem:

1º, da Lua (com um movimento de 27 dias);
2º, de Mercúrio;
3º, de Vênus, que tem freqüentemente mudado de posição;
4º, do Sol (365 dias);
5º, de Marte (2 anos);
6º, de Júpiter (12 anos);
7º, de Saturno (30 anos).

Superior a estes sete céus estava o 8º – o das estrelas fixas.

“Esta representação do universo, esta constituição do mundo físico (a etimologia grega da palavra sistema quer dizer “constituição”) representava a natureza terrestre e celeste, tal como parece à vista, e correspondia completamente ao testemunho dos olhos. Facilmente se concebe que diferentes povos – em separado – tivessem chegado a formar do mundo a mesma imagem geral e que a ciência astronômica – baseada sobre o estudo de observação de muitos séculos – tivesse erigido este conjunto em sistema absoluto, transmitindo-se, de geração para geração, duns povos para outros povos. Deste modo foi comunicado da Ásia oriental – berço da história humana – à China para leste; e da Caldéia ao Egito para sudoeste. Na seqüência dos séculos, a Grécia inteligente e artística, tendo chegado a elevado grau de esplendor, adotou do Egito os mesmos princípios, desenvolvendo-os e completando-os com as próprias observações. Dessa nação – ilustrada pelos monumentos gigantescos e pelas altas pirâmides – recebeu a Judéia também o mesmo sistema astronômico, do qual Moisés e Jó nos guardaram fragmentos – do mesmo modo que Hesíodo e Homero entre os gregos.

“O astrônomo cujos estudos mais contribuíram para estabelecer em sólida base o sistema das aparências foi Hiparco (séc. I a.C.). As suas observações ainda hoje prestam grande auxílio, o que não é para se admirar, quando se reflete que uma observação bem feita serve à astronomia moderna fundada na realidade, da mesma sorte que à astronomia antiga fundada sobre as aparências. A esse astrônomo se deve o ter verificado que o Sol não está, em cada ano, sobre o mesmo ponto do céu no momento do equinócio da primavera, mas que recua sucessivamente sob as estrelas: as que se vêem ao Sul, por exemplo, em determinado instante, não se vêem exatamente sobre o mesmo lugar no ano seguinte em igual instante; do mesmo modo vemos também as do Norte deslocarem-se, de sorte que o céu estrelado executa uma revolução completa calculada em 25.870 anos.

“Ao movimento da Terra é hoje atribuída esta grande revolução do céu – chamada ‘precessão dos equinócios’ –, que se supunha ser efetuada pela própria abóbada estrelada; e esse movimento secular é devido à atração do mar e do Sol sobre a protuberância equatorial do nosso globo. Deste modo as observações, sobre as quais se tinha estabelecido o sistema da imobilidade da Terra e do movimento dos céus, servem hoje para a teoria do movimento da Terra.

“Aristóteles (séc. IV a.C.) expusera e tentara demonstrar solidamente o sistema das aparências. O ilustre preceptor de Alexandre consagrou a vida a escrever uma enciclopédia dos conhecimentos humanos, na qual a astronomia ocupava o primeiro lugar.

“Até o século XVI, a Europa – ou para melhor dizer, as corporações de ensino –, reconhecendo em Aristóteles [10] o grande mestre, não quiseram admitir senão o que estava escrito nas suas obras; e ele tinha sustentado:

1º Que a Terra se conservava imóvel no centro do Universo;

2º Que o movimento de todas as esferas celestes procedia de origem inesgotável, inerente à própria essência do céu mais alto, designado pelo nome de Primeiro móbil;

3º Que, para além das estrelas fixas e do Primeiro móbil, estava a última e mais vasta esfera, que encerrava todas as outras, chamada Empíreo;

4º Que o Universo tinha portanto um limite: era verdadeiramente fechado pela última esfera imensa, além da qual não existia mais nada.

“Esta representação do Universo fez objeto de livro especial – o mais venerado dos tratados de astronomia –, intitulado Almagesto (vocábulo que quer dizer “o grande”) devido a Cláudio Ptolomeu. Este geógrafo-astrônomo coligiu toda a astronomia antiga (completada pelos trabalhos de Hiparco) e depois da sua obra – escrita no século II da nossa era – designou-se sob o seu próprio nome o antigo sistema do mundo, sob a denominação de Sistema de Ptolomeu.

“Os sucessores de Ptolomeu tiveram, como artigo de fé, a crença – aliás tão natural, aparentemente – da imobilidade da Terra no meio do universo. Tudo estava classificado no seu lugar e regrado para toda a duração do mundo. Dois elementos, a terra e a água, eram distinguidos cá em baixo: a terra, mais pesada, formava a base; a água do oceano e dos rios flutuava à superfície. Um terceiro elemento, mais leve do que os dois primeiros, envolvia o globo: era o ar ou a atmosfera. Por cima do ar, um quarto elemento, o fogo ou éter, mais leve do que os quatro, formava uma zona superior à atmosfera, e nele se acendiam os meteoros. Por cima vinham ainda os círculos ou orbes celestes, as órbitas dos planetas – na ordem já indicada. Para além desses sete círculos, estava colocada a esfera das estrelas fixas, que formava o oitavo céu. O décimo era o Empíreo, habitação da Divindade. Todo este edifício se supunha ser construído duma substância transparente, comparável a gelo ou cristal de rocha. Alguns espíritos superiores (Platão [11], por exemplo) não admitiam a solidez dos céus; mas a maior parte dos astrônomos declarava que era impossível conceber o maquinismo e o movimento dos astros, se os céus não fossem formados duma substância dura, sólida e eterna. Segundo conta Plutarco [12], pensavam os físicos antigos que os aerólitos eram pedaços destacados da abóbada celeste e que, subtraídos à força centrífuga, caíam sobre a Terra em conseqüência do próprio peso.”

Pelo sistema exposto – considerando a Terra como centro do universo –, Tétis explica a Vasco da Gama a estrutura do mundo (Canto X), apontando-lhe primeiro o Empíreo (est. 79), o céu imóvel onde residem as almas dos bem-aventurados. E do mesmo modo descreve o zodíaco com as suas doze constelações figuradas por animais – que se imaginou serem as doze estâncias do Sol, cujo caminho aparente sobre o céu estrelado é percorrido durante o chamado “ano sideral” (isto é: 365 dias, 6 horas, 9 minutos e 9 segundos), voltando à posição anterior, com referência às estrelas, no fim desse intervalo.

Deu-se o nome de zodíaco a uma faixa de 9 graus de largura, por cima e por baixo desse caminho aparente, dividida em doze signos de 30 graus cada um. Estes signos têm os mesmos nomes das constelações que ocupam essa faixa do céu, posto que não muito exatamente.

Foi cerca de 14 séculos antes da nossa era que os gregos dividiram o céu em constelações, cujos nomes latinos se contêm nos seguintes versos:

Sunt Aries, Taurus, Gemini, Cancer, Leo, Virgo,
Libraque, Scorpius, Arcitenens, Caper, Amphora, Pisces.

Estes nomes em português são: Áries, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, Virgem, Libra, Escorpião, Sagitário, Capricórnio, Aquário e Peixes. O poeta não só menciona as doze constelações do zodíaco, mas ainda outras muitas das mais notáveis, enumerando os planetas pela ordem em que se julgavam dispostos no céu estrelado – segundo o sistema de Ptolomeu, tendo-se referido também aos chamados excêntricos e epiciclos [13] – inventados pelos astrônomos para explicar o movimento das esferas. Estes excêntricos e epiciclos explica-os hoje [início do séc. XX] a ciência deste modo:

“Os movimentos aparentes dos planetas que observamos são resultantes da combinação da translação da Terra em volta do Sol com a translação dos planetas em volta do mesmo astro.

“Tomemos Júpiter para exemplo: este planeta circula em volta do Sol a uma distância cinco vezes maior do que a distância da Terra ao Sol. A sua órbita envolve portanto a nossa com um diâmetro cinco vezes maior, e leva doze anos esse mesmo planeta a efetuar a sua translação.

“Durante os doze anos que Júpiter emprega em fazer a sua revolução em torno do Sol, a Terra faz doze revoluções em torno do grande astro. Por conseqüência o movimento de Júpiter – visto daqui – não é um simples círculo seguido lentamente durante doze anos, mas uma combinação deste movimento com o da Terra. Dê-se o leitor ao incômodo de traçar a seguinte figura: um ponto representando o Sol – um pequeno círculo em volta a dois centímetros de distância representando a órbita da Terra – e um segundo círculo – a dez centímetros – representando a órbita de Júpiter; facilmente reconhecerá que, girando em volta do Sol, produzimos um deslocamento aparente de Júpiter sobre a esfera estrelada em que ele se projeta. Este deslocamento dá-se, à metade do ano, em um sentido, e, à metade do ano, em outro. É como se a órbita de Júpiter fosse composta de doze anéis. Para dar conta do movimento aparente de Júpiter, os astrônomos antigos não tinham podido conservar por muito tempo o simples círculo: viam-se obrigados a fazer rodar sobre ele – no decurso de doze anos – o centro dum outro pequeno círculo, em cuja circunferência supunham o planeta encaixilhado. Deste modo, Júpiter não seguia diretamente o seu grande círculo: percorria o círculo pequeno que fazia doze giros no mesmo plano, rodando ao longo do círculo primitivo em um período de doze anos.

“Saturno em 30 anos faz o seu giro à volta do Sol. Para explicar as marchas e contramarchas aparentes vistas da Terra, tinha-se semelhantemente ajuntado à sua órbita um segundo círculo, cujo centro seguia esta órbita e cuja circunferência, levando encrostado o planeta, girava 30 vezes sobre si própria durante a revolução inteira.

“Estes segundos círculos receberam o nome de epiciclos.

“O de Marte era menor que os precedentes; os de Vênus e Mercúrio eram muito maiores.

“Eis uma primeira complicação do sistema circular primitivo. Mas não era só esta.

“Os planetas, visto que geralmente seguem elipses, estão em uns pontos do seu percurso mais perto do Sol do que em outros pontos. E, visto que todos os planetas – compreendendo a Terra – se movem em períodos diferentes à volta do Sol, o resultado é cada planeta estar ora mais próximo, ora mais afastado da própria Terra. Em certos pontos da sua órbita, Marte, por exemplo, chega a estar afastado de nós mais quatro vezes do que noutros pontos.

“Para dar conta destas variações de distância, os astrônomos modificaram os círculos primitivos. Como se pretendia conservar a figura circular, supôs-se que os círculos percorridos por cada planeta tinham por centro não precisamente o próprio globo terrestre, mas um ponto situado fora da Terra. Por este estratagema, Marte, por exemplo, descrevendo uma circunferência à roda dum centro situado ao lado da Terra, encontrava-se ora mais afastado, ora mais próximo dela. O centro real de cada órbita celeste não coincidia com o centro da Terra, senão por meio do subterfúgio do segundo centro móvel em torno do qual se efetuava essa órbita.

“Esta nova acomodação mecânica foi designada com o nome de ‘sistema dos excêntricos’.

“Estes epiciclos e estes excêntricos foram sucessivamente inventados, modificados e multiplicados conforme as necessidades do caso. À medida que as observações se tornavam mais exatas, era necessário acrescentar novos círculos para representar mais precisamente os movimentos celestes. Cada século acrescentava novo círculo e nova engrenagem ao mecanismo do universo, de modo que, no tempo de Copérnico – isto é, no começo do século XVI –, havia já deles número imenso, inextricáveis, emaranhados uns nos outros.

“Os astrônomos e os sábios oficiais da época dificilmente permitiam que se tocasse nesse edifício secular. Segundo Aristóteles e a sua escola, havia uma linha de demarcação natural que da Terra separava o Céu. A Terra, cercada pelos seus quatro elementos, era a sede das mudanças; o Céu, a partir do círculo da Lua, era incorruptível e imutável. Os movimentos celestes, guiados por leis que lhes eram próprias, não tinham relação alguma com as que governam a Terra. Traçada, deste modo, uma linha de demarcação entre a mecânica celeste e a mecânica terrestre, a filosofia colocava uma delas fora do campo das indagações experimentais e punha obstáculos a qualquer progresso da outra, estabelecendo princípios fundados sobre observações incompletas. Continuou por isso a astronomia, durante séculos, a ser uma ciência pura de tradições, em que a teoria não entrava senão no intento de conciliar as desigualdades dos movimentos celestes e uma pretendida lei de revolução circular e uniforme, que se considerava compatível com a perfeição do mecanismo celeste.

“Daí procedia o acervo (informe e contraditório) de movimentos hipotéticos do Sol, da Lua e dos planetas em círculos, que eram sucessivamente centros doutros círculos, até que finalmente – tornando-se mais exata a observação e multiplicando-se constantemente os epiciclos – tornou-se palpável o absurdo de sistema tão confuso.”

Expostas como ficam, sumariamente, as velhas teorias que serviram de base à descrição do universo feita pelo poeta no Canto X, é conveniente que também aqui se dê breve notícia das teorias modernas para as quais concorreu Copérnico [14], transformando o sistema de Ptolomeu, mudando a posição da Terra e demonstrando que o centro do universo é o Sol.

“Copérnico ainda manteve a esfericidade das órbitas celestes, a confusa engrenagem dos epiciclos e excêntricos e outras teorias que os sucessores do grande astrônomo foram modificando – ao ponto de engrandecerem e idealizarem o mundo pela maneira hoje conhecida. Quando se lêem os filósofos gregos – cujos conhecimentos científicos se podem apreciar, ainda que por maneira muito restrita –, causam notável impressão a sutileza que desenvolviam nas discussões, o êxito prodigioso dos raciocínios abstratos, a admirável sagacidade nos assuntos puramente intelectuais – todas estas qualidades formando contraste com a negligência e os poucos cuidados que prestavam ao estudo da natureza externa. Em certos casos, tiravam conclusões ilógicas de princípios de generalização fundados sobre fatos pouco numerosos e mal observados. Alguns desses filósofos prevaleciam-se com inconcebível leveza de princípios abstratos que não se referiam à natureza e dos quais, todavia, deduziam, como supostos axiomas matemáticos, todos os fenômenos e leis que os regem. Estavam, por exemplo, convencidos de que o círculo devia ser a figura mais perfeita, e daí concluíam naturalmente que as revoluções dos corpos celestes deviam fazer-se em círculos exatos e movimentos uniformes; se a observação estabelecia o contrário, não levantavam dúvidas sobre o princípio ou fundamento que haviam estabelecido. Longe disso: não cuidavam senão de salvar a sua perfeição ideal; e, para o conseguir, não havia espécie de combinações de movimentos circulares que eles não imaginassem.

“Nesta guerra de palavras, era desprezado o estudo da natureza, e considerava-se indigna dum sábio a paciente e modesta investigação dos fatos. O radical erro da filosofia grega foi imaginar que era aplicável à física o método que tão bons resultados dera nas matemáticas e que, partindo de noções simples quase evidentes, ou de axiomas, se podia resolver tudo. Por isso todos esses sábios que cultivavam a física andavam sempre ocupados em raciocinar ou desarrazoar sobre pretendidos princípios. Um considera o fogo como sendo a matéria essencial e a origem do Universo; outro adota o ar; um terceiro encontra a solução e a explicação de todos os fenômenos no “infinito”; um quarto vê-os no “ser” e “não ser”. Enfim, um filósofo, que havia de estabelecer opinião durante dois mil anos, decidia que a matéria, a forma e a privação deviam ser consideradas princípios de todas as causas.

“Esta maneira de perder o tempo em argumentos metafísicos, sob o pretexto de fazer ciência, durou nas escolas desde a Antiguidade até Copérnico, e retardou por muito tempo a supremacia das ciências exatas. A astronomia de observação progredia entre os árabes e na escola de Alexandria, mas o seu estudo tornava-se estéril, e sem a teoria era quase impossível atingir o alvo da ciência, o qual consiste em tornar conhecida a natureza. Reconhecemos contudo, para não sermos acusados de ingratidão com a Antiguidade e a Idade Média, que, se não houvesse os trabalhos antigos, não existiria a ciência moderna. Chega-se a grande, depois de se ser pequeno. Graças às observações e explicações antigas é que se pôde verificar a insuficiência das hipóteses e imaginar outras melhores.

“Foi nos séculos XV e XVI que se estabeleceu o método experimental, aparecendo sábios independentes, que se podem chamar precursores de Copérnico: George Peurbach (1423–1461), Jean Muller (1436–1476), Fracastori (1483–1553).

“Enquanto os astrônomos faziam os últimos esforços para explicar do melhor modo possível os movimentos celestes – sem se afastarem da velha hipótese da imobilidade da Terra –, o célebre Colombo descobria o Novo Mundo; e o globo terrestre desvendava-se por todos os lados às vistas da ciência aventurosa; o espírito humano, conhecendo, daí por diante, diretamente e por experiência, a esfericidade do globo e o seu isolamento no espaço, adquiria o elemento mais essencial para conceber o seu movimento.

“No ano imediato à morte do grande navegador, estava Copérnico tratando de destruir as idéias antigas sobre astronomia; e em 1543 publicava em Nuremberg a obra imortal, que mudou a face da astronomia, e cujo título era: Nicolai Copernici Torinensis, de Revolutionibus orbium celestium, libri VI.

“O sistema das aparências, a opinião da imobilidade do globo terrestre e do movimento do Céu, era ainda no século XVI – e ainda hoje é – a idéia simples e vaga que reina no espírito do povo ignorante.

“Refletindo nas condições mecânicas do sistema das aparências, Copérnico pensou que esse sistema, tão complicado e tão grosseiro, não podia ser divino nem natural, porque tudo na natureza é extremamente simples; e, depois de 30 anos de estudos, convenceu-se de que, atribuído à Terra duplo movimento – um, de rotação sobre si própria em 24 horas, e outro, de translação à volta do sol em 365 dias e um quarto –, se explicavam todos os movimentos celestes, para os quais se tinham inventado esses numerosos círculos de cristal.

“O sistema existente parecia estar de harmonia com a observação, mas era aparente essa harmonia. Para que o universo fosse constituído de tal maneira, seriam indispensáveis condições mecânicas que não existem: seria preciso, por exemplo, que a Terra fosse mais pesada que o Sol; que ela fosse o astro mais importante do sistema solar; que as estrelas não estivessem separadas de nós por tão prodigiosas distâncias. Reconheceu-se, pois, que os planetas não circulam em volta do globo terrestre, mas sim em companhia da própria Terra em volta do Sol (relativamente imóvel) – seguindo, no seu movimento, elipses e não círculos.”

Eis alguns dos pontos fundamentais do método de Copérnico e das suas demonstrações – em que todavia aparecem restos das antigas teorias:

“A Terra é esférica [15], porque a esfera é de todas as figuras a mais perfeita, e a que sob a mesma superfície circunscreve maior espaço em todos os sentidos.

“O Sol e a Lua são de forma esférica. É a forma que tomam naturalmente os corpos, como se vê nas gotas de água. Todos os corpos celestes têm forma esférica. Demonstra-se a esfericidade da Terra: um objeto visível ao longe na ponta do mastro dum navio que, visto da praia, parece descer à medida que o navio se afasta: prova-se também pelos eclipses da Lua, na qual se vê a sombra redonda da Terra.

“Qual é a posição da Terra no Universo? Quase todos os autores estão de acordo em supor que a Terra é imóvel; parece-lhes até ridícula a opinião contrária. Examine-se atentamente o caso. Qualquer deslocação observada procede, ou do movimento do objeto observado, ou do observador, ou do movimento simultâneo de ambos; porque, se os dois movimentos forem iguais, não haverá meio de os perceber. Ora, é da parte de cima da Terra que observamos o Céu. Se a Terra se move, parecer-nos-á que o Céu se move em sentido contrário, transportado de Oriente para Ocidente em cerca de 24 horas. Deixai o Céu em repouso e dai movimento à Terra, mas do Ocidente para Oriente: tereis as mesmas aparências exatamente.

“Sendo imensa a esfera celeste, como se pode conceber que ela gire em 24 horas? Não é mais natural atribuir este movimento à Terra, e só à Terra? Quando a Terra gira, tudo que está no Céu nos parece girar; mas as nuvens e tudo que está no ar participam do movimento dela.

“Se todos os astros girassem em volta da Terra, o que sucederia?

“O astro mais próximo de nós (a Lua) está a 96.000 léguas da Terra. Ser-lhe-ia, portanto, necessário percorrer em 24 horas uma circunferência de 192.000 léguas de diâmetro, isto é, 603.000 léguas de extensão; teria, por isso, de correr com uma velocidade de 25.125 léguas por hora, ou 400 léguas por minuto, ou 7 léguas por segundo… Mas isto é o de menos.

“O Sol – a 37 milhões de léguas de nós – teria de percorrer no mesmo intervalo de 24 horas uma circunferência de 232 milhões de léguas em volta da Terra; ser-lhe-ia preciso voar com uma velocidade de 9.680.000 léguas por hora e 161.300 léguas por minuto, ou 2.690 léguas por segundo!

“Os planetas Marte, Júpiter e Saturno, mais longe da Terra do que o Sol – que participam igualmente do movimento diurno –, seriam levados no espaço com uma rapidez ainda mais inconcebível. O último planeta conhecido dos antigos – Saturno –, nove vezes e meia mais afastado de nós do que o Sol, seria obrigado, para em 24 horas dar a volta em roda da Terra, a descrever uma circunferência de dois bilhões de léguas de extensão e a queimar o espaço com uma rapidez de mais de 20 mil léguas por segundo.

“E as estrelas? A imaginação assusta-se com a rapidez que seria necessário supor a esse movimento se elas dessem a volta da Terra em 24 horas. Saturno está distante de nós 218.431 semidiâmetros do globo terrestre. Ora, as estrelas estão para lá do orbe de Saturno. Sabe-se que a estrela mais próxima de nós está à distância de 275.000 vezes a distância da Terra ao Sol, isto é, dez trilhões de léguas. Essa estrela – o alfa de Centauro – deveria percorrer, no intervalo de 24 horas, uma circunferência de 63 trilhões de léguas em extensão, e a sua velocidade seria de 2.666 bilhões de léguas por hora, 44.400 milhões por minuto – em suma, 740 milhões de léguas por segundo.

“Havendo vários centros, não é crível que o centro do mundo seja o da Terra e da gravidade terrestre. A gravidade não é mais do que a tendência natural dada pelo Criador a todas as partes do mundo, e que as leva a reunirem-se e a formarem globos. Esta força deu ao Sol, à Lua e aos outros planetas a forma esférica, o que não obsta a que executem revoluções diversas. Se a Terra, portanto, tem movimento em volta dum centro, esse movimento será semelhante àquele que percebemos nos outros corpos – teremos um circuito anual. O movimento do Sol será substituído pelo movimento da Terra. Tornado imóvel o Sol, realizar-se-ão do mesmo modo o nascimento e o ocaso dos astros; as estações e as retrogradações serão resultado do movimento da Terra; o Sol será o centro do mundo. É a ordem natural de tudo que sucede, é o que ensina a harmonia do mundo – e que é forçoso admitir.

“A esfera superior a todas é a das estrelas fixas – esfera imóvel que abraça o conjunto do Universo. Seguem-se entre os planetas errantes primeiramente Saturno, que precisa de 30 anos para fazer a sua revolução; depois Júpiter, que faz o caminho em doze anos; segue-se Marte, que precisa de dois anos. Na quarta linha encontram-se a Terra e a Lua, que – no espaço de um ano – chegam ao seu ponto de partida. O quinto lugar é ocupado por Vênus, que precisa de nove meses para o seu caminho; Mercúrio ocupa o sexto lugar, e precisa apenas de 24 dias para descrever a sua órbita. No meio de todos, reside o Sol. Qual é o homem que, em templo tão majestoso, poderia escolher outro e melhor lugar para o brilhante astro que ilumina todos os planetas e os seus satélites? Não é sem razão que o Sol se chama a luz do mundo, a alma e o pensamento do universo. Colocando-o no centro dos planetas, como sobre um trono real, entregamos-lhe o governo da grande família dos corpos celestes.”

Em seguida se encontra a figura deste sistema, copiada de um fac-símile da mão de Copérnico:

Breve notícia dos sábios astrônomos que sucederam a Copérnico, confirmando constantemente o seu sistema e concorrendo para os progressos da astronomia moderna, constitui completa explicação dos motivos que induziram Camões a explicar a contextura do Universo segundo o sistema de Ptolomeu. Se doutro modo procedesse, a censura inquisitorial não permitiria a publicação do poema, e levaria talvez a severidade ao ponto de encarcerar o poeta.

A teoria de Copérnico – a do movimento da Terra em volta do Sol, sendo este astro o centro do Universo – continuou a ser tida por absurda, ridícula e inadmissível. Dois anos depois da morte do venerável renovador do mundo, celebrava-se o Concílio ecumênico de Trento (1545), que estabeleceu como fundamental artigo de fé a imobilidade da Terra no centro do mundo. Tycho Brahe (1546–1601), notável astrônomo, tinha exaltada admiração pelo talento de Copérnico, mas deixou-se arrastar naturalmente por escrúpulos religiosos, não admitindo o novo sistema senão corrigido.

Kepler (alemão) e Galileu (italiano), professor de astronomia em Pisa, dois sábios eminentes da sua época (fins do século XVI e princípios do século XVII), defendendo a doutrina de Copérnico, foram dela os primeiros propagandistas. Galileu, escrevendo a Kepler, dizia-lhe: “Copérnico era digno duma glória imortal, e foi tido por insensato!” Kepler respondia-lhe que lhe comunicasse os seus escritos, pois talvez pudesse publicá-los na Alemanha, visto a Itália pôr obstáculo às suas publicações.

Galileu (1610), dirigindo para a Lua as lunetas astronômicas pouco antes inventadas, descobriu que o vizinho astro era uma terra como a nossa, coberta de montanhas e vales; dirigindo-as para o Sol, verificou a existência de manchas na sua superfície e a rotação dele de Oeste para Leste. Esta rotação do astro do dia apresentava um testemunho de alta presunção em favor de movimento de translação dos planetas e da Terra em volta do Sol no mesmo sentido. Voltando a luneta para Júpiter, o ilustre astrônomo descobriu que esse imenso planeta é acompanhado de quatro luas ou satélites, que o seguem no seu curso do mesmo modo que a Lua acompanha a Terra: este pequeno sistema representava em miniatura o sistema planetário todo inteiro. Assim se acumulavam, como por encanto, os testemunhos favoráveis a Copérnico. O mais palpável e mais significativo de todos foi ver-se que se realizava no campo do óculo a profecia que 60 anos antes tinha feito Copérnico perante os seus detratores. Diziam-lhe estes:

— Se o Sol estivesse realmente no centro do sistema planetário, e se Mercúrio e Vênus girassem em torno dele numa órbita interior à da Terra, esses dois planetas deviam ter fases; Vênus, quando estivesse do lado de cá do Sol, devia estar em crescente como se fosse a Lua; e, quando formasse ângulo reto com o Sol e a Terra, devia apresentar-se com o aspecto de quarto crescente. Ora, isso é que nunca se viu.

— Essa é a realidade, respondeu Copérnico, e é o que os homens hão de ver um dia, se acharem meio de aperfeiçoar a vista.

Por isso Galileu [16] exclamou, entusiasmado, quando com a lente descobriu as fases de Vênus:

— Ó, Nicolau Copérnico! Que felicidade seria a tua, se tivesses podido gozar estas novas observações, que tão plenamente confirmam as tuas idéias.

Até então, a nova doutrina não tinha sido objeto de perseguição direta. Mas quando tomou corpo, e pareceu impor-se para substituir os princípios ensinados desde séculos, ligaram-se os sábios oficiais de comum acordo – alguns de boa-fé, outros por interesse ou ciúme – para impedir que triunfasse a novidade. Os teólogos decidiram unanimemente que era contrária às Escrituras. A Congregação do Index, estabelecida para manter a fé católica, foi incumbida pelo Papa de estudar a questão sob o ponto de vista dogmático. Em 1616, publicou essa Congregação um decreto declarando que a nova teoria do movimento da Terra era contrária às Escrituras, e que seria considerado herege quem a sustentasse, proibindo que ela fosse ensinada em qualquer país cristão, e interditando a obra de Copérnico até ser corrigida.

Quatro anos depois, a mesma Congregação indicou as alterações que se deviam fazer na obra de Copérnico: as mais importantes eram intercalar a palavra hipótese em todos os lugares em que o autor expunha a teoria do movimento da Terra e apagar a palavra astro em todos os lugares onde estivesse aplicada à Terra.

Todos sabem que Galileu foi condenado à prisão perpétua por não ter obedecido às proibições da autoridade eclesiástica e que morreu em 1642, depois de ter confirmado com provas indestrutíveis a teoria de Copérnico.

As sentenças eclesiásticas contra a crença do movimento da Terra, no século XVII, foram revogadas pelo Papa Bento XI [17], e hoje a Igreja Católica admite o verdadeiro sistema do mundo.

Kepler (1571–1630) declarou-se, ao mesmo tempo que Galileu, em favor de Copérnico, e na Alemanha publicou – com mais liberdade do que o seu êmulo em Itália – trabalhos profundos que concorreram para radicar, em bases inabaláveis, a teoria discutida do movimento da Terra e imobilidade relativa do Sol no centro das órbitas planetárias. Dos trabalhos de Kepler, resultou saber-se que os astros, no seu curso, não descrevem círculos mas elipses; e foi ele que estabeleceu, além de outras, duas leis imortais, que completaram a obra de Copérnico: 1) que os planetas se movem seguindo elipses, das quais o Sol ocupa um dos focos; 2) que os quadrados dos tempos das revoluções planetárias são proporcionais aos cubos dos eixos maiores das órbitas (os cubos das distâncias) – leis cuja aplicação se resolve por meio de problemas de geometria.

Estas descobertas expurgaram do sistema de Copérnico os círculos excêntricos e os epiciclos, que o embaraçavam ainda, e que tinham ficado como herança orgânica do antigo sistema.

Copérnico foi o fundador, o pai espiritual da astronomia moderna; e esta foi sendo aperfeiçoada por Tycho Brahe (1546–1601), Francis Bacon (1561–1626), Newton (1642–1727), Kepler (1571–1630), Galileu (1564–1642), Herschel (1732–1822), Halley (1656–1742), e muitos outros de todas as nações.

“A obra capital de Newton foi demonstrar que a causa da suspensão da Terra e de todos os astros, no espaço, é uma força determinada – calculável –, cuja intensidade diminui na razão inversa do quadrado da distância; e que em virtude da qual os corpos celestes se atraem reciprocamente; e que se movem e se sustentam no equilíbrio duma rede invisível. A atração universal, a gravitação – demonstrou-o esse sábio – rege os mais ínfimos movimentos que se operam tanto à superfície do solo, como nas mais longínquas regiões acessíveis ao telescópio, sustentando os nossos passos e as nossas habitações, regendo a gota de chuva, o grão de pó levantado pelo vento, dirigindo a Lua em volta da Terra, esta em volta do Sol, e organizando os movimentos das estrelas.”

Em notas ao Canto X, acrescentam-se mais algumas breves noções de astronomia popular, para auxiliar a interpretação das estrofes 77 a 90, onde se descreve o sistema cosmográfico consagrado no tempo do poeta.

Notas:

[8] V. Prefácio do Editor, p. 14. [Nota do Editor]
[9] Estas citações e transcrições ou extratos e os que se seguem são principalmente da obra de Camille Flammarion, L’Astronomie et ses Fondateurs – Copernic et le Sistème du Monde.
[10] Todavia Aristóteles já conhecia opiniões opostas às que sustentava (Do Céu, II, 13, 1): “Os partidários chamados pitagóricos eram de parecer contrário. Pretendiam eles que o fogo estava no centro do mundo, que a Terra era um dos astros que fazem revolução em torno desse centro, a qual produzia o dia e a noite”.
[11] Séc. IV a.C.
[12] Séc. I d.C.
[13] “Em todos estes orbes, diferente curso verás” (X, 90).
[14] Nicolau Copérnico, ilustre fundador da astronomia moderna, nasceu em Thorm (Polônia) a 10 de fevereiro de 1473; era eslavo por parte dos ascendentes e pelo nascimento.
[15] Demonstrou-se mais tarde que é um esferóide, achatado nos pólos.
[16] Nasceu 21 anos depois da morte de Copérnico, mas foi o primeiro astrônomo que se declarou aberta e calorosamente em favor do novo sistema, por escrito – daí procede a sua glória.
[17] Na verdade, o Papa Bento XIV.


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O que é o Quadrivium? - por Roberto Helguera

Um jovem sendo apresentado às sete
artes liberais, 1484-1486. Sandro Botticelli

Transcrevemos abaixo um vídeo sobre Quadrivium traduzido pela própria Sacros*. Vídeo original está neste link.

 ...são artes que nos explicam a harmonia
que existe nas coisas
e essa harmonia é contemplável em si mesma,
porque diretamente
nos aponta para aquele Deus que nos fez
imagem e semelhança...

...são coisas que nos surpreendem
e nos fazem rir
porque, assim como O Pequeno Príncipe, 
elas nos fazem cantar,
eles nos fazem rir
porque são lindas...

...para entender que eu
também sou chamado para ser um ser divino,
para ser um Filho de Deus...

Olá. Como vai? Mais uma vez, estamos juntos. Estamos aprendendo a educar. Estamos aprendendo sobre homeschooling e estamos aprendendo sobre um monte de coisas. Quero falar com você hoje. Já falei com você sobre o que fazer se no meio de sua vida você descobrir que não foi educado.

Depois, falei com você sobre em que consiste uma boa educação. Mencionei a você que uma boa educação requer as artes do trivium e do quadrivium: as artes liberais ou aquelas artes que tornam o homem livre. Era o que os antigos, até não muito tempo atrás consideravam que tinha que saber qualquer pessoa capaz de participar politicamente ou governar a polis. Por quê? Porque essas artes liberais da gramática, lógica, retórica, aritmética, geometria, música e astronomia foram aquelas que moldam a alma e inteligência de tal forma que você pudesse se tornar um homem sábio, porque elas lhe permitiram não apenas nomear o que existe, mas ver bem o que existe nessas coisas. Prudência, como adaptar seu intelecto a uma realidade que está fora de você.

Hoje quero falar com você sobre o quadrivium, as quatro artes liberais, cujo objeto é, se você preferir, a matéria, mas me referir a elas como artes cujo objeto é a matéria, pode lhe dar uma ideia errada de que o quadrivium é mais do que qualquer outra coisa artes servis e não liberais, ou seja, artes que são usadas para fazer coisas.

Por exemplo, a física é usada para construir pontes ou resolver problemas de construção de edifícios, ou balística, ou guerra, ou qualquer outra coisa. Esses são usos legítimos da física, usos legítimos de uma ciência, mas não é a forma como os antigos pensavam nisso.

A razão pela qual temos quatro artes liberais que é a aritmética, geometria, música e astronomia,  principalmente, é porque são artes que nos explicam a harmonia que existe nas coisas, e essa harmonia é contemplável em si mesma, porque diretamente nos aponta para aquele Deus que nos fez imagem e semelhança... Portanto, a maneira liberal de pensar nas artes, tanto na gramática quanto na lógica, retórica, bem como as artes do quadrivium, é pensar no que elas nos dão de harmonia.

Como posso alcançar a harmonia? Pois a harmonia é o repouso, o repouso de minha alma e esse repouso que é obtido pela contemplação e compreensão, aquele momento em que você diz: "ah, entendi" ou se não, pelo menos acho que isso deve ser ótimo. "Senhor - como o Pedro disse - estamos muito bem aqui, vamos fazer três tendas". Por que Pedro quis ficar com Cristo transfigurado? Porque ele estava vendo a harmonia daquele Deus criador.

As artes liberais nos permitem ver a harmonia e considerar a harmonia das coisas. E isso, essa permanência constante na beleza é uma questão que nos da esse repouso. Repousa a mente, repousa a alma e é muito sensato, é muito saudável para minha mente, é muito saudável para essa modernidade.

Vamos pensar: o que a modernidade nos oferece hoje?

A modernidade hoje nos oferece uma "desarmonia", música que não é harmônica, pura gritaria, pura percussão, puro pulo, um escapismo. Desconstrói, o ser humano e a alma em mil matérias e em mil aspectos, como se fôssemos uma coleção acidental de átomos. Não acredita em leis permanentes. Tudo está sujeito a mudanças. Sempre há gritos. Existe um desespero, uma falta de esperança. Por quê? Porque não há beleza. Porque não há beleza. Podemos ver isso de forma muito prática.

Na cidade de Buenos Aires, onde eu moro, por exemplo, é possível ver perfeitamente bem imagens da rua onde temos muito bonita arquitetura de uma época anterior, onde o homem que via harmonia e também tem arquitetura mais bem "original" e muitas vezes brutalista e feia, de uma mentalidade moderna que não acredita mais em harmonia, mas acredita no efêmero do ser humano. Acredita que estamos aqui por acidente e, na pior das hipóteses, também temos todas as calçadas e todas as paredes pichadas por pessoas que não acreditam mais em nada. Portanto, é muito importante trazer harmonia para sua vida. 

Assim como a palavra do trivium nos deu harmonia nos nomes, em nomear, em dizer: "sim, de fato, esse som, essa palavra, ela significa justamente essa realidade" e isso nos dá repouso. A lógica junta essas palavras em uma sintaxe harmônica: sujeito, verbo, predicado, etc., que nos dá satisfação em completar uma ideia, em dar uma ideia completa e expressá-la. A retórica nos dá... diz o grande Andrew Kern do Instituto CIRCE, que é um grande pensador, nos diz: o propósito da retórica é trazer harmonia para a comunidade. Por quê? Porque com a palavra da gramática e da lógica argumentamos para convencer o outro do que é bom, belo e verdadeiro, e para manter a paz, para obter paz para a comunidade.

Dessa forma podemos considerar a Ilíada, aqueles que a leram, a Ilíada, onde tudo é guerra  como uma falha de harmonia como uma falha na retórica. Por outro lado, na Odisseia, onde se trata de uma jornada de um personagem, Ulisses ou Odisseu, desde o naufrágio e a pobreza, de ter perdido todos os seus tesouros de guerra e seus homens para recuperar sua pátria, botim e riquezas e tudo graças à sua boa retórica.

Bem, hoje Quero falar com você sobre harmonia em números, em quantidade ou magnitude, no tempo e no espaço. Vamos falar sobre aritmética. A aritmética é harmônica, por quê? Porque os números, (a quantidade é natural para o homem e os números). Brincando com os números, aqueles que são bons em matemática sabem que há muitas regras.

Por exemplo. Como posso saber qual número é divisível por determinados números? Eu sei que todo número par é divisível por dois. Por que isso acontece? Porque eu tenho uma ideia do que significa a unidade e do que o dois significa. Dois não é somente um mais um, dois tem suas próprias características, é por isso que o chamamos de número par, entre outras coisas.

Quais números são divisíveis por três ou por seis ou por nove? Muitas vezes sabemos que se for divisível por três e por dois é divisível por seis, ou que, se a soma de seus dígitos dá nove, é divisível por nove. Isso é muito interessante porque nos diz que que há uma harmonia desde o início.

Tendo mencionado o "(princípio)", você quer ir embora. O que lemos em São João?

"No princípio era o Verbo, e a Palavra era Deus - ou é Deus - e a Palavra era Deus e a Palavra está com Deus, e sem a Palavra nada foi criado".

A Palavra é uma só, mas Deus é uno e trino. Como sabemos disso? Porque Deus cria o homem à sua própria imagem e semelhança e fala no plural. E nós sabemos que Deus é três e criou o homem, macho e fêmea: dois. E criou o homem com quatro, digamos, elementos da natureza: o úmido, o seco, o quente e o frio, como diriam os antigos. E assim por diante temos números em toda a natureza.

De fato, aqueles que estão familiarizados com o número áureo ou a proporção áurea sabem que a sequência de Fibonacci. Pesquise: "Sequência de Fibonacci". É uma sequência que indica uma ordem absolutamente permeável por toda a criação. Essa sequência é como um logaritmo que indica que cada número é o resultado da soma dos dois anteriores.

Então é $1$; 
$2=1+1$;
$3=2+1$; 
$5=3+2$; 
$8=5+3$, e assim por diante...

E se fizermos isso logaritmicamente, geometricamente, isso nos dará uma curva específica que você vê na forma como as sementes crescem, os galhos das árvores, a forma do nautilus, esse caracol, tão bonito das profundezas do mar e tantas outras figuras da natureza. Isso nos mostra que Deus utiliza a quantidade de forma harmoniosa, mas também a magnitude, porque a matéria tem, além de quantidade, além de ser quantificável. Por quê? Porque ela tem partes. A matéria tem magnitude, tem comprimento, tem largura, profundidade, volume e tudo isso está dentro dos limites. Isso significa que a matéria tem formas.

A geometria é o estudo das formas, por assim dizer. Mas essas formas também são harmônicas porque elas nos trazem repouso na compreensão das propriedades, por exemplo, dos quadriláteros. O que acontece quando eu divido um segmento, por exemplo, em partes iguais e desiguais e construo um quadrado nesse segmento? Percebo que a área desse quadrado, por exemplo, é a soma da área dos dois quadrados menores formados pelos segmentos mais dois quadriláteros, formados por um lado por um segmento longo e o outro lado por um segmento curto. Isso nada mais é do que a equação quadrática, mas expressa geometricamente, ela tem uma beleza enorme.

Portanto, a geometria é importante para a educação porque ela nos traz harmonia, porque é cheia de maravilhas. Temos admiração por esse tipo de regras que acabei de mencionar para você, ou que os ângulos internos de um triângulo somam dois ângulos retos. Sempre. Essas são coisas que nos surpreendem e nos fazem rir porque, assim como O Pequeno Príncipe, elas nos fazem nos fazem cantar, nos dão, nos fazem rir porque são lindas.

A geometria também é bonita. Há pelo menos três fontes de beleza na geometria. Primeiro, as próprias figuras que são perfeitas, dentro de sua espécie, são perfeitas. Cada um dos sólidos, por exemplo, a simetria e a proporção. Isso também é algo que nos dá prazer. E finalmente, há uma beleza nas próprias verdades geométricas,

E já estou falando de forma abstrata, que não estou falando de geometria ou aritmética como algo útil para construir pontes. Ela pode ser usada para isso, e por ter essas propriedades que estão descobrindo e há uma grande alegria, um grande descanso em harmonia quando se vê essas coisas.

Além disso, a geometria está repleta de elementos fundamentais para a filosofia. É por isso que vemos na famosa Academia de Platão uma placa na entrada que dizia que ninguém que seja ignorante de matemática ultrapassa esse limite. Ou seja, que ninguém que seja ignorante de matemática faça filosofia. Isso é importante porque na modernidade o filósofo é visto como alguém que lida com palavras, ciências sociais e não em ciências exatas. As ciências exatas são para engenheiros. Mentira. Não há melhor filósofo do aquele que entende bem de física, que entende bem a beleza e a harmonia da matemática.

Por quê? Bem, porque Platão viu muitos dos princípios universais facilmente descobertos na matemática, e são princípios que são fundamentais para a filosofia, que o todo é maior do que a parte. Você vai me dizer: óbvio. Mas isso é frequentemente negado. Que uma coisa não pode ser tanto par ou ímpar, por exemplo. Isso me mostra o princípio da não-contradição. Os gregos eram muito, muito realistas que não iam além das três dimensões. Para eles, quatro, cinco ou seis dimensões não têm sentido.

A matemática moderna muitas vezes segue uma física moderna que contém muitos dos erros filosóficos, mas isso não impede ninguém, qualquer físico, prefira às equações mais elegantes, mais bonitas, mais sintéticas e que melhor e mais elegantemente expressam uma realidade. É por isso que Einstein, apesar de sua belíssima equação da relatividade, estudou todo o fenômeno da relatividade tentando salvar as equações de Maxwell, as equações da eletricidade, porque ele as viu de forma tão bela que disse que elas não podem deixar de ser verdadeiras, não podem não ser verdadeiras, porque naquela época eles não podiam provar que as equações de Maxwell eram verdadeiras.

Então, isso é interessante. É um aspecto da vida de alguém que realmente considera a geometria ou a matemática, a aritmética como algo belo em si mesmo, como algo que tem um valor em si mesmo. A geometria, além disso, exercita a mente de uma forma elevada. É por isso que os gregos estudavam a geometria como algo fundamental e necessário, algo que mostra, se você preferir, a ordem divina das coisas.

E isso nos leva ao o estudo da música. A música, diriam os antigos, é o conhecimento prático, segundo eles, da modulação, "modulatio" que constitui o som e o canto e a música deriva da palavra musa. As nove musas dos gregos, que inspiravam os poetas para expressar verdades divinas sem compreendê-las. Ou seja, como se os deuses falassem por meio dos poetas, ao homem normal. Mas como eles falavam em um idioma superior, eles falavam de uma forma poética, de uma forma intuitiva, como metafórica ou alegórica, ou, exatamente, dessa forma: analógica. Essa linguagem que é tão importante saber e que eu já falei com você em outros vídeos sobre a importância importância de conhecer esse modo de conhecer, é uma linguagem que, é expressa na música.

A música também é muito matemática. Como assim? Porque as notas são uma questão de relações matemáticas. Se você souber, uma nota, por exemplo, uma oitava, é uma proporção de 1 para 2. Se eu tiver uma corda com comprimento de um metro e eu a cortar pela metade, por 50 centímetros, esses 50 centímetros vai soar uma oitava acima do que a corda, ela vibrará duas vezes mais rápido, do que a corda inteira. E assim sabemos que, por exemplo, uma 5ª é uma proporção de 2 para 3 e uma 4ª é uma razão de 3 para 4, e a segunda é uma proporção de 9 para 11 ou 9 para 12, se não estou enganado.

Quanto mais harmônico o som, mais simples a proporção, quanto mais atonal ou "inarmônico" for o som, mais complexa será a relação para o ouvido, o número é maior. E é dito que, por exemplo, os planetas circulam, há uma sinfonia famosa do som dos planetas por Holst, que me parece ser baseada no Timeu, onde os planetas circulam em órbitas que têm relações matemáticas com respeito ao resto das órbitas, e essas relações formam sons, sons do universo.

O antigo tinha um ouvido capaz de ouvir muitas harmonias e muitas coisas que nós perdemos por causa do barulho de toda a tecnologia da modernidade. Nós perdemos, mas podemos recuperá-lo sempre buscando isso.

Portanto, a terceira arte do quadrivium é a música e ela é tão fundamental e tão embutida na criação que não é à toa que um poeta, por assim dizer, como Tolkien escreve em seu Silmarillion, que no início Ilúvatar, que é um nome para Deus, cantou, fez música e essa música era criativa, criou.

E a Liturgia nós a cantamos ou deveríamos cantá-la. E quando estamos felizes, ou apaixonados ou alegres, o que fazemos? Começamos a assobiar ou cantar. E por que cantar é orar duas vezes? Porque quando alguém canta afirma que o que ele está cantando é bonito, é bom, é bonito e é verdadeiro. Afirma duas coisas: é verdadeiro e é belo portanto, é digno de uma canção. É por isso que a música é uma das artes mais importantes e não deve faltar em sua educação ou na educação de seus filhos.

Se você nunca fez nada sobre música, bem, nunca é tarde demais para começar a estudar um instrumento, um instrumento clássico: violino, violoncelo, algum instrumento agradável se você tiver um bom ouvido. O piano é o mais simples, porque as notas já estão predeterminadas. O violão é um pouco mais difícil, mas é muito satisfatório. E cantar. Cante, cante, coloque música em sua vida, em sua alma. Isso é importante.

Na modernidade, estamos acostumados a não fazer música, mas a ouvir música transmitida eletronicamente. E é muito bom, mas eu te encorajo a tentar fazer música você mesmo, participe de um coral, cantar, fazer aulas de voz, aulas de canto faça alguma coisa.

Finalmente, astronomia. A astronomia, aqui podemos lembrar dessa pequena rima de Estrelinha, com a música de Mozart, que resume todo o espírito da astronomia.

«Twinkle, Twinkle twinkle little star. How I wonder what you are».

Brilha, brilha, estrelinha. Eu me pergunto o que você é.

E isso é como O Pequeno Príncipe. Aqui chega um estudo que nos leva ao espaço. E o espaço nos atrai porque é misterioso e cheio de ordem e previsibilidade. Todo dia o sol nasce, todo dia o sol se põe, todo dia nós vemos a lua de minguante, de meia-lua, de lua cheia, até cheia e assim por diante. Ela cresce e cresce a cada 29 dias, é regular, há uma regularidade nos planetas, nas órbitas que quando as entendemos, nos causa uma enorme harmonia na alma.

Saber que esses seres misteriosos que estão lá, essas criaturas que são esses planetas e sóis gigantescos que estão lá, alguns que nós nunca chegaremos a ver como seres humanos. E Deus os colocou lá pelo prazer, para nos mostrar a beleza e que a beleza como é Deus é harmônica, porque Deus Trino e Uno e Trino faz tudo em harmonia.

Por exemplo, é dito que o universo começou no dia 25 de março. E por quê? Porque a encarnação ocorreu no dia 25 de março e também no dia 25 de dezembro, nove meses depois Cristo nasce e assim tudo tem uma harmonia, certo? E se você me dissesse: «adivinha que dia poderia ser o dia em que tudo acabaria" E eu diria: Não sei quando, não sei em que ano, mas apostaria no dia 25 de março.

Então, no quadrivium temos a aritmética da quantidade, a geometria da magnitude, música, que é quantidade, magnitude e tempo colocados em uma harmonia. E a astronomia que me causa, me mostra essa harmonia de toda a criação que eu contemplo para entender que eu também fui chamado para ser um ser divino, para ser um Filho de Deus... para me alegrar como o Pequeno Príncipe.

E quando eu olhar para as estrelas, rir e ouvir a risada do Pequeno Príncipe, esse é o quadrivium, muito importante faça com que isso faça parte de sua vida, coloque em prática em seu programa, eduque seus filhos com isso ou se eduque também nessas artes. Eu te incentivo.

Nos vemos na próxima vez para continuarmos falando sobre educação.

* Para saber mais sobre a Sacros clique aqui.

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