Postagem em destaque

COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae

Primeiramente quero agradecer bastante todo o apoio e todos que acessaram ao Summa Mathematicae . Já são mais de 100 textos divulgados por a...

Mais vistadas

O ensino dos números no Primário antigo

Homero, poeta grego do século IX a.C.
Pintura de Jean-Baptiste Auguste Leloir de 1841

Tempo de leitura: 6 minutos.

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas em 2017).

O CÔMPUTO

Não havia, no início, ambição muito maior em seu modesto programa matemático: limitava-se a ensinar a contar, no sentido restrito da palavra: aprendia-se a lista dos números inteiros, cardinais [49] e ordinais [50], tanto pelos nomes como pelos símbolos (sabe-se que os gregos notavam os algarismos por meio das letras do alfabeto, que alcançou vinte e sete sinais pelo acréscimo do digama, do koppa e do sampi, de maneira a dispor de três séries de nove sinais, para as unidades, as dezenas e as centenas [51]). Este estudo era simultâneo ao do silabário ou dos dissílabos [52].

Era também na escola elementar, pelo menos suponho-o (9), que se aprendia a contar pelos dedos, técnica bem diferente da que usamos sob esse nome: a Antigüidade conheceu toda uma arte, rigorosamente codificada, permitindo simbolizar, por meio das duas mãos, todos os números inteiros de $1$ a $1.000.000$. Com os três últimos dedos da mão esquerda, segundo estivessem mais ou menos abaixados e dobrados sobre a palma, representavam-se as unidades, de $1$ a $9$; as dezenas, pela posição relativa do polegar e do indicador dessa mesma mão; as centenas e os milhares, de igual maneira, com o polegar e o índex, e com os três últimos dedos, na mão direita; as dezenas e as centenas de milhares, pela posição relativa da mão, seja esquerda, seja direita, com relação ao peito, ao umbigo, ao fêmur; o milhão, enfim, pelas duas mãos entrelaçadas. Essa técnica está de todo esquecida hoje entre nós, mas teve grande aceitação, no Ocidente, até às escolas medievais; persiste ainda hoje no Oriente muçulmano. Atestada como de uso corrente no mundo mediterrâneo a partir do Alto Império romano, apareceu talvez mais cedo, nos últimos séculos anteriores a Cristo.

Depois dos números inteiros, aprendia-se, sempre sob o duplo ponto de vista da nomenclatura e da notação, uma série de frações: as da arure ou da dracma [53]:

o $1/8$ escreve-se $c$ $xx$ (seja, um meio óbolo e dois calcos),
o $1/12$ escreve-se $x$ (um calco), etc. [54].

Como o mostra a escolha destas unidades concretas, saimos aqui da aritmética para entrar no sistema métrico: seu estudo é bem atestado, a partir dos séculos II e III da nossa era, por diversos papiros contendo tabelas metrológicas [55], por exemplo dos múltiplos e submúltiplos do pé [56]. Mas isto era, antes, uma iniciação à vida prática, que estudo matemático propriamente dito.

Assim, no começo da era helenística, a aritmética escolar se limitava a muito poucas coisas: o manual do século III ao qual muitas vezes já me reportei contém apenas, além disso, uma tábua dos quadrados [57], cujo fim aliás é, talvez, completar, até $640.000$, a lista dos símbolos numéricos. Tem-se de esperar até o século I a.C. para ver aparecerem num papiro, em seguida aos cálculos de quadrados ($2 \times 2 = 4;$ $3 \times 3 = 9; 4 \times 4 = 16$), estes exercícios de aplicação sobre as frações da dracma, dos quais encontramos o equivalente na escola latina do tempo de Horácio [58]: o $1/4$ de dracma é $1$ óbolo e $1/2$: o $1/12$ é $1/2$ óbolo; $1/4 + 1/12 = 1/3...$ [59]. Em seguida aparecem cálculos mais complexos, de modo que cabe perguntar-se se este papiro, aparentemente de origem escolar, conduz-nos realmente a uma escola primária. Somente na época copta, nos séculos IV-V d.C. encontram-se, em tabuletas que certamente pertenceram a crianças, tabuadas muito elementares de adição: “$8$ (e) $1:9; 8$ (e) $2:10...; 8$ (e) $8:16; 2$ (vezes) $8:16; 8$ (e) $7:15; 7$ (e) $8:15$ [60]. Mesmo nesta época, sempre que se encontram exercícios aritméticos elevando-se um grau acima destes balbucios, a escrita mostra, por sua destreza e sua perfeição, que são obra de adulto e não mais de criança [61] (10).

Por mais estranho que o fato possa parecer de início, tem-se realmente de reconhecer que “as quatro operações”, esta humilde bagagem matemática de que toda criança, entre nós, se acha desde bem cedo munida, permanecem na Antigüidade muito além do horizonte da escola primária. O uso, bastante comum, de instrumentos para cálculos e do ábaco (11) supõe que o conhecimento da adição não estava muito difundido entre o público e, na verdade, constatamos que poucos o possuem sólido, mesmo nos meios cultos e de época tardia.


Notas Complementares:

(9) O cômputo digital: Cf. D. E. Smith, History of Mathematics, Boston, 1925, t. II, ps. 196-202; E. A. BECHTEL, The Finger-counting among the Romans, ap. Classical Philology, IV (1909), ps. 25 e segs.; FROEHNER, ap. Annuaire de la Societé Française de Numismatique et d'Archéologie, VIII (1884), ps. 232-238; J.-G. LEMOINE, Les Anciens procédés de calcul sur les doigts en Orient et en Occident, ap. Revue des Études islamiques, VI (1932), ps. 1-60; A. CORDOLIANI, Études de comput, I, ap. Bibliothèque de l'École des Chartes, CHI (1942), ps. 62-65.

Apresentam-se dois problemas sobre o assunto:

a) a data do seu aparecimento. As únicas exposições ex professo que possuímos são, para o Ocidente, o tratado de BEDA o Venerável (século VIII; P. L., t. 90, c. 685-693) : os manuscritos são acompanhados de curiosas pranchas ilustradas) e, para o Oriente, algumas páginas de RHABDAS (alias NICOLAS ARTAVASDOS de Esmirna, século XIV), texto e tradução ap. P. TANNERY, Mémoires scientifiques, IV, ps. 90-97. Mas algumas alusões, tecnicamente exatas, atestam-lhe o uso na Roma imperial, desde o século I:

Plínio (N. H., XXXIV, 33) fala numa estátua de Jano, consagrada pelo rei Numa (?), cujos dedos representavam o número 365: sejam quais forem a data real da consagração e as intenções do escultor, esse testemunho atesta que os contemporâneos de Plínio o Antigo interpretavam o gesto desse Jano em função das normas do cômputo. Ver ainda JUVENAL (X, 248: um centenário conta o número dos seus anos na mão direita) e principalmente APULEIO (Apol., 89, 6-7), são JERÔNIMO (Adv. Jovinian., I, 3) santo AGOSTINHO (Serm. 175, 1), MARCIANO CAPELLA (VII, 746).

O sistema não era propriamente exclusivo dos meios latinos: um fato anedótico citado por PLUTARCO (Reg. Imp. Apopht., 174 B); ÉLIO ARISTIDES (XLVI D., 257; cf. Suídas, t. I, p. 339, 3752) indica que era conhecido pelo menos em sua época (século II depois de Jesus Cristo) e, se a anedota tem fundamento histórico, já no século IV antes de Jesus Cristo: Orontes, genro do rei Artaxerxes II (404-358) comparava os amigos dos reis, sucessivamente poderosos ou miseráveis, segundo gozavam de simpatia ou caíam em desagrado, aos dedos da mão que, sucessivamente, representam as dezenas de milhar (mão esquerda apoiada sobre esta ou aquela parte do corpo) ou as simples unidades (mão esquerda estendida à frente do corpo); cf. ainda Anth. Pal., XI, 2.

Plínio (N. H., XXXIV, 88) descreve também uma estátua de homem (que seria talvez Crisipo) contando nos dedos, atribuída ao escultor Eubúlides (II: cf. C. Robert, ap. Pauly-Wissowa, VI, c. 871-875, s. v. Eubulidès n.º 10; poderíamos datá-la de aproximadamente 204 antes de Jesus Cristo). Heródoto já se referia ao assunto (VI, 63; 65) mas não é certo de que se tratasse já, então, do sistema codificado por Beda. Na verdade, os vasos com figuras encarnadas, que parecem representar jogadores de morra, não nos apresentam uma mímica que possa ser interpretada em função dessas regras (G. LAFAYE, ap. DAREMBERG-SAGLIO, III, 2, ps. 1889b-1890b, s. v. Micatio; K. SCHNEIDER, ap. PAULY-WISSOWA, XV, 2, c. 1516-1517, s. v. Micare). Entretanto, cf. talvez uma das pinturas de vasos consagrados à Représentation de la vente de l'huile à Athènes (sob este título: F. J. M. DE WAELE, Revue Archéologique, 5, XXIII (1926), ps. 282-295): trata-se de uma “peliké” com desenhos negros (E. PERNICE, ΣΙΦΩΝ, ap: Jahrbuch d. deutsch, archaelog. Instituts, VIII (1893), p. 181), onde se vê uma comerciante cujos dedos da mão esquerda representariam o número $31$; cf. ainda Ar. Vesp., 656.

Os únicos monumentos com figuras de origem antiga e que provam o uso do sistema Beda-Rhabdas são as singulares tabuinhas do Gabinete das Medalhas da Biblioteca Nacional, assinaladas pela primeira vez por Froehner (art. citado, enquanto se espera o catálogo de J. Babelon, Col. Froehner, t. II, n.º 316-327, e a nossa prancha). Deve tratar-se de fichas de jogo; não se encontrou nenhuma indicando um número superior a $16$. A técnica de sua fabricação permite relacioná-las à indústria de brinquedos alexandrina da época imperial (na verdade, a maioria dos exemplares conhecidos provém do Egito; alguns, de Roma). Lamentavelmente, é difícil determinar a data: há discordância entre os numismatas; consultei J. Babelon e P. Le Gentilhomme sobre o assunto: o primeiro inclina-se pelo Alto Império, o segundo para uma época mais recente, depois de Constantino.

b) Onde e quando se aprendia esse cômputo? Os textos da época romana mostram-nos o seu uso inteiramente habitual (os advogados, por exemplo, servem-se dele no tribunal: QUINT, XI, 3, 117; não vejo por que não teria sido ensinado na escola primária: devido ao seu caráter qualitativo (um símbolo para cada número inteiro), parece conciliar-se naturalmente com o ensino da numeração.

(10) A aritmética na escola primária: a classificação dos papiros matemáticos deve ser feita com uma crítica severa. Importa não catalogar apressadamente como “papiros escolares” (como o faz P. CΟLLART, Mélanges Desrousseaux, ps. 79-80) aqueles cujo caráter, para nós modernos, é elementar. E extremamente instrutivo constatar que, em pleno século IV depois de Jesus Cristo, um adulto instruído, um funcionário como o Hermesion dos PSI, 22, 958, 959, sentia a necessidade de copiar com sua própria mão uma tabela de multiplicação no mesmo caderno em que, ao mesmo tempo que redigia horóscopos, fazia as suas contas administrativas. Cf. também, no século VI, as grandes tabelas metrológicas do P. London, V, 1718, estabelecendo minuciosamente, por exemplo, as “conversões” da artaba e de cada um dos seus submúltiplos, em unidades inferiores: sentir-nos-íamos tentados a interpretá-las como um manual de ensino primário (entre nós, as “conversões” do sistema métrico representam um papel tão importante!): ora, essas tabelas foram feitas pelo próprio Fl. Dioscoro, singular personagem que conhecemos bem, “tipo perfeito do fidalgo camponês bizantino, grande proprietário em Afroditô-Kôm Ishgâw, protocometa, advogado, poeta enfim nas horas vagas” (Assim o descrevo ap. Mélanges d'Archéologie et d'Histoire, LVII (1940), p. 129). Desde que homens instruídos, como esses, sentiam a necessidade de organizar para si tais mementos, isso significa que esses conhecimentos matemáticos elementares não eram realmente adquiridos na escola. Não há razão para se supor que seja isto efeito da “decadência”: que o Sócrates de XENOFONTE (Mem. IV, 4, 7) pergunte a Hípias se $2 \times 2 = 5$ não nos prova nada sobre o ensino da aritmética na escola primária.

Voltando à questão dos papiros, se muitos deles são difíceis de classificar e de testemunho ambíguo (tal como: P. London, III, 737, tabelas de somas; P. Oxy., 9 (t. I, p. 77) verso; 669, tabelas metrológicas), alguns são bastante reveladores: PLAUMANN (ABKK., XXXIV [1913], c. 223) nota, a propósito de PREISIGKE, Sammelbuch, 6220-6222, que, desde que os exercícios aritméticos se elevam de um grau acima do muito elementar (como: tabelas de frações, 1/2 ou 1/3, da série dos números inteiros; multiplicação do tipo $19 \times 55 = 4055$; $78 \times76 = 5928$; somas de números fracionários), a escrita, aqui do século VII, é a de um adulto e não mais de uma criança.

(11) Cálculo pelo ábaco: cf. E. GUILLAUME, ap. DAREMBERG-SAGLIO, I, ps. 1 b-3 b, s. v. Abacus, II; HULTSCH, ap. PAULY-WISSOWA, I, c. 5-10, s. v. Abacus, 9; A. NAGL, ibid., Suppl., III, c. 4-13; 1305.


Referências:

[49] E. Ziebarth, Aus der antiken Schule (ed. cit.), n.º 5l; Journal of Hellenic Studies, 28 (1908), 131, 16.

[50] Journal of Hellenic Studies, 28 (1908), 131, 16.

[51] Papiri greci e latini, Pubblicazione della Società Italiana per la ricerca dei Papiri greci e latini in Egitto, 250; Fr. PREISIGKE continuado por F. BILABEL, etc.), Sammelbuch grechischer Urkunden aus AEgypten, 6215. 

[52] O. Guéraud, P. Jouguet, Un Livre d'Ecolier du IIIe. siècle avant Jésus-Christ (ed. cit.), 21-26; Amtliche Berichte aus den königlischen Kunstsammlungen, montlich erscheinendes Beiblatt zum Jahrbuch der kgl. Preuszischen Kunstsemmlungen (Berlin), 34 (1913), 213; 218.  

[53] Journal of Hellenic Studies, 28 (1908), 132, 17.

[54] O. Guéraud, P. Jouguet, Un Livre d'Écolier du IIIe. siècle avant Jésus-Christ (ed. cit.), 235-242.

[55] B. P. Grenfell, A. S. Hunt, H. I. Bell, etc., The Oxyrhynchus Papyri, 1669 v.

[56] A. S. Hunt, J. de M. Johnson, V. Martin, Catalogue of the Greck Papyri in the John Rylands Library at Manchester, II, 64.

[57] O. Guéraud, P. Jouguet, Un Livre d'Écolier du IIIe. siècle avant Jésus-Christ (ed. cit.), 216-234. 

[58] Horácio, Epístola aos Pisanos (Arte Poética), 325 s.

[59] Papiri greci e latini (ed. cit.), 763. 

[60] Fr. Preisigke (continuado por F. Bilabel, etc.), Sammelbuch griechischer Urkunden aus AEgypten, 6215. 

[61] Idem, 6220-6222.

***

Leia mais em O papel das matemáticas na educação, segundo Platão

Leia mais em O ensino da Matemática (Quadrivium) no período clássico



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.



Os Sólidos Platônicos

Sólidos Platónicos y la figura sagrada Cristiana de la Trinidad
 por César Villacís et al.

Tempo de leitura: 20 min.

Apresentamos o texto Sólidos Platónicos por Rafael Montés Gil, disponível em parte 1 e parte 2.

Dedicado aos meus amigos e principalmente a José Carlos Fernández

INTRODUÇÃO

Platão sempre surpreende. No seu diálogo “Timeu”, escrito por volta de 360 ​​a.C., desenvolve três grandes temas: a origem do universo, a estrutura da matéria e a natureza humana.

Quando fala da formação do Cosmos, desenvolve a doutrina de Empédocles dos Quatro Elementos representados por poliedros regulares e estabelece as relações geométricas entre uns e outros como depois ninguém mais foi capaz de igualar.

De Kepler a Arturo Soria, passando por Leonardo e Matila Ghyka, todos expuseram relações entre uns sólidos e outros, entendidos como “volumes”, ou seja, corpos sólidos, encaixando-se uns nos outros.

Platão fá-lo de maneira muito diferente. Primeiro, decompõe cada corpo nas suas partes elementares. Em seguida, combina-as. E depois expõe como essas partes elementares interagem umas com as outras. Vai sempre à essência.

Neste tema encontramos uma parte geométrica na qual são estudadas formas simples e fundamentais – arquetípicas – e outra parte filosófica na qual se analisam ideias.

A primeira requer uma certa capacidade de “visão espacial” e a segunda uma certa “capacidade de abstração”.

Na tentativa de unificar estes dois aspectos do conhecimento, trataremos de fazer uma exposição simples e clara das diferentes figuras geométricas e das suas possíveis relações.

O tema nunca poderá considerar-se como acabado, pois, tratando-se de figuras primordiais com as quais – disse Platão – Deus formou o corpo do Mundo, entenderemos que pertencem àquelas “altas regiões” do Divino onde a mente concreta tem vedadas as suas entradas.

É necessário, portanto, esforçar-se por despertar uma certa intuição que nos permita uma aproximação mais íntima a essas figuras, lembrando que, na antiguidade, a ciência da Geometria era inspirada pelas Musas e que, juntamente com a Aritmética, fazia parte do alto saber humano.

Na nossa pequena escala, tentaremos substituir esta grande intuição dos nossos antigos por uma visão clara e simples das figuras e das suas correspondências através de uma série de desenhos que acompanham estas notas.

OS CINCO POLIEDROS REGULARES

São apenas cinco e todos atendem às condições de terem, em si mesmos, todas as faces iguais, todas as arestas iguais e todos os seus vértices iguais. Platão diria que eles são iguais a si mesmos em cada uma das suas partes.

Todas as faces devem ser planas e ter lados iguais, sendo o mais simples deles o triângulo – um polígono de três lados – dada a impossibilidade de construir um polígono com menos de três lados.

Da mesma forma, todos os vértices serão iguais e três ou mais faces convergirão para eles, pois é impossível formar um ângulo triedro com duas faces ou menos.

Vejamos que figuras poderemos construir com faces triangulares – triângulos equiláteros regulares.

Seis triângulos colocados em torno de um ponto central ocupam todo o plano e não dão origem a nenhuma figura sólida.


$60º \times 6 = 360º$

Mas, se removermos um dos seis triângulos, deixando apenas cinco ao redor do vértice central, obtemos, depois de fazer coincidir as duas arestas que ficam livres, (dobrando o plano) uma figura em que cinco faces triangulares convergem em cada vértice. Essa figura será o ICOSAEDRO.


Se agora removermos outro triângulo, permanecerão quatro. A figura na qual quatro triângulos se encontram num vértice é o OCTAEDRO.

Mas ainda podemos remover um outro triângulo, deixando apenas três. A figura na qual, em cada vértice, convergem três faces é o TETRAEDRO.

Se removermos um outro, restam apenas dois triângulos e nenhuma figura pode ser construída.


Resumindo: existem apenas três figuras com faces triangulares que são o icosaedro, o tetraedro e o octaedro. Não há mais. Se tomarmos, por exemplo, a bipirâmide pentagonal veremos que não é um poliedro regular porque em alguns vértices convergem cinco faces e em outros apenas quatro, ou seja, os vértices não são todos iguais.


Vejamos agora que figura podemos obter com um quadrado. Repetindo o processo anterior, vemos que quatro quadrados ocupam todo o plano. Com três quadrados para cada vértice obtemos um CUBO, e com apenas dois quadrados não é possível obter nenhuma figura.


$90º \times 4 = 360º$

Resumindo: existe apenas uma figura regular com faces quadradas: o CUBO.

Vejamos agora o que acontece se considerarmos os pentágonos como faces. Não é possível unir quatro pentágonos num plano, em torno de um vértice, pois tendo o ângulo interno de um pentágono $108º$, com os quatro ultrapassaríamos $360º$ de uma circunferência completa.

$108º \times 4 = 432º > 360º$

No entanto, pudemos juntar três pentágonos e repetir o processo anterior.



$108º \times 3= 324º < 360$

Se, como antes, removermos um pentágono, restam apenas dois e não é possível obter um vértice com apenas duas faces.

Resumindo: há apenas uma figura regular com faces pentagonais: o DODECAEDRO.

Se formos para a próxima figura plana, o hexágono, não podemos fazer nenhuma figura sólida porque apenas com três hexágonos – o mínimo para cada vértice como já vimos – já ocupamos todo o plano e não obtemos nenhum volume.


$120º \times 3 = 360º$

Existem, portanto, apenas cinco poliedros regulares possíveis: Cubo, Icosaedro, Octaedro, Tetraedro e Dodecaedro, para os quais são indicadas as características mais gerais na tabela seguinte.


OS CINCO SÓLIDOS


PARTE 2 - Rafael Montes Gil

“Começarei por dizer que, para todos é evidente que o fogo, a terra, o ar e a água são corpos. Tudo o que tem a essência do corpo também tem profundidade. Tudo que tem profundidade contém em si a natureza da superfície. Uma base cuja superfície é perfeitamente plana, é composta por triângulos. Todos os triângulos têm a sua origem em dois triângulos tendo cada um, um ângulo reto e os outros dois agudos " - Platão


OS SÓLIDOS PLATÔNICOS E O TIMEU

Até agora, vimos da forma mais simples possível, como surgem os cinco sólidos e também que estes são os únicos possíveis. Platão, no diálogo “Timeu” ou da Natureza, faz uma exposição diferente, mas muito mais elegante e um pouco mais complexa. É preciso dizer que no referido diálogo apenas se apresentam QUATRO dos cinco sólidos já conhecidos, fazendo menção ao DODECAEDRO, como “uma quinta combinação que Deus usará para traçar o plano do Universo”.

Isto reforça a tradição órfica, segundo a qual “Dionísio-Criança” brinca com sete formas fundamentais simbolizadas em sete artefatos: Bola, Pião, Espelho e Dados (quatro dados).
Platão conhecia a forma do dodecaedro, mas não a menciona no Timeu porque não faz parte do processo pelo qual Deus concede a forma ao “Corpo do Mundo”.

Talvez pertença a um plano ainda mais elevado, pois, a partir dele pode-se obter todas as outras formas.

Vejamos então, como se constrói o “Corpo do Mundo” a partir dos quatro corpos elementares, e como se constroem estes corpos a partir da forma mais simples e mágica: o triângulo.

Começarei por dizer que, para todos é evidente que o fogo, a terra, o ar e a água são corpos. Tudo o que tem a essência do corpo também tem profundidade. Tudo que tem profundidade contém em si a natureza da superfície. Uma base cuja superfície é perfeitamente plana, é composta por triângulos. Todos os triângulos têm a sua origem em dois triângulos tendo cada um, um ângulo reto e os outros dois agudos”.

Mais adiante veremos que um desses triângulos é o retângulo-isósceles, ou seja, é um triângulo retângulo com dois lados iguais.

TRIÂNGULO ELEMENTAR RETÂNGULO

O outro triângulo, também é um triângulo retângulo, mas com todos os lados irregulares. Das infinitas possibilidades, Platão escolhe aquela que tem os lados de maior beleza e simplicidade, um triângulo cuja hipotenusa é o dobro do cateto menor. Existe apenas um, cujos ângulos são $30°$, $60°$ e $90°$. (Já temos uma esquadra e um esquadro).

$A/B = 0,5$; pero $A/B =$ sen $\alpha = 0,5$; $\alpha = 30º$

TRIÂNGULO ELEMENTAR ESCALENO

E continua, dizendo: “Aproximem dois desses triângulos seguindo a diagonal. Repitam esta operação três vezes, para que todas as diagonais e catetos menores se fixem num ponto que lhes serve como um centro comum, e tereis um triângulo equilátero formado por seis triângulos elementares”. (ver as imagens abaixo)

E assim, obtemos um triângulo equilátero, formado por seis triângulos elementares que darão origem ao tetraedro, ao icosaedro e ao octaedro.

De forma similar, obteremos o quadrado a partir de outro triângulo elementar, unindo quatro deles conforme indicado no texto.

Tanto o quadrado como o triângulo equilátero podem ser divididos infinitamente nos seus respectivos triângulos elementares. Por isso, Platão diz que os quatro elementos podem-se dissolver até penetrar e transformar-se no mais minúsculo, assim como podem justapor-se para dar origem ao Grande Elemento, a síntese final de todas as suas partículas.
  1. Agora temos: Cubo: Sólido formado por $24$ triângulos elementares. Elemento Terra.
  2. Icosaedro: Sólido formado por $120$ triângulos elementares. Elemento Água.
  3. Octaedro: Sólido formado por $48$ triângulos elementares. Elemento de Ar.
  4. Tetraedro: Sólido formado por $24$ triângulos elementares. Elemento Fogo.
Platão chama, “ângulo plano” àquele que se forma por duas retas com um ponto comum e, por extensão, àquele que se forma por dois planos com uma reta comum. Essa linha comum é a aresta de um sólido. Por outro lado, “ângulo sólido” é aquele que se forma por três ou mais planos com um único ponto em comum, ou seja, formam um vértice.

É imprescindível agora, compreender que, se dividirmos um cubo em muitos triângulos elementares, depois de muitas divisões, os triângulos menores não mudarão de forma. Ao reuni-los obteremos cubos menores, mas não há possibilidade de obter uma forma diferente. Por outro lado, os triângulos elementares dos outros três elementos são iguais e, decompondo um desses corpos, podemos obter outro.

Fogo, ar e água são transmutáveis entre si e formam um único conjunto que se apresenta de três formas distintas. A terra, por si mesma, forma a sua contraparte.

No primeiro conjunto, o fogo seria a última síntese. No segundo, a terra seria a única existente.

Temos portanto, os dois primeiros elementos, fogo e terra, que Platão coloca na origem, é a primeira dualidade da qual surge tudo o que se manifesta.

Ambos são idênticos no número de triângulos elementares, mas de diferentes classes.

SÓLIDOS PLATÓNICOS DE “O TIMEU”
24 Triângulos Elementares Isósceles.
Terra.
24 Triângulos Elementares Escalenos.
Fogo.
48 Triângulos Elementares Escalenos.
Ar.
120 Triângulos Elementares Escalenos.
Água.


Faltava uma quinta combinação de que Deus se serviu para traçar o plano do Universo…”

A este novo elemento Platão chama de “meio proporcional” ou “média proporcional”, que só serve para relacionar números “planos” (veja-se o problema pitagórico da duplicação do cubo, magistralmente resolvido por Platão).

Mas, era preciso que o fogo e a terra não fossem planos mas sólidos (senão não seriam corpos). Para se estabelecer uma proporção entre dois sólidos não basta um meio termo, são essenciais dois: “Deus interpôs-se, entre o fogo e a terra, os restantes dois corpos, o ar e a água, formando um todo proporcional e harmónico”.

Vejamos agora, como o ar e a água surgem quando o fogo e a terra entram em contato. “O fogo posto em contato com a terra, corta-a com as suas arestas vivas”, ou seja, o tetraedro e o cubo ao justaporem-se fazem com que cada aresta do tetraedro corte uma face do cubo.
Figura 1
Figura 2

Mas, cada cubo é cortado pelos dois tetraedros inscritos formando posteriormente uma estrela denominada por Kepler “Stella Octângula
Figura 3. Stella Octângula

Nesta figura, vemos como o cubo foi decomposto em cada um dos seus triângulos elementares. Esses triângulos elementares não podem combinar-se entre si, a não ser para formar outros cubos, pois a Terra não é susceptível de ser transformada em outros elementos. Após sucessivas divisões, a terra seria dissolvida e reduzida a partes irredutíveis.

Mas vamos dar mais um passo. Uma vez que existem dois tetraedros inscritos, cada um parte do outro e são decompostos em triângulos elementares que podem recombinar-se para formar a água e o ar.

Na seguinte imagem podemos ver o resultado da face triangular de um tetraedro após ter sido cortada pelo outro:

Porém, não esqueçamos que o triângulo equilátero é composto por seis triângulos elementares, sendo a seguinte imagem a forma final que se obtém:

Sendo dois tetraedros, temos um total de oito faces, como a anteriormente. A área a tracejado tem seis triângulos que perfazem um total de $48$. Assim, obtivemos a forma correspondente ao elemento ar, o octaedro ($48$ triângulos elementares). Na “Stella Octângula” vemos claramente essas três formas, das quais apenas o cubo é decomposto em seus triângulos elementares.

Vejamos agora como os triângulos, na área não tracejada, nos permitem obter o elemento água. Temos um total de $48$ triângulos (em todas as oito faces). Para obter um icosaedro precisamos de $120$, então teríamos que repetir esse processo $2,5$ vezes (impossível), mas não o podemos fazer porque não é um número inteiro.

Aparentemente, chegamos a um beco sem saída, mas, lembrando o diálogo de Platão, podemos consultar o “plano”:

Sobrava uma quinta combinação que Deus usou para desenhar o plano do Universo.” Ele referia-se ao dodecaedro.

No figura 4 vemos precisamente um dodecaedro acompanhado por um cubo. Se inscrevermos o cubo no dodecaedro, cada aresta do cubo transforma-se numa diagonal de uma face do dodecaedro – ver figura 4, em baixo. Uma face pentagonal possui 5 diagonais e um dodecaedro admite $5$ cubos inscritos – figura 5. Cada cubo admite um par de tetraedros como já vimos na figura 3, que perfaz um total de $10$ tetraedros formando $5$ pares. 
  • Diagonais das faces de um dodecaedro $= 5 \times 12 = 72$.
  • Arestas de $5$ cubos $= 5 \times 12 = 72$.

Figura 4
Figura 5

Na Figura 6, vemos esses $10$ tetraedros formando $2$ pentatetraedros.
Figura 6

Na figura 7 vemos o dodecaedro, mas desta vez com os $10$ tetraedros inscritos separados em dois grupos de $5$.
Figura 7

Se depois desta exposição voltarmos a Platão, veremos que o problema que surgiu ao tentar obter o icosaedro, está resolvido.

Explicamos: tínhamos $48$ triângulos para construir um icosaedro quando na verdade são necessários $120$ ($2,5$ vezes mais). Agora, ao introduzir a figura do dodecaedro, o processo inicial é multiplicado por $5$ (isso se possível porque é um número inteiro), portanto, temos $48 \times 5 = 240$ triângulos elementares e, portanto, dois icosaedros de $120$ triângulos além de $5$ octaedro de $48$.

Tudo se encaixa e forma um único todo, que inscrevemos numa esfera dionisíaca antes de fazer o seguinte resumo:




ANEXO:

Existem algumas formas que não foram comentadas até agora. Estas devem servir apenas de exemplo, pois existem muitas relações possíveis entre formas geométricas, além daquelas que foram comentadas por Platão, sendo esta última a mais completa. Isto poderá ajudá-lo a exercitar a visualização.

Figura 8: Podemos obter um dodecaedro unindo os centros de cada face de um icosaedro e vice-versa. São as únicas duas figuras geométricas que evidenciam as proporções áureas. O dodecaedro como a quinta essência e o icosaedro como o elemento água. Lembremos que no reino mineral não existem proporções áureas. As proporções áureas aparecem no mundo vegetal e superiores. São chamadas “duais” porque podem ser obtidas uma a partir da outra unindo os centros das faces.
Figura 8

Figura 9: Mostra uma das possíveis relações entre o cubo e o icosaedro, bem como uma das propriedades áureas do icosaedro.
Figura 9

Figura 10: Aqui vemos um dos $5$ possíveis octaedros inscritos num icosaedro. Cada um dos vértices do octaedro cai numa aresta do icosaedro.

$5$ octaedros $= 30$ vértices $= 30$ arestas do icosaedro.
Figura 10

Figura 11: É uma simplificação da Figura 3.
Figura 11

Figura 12: Esta e a anterior mostram-nos que o octaedro e o cubo são figuras duais.

Figura 12. NOTA: Em ambos os casos, obteve-se a forma unindo os pontos médios de cada face da forma anterior.

Figura 13: O tetraedro é dual em relação a si mesmo.
Figura 13


BIBLIOGRAFIA:

O Timeu, Platão.

***



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.



Monges copistas e a preservação da Civilização Ocidental

Quatro monges dominicanos em suas mesas, do ciclo de Quarenta
membros ilustres da ordem dominicana, na Chapterhouse, 1342

Tempo de Leitura: 40 min.

Monges copistas – A Civilização Ocidental passou por suas mãos, por Pe. Felipe de Azevedo Ramos, EP

A História é feita por homens providenciais que por sua fidelidade aos desígnios divinos decidem o destino de civilizações inteiras. São disso edificante exemplo os monges copistas.

Não existia computador, nem copiadora, nem sequer a velha máquina de escrever. E ainda não havia imprensa. Não obstante, os medievais foram capazes de transmitir à Civilização Ocidental todo o imenso legado cultural e filosófico das civilizações grega e romana, obras literárias e manuscritos de um mundo que deixara de existir, demolido pelas invasões bárbaras do fim da Idade Antiga. Como conseguiram tal proeza, sem o auxílio das técnicas de impressão inventadas e desenvolvidas séculos mais tarde?

A resposta a essa pergunta, podemos encontrá-la nos mosteiros e abadias da Igreja Católica (única instituição resistente aos ataques das hordas bárbaras), os quais, além de exercerem um enorme papel na formação cultural, moral e religiosa da sociedade, recolheram, entre outros, os escritos de autores gregos e latinos, como Aristóteles e Heródoto, Cícero e Virgílio, Santo Agostinho e Boécio, sem contar os manuscritos do Novo Testamento, multiplicando-os mediante um trabalho paciente, cuidadoso e organizado.

Foi esse o ingente labor de uma plêiade de despretensiosos monges copistas, cujos nomes a História não nos legou. Como sugiram? E qual a importância de seu trabalho para o desenvolvimento da Civilização Ocidental?

Biblioteca e claustro da Abadia de San Millán de Yuso (Espanha)

Um mundo convulsionado

A transição do mundo clássico para a Idade Média deu-se com a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) e a intensificação das invasões bárbaras na Europa, originando o caos e a destruição do que restava de civilização.

A conversão de Clóvis e do povo franco, no ano 496, marcou o início de um processo de cristianização que levaria ainda quatro séculos para se completar no Ocidente europeu. Com as adesões das populações ao Cristianismo, aos poucos se foi observando um progresso de toda a sociedade, não só no terreno espiritual, mas em todos os campos da atuação humana, dando origem ao florescimento da Civilização Cristã.

A paz estava, contudo, longe de reinar na Europa, pois hordas de bárbaros continuavam a assolar tudo o que viam pela frente. “Destruíam vidas humanas, monumentos e o equipamento econômico”, tendo como resultado a “queda demográfica, perda de tesouros de arte, ruína das estradas, ateliês, depósitos, sistemas de irrigação, lavouras” [1]. Dessa maciça devastação não foram poupadas sequer as bibliotecas e coleções de textos.

Nessa dramática encruzilhada da História, os claustros dos mosteiros serviram de refúgio ideal para escritos e documentos de grande valor histórico e cultural. Destacaram-se nessa tarefa o mosteiro de Vivarium, os monges beneditinos e os monges irlandeses, como veremos a seguir.

Mosteiro de “Vivarium

A história desse mosteiro começou com Cassiodoro, que ocupava o cargo equivalente ao de primeiro-ministro (magister officiorum) de Teodorico o Grande (454-526), rei dos godos orientais e ostrogodos, regente dos visigodos e governante da Península Itálica. Tendo o domínio dos godos ficado seriamente comprometido, Cassiodoro, aos 65 anos, retirou-se da vida pública. Movido por uma inspiração divina, e sem dúvida pelo exemplo de São Bento de Núrsia, que pouco antes fundara o mosteiro de Monte Cassino, decidiu fundar um mosteiro em terras pertencentes à sua família, nas imediações de Squillace, no sul da Itália.

Vivarium, como foi chamado, está na origem da grande aventura espiritual e intelectual de Cassiodoro, pois ali escreveu ele diversas obras de cunho teológico e filosófico, além de um livro expondo as regras para a transcrição de manuscritos.

Entretanto, sua maior contribuição para a civilização não foram seus escritos, mas o decisivo fomento à cultura e ao ensino naquele conturbado período de transição. Formou uma escola teológica, organizou uma biblioteca, enriquecida com muitos manuscritos gregos trazidos de Constantinopla, e instalou um scriptorium (parte do mosteiro reservada à atividade de copiar textos). Nesse local, os religiosos compilavam e traduziam a Bíblia, os Padres da Igreja e os autores pagãos da Antiguidade, tanto latinos quanto gregos [2].

“São Bento”, detalhe de um afresco da Abadia de Monte Oliveto
Maggiore (Itália) e Abadia do Sacro Speco, Subiaco (Itália)

Segundo a tradição, foi esse o primeiro scriptorium da História, e foi também ali que, pela primeira vez, a atividade científica esteve explicitamente incluída entre as ocupações dos monges [3]. Ademais, o abade de Vivarium, que era um excelente orador, dedicava-se ao magistério e, segundo alguns autores, antecipou em diversos aspectos a grande instituição medieval da universidade, que surgiu cerca de seiscentos anos depois. Não sem motivo, ele é denominado herói e restaurador da ciência no século VI [4]. Seu empenho e insistência foram importantes não só pelas cópias dos textos em si, mas também pelo método de transmissão dos manuscritos e da cultura em geral.

Os textos chegaram a ele, em parte, através dos Padres da Igreja. Tanto os escritos destes, como também os do primitivo monaquismo, distanciaram-se corretamente da produção intelectual do paganismo, estigmatizando-a e dando preferência às Sagradas Escrituras. Era uma atitude destinada a proteger de erros os fiéis nos primeiros séculos da Igreja. Mas alguns autores católicos daquele tempo, entre os quais cabe destacar São Clemente de Alexandria e São Gregório Nazianzeno, acabaram sendo, por ironia, transmissores inconscientes da doutrina de diversos pensadores antigos: para refutar os erros do pensamento pagão, era necessário conhecê-lo. Por isso conservaram em suas bibliotecas as obras desses escritores.

Cassiodoro, por seu lado, selecionava certos textos clássicos para serem copiados. Segundo ele, esses poderiam dotar o estudo bíblico de subsídios científicos, mesmo quando provenientes de autores profanos. Com tal fim, escreveu Institutiones, guia enciclopédico dedicado à conciliação da Bíblia com a herança clássica. Para que a transcrição de certos autores não pusesse em risco a ortodoxia de seus monges, ao invés de simplesmente eliminar algumas obras, o fundador de Vivarium colocava um sinal de atenção nas passagens duvidosas [5].

Deste modo, Cassiodoro, nas últimas décadas de sua vida quase secular, foi um grande sistematizador da cultura no Ocidente, de tradição helênica, romana e cristã, abrindo as portas para essa grandiosa realização intelectual no seio dos mosteiros. Apesar de Vivarium ter durado apenas cerca de vinte anos após a morte de seu fundador, seus manuscritos em geral foram conservados. Segundo estudiosos, teriam eles sido enviados provavelmente para a Biblioteca Lateranense em Roma e diversos mosteiros beneditinos, como o de Bobbio, formado por monges irlandeses. Mas a aventura dos manuscritos no Ocidente estava apenas começando…

Sepulcro de São Columbano, cripta da Abadia de Bobbio (Itália)

São Bento e sua regra

Outro grande marco da história da transmissão manuscrita neste período foi a fundação dos beneditinos por São Bento de Núrsia (480-547).

Ao contrário de Cassiodoro, ingressou jovem na vida religiosa. Por ordem da família, passou certo tempo em Roma para fazer seus estudos, e deu-se conta da enorme corrupção e da decadência moral que reinavam na grande urbe. Alguns anos depois, recebeu uma graça insigne que o fez tomar a firme decisão de dedicar-se à vida eremítica numa austera gruta em Subiaco. Inspirados por seu exemplo, juntaram-se a ele diversos outros varões desejosos de trilhar a mesma via de perfeição. Assim, em pouco tempo foram fundados doze mosteiros nas proximidades de Sacro Speco, com doze monges cada um. Um deles, atualmente chamado Santa Escolástica, ainda se conserva. Em 529, nasceu de suas mãos o célebre Mosteiro de Monte Cassino, referência para a vida monástica e cultural em toda a Europa.

Em seguida, o santo Fundador introduziu o famoso preceito “ora et labora” e a sua célebre Regra. Esta se difundiu por todo o Ocidente cristão a ponto de ser tomada como modelo não só para a vida monástica, mas para toda a sociedade medieval. Não havia nela um mandato específico para o trabalho de copiar manuscritos, como prescrevia Cassiodoro, contudo seus efeitos na transmissão manuscrita foram ainda maiores para os séculos sucessivos que os da efêmera existência de Vivarium [6].

Conforme o capítulo 48 da Regra, os monges deviam dedicar certo tempo à leitura: “A ociosidade é inimiga da alma; por isso em certas horas devem ocupar-se os irmãos com o trabalho manual, e em outras horas com a leitura espiritual”. Mas como se aplicar à leitura sem livros para ler? Foi assim que os princípios de São Bento, implicitamente, favoreceram a tradição manuscrita [7].

A expansão dessa tradição seguiu o sucesso dos beneditinos, não sem dificuldades. Copiar uma obra era um trabalho sem dúvida desgastante e demorado. Basta dizer que eram necessários dois ou três meses para copiar um manuscrito de tamanho médio. Não é raro encontrar nos cólofons [8] descrições das agruras pelas quais passavam os amanuenses, seja pelo desconforto — às vezes escreviam sobre os joelhos —, seja pela ausência de aquecimento e luz adequada no inverno. Nos cólofons ficaram registradas também interessantes manifestações do autêntico espírito medieval: em alguns havia um pedido de orações pelo copista “cujo nome está escrito no Livro da Vida”; em outros, mais inspirados, dedicavam-se poesias ou acrósticos em honra de Jesus e Maria; por fim, havia copistas que lançavam no cólofon um anátema contra quem ousasse furtar aquele tão custoso códice…

A essas dificuldades somava-se a do alto custo dos pergaminhos. Por essa razão, nos séculos VII e VIII, certos textos de menor interesse foram apagados ou raspados para ceder lugar a outros com maior demanda. O copista reescrevia por cima do texto excluído. Este tipo de manuscrito veio a ser denominado de palimpsesto (do grego πάλιν e ψάω, “riscar de novo”). Hoje em dia, sofisticadas técnicas de recuperação permitem descobrir as marcas “apagadas” dos manuscritos, revelando-nos, por vezes, textos inéditos. Desta forma, aqueles monges, sem saber, estavam preservando num mesmo pergaminho dois, ou até mais textos simultaneamente…

O Codex Sangallensis 359, escrito entre 922-925, ainda é
referência para a interpretação da semiologia do Canto Gregoriano

Já no século XI houve um grande avanço na arte de copiar. Entre os beneditinos destaca-se a obra do abade Desidério, que promoveu o grande revigoramento cultural de Monte Cassino [9]. O escritor Woods resume muito bem este renascimento beneditino, dizendo que Desidério “tido como o maior dos abades de Monte Cassino depois do próprio Bento, e que em 1086 veio a tornar-se o Papa Vítor III, supervisionou a transcrição de Horácio e de Sêneca, assim como a do ‘De natura deorum’, de Cícero, e dos Fastos de Ovídio” [10]. Outro monge do mesmo mosteiro e amigo de Vítor III, o Arcebispo Alfano, “manejava com similar fluência as obras dos escritores antigos, e citava frequentemente Apolônio, Aristóteles, Cícero, Platão, Varrão e Virgílio, além de imitar Ovídio e Horácio nos seus versos” [11]. Deve-se mencionar também Santo Anselmo o qual, “enquanto foi abade de Bec, recomendou aos seus alunos a leitura de Virgílio e outros escritores clássicos, embora os aconselhasse a passar por alto trechos moralmente censuráveis” [12].

Foi assim que “os monges de Cassiodoro e de São Bento deram a ‘cópia’ para as primeiras edições de Cícero, Virgílio e outros autores clássicos, produzidos pelas primeiras prensas na Alemanha e Itália” [13]. Mas ainda viriam os monges irlandeses, que deram um particular impulso à transmissão cultural escrita.

Os monges irlandeses

Deus não deixa de suscitar para cada época histórica homens providenciais. Na mesma época em que São Bento deixava este mundo, nascia na Irlanda São Columbano, nosso último protagonista.

Veio ele ao mundo por volta do ano 543 na província de Leinster, Irlanda. Após passar quase 25 anos como monge em seu país, sentiu um chamado de Deus que o incitava a pregar o Evangelho em terras estrangeiras. Com doze companheiros se dirigiu à Gália (atual França) e fundou importantes mosteiros em Annegray, Fontaines e Luxeuil, onde escreveu uma Regra, a Regula monachorum. Sob o impulso deste último mosteiro se originaram cerca de duzentos outros.

Tempos depois, por haver reprovado o concubinato do Rei Teodorico, Columbano foi obrigado a deixar a Gália, condenado ao exílio na Irlanda.

Codex Aureus de Estocolmo (Inglaterra, séc. VIII), e
Evangelhos de Rawlinson (Irlanda, séc. VIII) – Freer &
Sacler Gallery, Smithsonian Institution, Washington

Mas, por um fator inexplicável, o navio encalhou a pouca distância da praia e o capitão, vendo nisto um sinal do Céu, renunciou a prosseguir e, com receio de ser amaldiçoado por Deus, reconduziu os religiosos para a terra firme. O santo irlandês, porém, em vez de voltar para Luxeuil, decidiu começar uma nova obra de evangelização. Dirigiu-se para a Alemanha, passando em seguida pela Suíça, onde deixou um discípulo chamado Gallus, que ali fundou a importante abadia de São Galo. Chegou por fim à Lombardia, Itália, onde fundou o célebre Mosteiro de Bobbio, fonte da energia espiritual e intelectual daquele tempo, a ponto de ser cognominado de o Monte Cassino da Itália setentrional.

São Columbano e seus monges irlandeses foram considerados um dos grandes instrumentos para a salvação da civilização. Esta é a opinião de Thomas Cahill, expressa no livro How the Irish Saved Civilization [14] (“Como os irlandeses salvaram a civilização”). Essa obra passou dois anos na lista de best-sellers do jornal New York Times, chegando a alcançar a segunda colocação, e foi traduzida para diversas línguas, atingindo uma tiragem de 1,25 milhão de cópias. A sua tese, considerada polêmica por alguns críticos, é basicamente que os irlandeses, mais especificamente os monges, de fato salvaram a civilização das ruínas decorrentes da barbárie. São Patrício (389-461?) deu o primeiro passo, incentivando os estudos e a instrução dos monges, e também dos leigos. São Columbano complementou o seu trabalho de promoção da cultura. Sua obra tomou grandes proporções ao formar mais uma frente de monges copistas no começo da Alta Idade Média.

Mas os monges de Columbano possuíam certas peculiaridades. Segundo Cahill, eram eles bastante obstinados e copiavam toda e qualquer obra que lhes caísse nas mãos [15]. Não é por menos que a Abadia de Bobbio chegou a possuir a maior biblioteca do Ocidente. Um catálogo do século IX nos atesta sua extraordinária riqueza: possuía já naquela época uma coleção de 600 a 700 títulos, tanto de autores sacros quanto de clássicos, entre estes: Terêncio, Lucrécio, Virgílio, Horácio, Pérsio, Juvenal, Marcial, Ovídio, Valério, Flaco, Claudiano, Ausônio, Cícero, Sêneca e Plínio [16].

Além disso, deve-se à Abadia de Bobbio cópias de alguns dos mais antigos manuscritos latinos ainda hoje conservados. Tais relíquias nos demonstram não somente o valor literário, mas também artístico dos códices produzidos pelos monges irlandeses e seus discípulos. Nas ornamentações, destacam-se as detalhadas e floreadas iniciais e um estilo de caligrafia típico que influenciou diversos mosteiros. As ilustrações eram verdadeiros tesouros: podiam ser coloridas com ouro e lápis-lazúli, entre vários outros recursos.

A tradição musical também foi objeto de suas atividades. Saltérios, antifonários, sequenciários, graduais e todo tipo de códices litúrgicos — breviários, lecionários, martirológios, missais, etc. — atestam a grande formação cultural dos monges [17]. No acima mencionado mosteiro de São Galo surgiu um sistema de notação de neumas para o canto gregoriano que permitia preservar de forma escrita a tradição melódica, influenciando grande parte da Europa Central e Oriental [18]. Tal sistema, preservado pelo Codex Sangallensis 359, escrito entre 922-925, ainda é referência para a interpretação da semiologia do Canto Gregoriano.

Exemplo de sabedoria, perseverança e ascese

Diante desse quadro, O’Connor afirma categoricamente a respeito dos monges copistas: “Sem os seus esforços inteligentes e infatigáveis, a literatura grega e latina teria desaparecido tão completamente quanto a literatura da Babilônia e da Fenícia” [19]. Do empenho benfazejo de tão poucos indivíduos, verdadeiros heróis anônimos, dependeu o destino cultural do Ocidente.

“Dante e Virgílio”, por Henri de Triqueti – Museu das Belas Artes de Boston (EUA)

Gradualmente, sobretudo com a criação das universidades no século XII, a tradição manuscrita transcendeu o scriptorium dos mosteiros para todas as classes da sociedade: clero secular, freiras, notários, escribas profissionais, professores, estudantes, etc. [20]. Mas nesse tempo a transmissão dos textos já estava salvaguardada. A Europa, soerguida, havia ultrapassado os duros momentos de transição do mundo clássico para o medieval.

Os monges, portanto, além de nos transmitirem os textos, o que de si já é algo extraordinário, deram-nos exemplo de sabedoria, perseverança e ascese, ao legar para os séculos seguintes a tradição cultural cristã e a clássica. Não se pode calcular com precisão a enormidade das consequências desse diligente empreendimento. Nem dizer o que seria da cultura ocidental hoje, se esses monges, por exemplo, tivessem sido exterminados pelas hordas bárbaras ou simplesmente esmorecessem naquele momento crucial. O certo é que o destino da Civilização Ocidental passou por suas mãos.


Notas:

[1] LE GOFF, Jacques. La Civilisation de l’Occident médiéval. Paris: Arthaud, 1967, p.59.

[2] Cf. JONES, Leslie W. The Influence of Cassiodorus on Mediaeval Culture. In: Speculum. N. 4, v.XX (Oct., 1945); p.433-442, aqui p.434; CASSON, Lionel. Libraries in the Ancient World. New Haven: Yale University, 2001, p.144.

[3] Cf. FRANZ, Adolph. M. Aurelius Cassiodorus Senator: ein Beitrag zur Geschichte der theologischen Literatur. Breslau: Aderholz, 1872, p.42.

[4] Cf. GODET, Pierre Julien. Cassiodore. In: VACANT, Alfred, MANGENOT, Eugène, AMANN, Emile. Dictionnaire de Théologie Catholique. Paris: Letouzey et Ané, 1901, v.II, c.1833.

[5] Cf. LERNER, Frederick Andrew. The Story of Libraries: From the Invention of Writing to the Computer Age. New York: Continuum, 2001, p.39.

[6] Cf. REYNOLDS, Leighton Durham, WILSON, Nigel Guy. Scribes and Scholars: A Guide to the Transmission of Greek and Latin Literature. Oxford: Clarendon, 1974, p.74.

[7] Cf. Idem, ibidem.

[8] Arremate de um manuscrito, contendo o título da obra, nome do autor, etc.

[9] Cf. NEWTON, Francis. The Desiderian Scriptorium at Monte Cassino: The “Chronicle” and Some Surviving Manuscripts. In: Dumbarton Oaks Papers. 1976, v.XXX, p.35-54. Ver também obra relacionada de NEWTON, Francis. The Scriptorium and Library at Monte Cassino, 1058 – 1105. Cambridge: Cambridge University, 1999.

[10] WOODS Jr., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental. São Paulo: Quadrante, 2008, p.40-41.

[11] Idem, ibidem.

[12] Idem, ibidem.

[13] PUTNAM, George Haven. Books and Their Makers During the Middle Ages; A Study of the Conditions of the Production and Distribution of Literature from the Fall of the Roman Empire to the Close of the Seventeenth Century. New York: Hillary House, 1962, p.26.

[14] Primeira edição em Nova York: Nan A. Talese/Doubleday, 1995.

[15] Cf. CAHILL, Thomas. How the Irish Saved Civilization: The Untold Story of Ireland’s Heroic Role from the Fall of Rome to the Rise of Medieval Europe. Thorndike: G.K. Hall, 1998, p.12.

[16] Cf. LAISTNER, M. L. W. Thought and Letters in Western Europe, A.D. 500 to 900. Ithaca: Cornell University, 1957, p.235. Ver também: RICHTER, Michael. Bobbio in the Early Middle Ages: The Abiding Legacy of Columbanus. Dublin: Four Courts, 2008, p.78.

[17] Cf. SCAPPATICCI, Leandra. Codici e liturgia a Bobbio: testi, musica e scrittura: secoli X ex.-XII. Città del Vaticano: Libreria editrice vaticana, 2008, p.28.

[18] Cf. BELL, Nicolas. Music in Medieval Manuscripts. Toronto: University of Toronto, 2001, p.12-13.

[19] O’CONNOR, John B. Monasticism and Civilization. New York: P. J. Kenedy, 1921, p.114.

[20] Cf. BISCHOFF, Bernhard. Paläographie des römischen Altertums und des abendländischen Mittelalters. Berlin: Schmidt, 2004, p.65.

***

Texto retirado do LINK.


CASSIODORO E AS INSTITUTIONES: O TRABALHO DOS COPISTAS, por Jean Lauand [*]

Costuma-se datar o início da Idade Média em 476, ano em que perece o Império Romano no Ocidente. Em seu lugar surgem os reinos bárbaros, configurando aquela dualidade (Hegel) - dualidade bárbaro/romano, mas também pagão/cristão -, de fato essencial para a constituição da nova época.

Pensando mais na história cultural, Pieper propõe o ano 529, como marco inicial da Idade Média e de seu pensamento: a Escolástica. Com efeito, 529 é um ano emblemático: nele, por um lado, São Bento funda Monte Cassino; e, por outro, o Imperador fecha a Academia pagã de Atenas: a cultura, a partir de então, estará marcada pela religião e restrita aos mosteiros. Os (poucos) estudos se voltarão principalmente para a compreensão da Bíblia e não haverá mais lugar para uma cultura simplesmente pagã.

Certamente, a Escolástica tem um seu fundador, pouco antes do ano 529, em Boécio (morto em 525). Só com seu trabalho de tradutor e comentarista - com que estabelece a ponte entre a cultura antiga e a Idade Média -, Boécio já teria garantido um lugar de relevo na História da Educação e justificado o título de fundador da Escolástica, "primeiro escolástico" (Grabmann). Pois, não por acaso, "Escolástica" se relaciona com "escola", "escolar" (e scholar), e o ensino da Idade Média muito deve a esse educador.

Mas, há ainda uma outra contribuição inovadora de Boécio que incide sobre outro elemento também essencial na constituição da escolástica como método: um estilo de pensamento teológico. Os opúsculos teológicos de Boécio - dos quais o principal é o De Trinitate - são as "primícias do método escolástico" e, por isso, é Boécio considerado "um precursor de S. Tomás" (Stewart e Rand). Já o título desse seu livro ("Como a Trindade é um único Deus e não três deuses") expressa o propósito radical de esclarecer racionalmente a verdade de fé [1] .

Boécio lanças as bases de quase tudo o que vai ocorrer na Educação medieval. Não pôde prever, porém - ele morre pouco antes da fundação de Monte Cassino -, um único fato essencial: que o mosteiro (e não a corte) seria "o lugar" da cultura e do estudo.

Para isto seria necessário esperar a ordem beneditina e, depois, o mosteiro de Vivarium, fundado por Cassiodoro.

Cassiodoro (c. 485-580) foi colega de Boécio na corte do reino ostrogodo (o rei Teodorico queria "romanizar" a cultura e nomeava romanos como ministros).

Como faz notar Pieper (Scholastik), a grande contribuição de Cassiodoro foi a de perceber que esse componente fundamental para a educação, a skholé - as condições (exteriores e interiores) de tranqüilidade e abertura da alma para o estudo -, só podia dar-se, na época, no mosteiro.

Em 555, aproveitando-se de condições especialmente favoráveis, Cassiodoro funda o mosteiro de Vivarium, que marca o início dos mosteiros como centros de estudo e do trabalho dos copistas. Em seu livro Instituições, o próprio Cassiodoro descreve seu mosteiro e incentiva - no texto cuja tradução apresentamos (cap. 30) - o trabalho dos copistas.

No Cap. 29, "Sobre a localização do Mosteiro de Vivarium e do Castellense", Cassiodoro fala do quão adequado é o lugar (perto de Squillace, Calábria) e do empenho e cuidados que teve ao construir Vivarium.

Na verdade, a posição do mosteiro de Vivarium é adequada para prestar ajuda a muitos peregrinos e necessitados, pois tendes hortos irrigados e tendes perto as correntes piscosas do rio Pellena [2] , que não é perigoso pela dimensão de suas águas nem desprezível por pequenez. Regulado com engenho, ele corre por onde julgueis necessário e é suficiente para vossos hortos e moinhos. Ele está aqui quando desejeis e, depois de atender a vossos desejos, afasta-se em seu curso. Assim, ele devota-se a este serviço: não vos atemoriza e não vos pode faltar quando o procurais.

O rio Pellena

Cassiodoro pensa no conforto dos monges, que vão se dedicar a trabalhos de importância cultural, e pensa até no bem dos peixes dos viveiros.

O caminho de Vivarium para Monte Castelo

Tendes abaixo o mar, que oferece variadas pescas e, se quiserdes, podeis lançar a pesca nos viveiros. Pois lá fizemos, com a ajuda do Senhor, receptáculos agradáveis nos quais os muitos peixes – embora encerrados - nadam à vontade. De tal modo são as grutas escavadas nos montes, que os peixes não se sentem aprisionados: livremente tomam alimento e se escondem em suas cavernas habituais.

Os viveiros vistos do Monte Castelo

Também dispomos de adequados locais de banho, que mandamos construir para os doentes, onde corre uma água de fonte limpíssima e é muito agradável para beber e para lavar-se.

Como visitantes e hóspedes podem perturbar o recolhimento de Vivarium, Cassiodoro instala em Monte Castelo uma opção mais austera para praticar a ascese.

Mas estas coisas, como sabeis, são deleites nas coisas presentes e não a esperança futura dos fiéis: esta é para sempre, enquanto essas outras coisas são passageiras.

Instalados em Vivarium, dediquemo-nos, antes, aos desejos que nos fazem reinar com Cristo.

3. Pois se, como é digno de crer, a vida do cenóbio vos instrui competentemente no mosteiro de Vivarium, com o auxílio da graça de Deus, e se com a alma purificada se aspira a algo mais sublime, tendes as suavidades secretas do monte Castelo, onde, tal como anacoretas, podeis viver felizmente com a ajuda do Senhor. Pois são lugares afastados e desérticos na medida em que estão encerrados por antigas muralhas. Por isso, será adequado para vós – uma vez exercitados e provadíssimos – escolher esse habitáculo, se antes a ascenção foi preparada no coração. Pois, sabeis pelas leituras que podeis desejar (ou tolerar) um desses dois modos de vida. É muito importante que - observada a probidade de vossa conduta – quem não é capaz de ensinar a outros com palavras, instrua-os com a santidade dos costumes.

No capítulo 30 das Instituições, cuja tradução apresentamos a seguir, Cassiodoro expõe o que oferece e o que espera dos copistas. Cassiodoro sabe da extrema importância que esse trabalho tem para a preservação da cultura e para a Igreja. E também para a formação do monge.

***

Cassiodoro (c. 485-580) Instituições - Cap. 30. Sobre os copistas e a recordação da ortografia, trad.: Jean Lauand

1. Quanto a mim, eu vos manifesto minha predileção: entre as tarefas que podeis realizar com esforço corporal, a dedicação dos copistas, se escrevem sem erros, é - e talvez não injustamente - o que mais me agrada. Pois, relendo as Escrituras divinas, instruem de modo salutar sua mente e copiando espalham por toda parte os preceitos do Senhor.

Que belo propósito, que louvável aplicação é o pregar aos homens com a mão, abrir línguas com os dedos, dar em silêncio salvação aos mortais e - com a cana e a tinta - lutar contra as ilícitas insinuações do diabo.

Pois Satanás recebe tantas feridas quantas são as palavras do Senhor que o copista transcreve. Ele, permanecendo em seu lugar, percorre diversas províncias com a disseminação de suas obras. Seu trabalho é lido em lugares santos. Os povos ouvem e podem renunciar à sua vontade perversa e servir o Senhor com mente pura. Com seu trabalho, ele age, mesmo estando ausente.

Não sou capaz de dizer que não podem receber uma mudança de vida por causa de tanto bem que fazem, se se sabe que fazem esse trabalho não por ambição, mas por um reto empenho.

O homem multiplica as palavras celestes e – dito de modo metafórico (se é que posso me expressar assim) – escreve com três dedos o que fala do poder da santa Trindade.

Ó que espetáculo glorioso para aqueles que o consideram bem! A cana corre escrevendo palavras celestes para que possa ser destruída a astúcia do diabo que se valeu da cana para golpear a cabeça do Senhor em Sua paixão.

É o caso também de louvar àqueles que de algum modo imitam o Senhor que, falando em modo figurado, com os Seus onipotentes dedos, escreveu a Sua obra. Muitas coisas podem se dizer desta tão ilustre arte, mas basta chamá-los de livreiros [librarios], que se consagram à libra [balança] da justiça do Senhor.

2. Mas para que os copistas não misturem tanto bem com palavras viciadas por modificação de letras ou um revisor não erudito não saiba corrigir os erros, é necessário ler os ortógrafos antigos, isto é, Vélio Longo, Cúrcio Valeriano, Papiriano, Adamâncio Mártir sobre o V e o B e, deste mesmo autor, sobre as primeiras, médias e últimas sílabas e sobre a tríplice colocação da letra B no nome. Leia-se também Eutiques sobre a aspiração e Foca sobre a diferença dos gêneros. Destes autores, eu recolhi, quantos pude, com cuidadosa solicitude.

E para que ninguém ficasse perturbado pela obscuridade desses códices – pois em sua maior parte confundem pela mistura das antigas declinações – cuidei, com especial empenho, que tivésseis uma seleção de suas regras no livro que compus, Sobre a Ortografia: uma vez suprimida a dúvida, o ânimo pode se lançar mais livre pelo caminho da correção.

Sabemos também que Diomedes e Teoctisto escreveram sobre essa arte; se se encontrarem esses livros, recolhei seus resumos. Talvez possais achar outros por meio dos quais se amplie vossa instrução. Mas estes que foram mencionados se forem relidos com assíduo empenho removerão em vós toda treva da ignorância e será conhecidíssimo o que se ignorava.

3. Acrescentamos a esses autores, artistas doutos na cobertura de livros para que a beleza das letras sagradas se vestisse por cima com ornato: imitando talvez de algum modo aquele exemplo da parábola do Senhor, que cobriu com vestes nupciais àqueles que julgava que deviam ser convidados ao banquete celestial em Sua glória.

Se não me engano, expressamos adequadamente as diversas formas de elaboração gravadas em um códice, para que o estudioso possa escolher a forma de cobertura que prefira.

4. Preparamos também, para as vigílias noturnas, lanternas artificiais, que mantêm luminosas chamas, que alimentam por si mesmas o fogo. Conservam abundantemente a grandíssima claridade de sua ubérrima luz uma vez terminada a ação humana e nelas não falta a gordura do óleo ainda que se queime continuamente com chamas ardentes.

5. Também não permitimos de modo algum que ignorásseis a medida das horas, que, como se sabe, foi descoberta para grande utilidade do gênero humano.

Por isso, assegurei-me de que vos colocassem um relógio que marca as horas pela luz de sol, e outro de água que indique continuamente a medida das horas do dia e da noite, pois, como se sabe, freqüentemente há muitos dias em que falta a luz do sol. De modo admirável a água faz na terra o que não pode conseguir o atenuado vigor flamígero do sol. De tal modo a técnica dos homens faz com que ande em harmonia o que a natureza separou; e na confiabilidade de ambas as coisas há tanta verdade que podes considerar que são estabelecidas por anjos.

Estas coisas foram dispostas assim para que os soldados de Cristo, admoestados por sinais certíssimos, sejam chamados a exercer a obra divina como que convocados por clamor de trombetas.


Notas:

[*] Prof. Titular FEUSP, jeanlaua@usp.br.

[1] Certamente isto não é algo de novo. Agostinho e outros tinham escrito textos com o mesmo intuito. Aliás, Agostinho havia afirmado a necessidade de cooperação entre fé e razão, com a célebre sentença do Sermão 43: intellige ut credas, crede ut intelligas, "entende a fim de que creias", "crê a fim de que entendas". Para Boécio, o lema era: fidem, si poteris, rationemque cojunge, "conjuga a fé e a razão"!, conselho com que encerra uma carta ao Papa João I. À primeira vista, nada de novo. A novidade, porém, está em que esse propósito tenha sido assumido explicitamente, programaticamente: aquilo que antes podia ser unicamente uma atitude fática tornava-se agora um princípio. Nova é também a radicalidade do projeto. No seu De Trinitate, encontram-se várias concepções platônicas e neo-platônicas; as dez categorias, os gêneros, as espécies e diversos outros conceitos de Aristóteles; todo tipo de análises filosóficas e de linguagem. Mas não há nem sequer uma única citação ou referência à Bíblia, e isto num tratado teológico sobre a Santíssima Trindade!

[2] Hoje, Alessi.

***

Texto disponível em LINK.


Leia mais em Uma breve história do livro

Leia mais em Boécio e Cassiodoro

Leia mais em Institutiones, um livro que preservou a Educação Clássica

Leia mais em Sobre as artes e as disciplinas das letras liberais, por Cassiodoro


Leia mais em COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae


Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.




Total de visualizações de página