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O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 3


Esta imagem da segunda metade do século IV é uma das primeiras de que se têm registro que apresenta Cristo barbado. Fica localizada nas catacumbas de Comodila, em Roma.

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Tempo de leitura: 42 min. 

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas em 2017). Este texto é a continuação desses textos aqui: 

O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 1  

O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 2.

O FIM DA ESCOLA ANTIGA

Toda investigação histórica, conquanto possa não conduzir o leitor “até nossos dias”, deve, para terminar, responder à pergunta: “Que aconteceu em seguida?” Esta história da educação na Antiguidade encerrar-se-á, naturalmente, no momento em que soubermos quando e como se operou a substituição das escolas de tipo clássico por esta educação religiosa de tipo medieval que acabei de definir.

A EDUCAÇÃO BIZANTINA

Por mais espantoso que possa parecer, existe, desde logo, todo um setor em que, para falar com propriedade, a escola antiga jamais teve fim: no Oriente grego, a educação bizantina prolonga, sem solução de continuidade, a educação clássica (1). Isto não passa, aliás, de um aspecto particular do fato fundamental: não há hiato, nem mesmo diferenciação, entre a civilização do Baixo Império romano e a alta Idade Média bizantina. 

Nada o mostra melhor que a história do ensino superior, aliás o que mais estudamos até aqui e, de resto, o mais bem documentado. A Universidade de Constantinopla, de 425 a 1453, foi sempre um centro de estudos fecundos e, por assim dizer, a viga mestra da tradição clássica. Não há dúvida que, no curso desse milenário, passou por muitas vicissitudes, por períodos de declínio e mesmo de desaparição momentânea, resgatados por brilhantes empreendimentos: foi, principalmente, reorganizada por César Barda em 863, por Constantino IX Monômaco em 1045, muito provavelmente no século XIII e, no início do XIV, pelos Paleólogos.

Viveu, modificou-se, mas sempre permaneceu fiel ao espírito que havia inspirado sua fundação, ao tempo de Teodósio II. Seu ensino permanece fixado pelas normas clássicas: na base, as artes liberais; no cume, a retórica, a filosofia e o direito. Seu papel na sociedade permanece o mesmo: formar uma elite na qual o Império possa recrutar seu corpo de funcionários. Ignorará ela sempre os estudos eclesiásticos: o fechamento da escola neoplatônica de Atenas por Justiniano em 529 [1] prende-se à luta contra o paganismo agonizante, mas não expressou, da parte do Império cristão, vontade de imprimir um sentido mais religioso ao ensino superior.

Conhecemos muito menos os graus inferiores do ensino, mas não podemos duvidar de que a tradição antiga haja também sobrevivido: veremos que certos aspectos da pedagogia helenística persistiram, no escalão primário, ao longo de todo o período turco, até os tempos modernos; quanto ao ensino secundário, permanece baseado na gramática e no comentário dos clássicos: os manuais e comentários helenísticos são sempre utilizados ou imitados.

O modelo ideal do homem culto remanesce clássico: Miguel Pselo (nascido em 1018), ao evocar, na oração fúnebre consagrada a sua mãe, as recordações de sua infância de estudante [2], informa-nos que havia decorado a Ilíada inteira, reeditando assim, depois de catorze séculos, a façanha do Nicorato de Xenofonte. Ana Comnena, aproximadamente um século mais tarde, recebeu, ela também, uma cultura cujo horizonte é o de um humanismo bem antigo: os clássicos, o grego, a retórica, Aristóteles e Platão, as quatro disciplinas matemáticas... [3]. 

Uma tradição continua liga assim os letrados helenísticos aos humanistas, aliás bem “modernos”, do tempo dos Paleólogos, como, entre tantos outros, Nicéforo Gregora († por volta de 1360) (2).

Com surpresa descobrimos que esta sociedade bizantina, tão profundamente cristã, que dá tanta importância às questões propriamente religiosas e especialmente à teologia, continuou obstinadamente fiel às tradições do humanismo antigo: tal adesão não era isenta de perigo, uma vez que a escola bizantina é tão fiel a seus mestres pagãos que periodicamente (no século IX com Leão, o matemático, no século XI com João Ítalo,... no século XV com Gemístio Pléton) vemos esboçar-se Renascenças mais ou menos paganizantes, tão suspeitas à ortodoxia cristã quanto o pôde ser a nossa própria Renascença ocidental dos séculos XV e XVI, que, aliás, como se sabe, nutriu-se abundantemente da contribuição bizantina.

Face à escola de tipo clássico existe, sem dúvida, outro foco de cultura, este de inspiração plenamente cristã: a escola monástica. Ela permanece, no decorrer da Idade Média, tal como a conhecemos em suas origens, hostil ao humanismo, ao “século” (as Vidas de santos bizantinos cuidam sempre de reduzir ao mínimo a cultura profana dos seus heróis), dominada por preocupações espirituais e primacialmente ascéticas. Em princípio ela permanece fechada, reservada aos jovens aspirantes à vida religiosa: a proibição, imposta pelo Concílio de Calcedônia, de receber, para educá-las, crianças “do mundo”, continua em vigor.

Inquieto-me apenas por constatar que foi necessário por várias vezes, em 806, em 1205 (3), renová-la: pois tinham tendência a infringi-la! De fato, seria fácil mostrar que isto realmente se verificou: assim, em 1238, vemos o imperador João III Vatatzés confiar ao arquimandrita de São Gregório de Éfeso, Nicéforo Blêmides, a educação de cinto jovens, entre os quais o futuro historiador Jorge Acrópolita, que viria a fazer uma brilhante carreira de alto funcionário laico.

Entretanto, se procuramos um centro de educação religiosa que contrabalance a educação tão profana da Universidade imperial, faz-se mister procurá-lo menos nos conventos que na instituição muito original que foi a escola patriarcal. Suas origens, ainda pouco esclarecidas, remontam talvez (4) ao século VII; ela aparece, em todos os casos, em plena luz e perfeitamente constituída no século XI. É normal nessa época opor-se aos “filósofos do senado” (porque, como no século IV, é o senado quem nomeia os professores do Estado) os “didáscalos da Grande Igreja” (ensinam à sombra da Santa Sofia) ou “do catálogo episcopal”. Nomeados pelo patriarca, constituem uma verdadeira faculdade de teologia, de cunho escriturário: encontramos professores especializados na exegese do Evangelho, do Apóstolo, do Saltério.

À diferença do ascetismo puritano dos claustros, a escola patriarcal também sofreu, profundamente, a influência do humanismo tradicional, Seu ensino não se limita apenas ao programa religioso: quer também assegurar toda uma formação de base: sua faculdade de teologia justapõe-se a uma faculdade de artes, dirigida por um “mestre (μαΐστωρ) dos retóricos” (que tem também, sob suas ordens, gramáticos) e um “mestre dos filósofos” (que não negligencia o ensino propedêutico das matemáticas). Diante do humanismo clássico da Universidade, a escola patriarcal representa um esforço em favor de um humanismo cristão, esforço muitas vezes original e assim, saboroso, mas que continua sendo, apesar de tudo, profundamente influenciado pelos modelos antigos.

Assim, em meados do século XII, vemos Nicéforo Basilaques (que se tornará professor de exegese evangélica) compor um manual de Progymnasmata, inteiramente conforme à mais pura tradição helenística. Quando muito, vemo-lo, no capítulo da etopéia, unir aos assuntos costumeiros sobre Atalanta, Dânae ou Xerxes, certo número de temas hauridos na história santa: “Palavras de Sansão quando foi cegado pelos filisteus...; de Davi encontrando seu inimigo Saul adormecido numa caverna...; da mãe de Deus quando Cristo mudou a água em vinho nas bodas de Caná [4]”.  Eustácio de Tessalônica, o grande comentador de Homero e de outros clássicos, é para os modernos uma das figuras mais representativas do humanismo bizantino: no entanto, tinha sido educado num mosteiro e foi “mestre dos retores” da escola patriarcal...

Somente com a conquista turca se configurou uma situação comparável à que conhecera, mil anos antes, o imundo ocidental. Depois de 1453, a tradição interrompeu-se: o mundo grego encontra-se colocado na mesma situação que a Gália merovíngia; por faltar escolas, o recrutamento do clero e, por isso, até a continuidade da vida cristã, acham-se em perigo. É notável que a Igreja grega tenha reagido exatamente do mesmo modo que o Concílio de Vaison, na Gália, em 529: em cada aldeia, à sombra da igreja, o padre reúne as crianças e empenha-se, o mais possível, em ensiná-las a ler — o saltério e os demais livros litúrgicos —, de modo a “preparar para si um sucessor competente” (5).

Mas, fato extraordinário, e que mostra a profundeza das raízes mergulhadas no: Oriente pela tradição antiga, em pleno século XVIII ouviam-se as criancinhas gregas cantarolar o alfabeto, tomando-o simultaneamente pelas duas extremidades, como ao tempo de Quintiliano ou de São Jerônimo; ou então a se exercitar repetindo fórmulas deste gênero:

Ἐκκλησία μολυβδοκαντηλορεκμένη... 
Ó minha igreja cinzelada e esculpida em chumbo,
que cinzelou e esculpiu em chumbo,
o filho do cinzelador e escultor em chumbo,
se eu tivesse também o filho do cinzelador e escultor em chumbo,
eu a cinzelaria e esculpiria em chumbo, mais belamente
que o filho do cinzelador e escultor em chumbo,

síntese bem reconhecível de dois exercícios característicos da escola grega clássica: o “freio de língua” e a “declinação”.

A ESCOLA MONÁSTICA DA IRLANDA

Na outra extremidade do mundo cristão, contrastando absolutamente com Bizâncio, a Irlanda apresenta-nos a situação inversa: mantendo-se fora do Império, a Irlanda céltica não chegara a conhecer a cultura clássica; por mais notável e, sob certos aspectos, evoluída que fosse sua civilização própria, a Irlanda pagã permanecera um país “bárbaro”, ignorando a civilização escrita: foi o cristianismo, pregado principalmente por São Patrício († 460-470), que lhe levou o Livro, e, dessarte, a escola. Diferentemente das demais partes do Ocidente, a Irlanda nunca conheceu outra tradição letrada a não ser a de suas escolas cristãs.

Escolas cristãs, ou, melhor dizendo, escolas monásticas, pois, como se sabe, as cristandades célticas desenvolveram-se inteiramente enquadradas pelas instituições monásticas. Como as do Egito e de alhures, são escolas estritamente religiosas, cujo ensino se dirige essencialmente a futuros monges (embora filhos de chefes fossem nelas admitidos por tolerância); funda-se, como texto de base, sobre a Sagrada Escritura, e precipuamente, sobre o Saltério. Não me compete descrever (6) aqui a vida destas escolas. (Aliás muito curiosa: as crianças, muitas vezes, eram levadas ao convento desde o nascimento; havia ali verdadeiras creches monásticas: tudo é excessivo nesse ambiente ferozmente ascético). Bastar-me-á constatar que a história da cultura irlandesa pertence inteiramente à Idade Média: da “ilha dos Santos”, onde ela progressivamente se firmou e se enriqueceu, esta cultura vai-se irradiar, enxamear e fecundar, aos poucos, o Ocidente; começa desde o século VI, pela Grã-Bretanha, onde coloniza primeiro as regiões setentrionais, a parte da Escócia que, também, se mantivera estranha à dominação romana, antes de descer, pouco a pouco, rumo ao sul, para reerguer as ruínas acumuladas pelas invasões germânicas.

AS INVASÕES DESTRUÍRAM A ESCOLA ANTIGA

Isto se deu porque na Bretanha romana, as escolas e a cultura clássica não conseguiram sobreviver às devastações causadas pela chegada dos anglo-saxões, que subverteram tão profundamente a estrutura, não só política mas também etnográfica, da ilha: toda a primeira metade do século V é, para a Grã-Bretanha, um período de violências no qual a barbárie adensa velozmente suas trevas.

O mesmo passou-se no continente: em toda parte, foi a efetivação da conquista do solo do Império pelos povos germânicos que provocou, com a ruína da vida romana, o desaparecimento das escolas antigas.

É na Gália que melhor se pode estudar o acontecimento (7). Muito antes da data fatal de 31 de dezembro de 406, data da grande invasão, a partir da qual o Império nunca mais conseguirá restabelecer seu poder sobre o conjunto da Gália, a estrutura do sistema clássico já se achava abalada. A partir de 276, quando a fronteira do Reno foi violada pela primeira vez, as incursões dos bárbaros multiplicaram-se, devastando a Gália inteira e fazendo-a viver longos períodos de insegurança: as cidades condensam-se e fecham-se no estreito recinto de suas novas muralhas, os ricos latifundiários fortificam-se em suas villae, que se convertem em burgi.

Sem dúvida, estas provações e transformações não bastaram para interromper a tradição cultural, mas minam a vitalidade das instituições escolares, que não podem, sem prejuízo, suportar o desaparecimento da vida brilhante das cidades, a cujo crescimento elas haviam estado tão intimamente ligadas. De outro lado, na medida em que estas instituições e, com elas, toda a educação clássica, haviam passado gradativamente do setor privado ao domínio público, elas dependiam, para seu bom funcionamento, da intervenção e dos subsídios do Estado e das municipalidades: elas estavam portanto unidas à sorte da estrutura política do Império.

Não puderam elas sobreviver ao desmoronamento de seu poder. Pode-se dizer, com bastante certeza, que a geração educada por Ausônio († 395) foi a última que ainda chegou a conhecer o sistema normal das escolas romanas com seus três graus: o magister ludi, o gramático, o retor. Este sistema desapareceu na geração seguinte, devido à grande invasão e às catástrofes que assinalaram o início do século V: o neto de Ausônio, Paulino de Pela, dá testemunho disso, pelo menos no que concerne à região de Marselha, onde se refugiou por volta de 422 [5].

Todavia, embora as escolas oficiais, regularmente organizadas sob a égide das municipalidades, tenham desaparecido, a educação clássica subsiste ainda durante um século, pois a classe “senatorial” dos grandes latifundiários permanece profundamente apegada a ela; na falta de escolas públicas, há sempre mestres que ensinam particularmente, reunindo alguns alunos em sua própria casa: é assim que Sidônio Apolinário (nascido em Lyon por volta de 430) recorda a seu antigo condiscípulo Probo seus estudos comuns, possivelmente em Arles, na casa de seu mestre Eusébio, inter eusebianos lares [6]. Pouco a pouco, porém, a clientela torna-se mais rara: o historiador é levado a se perguntar se tais “professores”, que aparecem cá e lá na obra do mesmo Sidônio, não são sobretudo preceptores ligados ao serviço de uma grande família (8).

A sorte do ensino de tipo clássico acha-se doravante ligada à existência de um modo de vida ainda antigo, no seio da aristocracia galo-romana. Mas esta, pelo contato com seus novos mestres germânicos, barbariza-se rapidamente: quando ainda vivia Sidônio, já existiam “colaboradores” que admiravam os bárbaros e até mesmo passavam a falar germânico... [7]. Talvez a vida romana se tenha mantido por mais tempo em certas regiões como a Auvérnia de Sidônio e sobretudo a Aquitânia, menos convulsionada pelas invasões e menos diretamente submetida aos reis bárbaros. Pouco a pouco, porém, também os últimos focos da cultura antiga se extinguem e, no século VI, não existe nenhum outro ensino a não ser aquele que doravante a Igreja se esforça por patrocinar.

As coisas passaram-se de modo muito semelhante alhures: as províncias que margeiam o Danúbio e as do interior, abandonadas desde o fim do século IV à ocupação dos “federados” germânicos, e nas quais tantas raças e tribos diferentes se sucedem, ficaram profundamente desorganizadas a partir do início do século V, e a vida romana foi ali, como na Gália, sufocada pela barbárie, consoante nos damos conta, por exemplo, graças à Vida de São Severino († 482), de Eugípio. Igualmente na Espanha, a invasão e ocupação germânica, que começam com a chegada dos suevos, álanos e vândalos, em 409, abatem a romanidade e a escola: a cultura intelectual da Espanha visigótica será inteiramente eclesiástica (9).

RESSALVADA A ÁFRICA

A educação antiga sobreviveu ainda, por certo tempo, unicamente em duas regiões: na África vândala e na Itália. Quaisquer que tenham sido as violências da conquista, é certo que o reino africano, organizado por Genserico, não merece a má reputação que lhe acarretou, junto a cronistas eclesiásticos, sua política de perseguição ariana contra os católicos (10). Em particular, do ponto de vista intelectual, temos a certeza de que Cartago, pelo menos, conheceu, sob a “paz vândala”, uma atividade intensa, testemunhada principalmente pela compilação da Antologia latina: por ela conhecemos a existência de um meio professoral inteiramente conforme à tradição clássica. Logo depois das vitórias de Belisário, o imperador Justiniano preocupa-se em devolver a este ensino seu caráter oficial: uma constituição de 533-534 prevê a manutenção, em Cartago, de dois gramáticos e de dois retores [8].

Pode-se, entretanto, notar que esse corpo docente é por demais reduzido, e observar, por outro lado, que Justiniano nada faz fora de Cartago. A ocupação do solo africano na época bizantina foi, comparativamente à do Alto Império, bem mais lenta; já a dominação vândala tivera de contemporizar-se com o surto de independência das populações berberes do interior. Sem dúvida, alguns vestígios da romanidade (o cristianismo, o uso do latim, certas tradições municipais) parecem ter sobrevivido em Marrocos e Orã, até o momento da invasão árabe (11). Contudo, é visível que a existência da tradição escolar clássica tornou-se bastante precária, e só se manteve verdadeiramente em torno da capital, Cartago. Pelo menos aí, ela se conservou até a queda do domínio bizantino: a tomada de Cartago (695-697) assinala seu fim; se até em pleno século XI o cristianismo e, com ele, o uso do latim, seu uso escrito, e portanto também o seu ensino, lograram manter-se em África, a cultura destes últimos “Roumi” terá, porém, essência estritamente religiosa (12).

Esta relativamente prolongada sobrevivência do classicismo africano não deixa de ter importância para a história da cultura no Ocidente: do século V ao século VII, a África pode exportar, e de fato exportou, muitos letrados, e com eles preciosos manuscritos, para a Gália do sul, e mais ainda para a Espanha ou para a Itália meridional, e assim contribuiu para preparar as reservas de que devia nutrir-se mais tarde o humanismo medieval.

E SOBRETUDO A ITÁLIA

Muito mais importante ainda foi o papel desempenhado pela Itália: foi sobretudo neste país que a escola antiga teve seu crepúsculo mais prolongado e onde pode melhor preparar inconscientemente, o caminho para O futuro. Foi na Itália, com efeito, que a tradição clássica desenvolvera raízes mais profundas: estas puderam resistir aos danos das invasões que, a partir de 401, não lhe foram poupadas. Ali, porém, a ocupação germânica não acarretou o desaparecimento da vida antiga: ainda mais que a África vândala, a Itália pode continuar vivendo segundo suas normas tradicionais, sob a dominação dos ostrogodos e, em particular, durante o longo reinado de seu primeiro rei, o grande Teodorico (493-526): este reinou verdadeiramente “para o bem de Roma” (bono Romae) [9], conforme a legenda dos sinetes dos tijolos com que fizera restaurar os monumentos da velha capital.

Iletrado embora, Teodorico compreendeu a grandeza da cultura clássica: como Estilicão, quis que sua própria filha, Amalaswinthe, recebesse a mais completa educação. Data de seu tempo o último grande reflorescer das letras e do pensamento latinos, que conheceram então um verdadeiro renascimento — cujos frutos serão devidamente explorados pela Idade Média —, graças aos grandes trabalhadores (cujos serviços, aliás, Teodorico bem soube utilizar) que foram Boécio e Cassiodoro.

Graças a este último, nomeado magister officiorum, chefe da chancelaria, em 523, Teodorico favoreceu os estudos [10], manteve em função as cátedras do Estado, que atraíam a Roma os estudantes provinciais; nomeado prefeito do pretório em 533, após a morte do grande rei, pela regente Amalaswinthe, Cassiodoro fez com que o subsídio dos professores, por um momento negligenciado, fosse assegurado com regularidade [11] e o imperador Justiniano, com sua Pragmatica Sanction, reorganizando a Itália após a reconquista (535), não pode senão determinar que se adotasse o dos tempos de Teodorico [12]

Constatamos assim que a vida escolar antiga perpetuou-se em Roma até meados do século VI: há sempre, remunerados pelo Estado, professores de gramática, de retórica, de direito e de medicina [13]. Conhecemos ainda o nome de um dos últimos titulares da cátedra de eloquência, inaugurada outrora por Quintiliano, um certo Félix, que vemos, em 534, resenhar o texto de Marciano Capela (13). Ensinam sempre em salas dispostas em torno do fórum de Trajano [14], que são também sede de recitações públicas [15], pois os costumes literários da Roma imperial sobreviveram tanto quanto suas escolas.

Roma conserva sempre seu primado no tocante ao ensino universitário [16], mas a vida escolar não é menos ativa nas demais grandes cidades da Itália. Em Milão, o arlesiano Enódio, futuro bispo de Pavia (473/4 — 521), faz-nos conhecer a escola, auditorium, do gramático e retor Deutério [17]; seus alunos perlustram o programa habitual dos estudos clássicos: latim, grego, gramática e retórica [18] e “declamam” como nos belos dias de Sêneca o Pai, sobre os mesmos eternos assuntos de controvérsias e suasórias: o filho ingrato, o tiranicídio, Diomedes ou Tétis [19]. O próprio Enódio, apesar de ter-se tornado advogado [20], não desdenha de compor modelos corrigidos, suas Dictiones, para a edificação dos jovens amigos cujos estudos orienta.

Como Milão, Ravena, onde um dos discípulos de Enódio, o futuro poeta Arator, fará seus estudos de direito [21]: as escolas aí são sempre florescentes, até uns trinta anos mais tarde, como podemos julgar pela cultura de Fortunato, que também aí vem estudar, pouco depois de 552 (14).

A INVASÃO LOMBARDA

Todavia, a prosperidade da Itália havia sido abalada pela longa e áspera resistência gótica à reconquista bizantina (535-555): foi definitivamente destruída pela invasão do mais tardio dentre os povos germânicos, os lombardos; estes entram na Itália em 568, conquistam a planície do Po, infiltram-se ao longo da cordilheira apenina, atingindo Benevente em 572. Com eles, a península conheceu horrores análogos aos que a Gália e o resto do Ocidente padeceram 150 anos mais cedo. É então que a barbárie se estende sobre a Itália; durante quase mais de um século, do fim do século VI ao fim do século VII, este país, por tanto tempo guardião da tradição clássica, vê o nível intelectual da cultura degradar-se até um nível quase que merovíngio. Este corte tão nítido marca o momento em que se efetuou a substituição e em que a educação se torna, ali onde dela subsiste algo, fundamentalmente religiosa.

Por todo tempo em que tinha persistido a tradição clássica, a Itália do século VI tinha apresentado o mesmo dualismo rigoroso que o Baixo Império ou Bizâncio, entre uma educação profana, fiel ao humanismo herdado do paganismo e uma educação religiosa, ascética, em violenta ruptura com a precedente, e ministrada, não ainda em verdadeiras escolas, mas no seio do clero ou dos mosteiros.

Enódio, Cassiodoro, São Gregório Magno, por sua dupla carreira, primeiramente profana, depois eclesiástica, ilustram este antagonismo, cada um de seu modo. Desde que ingressa nas Ordens (é então um simples diácono do bispo Epifânio de Pavia, seu mestre espiritual, ao qual deverá suceder), Enódio rompe, solenemente, com as pompas da eloquência profana [22]; recusa-se, com horror, a ocupar-se, como fizera com muitos outros, dos estudos literários de um de seus jovens sobrinhos, cuja mãe achara bom ordenar clérigo: “Envergonhar-me-ia, diz ele, de dar uma instrução secular a um homem da Igreja! [23] (15)”

O próprio Cassiodoro, que vimos tão preocupado em manter a atividade regular das cátedras profanas de Roma, inquieta-se por ver os estudos sagrados carecerem tão completamente de instituições apropriadas. Em 534, ele se associa à curiosa tentativa do papa Agapito, de criar na própria Roma, à sombra de uma biblioteca erudita, algo análogo às escolas cristãs de Nisibe (16). Alguns anos mais tarde, afastado das ocupações e do mundo, funda em seu domínio de Vivário, no canto mais recôndito da Itália, sobre a costa jônia da Calábria, um duplo mosteiro, onde instala a mais rica biblioteca, toda uma equipe de tradutores e de copistas, tentando criar um centro de estudos propriamente religiosos, votados ao estudo da Bíblia, que aproveitará a contribuição do humanismo tradicional numa síntese cristã: o plano de seus livros de Institutiones retrata o quadro desta notável tentativa de cultura monástica (17).

Mais radical, já menos estreitamente vinculado à cultura antiga, São Gregório o Grande, depois de ter-se convertido à vocação monástica, rompe com todos os elos com a cultura clássica: nascido por volta de 540, pôde ele ainda receber em Roma uma educação cujos quadros são ainda os do humanismo tradicional [24]; mas sob uma forma já esvaziada de substância pela decadência... Deste humanismo, São Gregório ignora, sem qualquer dúvida, os valores subjacentes: além disso, como já vimos, sua cultura religiosa está em violento conflito com ele. Aliás, foi em seu mosteiro do Clivus Scauri que se iniciou nesta cultura, pelos cuidados dos primeiros abades que colocou à frente de sua fundação — Hilário e Maximiano [25].

Chegam os tenebrosos dias da conquista lombarda; a escola profana, e com ela a tradição antiga, desmorona-se. A Igreja, única força organizada, sobrevive à tormenta, salvando consigo a educação religiosa. Os centros de ensino que subsistem são, primeira e essencialmente, os conventos: na Calábria, Vivário (apesar de que, morto Cassiodoro, seu papel pareça ter sido bastante passivo: conservou e depois transmitiu seus tesouros — o que já é muito), em Nápoles o mosteiro de Pizzofalcone, ilustrado outrora por Eugípio, mais ao norte, São Vicente do Volturno, Monte Cassino, o convento de Bobbio, que, em 612, São Colombano, procedente da Grã-Bretanha, viera fundar, uma vez que a irradiação do monaquismo céltico desdobra-se doravante sobre o continente

Com as escolas monásticas, como já anteriormente na Gália, desenvolvem-se as escolas episcopais: apenas um ensino mostra-se vivo na Roma decadente do tempo de São Gregório, a saber, aquele que, como na Gália, se deve ministrar ao coral dos jovens clérigos, a esta schola cantorum, por cuja reorganização a tradição glorifica o grande papa. Na Itália, por toda parte encontramos vestígios de tal ensino eclesiástico, inspirado pelo bispo, ministrado à sombra mesma de sua catedral e evidentemente destinado a promover, antes de tudo, o recrutamento e a formação imediata do clero: em 678-679, um bispo de Fiesole informa ter sido assim educado na igreja de Arezzo: per plures annons in ecclesia Sancti Donati nutritus et litteras edoctus sum [26].

Importa, porém, advertir que a passagem da Itália antiga à Itália medieval não se efetuou de modo tão flagrante quanto a mudança que observamos alhures. Por mais atroz que tenha sido a barbárie lombarda, ela jamais interrompeu inteiramente a tradição literária. Primeiro, porque nunca recobriu toda a península: protegidas pela frota bizantina, as regiões costeiras resistiram durante muito tempo: Ravena até 751; Nápoles, Salerno, o extremo sul e, sobretudo, Roma, jamais foram verdadeiramente barbarizadas: algo da continuidade bizantina se pode observar nestes centros privilegiados.

Quando a situação se estabiliza, no fim de um século, quando, timidamente, a Corte lombarda de Pavia tenta restabelecer a tradição letrada deixada por Teodorico, o rei Cunincperto (678-700) arranja um “magister”, Estevão, para exercitar-se, canhestramente sem dúvida, no papel de poeta áulico [27]; em 680, o mesmo rei oferece uma bengala tauxiada de ouro e prata ao gramático Félix [28]. Esboça-se já uma renascença lombarda (18).

Para que ela se tornasse possível, não é sequer necessário supor que uma tênue corrente de tradição escolar se haja perpetuado através do século de ferro: a educação doméstica, familiar, bastou para transmitir através de algumas gerações um mínimo de conhecimentos e de amor às letras. Assim, é-nos revelado que antes de ter sido levado à vida religiosa, Atálio de Bobbio, o sucessor de São Columbano, tinha sido instruído nas letras profanas pelos cuidados de seu próprio pai, na Borgonha, é verdade, e não na Itália [29], Algo desta transmissão no interior da família perpetuar-se-á ainda: o próprio gramático Félix de Pavia formou nas letras seu sobrinho, Flaviano, que viria a ser mais tarde o mestre do grande Paulo Diácono [30].

PRELÚDIOS DO RENASCIMENTO CAROLÍNGIO

Mas estas circunstâncias que colocam a Itália numa situação particular em relação ao resto do Ocidente, não somente tornaram possível o renascimento lombardo mas facilitaram também o desenvolvimento, o progresso contínuo e tão notável! da cultura e do ensino das escolas britânicas.

Desde as primeiras escolas da Irlanda até as dos Scoti e dos anglo-saxões do tempo de Carlos Magno, o progresso é continuo. Não é devido unicamente a uma elaboração original. Esse progresso foi nutrido por uma contribuição, quase contínua, vinda das regiões outrora romanas, onde algo ainda subsistia dos tesouros acumulados pelo classicismo,

As primeiras gerações de clérigos irlandeses receberam assim, indubitavelmente, a princípio reforço da Bretanha e da Gália; mais tarde, sobretudo — a coisa foi curiosamente observada — da Espanha. Mas o papel da Itália na elaboração desta primeira cultura medieval, pré-carolíngia, foi capital: aparece em primeiro plano desde a célebre missão enviada por São Gregório Magno aos ingleses, em 597, e chefiada por Santo Agostinho, primeiro arcebispo de Cantuária, que teve, entre seus sucessores, Teodoro de Tarso (669-690), um grego. Nesta data, Roma é uma província bizantina. Pode-se imaginar sem dificuldades qual campo de influências, qual contribuição de cultura, um tal fato representa. Desde então um contato direto estabelece-se entre a Itália e a Grã-Bretanha; peregrinos circulam incessantemente de uma a outra e carregam consigo, muitas vezes, livros, manuscritos antigos ou recentes (penso nos livros litúrgicos) que as bibliotecas da velha Roma, apesar de tantas pilhagens, conservavam em abundância. Assim, Benedito Biscop, fundador das abadias de Wearmouth e de Jarrow, visitou Roma nada menos de seis vezes na segunda metade do século VII, dali levando, em cada viagem, numerosos volumes [31]

O longo crepúsculo italiano ligou-se, pois, à prematura aurora que se dealbara além-Mancha, O futuro da civilização ocidental foi determinado por esta conjunção: os Scoti e seus alunos ou êmulos anglo-saxões não foram abandonados apenas às suas forças; não tiveram de reinventar a gramática, as ciências, de redescobrir o grego: tudo isto, e mais ainda, o tesouro maravilhoso dos clássicos, puderam recebê-lo desde que sua curiosidade e sua maturidade os tornaram disso dignos, das mãos dos mediterraneanos.

Por esta dupla via, as benesses da tradição clássica puderam assim sobreviver à destruição de sua Forma e ser reinvestidas na nova síntese que representa a cultura medieval de inspiração cristã. Esta começa a esboçar sua Forma original a partir da renascença carolíngia, e foi realmente da confluência das contribuições lombardas e insulares que esta renascença surgiu: o encontro, na côrte de Carlos Magno, do inglês Alcuíno e do lombardo Paulo Diácono (e, com o primeiro, os Scoti Clemente, José, Dungal; com o segundo, Pedro de Pisa, Paulino de Aquiléia) assume, a este respeito, o valor de um símbolo.

Disto decorre um dos traços dominantes da cristandade medieval, diríamos melhor, de toda a civilização ocidental: por mais original que ela seja por sua primitiva inspiração, por mais estranha que ela se suponha, ou se julgue, ao espírito do humanismo antigo, ela não lhe é radicalmente heterogênea. Ela não representa, na história das civilizações, um recomeço absoluto, uma nova partida do zero. Ela foi, desde sua origem, e, depois, tão continuamente alimentada por suas fontes antigas que nos aparece, antes de tudo, como uma Renascença. Assim se reatou, para além da ruptura bárbara, uma certa continuidade, na matéria, senão na forma, que faz do homem ocidental um herdeiro dos Clássicos.


Notas:

[1] MALALAS, Crônica (ed. Dindorf, t. XV da Bizantina de Bonn), XVIII, 151. 

[2] Miguel Pselo, Discursos Fúnebres (ed. K. N. Sathas, Bibliotheca Graeca medii aevi, t. V), E, 14. 

[3] Ana Comnene, Alexíada (ed. Leib), 1, p. 3.

[4] Rhetores Graeci (ed. Spengel), I, 566 s.; 480; 517; 499.

[5] Paulino de Pela, Eucharisticon, 68-69.  

[6] Simônio APOLINÁRIO, Cartas, IV, 1, 3. 

[7] Idem, V, 5; IV, 20.

[8] Código Justiniano, I, 27, 1, 42.

[9] E. DIEHL, Inscriptiones Latinae Christiane Veteres, CG.

[10] Cassiodoro, Cartas Variadas, 1, 39. 

[11] Idem, IX, 21. 

[12] JUSTINIANO, Novelas, Ap. 7, 22. 

[13] Ibidem.  

[14] São Venâncio Fortunato, Poemas, VIII, 8, 26.

[15] Idem, III, 18, 8. 

[16] Enódio de Pavia., Cartas, V, 9; VI, 33; IX, 2.

[17] Declamações, VII; IX-X; Poemas, 1, 2; II, 104. 

[18] Cartas, I, 5, 10. 

[19] Declamações, XVII-XVIII; XXIV-XXV.

[20] Cartas, II, 27, 4.

[21] Cassiodoro, Cartas Variadas, VIII, 12.

[22] Enódio de Pavia, Cartas, III, 24; IX, 1. 

[23] Idem, IX, 9.  

[24] São Gregório de Tours, História dos Francos, X, 1; Paulo Diacro, Vida de São Gregório o Grande, 2. 

[25] João Diacro, Vida de São Gregório o Grande, I, 6. 

[26] C. Troya, Codice diplomatico longobardo (ed. Schiaparelli, t. 1, p. 71, 1, 29-30, Fonti per la storia d'Italia, t. 62), III, 201-2. 

[27] Monumenta: Germaniae Historica, Antiquitates, Poetae Latini medii aevi, IV, 731, 

[28] Pauto Diacro, História dos Lombardos, VI, 7. 

[29] Acta Sanctorum Mart.../sic pri ed, franc./, II, 42. 

[30] Paulo Diacro, História dos Lombardos, loc. cit.

[31] São Beda o Venerável, História dos Abades de Wearmouth e Jarrow (Migne, Patrologie Latine, t. 94), 716 A; 717 B, 720 B, 721 C.


Notas Complementares

(1) Sobre a educação bizantina e, particularmente, o ensino superior: F. FucHs, Die höheren Schulen von Konstantinopel im Mittelalter, Byzantinisches Archiv (supl. da Byzantinische Zeitschrift), VII, Leipzig, 1926; J. M. Hussey, Church and learning in the byzantine Empire, 867-1185, Oxford-Londres, 1937; L. BRÉHIER, L'Enseignement classique et l'Enseignement religieux à Byzance, ap. Revue d'Histoire et de Philosophie religieuses, XXI (1941), ps. 34-69 (enquanto se espera a publicação dos tomos W-III de seu Monde Byzantin, na coleção “L"Évolution de "Humanité”).

Há um ponto sobre o qual convém chamar a atenção dos bizantinistas: estes salientam de bom grado o paralelismo entre o programa dos altos estudos bizantinos e o da escola filosófica neo-platônica (cf.: O. SCHISSEL VON FLESCHENBERG, Marinos von Neapolis und die neuplatonischen Tugendgrade, Atenas, 1928). Isto significa que a cultura filosófica se tornou, daí por diante, a regra, ou melhor, que Platão, tenha, tardiamente, vencido Isócrates? Ou a filosofia continua sendo um coroamento reservado à elite? Seria preciso examinar como se tornou, na época bizantina, a tensão dialética que mostrei tão profunda na época helenística e romana, entre os dois pólos da cultura clássica.

Sobre o ensino elementar, ainda mal conhecido, cf. algumas indicações ap. F. DVORNIK, Les Légendes de Constantin et de Méthode vues de Byzance, Byzantinoslavica, Supl., I, Praga, 1933, ps. 25-33. Excelente exposição de G. BUCKLER, Byzantine Education, em N, H. BAYNES e H. ST. L. B. Moss, Byzantium, an Introduction to East Roman Civilization, Oxford, 1948, p. 200-220; pelo contrário, deve ser utilizado com precaução, o livro pouco crítico de PH. Koukoulés, Vie et civilisation byzantines (em grego), tomo I, fascículo 1, Atenas, 1948 (Collection de l'Institut français d'Athènes), tomo 10, ps. 35-137.

(2) Sobre o humanismo na época dos Paleólogos, cf. R. Guilland, Essai sur Nicéphone Grégoras, l'Homme et l'Oeuvre, Paris, 1926, ps. 55 e segs, 111 e segs.

(3) Proibição de receber “crianças do século” nos mosteiros de Bizâncio: cf. os fatos apresentados por L. BRÉHIER, art. citado, ap. Revue d'Histoire et de Philosophie religieuses, 1941, ps. 63-64.

(4) Origens da escola patriarcal de Constantinopla: cf. sempre BRÉHIER, ibid., ps. 42-44, que remete ao testemunho de ANANIAS DE SCHIRAG (cerca de 600-650), Autobiographie, trad. CONYBEARE, ap. Byzantinische Zeitsherift, VI (1897), ps. 572-573.

(5) Sobre a escola grega depois de 1493: G. CHASSIOTIS, L'Instruction publique chez les Grecs depuis la prise de Constantinople par les Turcs jusqu'à nos jours, Paris, 1881, ps. 14 e segs. Notar-se-á que, ao contrário do Ocidente, o ensino superior jamais desapareceu no Oriente, porquanto, logo após a tomada de Constantinopla, Maomé II restabelecia o patriarcado em beneficio de Genádio Escolário, o qual se apressava em reconstituir, no Phanar, a escola patriarcal: CHASSIOTIS, Op. Cit., p. 4; 34-42. Sobre os exercícios escolares de tipo sempre antigo, o mesmo remete a F. POUQUEVILLE, Voyage de Morée, Paris, 1805, ps. 267-270,

(6) Sobre La Vie scolaire dans les monastêres d'Irlande aux V-VlIle siècles, que me baste citar o memorial de meu aluno A, LORCIN, ap. Revue du Moyen-Áge latin, t. I, 1945, ps. 221-236, não obstante as criticas que lhe foram dirigidas por P. GROSJEAN, ap. Analecta Bollandiana, t. LXIV (1946), p. 323 (a exposição de J. RYAN, Irish Monasticism, Origins and early development, Dublin, 1931, ps. 200-216, 360-383, à qual nos remete o P. Grosjean, é bastante falaciosa),

(7) O fim das escolas antigas na Gália: o trabalho básico continua sendo a tese, já citada no capítulo precedente (n. 10) de M. ROGER, L'Enseignement des Lettres classiques d'Ausone à Alcuin, introduction à l'Histoire des écoles carolingiennes, Paris, 1905.

(8) Os professores contemporâneos de Sidônio Apolinário seriam algo mais do que  preceptores privados? Cf. A. LOYEN, Sidoine Apollinaire et l'esprit précieux en Gaule, Paris, 1943, p. 93.

(9) Sobre o fim da romanidade nas províncias danubianas, cf. A. ALFÔLDI, Der Untergang der Römerherrschaft in Ponnorien, II (Ungarische Bibliothek, I R., 12), Berlim, 1926, p. 575.

Sobre as escolas na Espanha visigótica: R. MENÉNDEZ PIDAL, Historia de España, t. III, España Visigoda, Madrid, 1940, ps. 343 (M. TORRES), 391, 397 (n. 88), 398, 416, 418-423 (J. PÉREZ DE URBEL).

(10) Sobre la Paix Vandale, cf. o artigo, animado sem dúvida por algum exagêro polêmico, de C. SAUMAGNE, ap, Revue Tunisienne, 1930, e o livro, êste também em certos pontos levado até o paradoxo, de E. GAUTIER, Genséric, roi des Vandales, Paris, 1932.

Sobre o meio intelectual e universitário de Cartago na época dos vândalos, cf. os materiais recolhidos por A. AUDOLLENT, Carthage romaime, Paris, 1901, ps. 749-766.

(11) Sobrevivências do cristianismo ce da latinidade em Marrocos e em Orã: J. CARCOPINO, Le Maroc antique, Paris, 1943, ps. 288-301.

(12) Sur les derniers temps du christianisme en Afrique, cf. sob este título o excelente memorial de W. SESTON, ap. langes d'Archéologie et d'Histoire, LIII (1936), ps. 101-124, bem como: C. COURTOIS, Grégoire VII et l'Afrique du Nord, remarques sur les communautés chrétiennes d'Afrique au Xle siècle, ap. Revue historique, CKCV (1943), ps. 97-122, 193-226.

(13). As últimas escolas clássicas de Roma: sobre Félix, cronologicamente o último dos titulares conhecidos da cadeira oficial de retórica em Roma, cf. meu artigo Autour de la Bibliotheque du pape Agapit, ap. Mélanges d'Archéologie et d'Histoire, XLVIII (1931), ps. 157-165; já o encontramos em recesso no ano de 534; e, de maneira geral, F. ERMINI, La Scuola in Roma nel VI secolo, ap. Archivum Romanicum, 1934, ps. 143-154.

(14) Estudos de Fortunato em Ravena: of. D. TARDI, Fortunat, Paris, 1928, p. 62.

(15) A mesma oposição entre cultura clássica e cultura cristã subsiste igualmente na Gália pelo tempo em que ali sobrevive algo da tradição antiga: cf. por volta de 408, a sátira de SÃO PAULINO (de Béziers?), Ad Salmonem (CSEL., XVI, 1), v. 76-79,

(16) Sobre o centro de altos estudos religiosos que o papa Agapito e Cassiodoro tentaram instaurar em Roma, cf. ainda o memorial citado acima, n. 13, ps. 124 e segs.

(17) Sobre a obra de Cassiodoro, cf. em primeiro lugar, P. COURCELLE, Les Lettres grecques en Occident, de Macrobe à Cassiodore, Paris, 1943, ps. 313-388; cf. também A. VAN DE VYVER, Cassiodore et son oeuvre, ap. Speculum, VI (1931), ps. 244-292; Les Institutiones de Cassiodore et sa fondation à Vivarium, ap. Revue Bénédictine, LXIII (1941), ps. 59-88.

(18) Sobre a “renascença” lombarda, cf. A. VISCARDI, na Storia Letteraria d'Italia do editor VALLARDI, t. I, Le Origini, Milão, 1939, pass., e, principalmente: R. BEZZOLA, Les origines et la Formation de la littérature courtoise en Occident (500-1200), I, La Tradition impériale de la fin de Pantiquité au Xle siêcle (BEHE., fasc. 286), ps. 24-33. O autor só descreve um aspecto dela, mas o mais curioso: mostra-nos ele que um tênue fio de tradição escolar profana se manteve, em suma, ao longo das idades obscuras, ligando assim a cultura antiga ao setor laico da cultura medieval, que se não poderia, sem excesso, limitar apenas ao veio religioso.

***

Leia mais em As 4 causas da Educação Clássica

Leia mais em Carlos Magno e a expansão da Educação Clássica



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O Conceito de Infinito em Plotino

Prefácio de Marsílio Ficino na sua
tradução das Enéadas de Plotino.


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Texto retirado do LINK.

O Conceito de Infinito em Plotino, por Jose Carlos Fernández

Dedicaremos vários artigos a este opúsculo de Plotino sobre os Números, tal é a sua densidade, e este primeiro sobre a sua noção de infinito ou ilimitado, que é realmente surpreendente.

O filósofo Plotino (203-270 d.C.) revitalizou a herança platónica, abrindo a porta a uma corrente mística e de ideias que iluminou séculos de civilização no Ocidente, em plena queda do Império Romano. Inspirou, também, os Padres da Igreja, sábios e santos durante um milénio e meio.

Arrebatada a sua alma pelo êxtase uma e outra vez, elevada a um empíreo de Ideias (a que chamou Reino da Inteligência), é lógico que os seus textos não sejam fáceis de ler, dada a sua enorme elevação e abstração, longe dos mortais comuns e dos conceitos que elaboramos com as nossas sensações vulgares.

E no entanto, o imperador Juliano sabia as Enéadas quase de memória, Santo Agostinho é devedor delas na maior parte da sua filosofia cristã, o próprio Giordano Bruno na sua teoria do infinito e da contemplação ativa, e centenas de grandes filósofos se esforçaram em penetrar na caverna encantada das suas reflexões como aventureiros que buscam tesouros escondidos.

Porfírio compilou os ensinamentos escritos do seu Mestre em coleções de nove livros chamadas, assim, Enéadas, organizando-as por temas. Dedicou a Sexta Enéada aos temas mais elevados, à metafisica pura, com os seguintes títulos:

  • Sobre as Categorias do Ser (I, II e III)
  • Sobre a presença do Ser, o Uno e o mesmo, em toda a parte como um todo (I e II)
  • Sobre os Números
  • Como surgiu a multiplicidade de formas e sobre o Bem
  • Sobre o livre arbítrio e a vontade do Uno
  • Sobre o Bem e o Uno.

Deste modo, comprovamos que um dos seus pequenos tratados, o sexto da Sexta Enéada é, precisamente sobre os Números.

Na apresentação que Jesus Igal faz deste opúsculo, na edição das Enéadas da Gredos, destaca que Plotino não abandona o terreno metafísico ao falar dos Números. Nos sistemas herméticos, gnósticos, caldeus, zoroastrianos, na própria cabala hebraica e ainda na grega, as especulações sobre os Números estavam ligadas diretamente aos poderes e hierarquias que governam a realidade em todos os planos da consciência. Os Números eram poderes cósmicos, astrológicos, deuses e a base de todo o tipo de encantamento ou invocação mágica ou condensação talismânica. Mas ainda que discípulos de Plotino e outras luminárias neoplatónicas tenham entrado no reino da magia (recordemos por exemplo a Jâmblico ou Máximo de Éfeso) e nos seus ensinamentos abundem explicações sobre os mundos invisíveis e a relação com os Números, Plotino na sua escola em Roma e nas suas Enéadas não o fez. Sabia, talvez, como bom filho do Egito, que estas práticas e meditações deviam ser só para os que teriam entrado no Santuário mais íntimo dos Conhecimentos Sagrados, e nunca para ouvidos ou leitores sem discriminar.

Dedicaremos vários artigos a este opúsculo de Plotino sobre os Números, tal é a sua densidade, e este primeiro sobre a sua noção de infinito ou ilimitado, que é realmente surpreendente.

Deduzimos que, para Plotino, o infinito é a matéria primordial, o oposto da Unidade, em que nasce o Ser. É o caos, a grande dissolução e o fim do real, a sua morte, pois o real é o múltiplo em harmonia de unidade. Quanto mais múltiplo se faz o que existe, mais difícil é para a alma conseguir esta harmonia de unidade, até que já não o consegue, e aí rompe-se em pedaços, e estas “Águas Primordiais” do infinito, sinónimo de morte, desfazem a sua própria existência, negando-a e dissolvendo-a. Na mitologia Egípcia recorda-nos Ra, o grande poder, a unidade da existência, a lutar contra Apap, a matéria primordial que o quer engolir. Toda a vida é uma luta contra essa entropia universal que emana do infinito, a desordem absoluta. Também está refletida no símbolo de NUN, as Águas da Matéria ou Infinito Potencial, embora a filosofia Egípcia em geral diferenciasse o Não Movimento que gerava o Movimento, do Não Movimento que é o fim sem retorno da existência, a absoluta inércia de onde nada pode surgir. Ou seja, haveria uma Infinidade que é a Unidade mesma do Ser e através dele penetra-se no Tudo em Tudo de todos os modos (de Giordano Bruno), em que o Eu humano se converte no Eu de todo o universo, o Nirvana Budista.

E uma infinitude que é a do ilimitado e do espaço em que tudo morre e se desfaz, a infinitude que é a matéria vazia, a que mata a alma e toda a aspiração ao Ideal, o mais além do círculo (Grande Dragão), por exemplo, de Pistis Sofia.

Certamente não é o mesmo o “apeiron” o ilimitado dos pré-socráticos, infinito de onde tudo surge, do conceito do “ilimitado” ou infinito de Plotino.

É verdade que a multiplicidade é um abandono da unidade e a ilimitação (o infinito) um abandono total por ser uma multiplicidade inumerável, e que por ser o mal enquanto ilimitação, por isso também nós somos maus quando somos multiplicidade? E que cada coisa é múltipla quando, não podendo centrar-se em si mesma, ela derrama e se extende, espalhando-se; e se, no seu derramamento, se vê totalmente privada da unidade, converte-se em multiplicidade, ao não fazer algo que une as suas partes umas às outras. Mas se há algo que, ao mesmo tempo que se vai derramando incessantemente, se faz permanente, converte-se em magnitude.” Plotino, Enéadas

Para Plotino, como para Aristóteles, diferentemente do que pensa a matemática moderna desde o século XIX, o infinito não é um número, mas é o não número, a substância ilimitada que a razão não pode tornar inteligível, ou seja, numerar, ordenar. É certo que desde Cantor com a sua teoria dos transfinitos e dos Aleph, dividiu em classes o próprio infinito matemático, diferenciando o infinito dos que chamamos números Naturais, de, por exemplo, o dos Reais. Mas o debate continua aberto, desde logo no plano filosófico. Na filosofia grega falava-se do “infinito em potência” no sentido de ser dinâmico, ou seja, que sempre podíamos contar um número depois do outro, por muito grande que fosse esse número. Em outras palavras, “infinito” não era um número, mas o fato de que há sempre “além”, na série de números, ou em direção ao infinitamente pequeno ou grande, ou para frente ou para trás no tempo. Multiplicar, somar, dividir, subtrair infinitos, como se fossem números é um absurdo que faz, por exemplo, que nos encontremos com a famosa fórmula de Ramanujan, fácil de demonstrar:

$$1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 + … = -\dfrac{1}{12}$$

Perigoso o momento em que convertemos o infinito num “conjunto de” quando esse é precisamente o valor e o significado do número, aquele que limita, aquele que encerra.

O que se passa, então, no chamado “número do infinito?” Mas primeiro, como pode ser número, se é infinito? Porque nem as coisas sensíveis são infinitas, como tão pouco o será o número associado a elas, nem quem as conta conta um número infinito, mas, mesmo que duplique ou multiplique, a soma é limitada; e mesmo que se tome em conta o futuro, o passado ou ambos, a soma é limitada.

– Talvez, então, não seja simplesmente ilimitado, mas no sentido de que pode sempre aumentá-lo?

– Não, não está no poder do que conta gerar o número: o número já está delimitado e fixo. Na realidade, no mundo inteligível o Número está tão delimitado como o estão os seres: a quantidade do Número é a dos Seres.” Plotino, Enéadas

Mais claro, água. Agora, além disso Plotino diferencia os Números verdadeiros das suas sombras ou simulacros, e como Platão, insinua que os matemáticos, não filósofos, trabalham com as sombras dos números, deduzidos das quantidades, deduzidos das sensações, e não como verdadeiros filhos da inteligência, pois é daí que os Números são os seres infinitamente vivos, perpétuos, inamovíveis, vontade pura, de onde se forjam as leis de tudo o que existe.

Nós, do mesmo modo que pluralizamos o homem aplicando-lhe uma pluralidade de predicados – o de “belo” e outros –, assim, juntamente com o simulacro de cada ser geramos um simulacro do Número, e multiplicamos os números do mesmo modo que multiplicamos a cidade que não existe assim realmente. (?)” Plotino, Enéadas

E retoma o mistério do ilimitado ou infinito:

“- Mas este ilimitado, como pode ser real se é ilimitado? Porque o que é real e existente já está preso pelo Número.”

E como podemos imaginar, conceber, conhecer o infinito? 

Mas a infinitude, como concebê-la? Porque a que existe nos Seres já está limitada, não está nos Seres, mas talvez em “aqueles que devêm” [nas suas imagens, pois], como está também no tempo.” Plotino, Enéadas

E agora começa Plotino com uma investigação sobre o infinito de elevado caráter, que nos deixa espantados.

Explicações muito semelhantes às do primeiro capítulo de Cosmogênese da Doutrina Secreta de H.P. Blavatsky (1831-1891) e o famoso poema védico que explica como existia o Universo antes da sua aparição fenomenal, um mar infinito de substância primordial sem nenhum tipo de atributo, definição, lugar, nem qualidade, pura potência e nada de fato.

Não existia algo nem existia nada;

O resplandecente céu não existia;

Nem a imensa abóbada celeste se extendia no alto.

O que cobria tudo? O que o protegia?

O que o ocultava?

Era o abismo insondável das águas?

Não existia a morte,

mas nada havia imortal.

Não existiam limites entre o dia e a noite.

Só o Uno respirava inanimado e por si,

Pois nenhum outro que Ele jamais houve.

Reinava a escuridão,

e todo o princípio estava velado

Na obscuridade profunda,

um oceano sem luz (…)” Rig Veda

Tendo já determinado completamente que o infinito não é um número, por sua própria natureza ou não natureza, Plotino explica:

É que, embora esteja limitado, é por isso mesmo ilimitado, pois o que se limita não é o limite, senão o ilimitado, pois entre o limite e o ilimitado – o infinito – não media nenhuma outra coisa que admita caráter de finitude.

Assim, pois, este ilimitado escapa à ideia de limite, pois vê-se preso e cercado desde fora; não escapa, embora, de um lugar a outro, já que também não tem lugar, mas, uma vez capturado, então o lugar surge. E por ele também não é necessário pensar que lhe seja próprio o movimento que chamamos local ou que lhe completa qualquer outro movimento dos que normalmente são enumerados. Em conclusão, não se moverá em absoluto. Mas tão pouco está quieto. De onde, se o “de onde” surgiu posteriormente? Parece, melhor, que o movimento se predica do próprio infinito no sentido de que não é permanente…

– Como poderíamos, pois, conceber o infinito?

– Abstraindo a forma mentalmente.

– E que pensará do infinito?

Que, simultaneamente, é os contrários e os não contrários. Pensará que é grande e pequeno, porque faz-se ambas as coisas, e que é estável e móvel, pois também se torna estas coisas. Mas é evidente que, antes de tornar-se essas coisas, não é nenhuma das duas determinadamente. De contrário, já o terás determinado. “É que, embora esteja limitado, é por isso mesmo ilimitado, pois o que se limita não é o limite, senão o ilimitado, pois entre o limite e o ilimitado – o infinito – não media nenhuma outra coisa que admita caráter de finitude.

Sim, pois é indefinido e é os contrários indefinida e indeterminadamente, poderá apresentar-se-nos como o uno e o outro.

E se te aproximas dele sem colocar-lhe limite algum a modo de rede, escapar-te-á e descobrirás que não é uma única coisa. Se não, já o terás determinado e se te aproximas de uma parte dele como algo uno, aparecerá múltiplo; e se disseres que é múltiplo, de novo te enganarás, porque se cada uma das suas partes não for uma, não será múltiplo a sua de todas.

A sua natureza é esta: enquanto representado como um dos contrários, é movimento; enquanto objeto de representação, é estabilidade; o não poder vê-lo por si mesmo, é movimento e deslizamento fora da inteligência; mas o que não pode escapar-se, mas esteja cercado de fora e não lhe seja permitido avançar, será estabilidade. De modo que não se lhe pode atribuir apenas movimento.” Plotino, Enéadas

Daí a imagem do infinito como um mar sem fronteiras numa respiração incessante, que quando aprisionado na “rede de Thot (o deus egípcio da Inteligência e dos Números)” se vê obrigada a ser suporte para a evolução ou manifestação da vida universal.

***

Leia mais em TCC: Uma breve descrição da ideia de infinito

Leia mais em Matemática: Ciência da Quantidade



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Livro A Crise da Educação Ocidental

Crianças sendo ensinadas em sala de aula, de uma escola francesa.

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Tempo de leitura: 40 min.

Texto retirado da Introdução do livro A Crise da Educação Ocidental de Christopher Dawson publicado pela editora É Realizações, em 2020.


Introdução, por Glenn W. Olsen.

Christopher Dawson (1889-1970) tinha tal reputação que, ao ser instituída a cátedra Chauncey Stillman de Estudos Católicos Romanos pela Universidade Harvard, ele foi escolhido como seu primeiro ocupante (1958-1962). Antes de lecionar em Harvard, Dawson, inglês convertido ao catolicismo, jamais visitara os Estados Unidos. Então um acadêmico maduro na casa dos sessenta, ele já havia publicado muitos livros e artigos sobre uma enorme variedade de temas, mas era mais conhecido pela série de volumes sobre o papel da religião na história mundial. Enquanto esteve em Harvard, ele às vezes era questionado acerca da educação americana e suas perspectivas, especialmente sobre a educação católica nos Estados Unidos. Uma das consequências do questionamento é o presente livro, publicado pela primeira vez em 1961, e desde então reimpresso com regularidade. Endereçado a todos os que se interessavam pela reforma da educação, o livro foi elogiado por muitos não católicos. De um lado, Dawson considerava as perspectivas de reforma educacional nos Estados Unidos particularmente promissoras; de outro, via sérios problemas que precisariam ser superados.

A análise de Dawson começa com um panorama da história da educação. De imediato, ele desenvolve um de seus temas fundamentais: "enculturação". A ideia de que cultura é religião incorporada percorre os escritos de Dawson. De acordo com essa visão, toda cultura, em suas origens, tem a religião em seu centro, e podemos falar da cultura como uma espécie de encarnação da religião no decorrer do tempo. A cultura é a soma das maneiras pelas quais algumas religiões são incorporadas aos padrões de vida e formas materiais. Logo, a educação é o meio pelo qual tal herança social é transmitida aos jovens enculturando-os. Ela é, ao mesmo tempo, "alta" e "baixa", pensamento e cultura popular.

Do mundo antigo até o Iluminismo, a educação formal era privilégio de poucos, mas todos eram, em certo sentido, educados, isto é, enculturados, geralmente através da tradição, de alguma forma de aprendizado, da religião ou da arte. Formação especializada costuma depender de instrução, e, no mundo antigo, surgiram minorias letradas que se dedicaram com afinco à preservação e ao progresso de sua respectiva cultura. Na Grécia, a educação assumiu a forma de "educação liberal", que era apropriada ao cidadão livre o preparava para a participação na vida pública. Ela se concentrava nas artes do discurso e da persuasão.

A união completa da cultura filosófica grega com um emergente corpo de pensamento cristão só ocorreu em Bizâncio, no começo da Idade Média, mas, no Ocidente, exemplificado pelo rei Alfredo de Wessex (o Grande, 849-899), já surgia o ideal de educação laica e vernácula para todos os homens. Ainda que, por séculos, a educação tenha permanecido em grande parte clerical, Dawson cita Alfredo como um exemplo, das profundezas da Idade Média, de um corpo de escritos cristãos que vão além da Bíblia e poderiam estar no centro de um programa cristão de estudos. A abrangente visão de Dawson era de que o tema fundamental do estudo histórico deve ser a "cultura", e que a tarefa do historiador é mostrar como as culturas se formam, desenvolvem uma ampla visão de mundo, são transmitidas para outrem no tempo e no espaço, e então decaem ou recuam diante de uma nova cultura em ascensão [1]. Bastante influenciado pela antropologia e pela sociologia, Dawson achava que muito trabalho foi desperdiçado em narrativas históricas centradas em grandes figuras e eventos, em detrimento do usualmente lento desenvolvimento da cultura. No caso do cristianismo, surpreendentemente, houve pouca atenção ao fato de que a cultura cristã - uma nova forma de cultura - sucedeu a judaica, a grega, a romana, a alemã, entre outras. Em essência, o que Alfredo percebeu ainda no século IX foi que essa nova cultura cristã deveria ser ensinada aos jovens, assim como os gregos tiveram de aprender sua cultura a fim de formar uma identidade e passá-la adiante. A lista de "clássicos cristãos" de Alfredo se inclinava para o viés histórico e para o que depois seria chamado de "teologia natural", e isso, por si só, era notável, pois era uma alternativa ao antigo e herdado currículo centrado em gramática e retórica.

Dawson sabia que esse programa de estudos foi uma proposta isolada de pouca influência. Na época de Alfredo, o futuro imediato ainda pertencia aos seminários e escolas monásticas e, a partir do século XII, às universidades. Embora os clérigos viessem de todas as classes sociais, essas instituições preservavam uma elite monástico-clerical instruída e a língua latina. No século XII, em particular, o interesse pelo pensamento platônico e cosmológico foi enorme, mas, com o reavivamento do estudo aristotélico, ocorrido na mesma época, os clássicos literários antigos e a cosmologia platônica ocuparam uma esfera menor nas escolas, em comparação com o estudo das obras filosóficas de Aristóteles. Em outros lugares, especialmente nas cortes reais e aristocráticas, proliferaram os estudos humanistas ou cortesãos e a literatura vernácula [2].

Na perspectiva de Dawson, essa cultura cortesã e vernácula foi da maior importância. Por meio dela, as tradições nativas europeias se transformaram em várias formas de cultura cristã. Dawson considerava únicos alguns aspectos importantes da tradição educacional do Ocidente. Embora também apresentasse certa tendência, sobretudo no período medieval e no começo da modernidade, a centrar-se em uma classe sacerdotal e na tradição sacra, ela nunca se limitou a isso. Ela constituía a vida não só de uma elite, mas de toda a comunidade. Isso talvez se relacione com o fato, ressaltado por muitos, de que no cerne da cultura cristã havia, desde o princípio, uma espécie de dualismo. Enquanto em muitas outras culturas a vida era integrada por inteiro a uma totalidade pública, com frequência pelas mãos de um rei, às vezes pelas mãos de sacerdotes, o Ocidente cristão sempre exibiu uma forma de dualismo em que o aspecto religioso (Igreja) e o aspecto político (Estado) eram distintos entre si.

A alta cultura europeia e a americana têm suas raízes sobretudo nas tradições educacionais do Renascimento italiano, um mundo menos de universidades do que de academias (associações privadas para discussão de temas científicos e literários), sociedades eruditas e, por fim, dos colégios jesuítas e do sistema inglês de ensino público. A expansão comercial medieval levou a Itália a ter mais e mais contato com o Mediterrâneo Oriental e com as riquezas da cultura helênica, e, na Idade Média tardia, ressurgiu algo similar à cultura cívica da Antiguidade. De um modo que não fora possível no mundo feudal, a educação liberal foi mais uma vez colocada a serviço do cultivo de cidadãos efetivos. Os estudos platônicos floresceram, e Dawson viu no Renascimento italiano a retomada dessa tendência medieval - especialmente do século XII -, que, em grande parte, fora deixada de lado pelo estudo de Aristóteles. As universidades se concentraram em discussões científicas e tinham relativamente pouco interesse em temas estéticos ou morais.

Agora, em cidades como Florença o humanismo renascentista reintroduzia temas negligenciados pelas universidades medievais e suas herdeiras (embora, no século XIV, a Universidade de Florença tivesse instituído uma cátedra de estudos sobre Dante, assumida a princípio por Boccaccio, demonstrando, assim, interesse pela "cultura cristã" contemporânea e atestando o fato de que não se deve traçar uma linha muito nítida entre os interesses das universidades na Idade Média tardia e as novas instituições educacionais do Renascimento). Criou-se o ideal do homem de ampla formação, do desenvolvimento harmonioso de tudo que é humano, corpo, alma e espírito. A vida devia ser enriquecida pela arte e pela literatura. O século XV, em particular, foi um período em que se escreveram numerosos tratados sobre educação. Dawson discordava dos estudiosos que apresentaram a Renascença italiana como "paga" ou "laicizante", e salientou a contínua influência do cristianismo; estudos mais recentes justificam seu ponto de vista.

Ele antecipou a tese de que a única coisa que manteve a Europa culturalmente unida à época da Reforma Protestante - permitindo que os europeus compartilhassem de uma cultura comum, a despeito da grave divisão religiosa foi a educação humanista compartilhada por católicos e protestantes. Particularmente bem-sucedida foi a adequação da educação clássica humanista aos ideais religiosos da Contrarreforma pelos jesuítas no seu Ratio Studiorum (1599), ou Programa de Estudos, modelo de educação nos colégios católicos até a época de Dawson e amplamente admirado pelos protestantes europeus. No século XVIII, a maioria dos europeus dava enorme valor ao estudo de ambas as tradições - Antiguidade clássica e cristianismo. Na América puritana, o currículo era mais estrito, religioso e voltado à prática, com menos estudo das literaturas clássicas e vernáculas do que na educação europeia.

Dawson via o impacto inicial da ciência e da tecnologia modernas na educação ocidental como mais significativo do que o impacto do protestantismo. Ou seja, o programa conjunto de estudos cristãos e clássicos concebido no mundo romano tardio, programa que, embora tivesse mudado de método e conteúdo com o passar do tempo, perdurou por mais de um milênio, sobrevivendo até mesmo à Reforma, foi seriamente afetado pelo desenvolvimento da ciência moderna. Muitas coisas sobrevieram ao mesmo tempo, do alargamento da percepção do mundo, decorrente da era de exploração e descoberta de novas terras, à estima crescente pelo artesanato e pelas artes mecânicas na cidade renascentista.

Todos estavam envolvidos na aplicação da ciência à vida, e um gênio universal como Leonardo da Vinci (1452-1519) era muito admirado. Pois, para um homem assim, sem instrução (no sentido de pouca educação formal), as verdadeiras escolas eram a natureza e a matemática. Sua ciência, mais panteísta e naturalista do que cristã, decorrente de estudos contemporâneos em biologia e anatomia como os feitos na Universidade de Pádua, era diferente da ciência da Idade Média. Nela, era franco o racionalismo, o ceticismo e o desprezo pelo cristianismo, e a insistência de que Fé e Razão nunca se tocam, identificada por outros de forma indiscriminada com o Renascimento como um todo, era comum nas faculdades de medicina. A partir daí, temos uma tradição majoritariamente cristã humanista, que ainda persiste, e um novo movimento científico, cético e racionalista. Contudo, mesmo na comunidade científica, os racionalistas eram minoria: muitos ainda se consideravam cristãos e, de fato, o trabalho dos famosos cientistas do século XVII deu continuidade à longa tradição de um ideal matemático da natureza que remontava aos pré-socráticos, passando pelas universidades medievais, como Oxford. Não obstante, os cientistas, com sua paixão por métodos exatos, passaram a desconfiar cada vez mais da especulação filosófica.

Francis Bacon (1561-1626), homem que dificilmente foi um filósofo ou cientista, tomou para si a tarefa de difundir as possibilidades da nova ciência. Ele pregou uma reorganização do estudo que facilitasse as possibilidades da nova ciência; sua mensagem dizia respeito à natureza instrumental da ciência. A ciência era um meio de obter poder sobre o mundo e transformar a vida. As gerações passadas vagaram em erro, Bacon afirmou, mas agora a ciência levaria a humanidade à terra prometida, uma era tecnológica de progresso contínuo. Cristão devoto que uniu a teologia fideísta à ciência empírica, Bacon traçou uma linha clara entre religião e ciência, antecipando seu divórcio posterior.

Dawson via o Iluminismo como uma junção do empirismo inglês, representado por Bacon, com o racionalismo francês de René Descartes (1596-1650). Embora a escolástica ainda vigorasse nas escolas e universidades, fora dali os ideais da nova ciência passaram a dominar, e ideias revolucionárias sobre educação eram apregoadas. Para muitos, a matemática substituiu a lógica escolástica, e a religião e a metafísica eram descartadas como absurdas. Na França, sobretudo, a ciência se tornou a nova religião. A educação devia ser usada para tornar os seres humanos razoáveis e esclarecidos, livres das superstições e da tirania dos padres. As universidades, junto com a Igreja e suas ordens de ensino, deviam ser destroçadas. Em muitos países, os jesuítas - por dois séculos os principais portadores da educação católica - foram suprimidos.

Quando sobreveio a Revolução Francesa, as universidades, bem como a maioria dos colégios e escolas secundárias, foram fechadas. Estava tudo pronto para uma completa reorganização educacional, agora sob os auspícios do Estado. Mas, embora abundassem propostas de reforma, pouco foi feito a princípio, e a educação quase entrou em colapso. Então, Napoleão Bonaparte (1769-1821) energicamente definiu uma reorganização completa da educação, em consonância com as linhas políticas e nacionais. Assim como a educação infantil outrora patrocinada pela Igreja visava produzir uma classe de cristãos humanisticamente instruídos, o ideal agora era uma educação a serviço do Estado, produzindo patriotas.

Ainda que Napoleão não se opusesse ao retorno de certas ordens religiosas à educação, especialmente no que dizia respeito à instrução das classes mais baixas, que ainda não eram o foco da reforma educacional, o Estado assumiu por completo a educação da elite, coisa que antes era da alçada da Igreja; em todo caso, agora toda a educação seria supervisionada pelo Estado. Os professores se tornaram funcionários públicos. Mesmo assim, no começo do século XIX Estado algum tinha capacidade para exercer o grau de controle implícito em tais reformas, e algumas instituições privadas sobreviveram.

A partir do fim do século XVII, protestantes e católicos ampliaram aos poucos a instrução catequética oferecida por suas escolas paroquiais para formas variadas de educação primária, e foi daí que vieram as escolas mais populares, auxiliadas, no lado católico, por uma onda de novas ordens religiosas de ensino. Na Alemanha, onde havia muito mais intelectuais egressos das classes mais pobres do que na França ou do que na Inglaterra, maior atenção foi dada à educação das classes baixas e à cultura vernácula, em que pese a preocupação de toda a Europa com a antiga educação humanista e com a nova educação científica. Assim como ocorreu com a educação francesa, a educação alemã se tornou cada vez mais nacionalista, com a diferença de que, mesmo em meados do século XIX, a Alemanha era um punhado de principados, não um estado-nação. Alguns poderiam colocar a educação a serviço do emergente Estado nacional alemão, mas outros a enxergavam em termos mais universais. O aprendizado, sustentou Wilhelm von Humboldt (1767-1835), deve servir não especificamente ao Estado ou a propósitos vocacionais, mas à busca do conhecimento e ao desenvolvimento da cultura. A Universidade de Berlim, fundada em 1810 e tida como das modernas universidades da Alemanha, da Europa Central e da Europa Oriental, visava ao cultivo da aprendizagem como um fim em si mesmo. Da Prússia originou-se a reforma da educação alemã em todos os níveis. Mas, na Alemanha, o que havia gerado revolta contra o sistema napoleônico culminou em algo similar ao que ocorreu na França: a educação era vista em todos os níveis como preparação para a cidadania. Essa vitória do nacionalismo, do controle estatal sobre a educação, tornou-se comum em toda a Europa e foi, em geral, apoiada por mestres e professores.

Dawson via a Grã-Bretanha e os Estados Unidos como exceções momentâneas a esse padrão de controle crescente da educação pelo Estado. Nesses países, um princípio espontâneo foi mais forte, e sobreviveu algo similar ao padrão medieval de independência corporativa das escolas. De Oxford veio a Idea of a University (1852 e 1858), de John Henry Newman, mas, a partir de 1870, a Grã-Bretanha se tornou mais e mais parecida com o resto do continente europeu, com um controle cada vez maior da educação pelo Estado. A tradição educacional americana deriva, em grande parte, da Grã-Bretanha, mas desenvolveu independência suficiente do modelo britânico e do europeu para que Dawson a considerasse uma nova força mundial. Como todo sistema educacional, ela é, em parte, um produto da cultura circundante. Dawson acreditava que, após o período colonial, a cultura americana se desenvolveu com maior rapidez sofreu mais mudanças, sobretudo geográficas e populacionais, do que qualquer outra cultura conhecida. Ele não escreveu sobre quatro períodos da história americana, mas sobre quatro Américas. Na primeira, do período colonial, não existia uma cultura americana comum, mas várias culturas regionais baseadas em diferentes religiões. Na puritana Nova Inglaterra, o interesse pela educação foi acentuado desde o princípio, mas, como em toda parte, destinava-se, em primeiro lugar, à educação clerical, ou seja, ainda era medieval. Na maior parte do Sul anglicano, a educação no século XVIII foi relativamente negligenciada, em parte por causa do desinteresse da Igreja da Inglaterra. O advento da Revolução Americana colocou os anglicanos em desvantagem ainda maior, sobretudo por causa das simpatias lealistas [3] da maior parte de seu clero. Os ideais educacionais dos Pais Fundadores, especialmente Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, provinham, em grande medida, do Iluminismo francês. A exemplo do que ocorreu na França, os planos de um sistema nacional de educação renderam, a princípio, poucos frutos, mas, no despertar da Revolução Americana, uma nova ideologia democrática gerou muito interesse pela educação popular.

O período entre a Revolução e a Guerra Civil compreende a segunda América de Dawson, para ele a época mais grandiosa da criatividade americana. As culturas coloniais se fundiram em uma unidade nacional ao mesmo tempo que ocorreu uma gigantesca expansão territorial. Os imigrantes que chegaram no fim do período colonial, sobretudo os irlandeses presbiterianos ou "escoto-irlandeses", estavam no centro de uma transformação sociológica interna que afetou a América como um todo e dificultou ainda mais a propagação tanto do anglicanismo quanto do congregacionalismo da Nova Inglaterra. As igrejas batista e metodista se espalharam pelo Sul e pelo Oeste. Elas representavam um novo tipo de protestantismo, caracterizado pelo revivalismo.

À diferença da Europa, a religião não estava sob controle estatal, de tal forma que os principais instrumentos de cultura e educação eram as denominações, e os colégios do Oeste permaneceram fundamentalmente religiosos. No Leste, sobretudo na Nova Inglaterra dos tempos de Horace Mann (1796-1859), os Estados se envolveram cada vez mais com a educação, em especial com a educação pública universal, e universidades de pesquisa, como as alemãs, passaram a ser imitadas. Em fins do século XIX, os laços estreitos entre Igreja e escola tendiam a ser substituídos por um sistema de supervisão estatal. Uma forma de secularização teve lugar, e a educação foi em grande medida posta a serviço da formação de valores morais democráticos e do patriotismo.

A terceira América de Dawson se estende da Guerra Civil até o fim da imigração irrestrita, em 1921. Os EUA pós-Guerra Civil eram mais ricos, fortes e populosos do que antes, e a colonização do Oeste prosseguiu. Essa foi a era de ouro do capitalismo americano e da expansão industrial. Por volta da década de 1920, a América era o país mais urbanizado do mundo. Contudo, não foi uma época de grandes conquistas intelectuais, mas sim educacionais. As igrejas foram substituídas pelas universidades como o centro da vida intelectual. Dawson - que não acreditava muito no "capitalismo democrático" - considera que o materialismo dessa época não prejudicou as instituições educacionais da maneira como prejudicou as igrejas. A nova riqueza afluiu para subvencionar o ensino superior. A maior parte dos americanos comprou a fé na ciência que havia deslumbrado a Europa no século XVIII, e a crença no progresso científico e na democracia passou a tomar o lugar da ortodoxia cristã. Isso é particularmente verdadeiro no que se refere ao mais influente teórico educacional americano, John Dewey (1859-1952), que centrou a educação na socialização para a democracia e foi um defensor da universalização do ensino superior.

A quarta era, contemporânea, viu a América concretizar, mais do que qualquer outro país no mundo, o ideal da educação superior para todos. Ainda que sistemas educacionais de elite possam resistir a se adaptar à sociedade ao redor, sistemas democráticos não podem, e, no contexto americano, a educação tornou-se inevitavelmente orientada para a tecnologia e o vocacionalismo. Dawson considerou que uma grande questão que pairava sobre essa quarta era cosmopolita e urbana era se a América poderia continuar se desenvolvendo nessa direção, com a vida urbana ainda mais separada da rural, e com a primeira consumindo de forma exorbitante os recursos naturais em uma vida "luxuosa para todos". Poderia uma terra em que a autonomia e a liberdade são as principais virtudes assumir o fardo da história e se ver, como todas as outras, implicada no Pecado Original?

Durante a maior parte da história americana, a liberdade educacional foi possível porque nenhuma instituição, secular ou eclesiástica, detinha o controle total, mas agora, pensou Dawson, a questão era se, no futuro, a uniformidade imposta pelo Estado poderia ser evitada. Em relação a isso, era crucial a existência de um amplo sistema educacional católico que não estava sob controle direto do Estado - embora, sem dúvida, esteja agora sob maior pressão externa do que na época de Dawson. Ele observou que a educação americana havia se tornado quase que totalmente secularizada, deixando pouco espaço para o estudo da religião, outrora a raison d'être [4] da universidade medieval. Nos EUA, a doutrina da separação entre Igreja e Estado foi estendida à educação, e a religião foi quase excluída da educação pública.

Os católicos americanos resistiram a isso e criaram um sistema alternativo. Dawson viu esse desenrolar como algo decisivo, a ponto de afirmar que o catolicismo nos Estados Unidos, embora fosse uma reação à predominância da forma protestante na cultura americana, havia paradoxalmente se tornado mais importante para o futuro mundial do que as culturas católicas da América do Sul. Isso resultou quase inteiramente da imigração católica, sobretudo irlandesa. Os irlandeses já haviam aprendido a sobreviver sob o governo protestante na Irlanda, e transferiram essa experiência para os Estados Unidos. Enquanto os protestantes da América estavam prontos a ceder demais para o governo, os católicos irlandeses desconfiavam dele. Em geral, por causa da pobreza, eles se sentiam mais próximos de seus padres, de fato, o catolicismo americano impressiona o visitante por ser mais democrático que em outros lugares, e Dawson atribuiu isso à relação estreita entre padres irlandeses e congregantes. Enquanto na Europa foram os camponeses que se mantiveram mais fiéis à Igreja, nos Estados Unidos foram os europeus desenraizados do campo, aprendendo com os irlandeses a se adaptar à vida urbana, seus membros mais leais. Embora prosperassem na América, eram pessoas ainda menosprezadas e mal representadas, e de realizações modestas em termos culturais. Mas elas trabalharam e se sacrificaram até que, por fim, tornaram-se a religião americana mais bem organizada, com o sistema educacional mais amplo e independente dos Estados Unidos.

Desde o começo, a maioria dos líderes católicos nos EUA defendeu alguma forma de aceitação dos ideais democráticos americanos. É provável que, por serem demasiadamente otimistas quanto às perspectivas que tais ideias ofereciam para o progresso da Igreja, os católicos do começo do século XX ainda não tinham conhecimentos históricos e teológicos suficientes para compreender a novidade que representavam. Contudo, uma das razões pelas quais Dawson nutria grandes esperanças para a educação católica americana era que, nos vinte anos anteriores à escrita deste livro, tanto a vida intelectual quanto a educação, ambas católicas, progrediram de forma significativa. Havia um sentimento crescente da necessidade de uma cultura católica.

Dawson não tinha ilusões quanto à qualidade da educação nos Estados Unidos, secular ou religiosa, em comparação com o melhor do ensino europeu, mas achava que as bases para o florescimento da cultura católica americana estavam fixadas. Os católicos locais ocupavam posição tal que poderiam absorver o melhor da cultura católica mundial. O mundo aberto para eles era mais rico do que o que fora aberto aos protestantes, e entrar nesse mundo, Dawson pensava, proporcionaria ao catolicismo um lugar cada vez maior na cultura americana. Nos Estados Unidos, por ser uma associação voluntária a Igreja estará sempre em desvantagem em relação ao Estado, mas há, até o momento, um modus vivendi [5] pelo qual - pois ainda persiste na América o ideal de Estado limitado - a educação católica tem sido capaz, dentro de seus limites, de formar seu próprio consenso paralelo à consensual religião secular da democracia, religião que a educação pública tem como finalidade.

Dawson achava impossível que uma minoria mantivesse uma prática religiosa rigorosa em uma cultura secular. Haveria constantes "vazamentos", e apenas a minoria de uma minoria vivenciaria e compreenderia de verdade a própria religião. Por conseguinte, não seria possível que os católicos vivessem por muito tempo em um gueto. Eles precisariam conviver com a cultura circundante, e seu esforço constante visaria encorajar o crescimento, na cultura secular ao redor das coisas que tornam viável o modo de vida católico, especialmente o ensino objetivo da história da cultura cristã nas escolas públicas. Dawson julgava que seria melhor que essa reintrodução da religião no estudo secular - na qual ele via benefícios práticos, como melhor entendimento da relação genética entre passado e presente - começasse no nível universitário.

Na segunda parte deste livro, ele apresenta argumentos para embasar a educação no estudo da cultura cristã, em vez de fundamentá-la, de um lado, na civilização ocidental, ou de outro na história mundial [6]. Dawson entendia que o estudo da cultura cristã deveria ter caráter essencialmente sociológico e histórico, e isso não equivaleria a uma lista de leitura de clássicos cristãos, ainda que eles devam ser lidos. O objetivo é compreender o processo pelo qual uma cultura e suas instituições são construídas. Na terceira parte, Dawson analisa a relação entre o homem ocidental e a tecnologia [7], [8]. Ele faz várias observações perspicazes aqui, como: ao passo que, na Europa, o advento do Iluminismo iniciou uma era de criticismo, em que tudo era questionado, na América ele iniciou uma era de fé - fé em um corpo de verdades comuns que fundamentam o modo de vida americano.

Muito antes de Alasdair MacIntyre dizer praticamente a mesma coisa, Dawson observou que, desde o começo, uma ideologia liberal foi a base da vida comunitária americana [9]. Mas, tendo atravessado duas guerras mundiais, Dawson achava que o liberalismo se provara incapaz de lidar com os problemas cruciais da época, e que, se houvesse algo capaz de fazê-lo, seria alguma forma de retomada da orientação direcionada à transcendência que encontramos nas civilizações religiosas históricas. Apenas a afirmação de uma ordem transcendente, espiritual e moral, pela qual coisas como a tecnologia pudessem ser julgadas, seria capaz de salvar o homem moderno de si mesmo. Na medida em que o estudo da cultura cristã deve servir a algum propósito prático, ei-lo aqui.

Algumas coisas sofreram mudanças significativas desde que Dawson escreveu este livro. A sujeição da democracia a uma ordem tecnológica, coisa que ele tanto temia, continuou a passos largos, e nenhuma forma de educação ou religião tem sido capaz de controlar substancialmente o desenvolvimento da tecnologia, ainda que possamos nos perguntar se o interesse crescente em ecologia e ambientalismo não assinala uma reação ao que os incentivadores do progresso prometeram. Mais uma vez, nos Estados Unidos parece ter ocorrido significativo realinhamento político por causa da questão do aborto. O partido democrata, outrora uma espécie de aliado natural da população de imigrantes católicos, tornou-se um oponente agressivo da Igreja em várias questões. Há quem se pergunte se isso não impedirá o avanço do catolicismo na cultura americana, conforme Dawson esperava. A controvérsia em torno das chamadas questões vitais demonstra quão distante está a concretização das expectativas de Dawson, para quem o contato crescente com a cultura católica poderia levar a cultura americana como um todo a compreender melhor os pontos de vista católicos. Mas há que imaginar qual será a importância dos novos imigrantes, sobretudo hispânicos.

Dawson estava simplesmente errado ao considerar a inabilidade dos pro- testantes em entender o catolicismo como "coisa do passado". Em linhas gerais, o protestantismo americano se converteu em um liberalismo centrado no indivíduo autônomo, e, hoje, a comunidade como um todo está ainda menos preparada para entender o catolicismo. A progressiva substituição do estudo da civilização ocidental pelo da civilização mundial nas escolas públicas tem deixado a maioria dos estudantes ainda menos familiarizada com o catolicismo como religião, ou com a cultura produzida pelo cristianismo, do que na época de Dawson. Ele insistia que a função de qualquer sistema educacional é criar um mundo comum de valores morais e intelectuais, uma memória comum que ajude determinada cultura a se manter. Dizer que, agora, essa tradição educacional comum quase desapareceu é dizer que a nossa cultura está ameaçada de dissolução. O que hoje é chamado de multiculturalismo, isto é, a ideia de que a sociedade pode ser construída sobre uma pluralidade de culturas sem que nenhuma delas seja dominante, para Dawson seria, presumivelmente, uma prescrição para a desintegração cultural, e a questão é se de algum modo ele estaria errado.

Dawson parece ter sido demasiado otimista em sua crença de que os católicos poderiam se adaptar ao modo de vida americano sem sacrificar as próprias tradições. Em grande parte, eles aparentemente não foram capazes disso. Dawson achava que, em toda parte, os católicos deviam pensar em si mesmos como cristãos que, por acaso, viviam neste ou naquele país, mas, nos Estados Unidos, é provável que os católicos, em sua maioria, pensem em si mesmos primeiro como americanos, e só depois como católicos.

Ao menos no que concerne ao presente livro, é muito significativo que o sistema de estudos clássicos, ainda existente na época em que Dawson foi educado, desapareceu quase que por completo, embora algumas escolas católicas procurem estudar a cultura crista tal como ele desejava [10]. Provavelmente é justo dizer que, no início do Concilio Vaticano II [11], houve acentuada tendência das instituições católicas que se julgavam progressistas de se afastar da doutrina da Igreja. Desde então, aqueles que não perderam seu catolicismo no processo têm, com frequência, reavaliado sua postura, desejando se tornar "mais católicos". Considerando que, de forma quase universal por uma série de razões práticas isso não significa, no contexto educacional, um retorno à situação pré-conciliar - na qual a filosofia orientava o currículo universitário católico -, deve, então, significar uma procura alhures por uma nova moldura arquitetônica de estudos. A ideia dawsoniana de cultura cristã poderia proporcionar essa moldura, e, de fato, várias escolas estão buscando a noção de cultura católica no sentido de Dawson, em vez de recorrer à filosofia ou à teologia como provedoras do princípio organizador de seus currículos. Essas pessoas encontrarão bastante material de reflexão na presente obra.


Notas:

[1] Sobre a ideia de forma cultural, leia meu "Why we Need Christopher Dawson", Communio: International Catholic Review 35, 2008, p. 115-44.

[2] Ou seja, a literatura produzida em outras línguas que não o latim, como o italiano, o inglês, o francês, etc. (N. T.)

[3] Lealistas foram colonos americanos que permaneceram fiéis à coroa britânica durante a Guerra Revolucionária Americana (1775-1783). (N. T.)

[4] Em francês no original: "razão de ser". (N. T.)

[5] Em latim no original: "modo" ou "maneira de viver". A expressão é muitas vezes utilizada juridicamente para referir-se a acordos firmados entre partes sobre questões controversas ou polêmicas. (N. T.)

[6] Em vários ensaios abordei os temas tratados por Dawson na segunda parte: "The Maturity of Christian Culture: Some Reflections on the Views of Christopher Dawson". In: The Dynamic Character of Christian Culture: Essays on Dawnsonian Themes. Ed. Peter J. Cataldo. New York, London, Lanham, 1984, p. 97-125. "Why and How to Study the Middle Ages." Logos: A Journal of Catholic Thought and Culture 3:3, 2000, p. 50-75. "The Changing Understanding of the Making of Europe from Christopher Dawson to Robert Bartlett." Quidditas 20, 1999, p. 159-70. "Humanism: The Struggle to Possess a Word." Logos 7, 2004, p. 97-116.

[7] Em The Turn to Transcendence: The Role of Religion in the Twenty-First Century, a ser publicado pela Catholic University of America Press, levo em conta a relação entre religião e tecnologia.

[8] O livro citado por Olsen na nota anterior foi lançado pela referida editora em 2010. (N. T.)

[9] Explorei esse ponto em "American Culture and Liberal Ideology in the Thought of Christopher Dawson". Communio 22, 1995, p. 702-20.

[10] Procurei tecer uma crítica das opções atuais em "Christopher Dawson and the Renewal of Catholic Education: The Proposal that Catholic Culture and History, not Philosophy, Should Order the Catholic Curriculum", Logos A Journal of Catholic Thought and Culture, 13 (3), junho de 2010, p. 14-35. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/236755790_Christopher_Dawson_and_ the_Renewal_of_Catholic_Education_The_Proposal_that_Catholic_Culture_and_History_not_Philosophy_Should_Order_the_Catholic_Curriculum>. Acessado em 5/10/2019.

[11] Realizado entre 1962 e 1965, foi convocado por João XXIII e encerrou-se já sob o papado de Paulo VI. Dentre as decisões conciliares, destacam-se as renovações na pastoral e na liturgia da Igreja, como a celebração da missa em língua vernácula, e o crescimento do ecumenismo. (N. T.)

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Leia mais em Dos sintomas às causas da Crise na Educação



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A Matemática na Europa Medieval

Iluminura do Livro de Jogos, obra do scriptorium de Afonso X.
A imagem mostra três copistas trabalhando.

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Tempo de leitura: 18 min.

Trecho retirado do livro Uma História da Matemática da Florian Cajori, publicado pela Editora Ciência Moderna, em 2007.

A Europa durante a Idade Média

Com o terceiro século depois de Cristo começou uma era de migração de nações na Europa. Os poderosos godos abandonaram os seus pântanos e florestas no norte e, em marcha constante em direção ao sul, desalojaram os vândalos, os suecos, e os borgonheses. Cruzando o território romano, pararam e recuaram somente quando alcançaram as praias do Mediterrâneo. Dos Montes Urais, hordas selvagens varreram as terras até o Danúbio, o Império Romano caiu em pedaços indicando a Idade das Trevas. Embora possa parecer tenebroso, foram eles os responsáveis pela criação das instituições e das nações da Europa Moderna. Assim como os gregos e os hindus foram os grandes pensadores da antiguidade, o mesmo também se aplica aos povos latinos, que foram o embrião de um forte e luxuriante acontecimento, ou seja, as modernas civilizações do norte dos Alpes e a da Itália passaram a ser os grandes líderes dos tempos modernos.

INTRODUÇÃO À MATEMÁTICA DOS ROMANOS

Consideraremos agora como as nações do norte, ainda bárbaras, gradualmente conseguiram se apossar dos tesouros intelectuais da antiguidade. Com a expansão do cristianismo, a língua latina foi introduzida não só eclesiástica, como também cientificamente em todas as importantes transações mundiais. Naturalmente a ciência da Idade Média foi largamente extraída das fontes latinas. Com isto, durante os primeiros tempos da Idade Média os autores romanos eram os únicos escritores lidos no Ocidente. Embora o grego não fosse totalmente desconhecido, mesmo assim, antes do século XIII nenhum trabalho grego foi lido ou traduzido para o latim. Por ser na verdade escassa a ciência de que se poderia extrair dos escritores romanos, tivemos de esperar vários séculos antes que qualquer progresso matemático fosse feito.

Depois da época de Boécio e Cassiodório [Cassiodoro], a atividade matemática Itália morreu completamente. O primeiro tênue sopro de ciência entre as tribos que vieram do norte foi uma enciclopédia intitulada Orígenes [Etimologias], escrita por Isidoro (morto em 636 como bispo de Sevilha). Este trabalho é baseado nas enciclopédias de Martiano Capella de Cartago e a de Cassiodório e parte dele é dirigido ao quadrivium, aritmética, música, geometria, e astronomia. O autor apresenta definições e explicações gramaticais de termos técnicos, e mais os modos de computação usados na época. Depois de Isidoro, seguiu um século de obscurantismo um pouco dissipado pela presença de Beda, o Venerável (672-735), o mais erudito homem do seu tempo. Era um nativo de Wearmouth, na Inglaterra, seus trabalhos contêm tratados sobre o Computus, ou cálculo da data da Páscoa e prática da contagem com os dedos. Parece que o simbolismo com os dedos foi então largamente usado para os cálculos. A correta determinação da data da Páscoa naqueles dias era um problema crucial para a Igreja. Tornou-se mandatório que pelo menos um monge em cada monastério soubesse calcular o dia dos festivais religiosos, bem como o calendário. Tais cálculos requerem algum conhecimento de aritmética. Portanto achamos que a arte do cálculo sempre teve um papel importante na educação dos monges.

O ano em que Beda morreu é também o ano em que Alcuíno (735- 804) nasceu. Alcuíno foi educado em York, e depois chamado à corte de Carlos Magno, que foi um grande patrono da educação, e ele próprio um homem culto. Nas grandes catedrais e monastérios criaram-se escolas nas quais eram ensinados os salmos, a escrita, o canto, o cálculo (computus) e a gramática. Por computus significa aqui, provavelmente, não meramente o cálculo da data da Páscoa, mas a arte do cálculo em geral. Exatamente o que era, não temos como saber. Não se sabe igualmente se Alcuíno estava familiarizado com os ápices de Boécio ou com o modo romano de calcular pelo ábaco. Ele pertence à extensa lista dos sábios que moldaram a teoria dos números na teologia. Assim, o número de seres criados por Deus, que criou também todas as coisas, é $6$, porque $6$ é um número perfeito (cuja soma dos seus divisores é $1 + 2 + 3 = 6$); $8$, por outro lado, é um número imperfeito $(1 + 2 + 4 < 8)$; portanto a segunda origem da humanidade vem do número 8, que é o número de almas dito ter estado na arca de Noé.

Há uma coleção de "Problemas para estimular a mente" (propositiones ad acuendos invenes), que é tão velha quanto 1000 d.C. ou talvez mais. O historiador Cantor é de opinião que foram escritos muito antes por Alcuino. O que se segue é um desses "Problemas": Um cão corre atrás de um coelho que tem uma vantagem de $50$ m, e avança por cada pulo $3$ metros, enquanto o coelho ao dar um pulo avança $2,5$ metros. Para calcular em quantos pulos o cão alcança o coelho, $50$ é dividido por $0,5$ [1]. Nessa coleção de problemas, as áreas de terras triangulares ou quadrangulares são calculadas pelas mesmas fórmulas aproximadas usadas pelos egípcios fornecidas por Boécio em sua geometria. Um antigo problema é o da "cistema" (dado o tempo em que cada uma de várias bicas podem encher uma cistema, calcular o tempo que todas juntas levariam para enchê-la), que fora previamente encontrado em Herão, na Antologia grega, e em trabalhos hindus. Muitos dos problemas indicam que a coleção foi compilada principalmente de fontes romanas. O problema que em razão de sua unicidade dá o mais positivo testemunho de sua origem romana é o da interpretação de um testamento, no caso dos dois herdeiros serem gêmeos. O problema é idêntico aos dos romanos, exceto no que diz respeito às proporções de divisão estabelecidas no testamento. Como exemplo de problemas recreativos, mencionamos o do lobo, da cabra e da couve que devem fazer a travessia de um rio em um bote que os transporte, além do seu piloto, apenas mais um dos três. Pergunta: Quais podem ir no barco em cada travessia de modo que a cabra não coma a couve e nem o lobo a cabra? As soluções dos "problemas para estimular a mente" requerem não mais conhecimento do que algumas poucas fórmulas usadas em agrimensura, a habilidade de resolver equações lineares e o domínio das quatro operações fundamentais com inteiros. Extrações de raízes em nenhuma parte eram exigidas; e frações dificilmente ocorriam.

O grande império de Carlos Magno foi ameaçado de ruir logo após a sua morte em virtude da guerra e confusão que assumiram o poder. As pesquisas científicas foram abandonadas, e não retomadas até o final do século X, quando sob o domínio saxônico na Alemanha e dos capetianos na França, surgiu mais uma época de paz e a espessa escuridão da ignorância começou a desaparecer, e o zelo com o qual o estudo de matemática foi tomado deve-se principalmente a energia e influência de um homem Gerbert, nascido em Auvergne (França). Depois de receber uma educação monástica engajou-se no estudo, principalmente de matemática na Espanha. De volta ensinou em Reims por dez anos, tornando-se notável por sua grande cultura e elevado a mais alta posição. Pelo rei Oto I e seus sucessores, foi eleito bispo do Reino, depois de Ravena, sendo por fim, eleito papa sob o nome de Silvestre II, pelo último imperador Oto III. Considerado como o maior matemático da Europa do século X. sua matemática foi considerada maravilhosa pelos seus contemporâneos. Morreu em 1003 depois de uma vida atribulada, envolvendo-se em muitas disputas políticas e religiosas, acusado de conluios criminosos com os espíritos do diabo.

Gerbert aumentou seus conhecimentos com a leitura de livros raros. Assim, em Múntua, encontrou a geometria de Boécio, e embora isto fosse de menor valor científico, possuía, contudo, uma grande importância histórica. Foi, na época, o livro principal no qual os sábios europeus podiam aprender os elementos de geometria. Gerbert estudou-o com afinco, e é aceito, em geral, que ele próprio tenha sido o autor de uma geometria. H. Weissenbonn, um historiador, nega essa teoria, e garante que o livro em questão consiste em três partes que não podem ter vindo de um mesmo e único autor. Estudos mais recentes admitem Gerbert como o autor e adiantam que ele o tenha compilado de diferentes fontes. A sua geometria contém pouco mais do que a de Boécio, mas o fato de erros ocasionais nesta última e corrigidas na de Gerbert demonstra que o autor dominara o assunto. "O primeiro texto matemático da Idade Média que merece este nome", diz Hankel, "é uma carta de Gerbert a Adalbold, bispo de Utrecht", na qual é explicada a razão porque a área de um triângulo, obtida "geometricamente" tomando-se produto da base pela metade da altura difere da área calculada "aritmeticamente", pela fórmula $\dfrac{1}{2} a (a + 1)$, usada pelos agrimensores onde $a$ representa o lado de um triângulo equilátero. A carta fornece corretamente a explanação que na última fórmula todos os pequenos quadrados, nos quais é suposto o triângulo ser dividido, são contados inteiramente, embora parte deles saia fora dos limites da figura. D. E. Smith chama a atenção para um grande jogo numérico medieval; chamado Aritmancia: suposto por alguns ser de origem grega, foi praticado até tardiamente como no século XVI. Esse jogo exige considerável habilidade aritmética, tendo sido conhecido por Gerbert, Oronce Fine, Thomas Bradwardine e outros. Um tabuleiro semelhante ao de xadrez era usado. Relações como $81=72+ \dfrac{1}{8}$ de $72$, $42 = 36 + \dfrac{1}{6}$ de $36$ eram envolvidas no jogo.

Gerbert fez um cuidadoso estudo dos trabalhos de Boécio, e ele próprio publicou o primeiro, talvez ambos, dos dois trabalhos seguintes, Um Pequeno Livro sobre Divisão de Números: e o Regras de Cálculo Para o Ábaco. Estes livros dão idéia dos métodos de cálculos praticados na Europa antes da introdução dos numerais hindus. Gerbert usou o ábaco que provavelmente não era conhecido por Alcuíno. Bernelino, um aluno de Gerbert, descreve o ábaco como consistindo em uma prancha lisa sobre a qual os geômetras estavam acostumados a espalhar areia azul para desenhar os seus diagramas. Para os propósitos aritméticos, a prancha era dividida em $30$ colunas, das quais três eram reservadas para frações enquanto as $27$ restantes, divididas em grupos com três colunas em cada. Em cada grupo, as colunas são marcadas respectivamente pelas letras C (cento), D (dez), e S (unidades) ou M (monas). Bernelino apresenta os nove numerais usados que são os ápices de Boécio, e relembra que as letras gregas podem ser empregadas nos lugar daqueles. Com a utilização das colunas, qualquer número pode ser escrito sem o zero, e todas as operações da aritmética podem ser executadas sem as colunas do mesmo modo que fazemos hoje, empregando o zero. Na verdade, os modos de adicionar, subtrair, e multiplicar em voga entre os abacistas concordam substancialmente com os de hoje. Mas para a divisão existe uma grande diferença. As primitivas regras para a divisão parecem ter sido elaboradas para satisfazerem as três seguintes condições: (1) O uso de tabelas para a multiplicação seriam restritas, pelo menos, à prática de nunca se pedir a multiplicação mental de um número de dois dígitos por outro de um dígito. (2) As substrações deveriam ser evitadas tanto quanto possível e substituídas por adição. (3) A operação deveria ser feita de modo puramente mecânico, não sujeita a tentativas. Que tais condições fossem pedidas pode nos parecer estranho; mas deve ser lembrado que os monges da Idade Média não freqüentavam a escola na infância e aprendiam a tabuada enquanto a memória estava fresca. As regras para a divisão de Gerbert são as mais antigas ainda existentes. Elas são tão lacônicas que se tornam obscuras para o não iniciado. Foram provavelmente criadas simplesmente para ajudar a memória na chamada das sucessivas etapas do trabalho. Nos manuscritos posteriores foram instituídas com mais detalhes. Na divisão de um número qualquer por outro de um algarismo digamos $668$ por $6$, o divisor era primeiro aumentado para $10$ com o acréscimo de $4$. O processo era apresentado com uma figura ao lado. Na continuação do processo, devemos imaginar os dígitos que deveriam ser cortados, apagados e substituídos pelo que estava abaixo. Seria como segue: $600\div 10 = 60$, mas para corrigir o erro, $4 \times 60$, ou $240$, deveria ser adicionado; $200 \div 10 = 20$, mas $4 \times 20$, ou $80$, adicionado. Agora, escreve-se para $60 + 40+ 80$, cuja soma é $180$, e continuava-se assim: $100 \div 10 = 10$; a correção necessária é $4 \times 10$, ou $40$, que somada a $80$, dá $120$. Novamente $100 \div 10 = 10$, e a correção $4 \times 10$, junto com $20$, resulta $60$. Procedendo como antes, $60 \div 10 = 6$; a correção é $4\times 6 = 24$. Agora $20 \div 10 = 2$, a correção passa a ser $4\times 2 = 8$. Na coluna das unidades temos aqui $8 + 4 + 8$, ou $20$. Como antes $20 \div 10 = 2$; a correção é $2 \times 4 = 8$, que não divisível por $10$, mas somente por $6$, fornecendo o quociente $1$ e o resto $2$. Todos os quocientes parciais tomados juntos fornecem $60 +20 + 10 + 10 + 6 + 2 + 2 + 1 = 111$, e o resto $2$.

Semelhante, mas mais complicado, é o processo quando o divisor é formado por dois ou mais algarismos. Quando o divisor for $27$, por exemplo, então o múltiplo mais próximo de $10$, ou $30$, deve ser tomado como divisor, mas as correções para $3$ são impostas. Aquele que tivesse paciência para levar uma tal divisão até o fim, entenderia por que se tem dito de Gerbert que "Regulas dedit, quae a sudantibus abacistis vix intelliguntur" [2]. Perceberá também por que o método de divisão árabe, quando foi introduzido, era chamado de divisio aurea, mas para o ábaco, de divisio ferrea.

Em seu livro sobre o ábaco, Bernelino separou um capítulo para frações. Estas eram, naturalmente, as duodecimais, primeiramente usadas pelos romanos. Sem uma notação adequada, o cálculo com elas era muito difícil. Mesmo para nós que estamos acostumados a lidar com frações, pela aplicação de nomes, tais como uncia para $\dfrac{1}{12}$ quincunx para $\dfrac{5}{12}$ e dodrans para $\dfrac{9}{12}$.

No século X, Gerbert foi a figura central dos sábios. No seu tempo, o Ocidente entrou na posse segura de todo o conhecimento matemático dos romanos, e durante o século XI esse saber foi estudado assiduamente. Apesar dos numerosos trabalhos que foram escritos sobre aritmética e geometria, o conhecimento matemático era ainda muito insignificante, na verdade escassos tesouros matemáticos obtidos das fontes romanas.


Notas:

[1] Está subentendido que o cão e o coelho, na corrida, executam os saltos concomitantemente. (N. T.)

[2] Estabeleceu regras que são compreendidas apenas por esforçados abacistas. (N. T.)

***

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