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O Currículo da Matemática Medieval

Detalhe da Aritmética e da Geometria em
As sete virtudes e as sete artes liberais,
Francesco Stefano Pesellino, 1450


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Tempo de leitura: 52 minutos

Apresentamos os capítulos 7 e 8 do livro As sete artes liberais: um estudo sobre a cultura medieval, Paul Abelson. Editora Kírion, 2019.

CAPÍTULO VII

Aritmética

A

CARÁTER GERAL DO QUADRIVIUM

Se é inquestionável que o trivium — gramática, retórica e lógica — ocupava a maior parte do tempo dedicado ao estudo das sete artes liberais, a tradicional opinião de que “a verdadeira educação secular da idade das trevas foi o trivium”, sendo as disciplinas do quadrivium, ou matemáticas, raramente estudadas, está longe de ser historicamente correta [1]. Tal aԂrmação não se poderia fazer nem mesmo com respeito à era das universidades, quando a lógica e a filosofia foram sabidamente os estudos essenciais. O equívoco, entretanto, é bastante compreensível; as reais dimensões do conhecimento matemático anterior ao século XII eram tão reduzidas, que até pouco tempo atrás foram praticamente desconsideradas. Historiadores das ciências matemáticas consideraram esse período “estéril”. Chegou-se a afirmar que a mente medieval sequer tivesse aptidão para o estudo da matemática [2].

Mas a ausência de trabalho criativo durante uma boa parte da nossa época não implica necessariamente a falta de instrução na disciplina. Muito pelo contrário, no caso.

Tomando a questão de todos os pontos de vista, parece que evidências permitem uma única conclusão: as disciplinas do quadrivium foram amplamente estudadas no curso de toda a Idade Média. Em primeiro lugar, as experiências pessoais que ilustram o estudo das sete artes liberais incluem, invariavelmente, tanto as disciplinas do trivium como as do quadrivium [3]. O exame dos fatos relativos à posição da Igreja revela que sínodo após sínodo, desde os dias de Carlos Magno, fizeram do cômputo eclesiástico e da música obrigações para o clero. É certo que na Inglaterra, para citar um único exemplo, entre o século VIII e a conquista normanda, não se ordenou um só sacerdote incapaz de calcular a data da Páscoa e depois explicá-lo ao modo de Beda, o Venerável [4]. É ponto pacífico que a Igreja tivesse interesse em ao menos três disciplinas do quadrivium: aritmética, astronomia e música. Daí que não devamos esperar hostilidades à instrução do quadrivium nas escolas medievais.

Ademais, examinando o estado geral das escolas européias entre o período carolíngio e o renascimento intelectual do século XIII, facilmente identificamos um interesse contínuo pela matemática em todas as escolas monásticas e catedrais. Isso vale para as escolas de Fulda, Heresfeld, Reichenau, São Galo, Augsburg, Mainz, Hildesheim, Espira, Colônia, Stavelot, Münster, Verdun, Corvey, Ratisbona, Saint-Emmeran, Passau, Ranshofen, Klosterburg, Reichersburg, Wessobrunn, Metten, Benediktbeuern, Polling, Niederaltaich, Kremsmünster, Saint-Florian, Admont e muitos outros centros educacionais do Sacro Império Romano-Germânico. Interesse ainda maior nota-se em diversas instituições na França e nos Países Baixos, tais como as de Reims, Liège, Lobach, entre outras [5]. Constatamos também que os grandes professores do período foram quase todos conhecidos por aulas de matemática e suas contribuições a essa ciência. A título de ilustração, podemos citar os nomes de Rábano Mauro, Érico e Remígio de Auxerre, os três Notkers, Radberto, Ermenrico, Heilpric, Tatto, Hermano Contracto, Guilherme de Hirsau, Heraldo de Landsberg, Odão de Cluny, Gerberto (mais tarde Papa Silvestre II), Enguelberto de Liège, Bispo Gilberto de Lisieux, Odão de Tournai, Abbo de Fleury, Hucbald, Otlo, Conrado de Nuremberg (irmão do famoso Anselmo), Sigfrido e Reginbald. Estudos demonstram que todos eles tinham aptidão matemática, lecionavam matemática e, na maioria dos casos, produziram obras de mérito nas áreas do quadrivium [6]. A falta de valor cientíԂco na maior parte desses tratados explica o desinteresse em publicar a grande quantidade de manuscritos que se encontram pelas bibliotecas da Europa [7]. Mesmo incompleta, porém, a relação dos livros-texto do quadrivium sugere a contento que essas disciplinas foram bastante estudadas.

Muito se fala, de modo geral, sobre o fato de o conhecimento matemático ter sido próximo do insignificante até o século XII [8]. Apesar disso, o exame mais ligeiro dos livros-texto realmente utilizados nessa época derrubaria a afirmação de que somente as mais elementares proposições da geometria, o método para o calcular a Páscoa e o uso do ábaco fossem o objeto da atenção dos matemáticos. É preciso precaver-se contra aquilatar as realizações da Idade Média desde o ponto de vista do nosso tempo, em que os lugares-comuns da matemática são projeções, cálculo infinitesimal e teorias da composição.

Nos capítulos seguintes, dedicados às disciplinas do quadrivium, tentaremos defender as seguintes teses:

1. Consideradas as dimensões do conhecimento matemático à disposição na Europa no período em questão, as proporções do conhecimento transmitido ao estudante do quadrivium eram relativamente grandes. Isso não quer dizer que os professores medievais soubessem muito de matemática, mas sim que as escolas cumpriam a sua missão, transmitindo às futuras gerações todo o conhecimento matemático que possuíam, e que o aluno era obrigado a apropriar-se desse conhecimento antes de passar ao estudo avançado da filosofia.

2. O padrão da educação matemática nas grandes escolas na Idade Média era muito alto. Embora não haja evidências de trabalho criativo nos primeiros séculos, os últimos indicam progresso na assimilação de novos materiais [9].

3. A quantidade e o caráter da instrução matemática na Idade Média andaram pari passu com o avanço do conhecimento matemático nas várias disciplinas.

4. Mesmo depois do século XIII, quando, já na universidade, o quadrivium fundiu-se ao programa geral da filosofia, os estudos matemáticos passavam longe do descaso. Mesmo sob o domínio dos escolásticos, a quantidade de instrução matemática acompanhou o passo do gradual avanço das ciências [10].

B

A EXTENSÃO DO CONHECIMENTO

O conhecimento aritmético da Idade Média pode ser classificado em três períodos. No primeiro, que termina com o século X, a Europa sabia pouquíssimo do tipo de aritmética tão cultivado pelos gregos na dita era alexandrina. Sabia-se, basicamente, o que consta nos manuais do neopitagórico Nicômaco, composto no final do século [11]. Nesse período, o estudo da aritmética limitava-se ao cômputo eclesiástico, no âmbito da prática, e às propriedades numéricas, no âmbito teórico. O ábaco romano era o rude instrumento das operações numéricas, e utilizavam-se os algarismos romanos [12].

No segundo período, entre o final do século X e o final do século XII, nota-se um avanço considerável. O emprego do ábaco modificado por Gerberto difundiu-se; a divisão complementar e o cálculo por colunas, métodos que em muito superavam a dactilonomia da era anterior, eram comuns [13]. Progresso ainda maior há no terceiro período, também chamado de época algorística, durante os anos finais da Idade Média. Os algarismos arábicos e o zero entraram em uso quando boa parte da antiga matemática grega foi recobrada por meio de traduções do árabe [14]. Ainda que cada período tenha o seu método próprio, sua porção de conhecimento e a sua amplitude em termos de instrução matemática, não é de supor que se possam traçar quaisquer linhas definitivas entre eles. Veremos a seguir que essas linhas sobrepõem-se umas às outras e que as obras didáticas características de uma época anterior continuaram a ser usadas em certa medida [15].

PRIMEIRO PERÍODO

CARÁTER GERAL

A aritmética, nesta fase, é essencialmente a arte do cálculo. Dedica-se quase que exclusivamente ao cômputo da Páscoa — tanto assim que as palavras “computus” e “arithmetica” tornaram-se sinônimos —, mas não se pode sustentar que lhe escapasse por completo o tratamento das propriedades e das relações numéricas. Com efeito, os elementos místicos e simbólicos são muito presentes na aritmética teórica; e isso graças a Nicômaco, cujo livro foi a fonte de Boécio e dos cristãos — Isidoro de Sevilha, Alcuíno, Rábano Mauro, entre outros — ter-se enveredado por esse tipo de especulação. O método era rude; raramente empregava-se o ábaco, e a pesada notação romana tornava quase impossível o cálculo com números grandes. Na verdade, não há registro autêntico de operações realizadas para além dos três dígitos [16]. As frações romanas, sempre que empregadas, necessitavam do auxílio de tábuas especiais, baseadas no “sistema do meio”. Se os livros-texto de uso corrente provam alguma coisa, o conjunto de conhecimentos matemáticos possuído pela Europa Ocidental durante esse período era mesmo pequeno — ao ponto de dar às redescobertas e traduções posteriores, nomeadamente da escola alexandrina de matemática, a aparência de um acréscimo inteiramente novo [17].

OBRAS DIDÁTICAS

Por estranho que pareça, os livros-texto do período não tratam de métodos de operação. Os poucos casos em que isso acontece, e incidentalmente, sugerem intenso trabalho mental e de dactilonômico [18]. Os textos seguintes figuram entre os mais usados:

1. O capítulo sobre aritmética em De nuptiis Philologiae et Mercurii, de Marciano Capela, é nada mais que um resumo sumaríssimo da aritmética de Nicômaco. Além da introdução alegórica, o texto traz material sobre as propriedades e o significado místico dos números em consonância às noções pitagóricas. O texto deve a sua popularidade ao fato de constar como capítulo num bom livro-texto sobre sete artes liberais [19].

2. De intitutione arithmetica libri duo, de Boécio, foi a fonte de conhecimento aritmético da Idade Média por cerca de dois séculos, mesmo após a introdução do sistema hindu de notação e cálculo. Resumida, comentada e editada inúmeras vezes, chegou a passar pelo prelo até o século XVI [20]. Quais são, afinal, os conteúdos dessa obra notável?

O exame das suas 80 colunas e 100 diagramas surpreende pela ausência de uma única regra de operação; tudo o que se vê é uma interminável classificação das propriedades numéricas — triangulares, perfeitos, excessivos, defectivos etc. Verifica-se uma variedade de números pares e ímpares, bem como o tratamento de proporções e progressões. O conteúdo da obra parece indicar que o texto de Boécio não se destinava ao uso dos alunos, mas à orientação do professor. Ademais, constitui-se numa introdução adequada à interpretação mística dos números bíblicos, da qual não raro deduziam-se lições de moral [21].

3. O breve De arithmetica de Cassiodoro é, na melhor das hipóteses, um condensado da obra de Boécio. Nada de novo é apresentado. Quatro diagramas classificam as propriedades numéricas, e cada tipo tem a sua definição e ilustração. A obra nada informa a respeito de métodos práticos [22].

O breve capítulo de Isidoro de Sevilha segue as mesmas linhas que o de Cassiodoro. Trata-se de uma classificação quádrupla dos números, baseada nas suas propriedades e relações. O autor inclui alguns absurdos a respeito da nomenclatura latina e certos arroubos sobre a importância dos números [23]. Também nesta obra, buscamos em vão por uma única sentença acerca dos métodos e das regras das operações.

5. De temporum ratione, do Venerável Beda, é o primeiro texto do período a tocar o aspecto prático do cálculo — a obra trata do cômputo eclesiástico. Não surpreende, portanto, que ele tenha servido de modelo para os séculos seguintes [24].

6. O Liber de ratione computi, do mesmo autor, é de caráter similar, porém de forma mais condensada [25].

7. Também De cursu et saltu lunae ac bissexto, de Alcuíno, é uma obra sobre o cômputo eclesiástico. O seu conteúdo, no entanto, é mais astronômico do que aritmético [26].

8. O Liber de computo, de Rábano Mauro, é talvez o mais completo e mais característico livro-texto do período em questão. Os 96 capítulos abordam em detalhe, mas concisamente, todo o conhecimento necessário no tocante ao cômputo da Páscoa. É claro que se apresenta a classificação multiforme das propriedades e relações numéricas, mas isso em menos que uma coluna. O restante da obra é dedicado ao sistema grego de notação, às divisões do tempo, aos calendários grego e romano, aos nomes dos planetas, a fatos sobre a Lua, a solstícios, equinócios, epactae e outros fenômenos astronômicos envolvidos no estudo do cômputo. Os ciclos lunares e o método de cálculo da Páscoa são explicados conforme o plano de Beda. Como é de esperar, a seção mais importante da obra inteira dedica-se ao cômputo eclesiástico [27]. É significativo que haja, logo na introdução, um capítulo sobre dactilonomia e os símbolos romanos. Mais significativa, porém, é a omissão das regras para as quatro operações. Assim, parece que o cálculo se fizesse principalmente de cabeça, talvez com a ajuda de um sistema elaborado de dactilonomia, e que as quatro operações elementares, com números inteiros, fossem pré-requisito para o estudo do cômputo. Sob todos os aspectos, pode-se tomar a obra de Rábano Mauro como representativa do conhecimento e do ensino aritmético do período. A grande influência do “praeceptor Germaniae” sugere por si só o amplo uso da sua obra, e numerosos livros-texto sobre o cômputo, anônimos ou não, basearam-se no seu tratado [28].

Além desses livros-texto, em que se revelam as características atribuídas ao período, há ainda, da mesma época, outras obras excepcionais sobre a aritmética. A sua existência e o seu emprego, todavia, de modo algum debilitam as nossas conclusões sobre o caráter geral da instrução aritmética nessa fase inicial da Idade Média [29].

Sobre os métodos de divisão e as frações, são de particular interesse os seguintes e breves escritos, erroneamente atribuídos a Beda:

  • De numerorum divisione libellus.
  • De loquela per gestum digitorum et temporum ratione libellus.
  • De unciarum ratione [30].

A origem desses tratados não pode ser rastreada para além do século X [31]. Supõe-se, por conseguinte, que eles indiquem um lento progresso do conhecimento aritmético. De todo modo, esse mesmo material serviria de base para as realizações de Gerberto.

SEGUNDO PERÍODO

CARÁTER GERAL

O ponto de partida para rastrear o progresso do estudo aritmético nesse período pode ser encontrado nas marcantes realizações matemáticas de Gerberto. O valor exato das suas contribuições à aritmética ainda é uma questão em aberto. Alguns lhe atribuem a introdução do cálculo por colunas na Europa Ocidental [32]; outros lhe atribuem, também, a introdução do sistema arábico de notação [33]. Por outro lado, Cantor, o Nestor dos historiadores da matemática, sustenta que Gerberto não tivesse familiaridade alguma com o sistema arábico [34].

Todos, porém, concordam nos seguintes pontos: (1) Gerberto e seus discípulos, nomeadamente Bernelinus, incrementaram o ábaco e estenderam a sua utilização com a introdução de apices diferenciados no topo de coluna; (2) Gerberto e seus discípulos não se utilizaram do zero; (3) encontramos no livro de Gerberto a primeira obra sobre o método de cálculo com o ábaco; (4) Gerberto, que foi o primeiro a empregar o método da divisão complementar, tornou possível a realização das quatro operações no ábaco. Para os fins da nossa investigação, ainda outro fato sobre Gerberto é pertinente: ele ensinou as disciplinas do quadrivium com notável sucesso na escola de Reims entre 972 e 982, e um registro completo dos seus métodos ainda existe [35].

As duas obras de Gerberto, Regulae de abaci numerorum rationibus e o fragmentário De numerorum abaci rationibus, podem ser tomadas como representativas do que fosse um livro-texto de aritmética entre o século X e o início do século XIII. O exame desses tratados [36] revela que os processos empregados em adição, subtração e multiplicação são muito parecidos com os métodos modernos, enquanto o processo de divisão — tema da segunda obra, que é a menor — difere por completo. Comparados ao sistema arábico, os métodos de divisão de Gerberto foram considerados, não impropriamente, “quase tão complicados quanto o engenho humano seria capaz de fazê-los”. Confirma essa opinião o nome “divisio ferrea”, que passou a acompanhar os métodos de Gerberto após a introdução do sistema hindu, chamado, por sua vez, de “divisio aurea” [37].

Nos dias de Gerberto, de um modo geral, quem escrevia sobre a aritmética era conhecido por “abacista”. A introdução dos métodos hindus, por inԅuência dos árabes, veio a restringir esse termo àqueles apegados aos métodos antigos, a saber: (1) a utilização do ábaco; (2) a notação romana; (3) as frações duodecimais; (4) a ausência do zero; (5) a incapacidade de extrair-se a raiz quadrada [38]. Os melhores métodos dos algoristas, como os autores do período seguinte eram chamados, não necessariamente suplantaram a obra dos abacistas. Houve, de fato, uma competição entre a escola abacista — por vezes chamada, erroneamente, escola boeciana — e a nova escola, dita arábica.

A intrínseca superioridade do novo sistema não causou de imediato o desaparecimento dos livros-texto baseados no antigo. Assim como as obras aritméticas de Boécio foram impressas até o século XVI, também edições dos antigos abacistas continuaram em uso muito para além do triunfo dos alegoristas [39].

LIVROS-TEXTO

Passando aos livros-texto do período, encontramos, com efeito, diversas impressões. Contudo, apenas os mais típicos, aqueles mais celebrados no seu tempo, pedem aqui ser mencionados.

1. Hermano Contracto, monge e professor em Reichenau na primeira metade do século XI, é o autor de um Liber de abaco. O tratado é mais breve do que as obras de Gerberto e confessadamente baseado nelas mesmas [40].

2. Rodolfo de Laon compôs tratado similar no século XII [41].

3. João de Garlandia, autor de um tratado sobre o cômputo, compôs também um livro-texto sobre o ábaco. É significativo que o mesmo autor tenha preparado as duas obras; isso mostra que o escopo da aritmética houvera-se ampliado, causando a separação total entre o cômputo eclesiástico e a aritmética propriamente dita [42].

TERCEIRO PERÍODO

CARÁTER GERAL DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO

O exame do terceiro período, o algorístico, traz-nos até o meio da era das universidades. Embora o quadrivium estivesse fundido no programa geral oferecido sob o auspício das faculdades, a aritmética, tanto teórico como prática, foi mais estudada nesse do que no período anterior. Isso, claro, graças aos avanços do conhecimento na matéria.

As características da aritmética algorística eram: (1) o uso do sistema hindu-arábico de notação; (2) o sistema de valor local; (3) o uso do zero; (4) a dispensa total do ábaco; (5) o uso combinado de símbolos e números — na verdade, uma combinação de álgebra e aritmética, na acepções atuais dos termos —; (6) a introdução, na Europa Ocidental, de vastíssimo material aritmético do Oriente, proporcionada por traduções latinas de fontes árabes. A tendência geral foi abordar a aritmética pelos lados prático e cientíԂco, mas nem por isso os aspectos místicos da disciplina, tão populares em outros períodos, foram negligenciados de algum modo. O tratamento fantástico das propriedades numéricas continuou bastante comum [43].

Desse modo, o começo do século XIII é marcado pela introdução do sistema arábico de notação e pela sua adoção, no lugar da notação romana e do ábaco. Essa revolução fundamental deu-se gradualmente. A transição entre o período do ábaco e era do algarismo remonta às traduções da aritmética hindu-arábica feitas pelos seguintes e prestigiados matemáticos do século XII:

  • Adelardo de Bath, que escreveu Regulae abaci às voltas de 1130. A ele também se atribui o manuscrito de Cambridge intitulado Algorithm de numero indorum [44].
  • Abraham Ibn Ezra, cujo tratado sobre a aritmética data de inícios do século XII [45].
  • João de Sevilha, que compôs o seu Algorismus às voltas de 1140 [46].
  • Geraldo de Cremona, que preparou um Algorismus na segunda metade do século XII [47].
  • O anônimo que, às voltas de 1200, compôs um breve tratado sobre os algarismos no sul da Alemanha [48].

Essas obras de transição, conquanto escritas anteriormente à ascensão das universidades, durante o declínio das escolas monásticas e catedrais, se estabelecem a seqüência histórica neste estudo particular, não se podem tomar como livros-texto característicos do período. Não precisamos, portanto, demorarmo-nos sobre eles, que serviram tão-somente a um propósito admirável: apresentar o sistema hindu-arábico aos matemáticos da Europa, pavimentando o caminho para trabalhos posteriores.

É verdade, entretanto, que os primeiros anos do século XIII foram realmente decisivos na história dos estudos aritméticos e matemáticos. Isso porque inauguraram um fluxo constante, e que perpassou todo o restante do século, de traduções e adaptações de livros árabes e gregos [49]. No campo da aritmética, a introdução desse novo conhecimento produziu dois efeitos diversos: (1) sua utilização e extensão na aplicação ao comércio; e (2) a adoção do sistema arábico de notação nos estudos acadêmicos da matemática. O primeiro resultou num extraordinário desenvolvimento dos aspectos práticos da aritmética e de partes da álgebra nos centros comerciais de Itália, Inglaterra e Alemanha durantes os três séculos posteriores [50]. O principal representante dessa tendência foi Leonardo de Pisa, que era filho de um mercador. O seu volumoso Liber abaci, composto em 1202, apresentou ao mundo uma quantidade de conhecimento prático e teórico que ainda hoje pode ser considerada admirável [51]. Não obstante, a influência desse livro sobre as universidades não foi perceptível nem mesmo na Itália, seu país [52]. Nesse contexto, podemos nomear outro notável: o dominicano Jordano de Nemi, cujos esforços para tornar acessível a ciência aritmética às tradicionais escolas medievais comparam-se aos de Leonardo para popularizar a descoberta entre os mercadores europeus [53]. Dele interessam-nos Algorithmus demonstratus, breve tratado sobre o cálculo [54]; Arithmetica demonstrata, sobre a teoria dos números [55]; e De numeris datis, sobre a álgebra [56]. O seu caráter abstrativo, científico, assenta no emprego de símbolos gerais. Excluindo-se de partida todos as aplicações comerciais, temos, nesses tratados, o material perfeitamente adequado para o estudo acadêmico da disciplina [57].

ESCOPO

A pergunta sugere-se a si mesma: quanto desse material era de fato empregado no ensino da aritmética? O exame dos registros da instrução nas universidades deve dar-nos a resposta.

Passando a esses registros, deparamos as seguintes condições: em Paris, dava-se pouca atenção à matemática. Os pré-requisitos para o mestrado, em 1366, ditam vagamente “que o estudante compareça a seminários sobre alguma obra matemática” [58] De todo modo, o fato de Sacrobosco ter lecionado matemática na Universidade de Paris antes de 1255, considerando-se que o mesmo fora autor de um algorismo baseado em Jordano, permite supor que, antes de 1366, tenha-se estudado ali ao menos o material contido na aritmética de Jordano.

Em Bolonha, onde cultivava-se a matemática muito mais do que em Paris, houve na faculdade de artes uma cadeira de aritmética. Previa-se, deԂnitivamente, um curso sobre “algorismi de minutiis et integris”, material do Algorithmus demonstratus de Jordano [59].

Os estatutos da Universidade de Praga para o ano 1367 requerem, para a conclusão do mestrado, um curso sobre “algorismus”. O conteúdo, segundo uma escala de conferências para o mesmo ano, devia-se aprender em até três semanas, donde ser claro que a disposição inicial referia-se ao estudo de obras tais como a de Sacrobosco, ou seja, dos elementos práticos da aritmética [60]. Na mesma universidade, encontramos “o estudo da aritmética” entre os pré-requisitos para o mestrado; outros registros indicam que ali se estudavam “algorismus” e “arithmetica accurata”. Aqui, obviamente, distingue-se entre os elementos práticos e teóricos da aritmética [61].

A Universidade de Viena, durante toda a Idade Média, foi tão reconhecida pelo estudo da matemática quanto a de Paris pelo estudo da ԂlosoԂa; chegou, inclusive, a abrigar disputações sobre a matéria. E enquanto os dados sobre o ensino da aritmética em Viena não representam a situação que, como vimos, era comum a tantas outras universidades, as informações de que dispomos a esse respeito, quando alinhadas a outras evidências, são, de fato, reveladoras. A agenda de seminários para 1391–1399 mostra que ali se abordavam: (1) “algorismus de integris”; (2) “algorismo de minutiis”; (3) “computus physicus”; (4) “frações astronômicas”; (5) “arithmetica et proportiones”; e (6) “arithmetica” [62]. À luz do cuidado que ali se tomou para evitar a competição, duplicando-se os seminários, podemos supor que esses cursos tratassem de aritmética e álgebra elementar e teórica — justamente o tema da obra de Jordano.

A mesma distinção entre algorismus e arithmetica, isto é, entre os elementos práticos e teóricos da aritmética, é também enfatizada em registros do século XV. Ao que parece, havia níveis de remuneração para diferentes tipos de professores de aritmética. Os seminários de “arithmetica” valiam o dobro dos seminários de “algorismus”, se bem que o número de sessões fosse o mesmo para ambas as disciplinas. Também parece significativo que o honorário correspondente aos seminários de aritmética fosse igual à remuneração pelo mesmo número de aulas sobre uma matéria aparentada à matemática teórica: a música [63].

Em Leipzig, filha de Praga, prevaleciam as mesmas condições [64].

Mais significativo, talvez, seja o fato de a Universidade de Colônia, fundada 1389 sobre as mesmas bases da Universidade de Paris, ter disposto para o mestrado, em 1398, os mesmos pré-requisitos adotados em Viena [65].

Condições similares existiram em Erfurt, Heidelberg, Oxford, e mesmo em universidades italianas, como as de Pádua e de Pisa, onde a obra de Leonardo não teve influência alguma durante o século XV.

As evidências indicam claramente o escopo da instrução aritmética nas universidades européias. Dado que o material utilizado nesses programas era aparentemente idêntico ao conteúdo dos três livros de Jordano, é-nos permitido inferir que o conhecimento científico sobre a aritmética estava plenamente representado na educação universitária, sendo prevista, para a conclusão do mestrado, a sua quase totalidade.

LIVROS-TEXTO

Determinado o caráter das obras didáticas do período, passamos ao exame dos livros-texto empregados nas universidades.

1. O primeiro em importância, porque o mais usado durante três séculos, foi o do inglês John Hollywood, dito Sacrobosco, cujo Tractatus de arte numerandi, ou Algorismus, foi reimpresso inúmeras vezes e sob diversos títulos [66]. A obra não é senão um excerto do Algorismus demonstratus de Jordano; traz as regras da aritmética sem demonstrações ou ilustrações, e palavra nenhuma sobre as frações. Na verdade, mal passa de uma exposição das nove operações aritméticas tais como explicadas por Jordano — as regras de multiplicação aparecem em verso. O caráter da obra determina prontamente o seu lugar no currículo: serve como um guia, um texto a partir do qual se introduzirem os elementos da aritmética antes de iniciar-se o estudo da aritmética teórica, mais audacioso [67]

2. O que Sacrobosco fez a título de levar o Algorismus de Jordano até as universidades, outros fizeram-no com as suas duas outras obras. Arithmetica speculativa, de Thomas Bradwardinus (1290–1349), cobre toda a aritmética avançada de Jordano [68].

3. Sacrobosco e Bradwardinus foram os adaptadores de Jordano, isto é, da sua aritmética prática e teórica. Do mesmo modo, em meados do século XIV, Nicolau Oresme, que foi aluno e professor da Universidade de Paris, difundiu a aritmética e a álgebra de Jordano, especialmente as partes dedicadas às frações e à álgebra sincopada. Seu Algorismus proportionum [69] baseia-se inconfundivelmente na obra de Jordano. Esse tratado, no entanto, foi mais do que uma simples exposição: o uso de expoentes fracionários marca um avanço de Oresme em relação à sua fonte [70].

4. Jean de Murs, outro matemático francês do mesmo século, trabalhou na simplificação de Boécio e de Jordano, fontes do seu Arithmetica speculativa. A ampla utilização desse livro, um manual padrão de aritmética teórica, é atestada pelo grande número de edições ainda existentes [71].

5. De minutiis physicis, de Johannes von Gmünden, é o típico livro-texto das universidades germânicas do século XV. O autor, docente afamado na Universidade de Viena, foi o primeiro em toda a Europa a ensinar matemática como especialidade — antes do seu tempo, como se sabe, era costume que os professores se revezassem em diferentes disciplinas dentro das suas faculdades. Johann von Gmünden lecionou em Viena, tanto “algorismus de integris” como “algorismus de minutiis”, de 1412 a 1417. Ele empregava textos populares nas suas aulas: sobre aritmética integral, Sacrobosco; sobre frações, algum comentador de Jordano; e sobre frações astronômicas, seu próprio De minutiis physicis [72].

6. O Algorismus “para estudantes” de Johann von Peuerbach foi muito usado na Alemanha pela geração seguinte à de Gmünden. A popularidade desse livro deveu-se ao fato de o autor ter sucedido o mesmo Gmünden na Universidade de Viena. Como livro-texto, o tratado representa um avanço em relação a Sacrobosco, cuja obra Peuerbach almeja suplantar [73].

7. Podemos encerrar o nosso exame com Algorismus de integris, de Prosdocimo de Beldemandi, professor da disciplina na Universidade de Pádua em 1410. Esse texto, em tudo similar ao de Sacrobosco, mostra que as universidades italianas não haviam sofrido qualquer influência de Leonardo de Pisa até meados do século XV. Nesse tempo, ao que parece, elas ainda trilhavam o que se poderia chamar aritmética acadêmica [74].

Com o aumento e o avanço do conhecimento universal em aritmética — termo aplicado à álgebra —, houve uma tendência, já no final do século XV, a retirar-se a aritmética elementar dentre os pré-requisitos para o mestrado. Isso explica a importância de uma nota sobre Heidelberg, de 1443. O estudo do “algorism” e “de proportionibus” é ali posto numa classe de disciplinas eletivas, “quos non oportet scholares formaliter in scolis ratione alicuius gradus audivisse” [75]. Esses seminários, pagos, davam-se, evidentemente, como um curso extra ou auxiliar, para ajudar os alunos a “desenferrujar”. Assim, vê-se que a exigência da aritmética nas universidades aumentara sensivelmente desde o século XIV [76].

Não quisemos, com este capítulo, apenas delinear o caráter e o escopo da instrução aritmética tal como inserida entre as sete artes liberais. Quisemos, também, oferecer ao leitor uma melhor compreensão da natureza das evidências que fundamentaram as nossas visões, expressas, de partida, nos parágrafos introdutórios. Embora a variedade e o caráter alusivo dos dados disponíveis por vezes desafiem a capacidade de análise, fica demonstrada a continuidade histórica do estudo da aritmética no esquema do ensino superior medieval. Não restam dúvidas de que as escolas medievais ensinaram sempre tudo quanto se soubesse de aritmética; de que os professores de aritmética fossem geralmente os grandes matemáticos do seu tempo; de que esse magistério, porque em dia com o progresso do conhecimento, tinha, justamente, um caráter progressivo; de que jamais, nem mesmo nas infecundas gerações que encerram a Idade Média, quando a educação escolástica já sobrevivia à sua utilidade, deixou a aritmética de ser estudada no seio das faculdades medievais.

CAPÍTULO VIII

Geometria

No capítulo anterior, fizemos uma análise detalhada do caráter geral da instrução no quadrivium, especialmente no que se refere à aritmética. As mesmas conclusões, entretanto, aplicam-se à geometria. É de supor que a geometria fosse amplamente ensinada tanto no período pré-universitário como na era das universidades, e que o escopo dessa instrução caminhasse pari passu com os avanços do conhecimento na matéria.

Resta-nos indicar as proporções do conhecimento em geometria disponível a cada período e descrever brevemente as obras didáticas utilizadas. Como no caso da aritmética, distinguem-se três períodos: (1) antes de Gerberto; (2) entre os tempos de Gerberto e o século XIII; (3) entre o século XIII e o humanismo.

PRIMEIRO PERÍODO

Até o final do século X, a era de Gerberto, quase que não existia na Europa Ocidental conhecimento em geometria tal como a define o uso moderno da palavra. Com efeito, parece que o termo se empregava em sentido etimológico, e não no sentido em que os gregos o entendiam. Dada a negligência dos romanos, que apenas cuidavam da sua aplicação prática, a agrimensura, o mais provável é que nenhuma geometria digna do nome de ciência tenha sido transmitida à Idade Média [1]. Disso dão testemunho os livros-texto do tempo de Gerberto. Os mais usados eram os de Marciano Capela, Cassiodoro e Isidoro de Sevilha.

O texto de Capela, de modo geral, é um breve relatório sobre geografia, a localização de sítios históricos e fatos congêneres. Somente no final da obra encontramos algumas definições: linhas, triângulos, quadrângulos, o círculo, a pirâmide, o cone. Nada há nesse texto de geometria propriamente dita, ou mesmo de agrimensura [2]. O capítulo de Cassiodoro não se sai melhor [3], e o mesmo vale para o tratamento de Isidoro de Sevilha [4].

Conquanto esses tenham sido, ao que tudo indica, os únicos livros-texto de geometria à época de Gerberto, é bem verdade que os agrimensores do Império Romano tardio, os gromatici, legaram à Idade Média algum conhecimento sobre estimar-se a área de um triângulo, de um quadrilátero e de círculo [5].

Mas se a ciência da geometria fora negligenciada, a geograԂa e a cosmografia foram introduzidas para suprir a deficiência. O material sobre essas disciplinas era farto, e por isso elas foram muito cultivadas. A maioria dos vinte livros das Etymologiae, de Isidoro de Sevilha, diziam respeito à Naturkunde [6]. De universo, de Rábano Mauro, foi outra compilação do mesmo tipo [7]. Compêndios baseados na geografia de Plínio, entre outros, foram muito numerosos no período, e as referências ao estudo desses obras como parte do quadrivium são bastante comuns [8].

SEGUNDO PERÍODO

Passando ao tempo de Gerberto, deparamos um aumento pequeno, embora relativamente significativo, na quantidade de conhecimento em geometria. Graças à “descoberta” de uma cópia das obras boecianas sobre a geometria, e também do Codex arcerius, um bocado da geometria de Euclides e alguns fragmentos dos gromatici vieram parar nas escolas da cristandade [9]. Todavia, o novo aporte geométrico não teve lá muito valor, nem pela quantidade, nem pela qualidade. As supostas obras de Boécio, as quais Gerberto encontrara [10], consistiam em dois livros: o primeiro, todo ele baseado em Euclides, continha basicamente os enunciados dos livros I e III, inclusive definições, axiomas e scholia; algumas das proposições dos livros III e IV; e as demonstrações completas das três primeiras proposições do livro I, dadas, nas palavras do autor, “ut animus lectoris ad enodatioris intelligentiae accessum quasi quibusdam graditus perducatur”. A segunda obra trazia os cálculos das áreas de figuras geométricas. Esses, segundo Chasles, baseiam-se quase que inteiramente nas obras do gromaticus Frontino [11].

Comparando esse corpo de conhecimento ao texto de Euclides transmitido por Téon, vemos que a geometria de Boécio consiste nas definições euclidianas, na teoria dos triângulos e quadriláteros e em algumas teorias dos círculos e polígonos. Além disso, encontramos as suas próprias demonstrações dos seguintes problemas: (1) a construção de triângulo equilátero, dado o lado; (2) traçar-se, de um ponto dado, uma linha reta de determinado comprimento; e (3) segmentar uma linha menor numa linha maior.

Gerberto, aparentemente, tomou posse de todas as pecinhas de conhecimento geométrico disponíveis, tanto teóricas como práticas, e fez do conjunto delas a base mesma da sua obra [12]. O seu livro-texto não impressionou os estudiosos pela originalidade, e pode-se considerar que ele representa a totalidade da instrução em geometria oferecidas nas escolas até o final do século do século XIII. Em grande medida, esse livro e outras obras de caráter similar logo substituíram a geograԂa e a cosmografia, que, graças à escassez de verdadeira geometria, passaram por esse nome até os dias de Gerberto [13].

TERCEIRO PERÍODO

Como no caso da aritmética, os séculos XII e XIII formam um período de transição. A geometria de Euclides, como é de supor, foi uma das muitas obras matemáticas que alcançaram a Europa Ocidental por meio de traduções de fontes árabes. Naturalmente, esse incremento do conhecimento em geometria logo foi apropriado pelas universidades, que o integraram ao novo curso, ampliado.

Depois dos trabalhos de Adelardo de Bath, que traduziu Euclides do árabe em 1120, e de Geraldo de Cremona, autor de outra tradução [14], datada de 1188, pode-se dizer que a Europa Ocidental fora devidamente apresentada à geometria euclidiana. Foi então que as obras de Boécio e de Gerberto acabaram descartadas pelas universidades, e assim restou, como disciplina do currículo, o lado puramente teórico da ciência.

Temos evidências bastantes de que Euclides, tal como adaptado no De triangulis de Jordano de Nemi, por exemplo, foi ensinado durante toda a Idade Média, até o Renascimento [15]. Quase todas as listas de pré-requisitos para o mestrado incluem cinco ou seis dos seus livros — Bolonha, Praga, Viena, Leipzig, Pádua, Pisa e Colônia, invariavelmente [16]. Mesmo a Universidade de Paris, notoriamente desinteressada da matemática, requereu, na alta Idade Média, os seis livros completos de Euclides — e não apenas os três primeiros, como geralmente se supõe [17]. É certo, por conseguinte, que o candidato a universitário, mirando um diploma nas artes, tivesse o mínimo de conhecimento sobre o texto euclidiano: a teoria dos triângulos e quadriláteros; as várias aplicações da teoria de Pitágoras a um grande número de construções; os teoremas do círculo; os teoremas dos polígonos inscritos e circunscritos; as proporções geométricas; e a similaridade das figuras. Acresça-se a isso tudo a teoria dos números — contida nos livros VII, VIII, IX e X —, que era estudada como parte da aritmética teórica, e então nos veremos forçados a concluir que, como parte quadrivium, transmitia-se um tanto muito mais que considerável da geometria.

Cursos adicionais sobre a teoria das coordenadas foram ministrados nas universidades dos séculos XIV e XV [18]. O ensino avançado da geometria abriu o caminho para geometria analítica de Descartes, no século XVI [19]. Pode-se dizer o mesmo do estudo da perspectiva, que, em algumas universidades, foi tema de cursos ministrados como parte do quadrivium [20].

Que os gregos apresentados à Europa Ocidental por influência dos árabes estimularam inclusive especulações originais, isso vê-se pelas obras de Leonardo de Pisa (Practica geometria, 1220), Jordano de Nemi (De triangulis, c. 1237), ӷomas Bradwardinus (Geometria speculativa, c. 1327) e Nicolau Oresme (Tractatus de latitudine forarum), às quais ainda hoje atribui-se mérito científico [21]. É decerto verdade que essas obras, por marcantes que sejam de um afastamento em relação aos gregos, não encontraram o seu caminho até o currículo medieval [22]. Mas essa falta de assimilação, esse deixar passar novas idéias, se presta a evidência do interesse superԂcial pela instrução matemática [23].

Mesmo nos nossos dias, depois de cinco séculos de fenomenal desenvolvimento nos estudos da geometria, o valor exato da obra de Euclides como livro-texto continua a ser uma questão em aberto [24]. Com isso em mente, não parece razoável esperar que as universidades medievais — instituições de uma era que louvava a tradição — estivessem mais dispostas a se desfazer de Euclides do que hoje estão as nossas escolas.


Notas:

CAPÍTULO VII

[1] Rashdall, Universities in the Middle Ages, vol. I, p. 35. Laurie, Rise and Constitution of the Early Universities, pp. 61 e ss. Ambos partilham dessa visão tradicional.

[2] Hankel, Geschichte der Mathematik, pp. 304–59, esp. pp. 334, 358.

[3] Por exemplo: vida de São Cristóvão, por Walter de Speyer; vida de São Wolfgang, por Otlo de Saint-Emmeran; vida de Santo Adalberto, por Bruno de Querfurt. Cf. Specht, op. cit., pp. 89–149, esp. 127 e ss.

[4] Günther, Geschichte des mathematischen Unterrichts im deutschen Mittelalter, p. 14.

[5] Specht, op. cit., pp. 297–394; Wattenbach, Deutschlands Geschichtsquellen im M. A., 7ª ed., pp. 241–487, passim. V. Ziegelbauer, Historia Rei. Lit. O. S. B., I, passim.

[6] Cantor, Vorlesungen über Gcschichte der Mathematik, vol. I, pp. 771–97; Günther, op. cit., pp. 39–61, onde há referências especíԂcas à atividade matemática de cada uma das escolas e pessoas mencionadas. Para listas de obras congêneres, v. Ziegelbauer, op. cit., vol. IV, 304-411.

[7] O Codex Vaticanus 3896 contém nada menos que 26 tratados sobre aritmética em manuscritos; cf. Günther, op. cit., p. 67.

[8] V. Hankel, op. cit., p. 334.

[9] Günther, op. cit., pp. 81–121, 146–207.

[10] O descaso tradicionalmente atribuído à Idade Média com relação à matemática baseia-se numa suposição equivocada: que o desinteresse de Paris, mãe das universidades, fosse partilhado pelo período como um todo. Objete-se, no entanto, que a Universidade de Viena deu muitíssimo valor às disciplinas matemáticas. Na verdade, o que se dava na maioria das universidades medievais era justamente um meio-termo entre os extremos — Paris e Viena —, de maneira que elas ofereciam uma carga razoável de instrução matemática. Cf. Rashdall, op. cit., vol. I, pp. 440–43; Günther, op. cit., pp. 2017 e ss.

[11] Foi por meio de Boécio, tradutor e adaptador do texto, que essa forma particular de aritmética tornou-se conhecida como boeciana. Texto de Nicômaco na edição R. Hoche, Leipzig (1866). Para uma análise de Nicômaco, v. Gow, Short History of Greek Mathematics, pp. 89–95.

[12] Cf. Ball, History of Mathematics, p. 137.

[13] H. Weissenborn, Gerbert-Beiträge zur Keniniss der Mathematik des Mittelalters (Berlim, 1888), pp. 208–51. Cajori, History of Mathematics, pp. 114 e ss.

[14] Günther, op. cit., vol. I, pp. 797–809. A palavra “algoritmo” é derivada de Al-Khwarizmi, nome do primeiro e mais importante matemático árabe conhecido na Europa.

[15] Existe ainda um Computus datado de 1395. Trata-se de uma interessante coleção de textos medievais sobre aritmética, pertencente ao Sr. George Plimpton, de Nova York.

[16] Hankel, op. cit., pp. 309 e ss.

[17] Cf. Günther, op. cit., pp. 64–78.

[18] Na obra de Alcuíno sobre o cômputo, De cursu et saltu lunae ac bissexto (PL 101, cols. 979 e ss.), multiplica-se CCXXXV por IV:

        CC             x IV — DCC

        XXX         x IV — CXX

        V               x IV — XX

                          DCCCCXL

Para um exemplo similar (6144: 15), v. Pseudo-Beda, De argumentis lunae, PL 90, col. 719.

[19] Eyssenhardt (ed.), livro VII, pp. 254–96. Para um exemplo mais completo das interpretações metafísicas de Capela, v. Gow. op. cit., pp. 69. e ss.

[20] V. Morgan, Arithmetical Books, pp. 3, 4, 10, 11, 13. Referências aos livros de Boécio impressos em Paris e em Viena, o último datado de 1521. De arithmetica libri duo (PL 63, cols. 1079–1168).

[21] Cf. Günther, op. cit., pp. 82 e ss. Texto em PL 63, cols. 1079–1166 (ed. Friedlein, 1867). Para um caso divertido de interpretação dos números, v. Rábano Mauro, De institutione clericorum, PL 107, col. 400, onde se explica o sentido místico no número 40.

[22] De artibus, PL 70, cols. 1204–8.

[23] “Tolle numerum rebus omnibus et omnia pereunt. Adime saeculo computum et cuncta ignorantia caeca complectitur nee differi potest a ceteris animalibus qui calculi nesciunt rationem” (Etymol. lib. XX, livro II, cap. 4). Texto completo em PL, 82, cols. 154–63.

[24] PL 90, cols. 294–578. À parte glosas e scholia, restam cerca de 80 colunas de texto — tamanho moderado.

[25] Ibid., cols. 579–606.

[26] PL 101, cols. 679–1002.

[27] PL 107, cols. 669–727. Como essa era a parte essencial de todos os livros-texto do período, cabe fazer uma breve exposição do problema implicado no cômputo eclesiástico. O objetivo do cômputo era determinar a data do primeiro domingo seguido à primeira meia-lua depois do equinócio da primavera. Resolvia-se o problema encontrando o chamado “número áureo” e as “letras dominicais”, indicações, com o que se determinavam as posições e relações nas tábuas do ciclo metônico. Ser capaz de fazê-lo implicava conhecer: (1) o equinócio da primavera; (2) o dia da primeira lua cheia; e (3) o ajuste necessário às tábuas do ciclo metônico. Desde os tempos do abade Dionísio Exíguo (c. 525), resolveram-se os problemas astronômicos e elaboraram-se sucessivas tábuas entre o mesmo Dionísio, o abade Félix de Cyrilla, Isidoro de Sevilha e o Venerável Beda. Com o auxílio de duas regras para as operações e o uso das tábuas referidas, a data da Páscoa podia ser prontamente determinada. As regras eram: (1) para encontrar o número áureo, some-se 1 ao numeral do ano — na tábua — e divida-se a somatória por 19; o resto será o número áureo, e, não havendo resto, o número áureo é 19. (2) “Para encontrar a letra dominical, some-se ao numeral do ano o quociente da sua própria divisão por 4; some-se a isso mais 4; divida-se por 7 a somatória, e o seu resto, subtraia-o de 7. O resto determinará o lugar das letras na tábua”. A partir dessas respostas, determinava-se a data da Páscoa com facilidade. As exigências de conhecimento aritmético aos alunos que intentavam simplesmente resolver esse problema não eram lá muito grandes, mas é certo que, depois do renascimento carolíngio, todo e cada sacerdote que estudasse as artes liberais seria capaz de entender não somente os métodos, mas também os princípios por trás dessas operações, o que implica, além de bom raciocínio matemático, um tanto não desconsiderável conhecimento aritmético e a astronômico. V. Smith & Chietham, Dictionary of Christian Antiquities, entrada “Páscoa”; F. J. Brockman, “Die Christliche Oesterrechnung”, em Systeme der Chronologie, pp. 53–83. Para uma versão modernamente simplificada do cômputo da Páscoa, v. Ball, Mathematical Recreations and Problems, p. 238; Cantor, op. cit., vol. I, pp. 532 e ss; p. 780.

[28] Günther, op. cit., p. 66. Entre os professores medievais que basearam as suas obras sobre o cômputo inteiramente em Rábano Mauro, são dignos de nota, porque demonstram a amplitude da sua influência: Heilpric, monge de São Galo; Hermano Contracto, Guilherme de Hirsau, Notquero Labéu e João de Garlandia. Note-se, porém, que as suas obras, conquanto escritas antes de Gerberto, e por isso mesmo pertencentes, em princípio, ao segundo período da nossa classiԂcação, não podem ser tomadas como índices dos métodos que então se utilizavam. Quando foram compostas, o estudo do cômputo já se havia tornado simplesmente o estudo técnico para o cálculo da Páscoa; já não signiԂcava, como no tempo de Rábano Mauro, o estudo da aritmética.

[29] Assim, “Prepositiones (arithmeticae) Alcuini ad acuendos juvenis”, coleção de problemas difíceis corretamente atribuída ao famoso professor, se é de especial interesse sob certos pontos de vista, não pode, entretanto, ser tomada como indicativo de que comumente se estudassem tais problemas naquela época. O fato de Gerberto os conhecer ao final do século X é igualmente inconclusivo no que diz respeito à sua aplicação em sala de aula, haja vista que Gerberto foi o gênio matemático do seu tempo. Esses problemas pertencem à mesma classe dos jogos matemáticos que eram conhecidos de tão poucos. Texto em PL 101, col. 1143. Cf. Hankel, op. cit., p. 310, nota. Referências completas aos jogos matemáticos medievais em Günther, op. cit., p. 88, nota 1.

[30] PL 90, cols. 682–709. V. Karl Werner, Beda der Ehrwilrdige und seine Zeit (Viena, 1875), pp. 107 e ss., citado em Günther, op. cit., p. 5.

[31] Hankel, op. cit., pp. 307–10.

[32] Nagl, “Gerbert und die Rechenkunst des 10 ten Jahrhunderts”, em Sitzungsberichte der Hist. Philol. Class, der Kais. Akad. der Wiss, vol. CXVI, pp. 861–922; Friedlein, “Das Rechnen mit Columnen vor dem 10 tem Jahrhundert”, em Zeitschrijt fur Math. u. Phys., vol. IX, pp. 297–330, esp. pp. 320 e ss.

[33] Weissenborn, Gerbert-Beiträge sur Kenntniss der Maihematik des Mittelalters, pp. 209–239, esp. 233.

[34] Cantor, Vorlesungen, vol. I, pp. 797 e ss, onde resumem-se os pontos históricos da controvérsia.

[35] Richer, Hist. Lib., MGH-SS 3, pp. 618 e ss.

[36] Últimas edições críticas em Bubnov, Gerberti opera Mathematica (Berlim, 1899). Pode-se inferir a extensão da influência dessas obras pela vasto número de manuscritos ainda existentes, os quais são enumerados pelo editor (op. cit., pp. 17–111, passim).

[37] Cajori, History of Mathematics, p. 117. O seu caráter mecânico revela-se em algumas regras que Gerberto nos oferece: (1) o uso da multiplicação restringia-se o quanto possível, e jamais deveria pedir a multiplicação de um número de dois dígitos por outro; (2) tinha-se de evitar a subtração e, na medida do possível, substituí-la pela adição; (3) as operações tinham todas de proceder mecanicamente, sem espaço para juízos. V. Hankel, op. cit., pp. 319 e ss, onde há exemplos concretos de divisão por esse método. A ilustração mais complicada é dada em Friedlein, Die Zahlzeichen und das elementar Rechenen der Griechen und Römer und des Christlichen Abendlandes nom 7 ten bis 13 ten Jahrhundert, pp. 109–34.

[38] Cajori, op. cit., p. 119.

[39] Cf. Günther, op. cit., pp. 99–110. Cantor, Mathematische Beiträge zum Kulturleben der Völker, pp. 330–40.

[40] Boncompagni, Bulletino di Bibliografia e di storia delle scienze matematiche e fisiche, vol. X, pp. 643–47. Parte de uma coleção de sete textos sobre o ábaco (loc. cit., 595–647). Dois textos similares, do século XII, constam em op. cit., vol. XV, 135–62. Sobre outros abacistas do período, v. Cantor, op, cit., vol. I, pp. 831–36.

[41] Hist. lit. de la France, VII, pp. 89 e ss. Texto e crítica em Nagl, Suplemento a Zeit. für Math. u. Phys., vol. XXXIV, pp. 129–46, 161–70.

[42] Boncompagni, X, 593–607. Sobre outros abacistas do século XII, v. Cantor, op. cit., pp. 843–48; Günther, op. cit., pp. 92–106.

[43] Cantor, Beiträge, p. 338; Cajori, op. cit., p. 119.

[44] Textos, Boncompagni, Bullettino, vol. XIV, pp. 91–134; Boncompagni, Trattati di aritmetica, pp. 1–23. Fragmento da sua obra sobre multiplicação e divisão em Zeit. für. Math. u. Phys., XXV, Suplemento, pp. 132–39.

[45] Crítica da obra em Steinschneider, Zeit. für. Math., vol. XXV, suplemento, pp. 59–128.

[46] Boncompagni, Trattati d’aritmetica pp. 25–136.

[47] Cantor, op. cit., vol. I, p. 853.

[48] Texto e crítica em Cantor, Zeitsch. f. Math. u. Phys., X, pp. 1–16. Encontra-se um texto similar, composto no mesmo século e procedente de monastério próximo de Ratisbona, em Curtze (ed.), Zeitsch., XLIII, Suplemento, pp. 1–23. A existência desses manuscritos mostra que, mesmo nos dias de declínio, algumas escolas monásticas mantiveram-se atualizadas com o estado da arte em aritmética.

[49] Wüstenfeld, “Die Übersetzungen arabischer Werke in das Lateinische seit dem 11 ten J. H”. Abhand. König. Gesel. d. Wiss. zu Göttingen, vol. XXI, passim., esp. pp. 20–38; 50–96.

[50] Günther, op. cit., pp. 131–41; Cantor, Vorlesungen, vol. II, pp. 110, 216 e ss.; F. Unger, Die Methodik der practischen Arithmetik, pp. 1–33.

[51] Cantor, op. cit., vol. II, pp. 3–35.

[52] Ibid., 167, 205.

[53] Cantor, op. cit., vol. II, p. 86, localizou manuscritos de Jordano em Basiléia, Cambridge, Dresden, Erfurt, Munique, Oxford, Paris, Roma, Thorn, Veneza, Viena e em diversos pontos no Sul da Alemanha.

[54] Impresso em 1534. Por muito tempo essa obra foi erroneamente atribuída a Regiomantus. Cf. Cantor, op. cit., vol. II, pp. 49–61; Morgan, op. cit., p. 16.

[55] Impresso em 1514. Cf. Morgan, op. cit., p. 10; Cantor, loc. cit. 

[56] A melhor edição é a de Treutlein, em Zeit. für Math. u. Phys. XXXVI, Suplemento, pp. 127–66.

[57] A primeira obra mencionada é um breve tratado de aritmética prática. Em cerca de 57 páginas, explica o sistema arábico de notação e os métodos de operação, entre os quais o autor inclui nove: numeratio, additio, subtractio, duplicatio, multiplicatio, mediatio, divisio, progressio e radicum extractio. O caráter representativo desse livro ajudou na sua classificação, que tantas vezes observamos em livros populares de aritmética por toda a Europa. Espaço considerável, algo em torno de dois quintos da obra, é dedicado ao tratamento de dois tipos de frações, as “minutiae philosophicae” ou “minutiae physicae”, isto é, as frações astronômicas, e as “minutiae vulgares”, ou frações comuns. No que toca às primeiras, o texto é bastante completo; há inclusive algumas páginas sobre proporção. A segunda obra é de um caráter todo outro. Os 10 primeiros livros tratam sucessivamente de propriedades numéricas, relações, números primos e perfeitos, números poligonais, sólidos, redundantes, proporções e outras classiԂcações igualmente reԂnadas. Aqui, mais uma vez, os números são tratados da mesma forma que na obra de Boécio. Todavia, como observado por Cantor (op. cit., vol. II, pp. 61 e ss), a obra tem um valor cientíԂco diferenciado, na medida em que é o primeiro livro a empregar, em vez de números concretos, letras como símbolos gerais. A terceira obra consiste em quatro livros de problemas algébricos e aritméticos, cujas resoluções envolvem, além do estudo das proporções, equações simples e quadráticas com uma ou mais variáveis.

[58] Rashdall, op. cit., vol. I, p. 437, nota 1.

[59] Rashdall, op. cit., p. 249.

[60] Cantor, op. cit., vol. II, p. 140.

[61] Mon. Uni. Prag., I, 1, pp. 56, 77 (citado Rashdall, p. 442, nota 3).

[62] Compilado por Günther, op. cit., p. 209, de Aschbach, Geschichte der Wiener Universität im ersten Jahrhundert ihres Bestehens. V. ibid., I, pp. 137–68, passim.

[63] Günther, op. cit., pp. 210–11; Cantor, op. cit., vol. II, pp. 140, 174 e ss.

[64] Günther, op. cit., p. 215. Cf. Hankel, op. cit., p. 357. Em Leipzig, podia-se “ouvir” o algorismo de qualquer bacharelando, mas o mesmo não se dava com nenhuma outra matéria. V. “Tabula pro gradu Baccalauriatus”, em Zarncke “Die Urkündlichen Quellen zur Geschichte der Univ. Leipzig”, Abhandl. der Kön. Sachs. Gesell. der Wiss. Phil. Hist. Class., vol. II, p. 862. Esse fato reforça o argumento de que a instrução no algorismus fosse apenas uma disciplina elementar.

[65] V. De Bianco, “Statua Facultatis Artium”, em Die Alte Uni. Köln, anexo II, pp. 438–43. Cf. Hankel, op. cit., p. 357; Cantor, op. cit., vol. II, p. 442.

[66] Impresso pela primeira vez em Paris, 1496. Entre outros títulos, passou também por Opusculum de praxi numerorum quod algorismum vocant (Paris, 1511) e Algorismus domini Joannes de Sacrobosco (Veneza, 1523). Cf. Morgan, op. cit., pp. 13–4; Günther, op. cit., pp. 176 e ss. Manuscrito-cópia X510 H74, pp. 211–22, Library of Columbia University, Nova York.

[67] Tal se evidencia na existência de comentários a obra de Sacrobosco, dentre os quais um da autoria de Petrus de Dacia é descrito por Cantor (op. cit., vol. II, p. 90) e Günther (op. cit., p. 167, nota 2).

[68] Impressão em Paris e Viena em 1495 e 1502, respectivamente. Cf. Cantor, vol. II, p. 113; Morgan, op. cit., p. 11. O tratado sobre proporções, resumido por Alberto da Saxônia no final do século XIV, foi usado como livro-texto na maioria das universidades. A obra de Jordano era muito difícil, por causa da sua notação simbólica. Cf. Rashdall, op. cit., vol. I, p. 442, nota 3.

[69] Edição crítica em Zeitsch. für Math. u. Phys., XIII, Suplemento, pp. 65–73. Breve resumo das obras de Oresme Curtze, Die mathematischen Schriften des Nicolas Oresmus. O grande número de manuscritos ainda existentes comprova a sua ampla utilização. Como a obra de Bradwardinus, foi certamente livro-texto nas universidades germânicas.

[70] Os três livros da obra são organizados logicamente: o primeiro trata das definições de frações em que todas as regras se apresentam em termos simbólicos; o segundo oferece exemplos concretos e problemas para a aplicação das regras; e o terceiro lida com proporções geométricas. A similaridade essencial entre essa obra o Tractatus de proportionibus de Bradwardinus revela que ambos os autores se utilizaram, e de maneira idêntica, da mesma fonte: Jordano. Cf. Cantor, op. cit., vol. II, p. 137.

[71] Günther, op. cit., p. 183, nota 1. Cf. Morgan, op. cit., pp. 3, 11.

[72] Impresso em 1515. Cf. Morgan, op. cit., p. 11. Cantor, Vorlesungen, vol. II, p. 177; Günther, pp. 232 e ss.

[73] Impresso em 1492 como Opus algorithms jucundissimum. Sobre outras edições, v. Günther, op. cit., p. 237; Morgan, op. cit., p. 11.

[74] Publicada em 1483 e 1540, em Pádua. V. Favaro, em Bulletino, Boncompagni, t. XII, p. 60.

[75] Citado em Rashdall, op. cit., vol. I, p. 440, nota 3.

[76] No começo do século XVI, era costume publicar tratados aritméticos que reunissem todos esses textos. Para uma descrição de alguns desses, v. Morgan, op. cit., pp. 10–1.

CAPÍTULO VIII

[1] Cantor, Vorlesungen, vol. I, p. 522. Mais detalhes em Cantor, Die römischen Agrimensoren und ihre Stellung in der Geschichte der Feldmesskunst. Leipzig, 1875.

[2] De nuptiis, Eyssenhardt (ed.), pp. 194–254.

[3] PL 70, 1212–16.

[4] PL 82, 161–3.

[5] Cf. Hankel, op. cit., pp. 312 e ss; Günther, op. cit., p. 14.

[6] Günther, loc. cit.

[7] De universo libri vigintiduo, PL 111, cols. 9–612 passim, esp. livros VI–X.

[8] V. Pez, Thes. 3, III, 630; Specht, 143–49.

[9] Cf. Specht, loc. cit.; Günther, op. cit., pp. 73 e ss., 115 e ss.

[10] A geometria de Boécio por anos constituiu uma Streitfrage entre os historiadores da matemática. O fato de o uso de apices, do ábaco e da multiplicação por colunas ser explicado entre o primeiro e o segundo livros no manuscrito mais antigo, que data do século XI, principiou a controvérsia em torno da origem do ábaco e da introdução do que podemos chamar notação hindu-arábica. Nessa controvérsia, os principais historiadores da matemática, Kastner, Chasles, Martin, Friedlein, Weissenborn e Cantor, entre outros, tomaram lados diferentes — alguns chegando ao ponto de negar a Boécio a autoria dos livros sobre geometria. O peso da autoridade (Cantor, Vorlesungen, vol. I, 540–51) parece confirmar que Boécio foi o autor da geometria contida nesses manuscritos. Naquilo que diz respeito a todos, porém, todos concordam: sendo ou não sendo de Boécio a autoria dos originais, é certo que esses livros-texto não foram usados nos dias de Gerberto. Texto de Boécio em PL 63, cols. 1037–64.

[11] Chasles, Geschichte der Geometrie, trad. Sohncke, p. 524. O último cotejo das fontes de Boécio consta em Weissenborn, Zeit. f. Math,u. Phys. vol. XXIV (1879), e sustenta a opinião de que Boécio lançara mão de um excerto de Euclides, e não do original.

[12] Bubnov, Gerberti opera mathematica, pp. 48–97.

[13] Cf. Günther, op. cit., pp. 115 e ss; Cantor, op. cit., I, 809–824; Gow, op. cit., pp. 205–6.

[14] Cf. Jourdain, Recherches sur les traductions latines d’Aristote, 1ª ed. (Paris: 1819), p. 100; Hankel, op. cit., p. 335. Cf. Weissenbom, in Zeit. f. Math. u. Phys. vol. XXV, suplemento, pp. 141–66. Essa obra passou pelo século como uma tradução original de Campano, e foi a primeira das edições latinas de Euclides, publicada em 1482. Referências a Geraldo em Ball, op. cit., p. 172.

[15] Sobre o texto de Jordano de Nemi, v. Curtze (ed.), ӷorn: 1887. Cf. Cantor, op. cit., I, pp. 670, 852, notas 1 e 2.

[16] Cf. Rashdall, op. cit., I, pp. 250, 442; Hankel, op. cit., pp. 356 e ss.; Günther, op. cit., pp. 199, 209 e ss., 215, 217, 281. É incorreta a aԂrmação de Compayré (Abelard and the Origin, and Early History of Universities, p. 182), de que apenas o Euclides de Boécio foi ensinado nas universidades. Os estatutos de Viena para o ano de 1389, aos quais nos referimos e citamos, dizem claramente: “cinco livros de Euclides”. É óbvio que isso não pode significar a geometria de Boécio, que tinha apenas dois livros. V. Kollar, Statua Universitatis, Vieniensis, I, p. 237, citado em Mullinger, The University of Cambridge, p. 351.

[17] Kastner, Geschichte der Mathematik, I, p. 260.

[18] Essa disciplina foi desenvolvida por Nicolau Oresme em Tractatus de latitudinibus formarum e Tractatus de uniformitate et deformitate intensionum.

[19] Cf. Tropfke, Geschichte der Elementar-Mathematik, II, pp. 407 e ss. Günther, op. cit., pp. 181, 199, 210, 211.

[20] Günther, loc. cit.

[21] Cantor, Vorlesungen, vol. II, pp. 35–40, 73–86, 113–118, 128–137. Cf. Curtze em Zeitsch. f. Math. u. Phys. XIII, suplemento pp. 79–104.

[22] Günther, op. cit., p. 162; Cajori, op. cit., p. 134.

[23] Isso é contestado por Hankel, op. cit., p. 349; e Compayré, op. cit., p. 182.

[24] Cf. Smith, Teaching of Elementary Mathematics, p. 229, nota 1 e 2; Ball, History of Mathematics, pp. 56–64

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A Educação Infantil na Idade Média - por Ricardo da Costa

As quatro condições da sociedade: nobreza, por Jean Bourdichon, 1500

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Tempo de leitura: 20 minutos.

A Educação Infantil na Idade Média, por Ricardo da Costa. Texto publicado na Revista VIDETUR 17. In: LAUAND, Luiz Jean (coord.). Porto: Editora Mandruvá, 2002, p. 13-20. (ISSN 1516-5450). Texto disponível no LINK.

No Brasil, a Idade Média ainda é citada por muitos néscios como um tempo de ignorância e barbárie, um tempo vazio, um tempo em que a Igreja escondeu os conhecimentos que naufragaram com o fim do Império Romano para dominar o “povo” [1]. Nesse movimento consciente e ideológico em direção às trevas, o clero teve como aliado principal a nobreza feudal. Juntos, nobreza e clero governaram com coturnos sinistros e malévolos todo o ocidente medieval, que permaneceu assim envolto em uma escuridão de mil anos, soterrado, amedrontado e preso a terra num trabalho servil humilhante [2].

Quem ainda acredita piamente nesse amontoado de tolices ficará agradavelmente surpreso, espero, com o tema desse trabalho, que não poderia ser mais propício. Minhas perguntas básicas serão: existiu educação na Idade Média? E ciência? E as crianças? É incrível, mas há quase quarenta anos atrás o próprio Jacques Le Goff perguntou: “teria havido crianças no Ocidente Medieval?” [3]. Seguindo a trilha deixada por Philippe Ariès [4], ele buscou a criança na arte e não a encontrou. É verdade. Apressadamente concluiu então que a criança foi um produto da cidade e da burguesia [5] e, portanto, o mundo rural não a conheceu. Pior: a conheceu sim, mas a desprezou, marginalizando-a [6].

Deixo claro então que minha perspectiva será bastante diferente. Responderei sim a todas àquelas perguntas, opondo-me a Jacques Le Goff e a Philippe Ariès [7]. Para provar isso, dividi minha narrativa em duas partes: primeiro, busquei a condição infantil registrada pela História na Alta Idade Média (séculos V-X) para, a seguir, tratar da estruturação das ciências que Ramon Llull (1232-1316) apresentou a seu filho Domingos quando, em um ato de puro amor paterno, escreveu um livro para ele, a Doutrina para crianças [8].

*

Falei há pouco de amor paterno. O amor é uma forma muito profunda e especial de afeto, difícil de ser descrito, difícil de ser registrado a não ser nas emoções daqueles que o compartilham. Por isso, a História registra sempre o que se veste, onde se vive, o que se come, mas dificilmente narra como se ama, especialmente a intensidade e a forma do amor [9]. Os tipos de textos consultados pelos historiadores - as Crônicas, por exemplo - estão mais atentos aos acontecimentos importantes, aos personagens e à política. Assim, ofereceram pouco espaço para o mundo infantil, deixando muitas perguntas que não puderam ser respondidas satisfatoriamente. Por exemplo: como pais e filhos exprimiam seus carinhos, suas incompreensões? De que forma as crianças apreenderam o mundo existente? Como reagiram à escola e aos estudos?

De qualquer maneira, o fato é que, historicamente, o papel da criança sempre foi definido pelas expectativas dos adultos [10], e esse anseio mudou bastante ao longo da história, embora a família elementar e o amor tenham existido em todas as épocas [11]. Vejamos então o caso medieval.

A primeira herança da Antigüidade não é nada boa: a vida da criança no mundo romano dependia totalmente do desejo do pai. O poder do pater familias era absoluto: um cidadão não tinha um filho, o tomava. Caso recusasse a criança - e o fato era bastante comum - ela era enjeitada. Essa prática era tão recorrente que o direito romano se preocupou com o destino delas [12]. E o que acontecia à maioria dos enjeitados? A morte [13].

A segunda herança que a Idade Média herda da Antigüidade, a cultura bárbara, foi-nos passada especialmente por Tácito. Ele nos conta que a tradição germânica em relação às crianças era um pouco melhor que a romana. Os germanos não praticavam o infanticídio, as próprias mães amamentavam seus filhos e as crianças eram educadas sem distinção de posição social [14]. O povo germânico era composto por um conjunto de lares, com dois poderes distintos: o matriarcal, exercido no seio da família, e o patriarcal, predominante na política e na organização social [15]. No entanto, o destino das crianças naqueles clãs, como na cultura romana, também dependia da vontade paterna (direito de adoção, de renegação, de compra e venda). A criança aceita ficava aos cuidados dos parentes paternos (agnatos) e o destino dos bastardos, órfãos e abandonados era entregue aos parentes maternos, especialmente a tios e avós maternos [16].

Dessas duas tradições culturais que se mesclaram e fizeram emergir a Idade Média, concluo que o status da criança naquelas sociedades antigas era praticamente nulo. Sua existência dependia do poder do pai: se fosse menina ou nascesse com algum problema físico, poderia ser rejeitada. Seu destino, caso sobrevivesse, era abastecer os prostíbulos de Roma e o sistema escravista [17]. Até o final da Antigüidade as crianças pobres eram abandonadas ou vendidas; as ricas enjeitadas - por causa de disputas de herança - eram entregues à própria sorte [18].

Nesse contexto histórico-cultural é que se compreende a força e o impacto do cristianismo, que rompeu com essas duas tradições [19]. O Cristo disse:

Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. (Mt 18, 1-4).

A tradição cristã abriu, portanto, uma nova perspectiva à criança, uma mudança revolucionária [20]. No entanto, foi um processo bastante lento, um processo civilizacional levado a cabo pela Igreja. Primeiro, por força das circunstâncias. Por exemplo, dos séculos V ao VIII, na Normandia, o índice de mortalidade infantil era muito elevado, 45%, e a expectativa de vida bem pequena, 30 anos [21]. À primeira vista, esses dados arqueológicos poderiam sugerir ao historiador um sentimento de descaso para com a criança: a regularidade da morte poderia criar nos espíritos de então uma apatia, um medo de se apegar a algo tão frágil que poderia morrer à primeira doença [22].

Paradoxalmente, ao invés disso, a documentação nos mostra que havia um grande apego dos pais aos filhos, apesar da mortalidade infantil. Em sua História dos Francos, Gregório de Tours nos conta o sentimento de tristeza e a lamentação de Fredegunda (concubina e depois esposa do rei dos francos Chilperico), quando da morte de crianças:

Essa epidemia que começou no mês de agosto atacou em primeiro lugar a todos os jovens adolescentes e provocou sua morte. Nós perdemos algumas criancinhas encantadoras e que nos eram queridas, a quem nós havíamos aquecido em nosso peito, carregado em nossos braços ou nutrido por nossa própria mão, lhes administrando os alimentos com um cuidado delicado [...] O rei Chilperico também esteve gravemente doente. Quando entrou em convalescença, seu filho mais novo, que não era ainda renascido pela água e pelo Espírito Santo, caiu enfermo. Assim que melhorou um pouco, seu irmão mais velho, Clodoberto, foi atingido pela mesma doença, e sua mãe Fredegunda, vendo-o em perigo de morte e se arrependendo tardiamente, disse ao rei: “A misericórdia divina nos suporta há muito tempo, nós que fazemos o mal, porque sempre ela nos tem advertido através das febres e outras doenças, mas sem que nos corrijamos. Nós perdemos agora os nossos filhos, eis que as lágrimas dos pobres, as lamentações das viúvas e os suspiros dos órfãos os matam e não nos resta esperança de deixar os bens para ninguém. Nós entesouramos sem ter para quem deixar. Os tesouros ficarão privados de possuidor e carregados de rapina e maldições! Nossas adegas não abundam em vinho? Nossos celeiros não estão repletos de trigo? Nossos tesouros não estão abarrotados de ouro e de prata, de pedras preciosas, de colares e outras jóias imperiais? Nós perdemos o que tínhamos de mais belo! Agora, por favor, venha! Queimemos todos os livros de imposições iníquas e que nosso fisco se contente com o que era suficiente ao pai e rei Clotário.” (Gregório de Tours, Historiae, V, 34) (os grifos são meus) [23].

Pois bem. Fredegunda, uma das mulheres mais cruéis da História, apesar de filha de seu tempo bárbaro, chora a morte de seus filhos e afirma que perdeu o que tinha de mais belo [24]. Mesmo nessa aristocracia merovíngia rude e cruel – no pior sentido da palavra [25] – há espaço para amor materno.

Por sua vez, fora do mundo secular, um espaço social lentamente impôs uma nova perspectiva à educação infantil: o monacato [26]. Os monges criaram verdadeiros “jardins de infância” nos mosteiros [27], recebendo indistintamente todas as crianças entregues [28], vestindo-as, alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional [29].

As comunidades monásticas célticas foram as que mais avançaram nesse novo modelo de educação, pois se opunham radicalmente às práticas pedagógicas vigentes das populações bárbaras, que defendiam o endurecimento do coração já na infância [30]. Pelo contrário, ao invés de brutalizar o coração das crianças para a guerra e a violência, os monges o abriam para o amor e a serenidade [31].

As crianças eram educadas por todos do mosteiro até a idade de quinze anos. A Regra de São Bento prescreve diligência na disciplina: que as crianças não apanhem sem motivo, pois  “não faças a outrem o que não queres que te façam.” [32] Toco aqui em um ponto importante e de grande discussão na História da Educação. O sistema medieval e monástico previa a aplicação de castigos. Na Bíblia há passagens sobre os castigos com vara que devem ser aplicados aos filhos [33]; na Regra de São Bento há várias passagens (punição com jejuns e varas [34], pancadas em crianças que não recitarem corretamente um salmo [35], e esse ponto foi muito destacado e criticado pela pedagogia moderna, que, no entanto, não levou em consideração as circunstâncias históricas da época [36]. Por exemplo, Manacorda interpreta os castigos do período antigo e medieval como puro sadismo pedagógico [37], linha de interpretação que permaneceu ao lado da imagem do monge medieval como uma pessoa frustrada e desiludida amorosamente e que, por esse motivo, buscava a solidão do mosteiro [38].

Naturalmente isso se deve a um anacronismo e preconceito que não condizem com a postura de um historiador sério. Basta buscar os textos de época que vemos a felicidade dos egressos dos mosteiros pelo fato de terem sido amparados, criados e educados. Darei apenas dois breves exemplos. Ao se recordar do mosteiro onde passou sua infância, São Cesário de Arles (c. 470-542) diz:

Essa ilha santa acolheu minha pequenez nos braços de seu afeto. Como uma mãe ilustre e sem igual e como uma ama-de-leite que dispensa a todos os bens, ela se esforçou para me educar e me alimentar [39].

Por sua vez, Walafried Strabo (806-849), então jovem monge, nos conta em seu Diário de um Estudante:

Eu era totalmente ignorante e fiquei muito maravilhado quando vi os grandes edifícios do convento (...) fiquei muito contente pelo grande número de companheiros de vida e de jogo, que me acolheram amigavelmente. Depois de alguns dias, senti-me mais à vontade (...) quando o escolástico Grimaldo me confiou a um mestre, com o qual devia aprender a ler. Eu não estava sozinho com ele, mas havia muitos outros meninos da minha idade, de origem ilustre ou modesta, que, porém, estavam mais adiantados que eu. A bondosa ajuda do mestre e o orgulho, juntos, levaram-me a enfrentar com zelo as minhas tarefas, tanto que após algumas semanas conseguia ler bastante corretamente (...) Depois recebi um livrinho em alemão, que me custou muito sacrifício para ler mas, em troca, deu-me uma grande alegria... [40]

Esses são apenas dois de muitos exemplos que contam a felicidade e a alegria que os medievais sentiram com o fato de terem tido a sorte de serem acolhidos em um mosteiro. Assim, devemos sempre confrontar em retrospecto as regras com a vida cotidiana, o sistema institucional com o que as pessoas pensavam dele, para então construirmos um juízo de valor mais adequado e menos sujeito a anacronismos.

Para completar o entendimento do sentido civilizacional dos mosteiros medievais, basta confrontarmos sua vida cotidiana - de educação e disciplina voltada para uma formação ética e moral das crianças - com o mundo exterior. Por exemplo, no período carolíngio (séculos VIII a X), apesar do avanço da implantação da família conjugal simples (modelo cristão) com uma média de 2 filhos por casal e um período de aleitamento de dois anos, a prática do infanticídio continuava comum, a idade média dos casamentos era muito baixa (entre 14 e 15 anos de idade), a poligamia e a violência sexual eram recorrentes, pelo menos na aristocracia [41] e ainda havia a questão da escravidão de crianças [42]. Confronte você, caro leitor, essa realidade com a vida de uma criança em um mosteiro.

Por sua vez, os bispos carolíngios do século IX tentaram regulamentar o casamento cristão, redigindo uma série de tratados (espelhos) [43]. Neles, o casamento era valorizado, a mulher reconhecida como pessoa com pleno direito familiar e em pé de igualdade com o marido e a violência sexual denunciada como crime grave e do âmbito da justiça pública [44]. Para o nosso tema, o que interessa é que as crianças também foram objeto de reflexão nesses espelhos: a maternidade foi considerada um valor (caritas) e o casal tinha a obrigação de aceitar e reconhecer os filhos [45].

Assim, a ação da ordem clerical foi dupla: de um lado, os bispos lutaram contra a prática do infanticídio, de outro, os monges revalorizaram a criança, que passou por um processo de educação direcionada, de cunho integral e totalmente igualitária – por exemplo, as escolas monacais carolíngias davam preferência a crianças filhas de escravos e servos ao invés de filhos de homens livres, a ponto de Carlos Magno ser obrigado a pedir que os monges recebessem também para educar crianças filhas de homens livres [46]. Estes séculos da Alta Idade Média foram cruciais para a implantação do modelo de casamento cristão conhecido por todo o mundo ocidental, para a valorização da mulher como parceira e igual do marido e para a idéia de criança como ser próprio e com necessidades pedagógicas específicas [47]. Por fim, a sociedade era pensada como o conjunto de pessoas casadas (ordo conjugatorum), e a criança tinha um papel fundamental nessa estrutura, pois era o fim último da união.

*

Mulher, criança, minorias revalorizadas na Idade Média em relação à Antigüidade. Para completar esse quadro compreensivo, quero responder à terceira pergunta feita no início: qual era o conceito de educação que alicerçava esse novo sistema pedagógico medieval? Essa é uma resposta relativamente mais simples. Para os homens da época, as palavras eram transparentes: havia um prazer muito grande em saborear o sentido etimológico delas. Os intelectuais de então diziam que o homem é um ser que esquece suas experiências. Ele consegue resgatá-las através da linguagem [48]. Assim, a expressão educação era entendida como estando associada à sua raiz etimológica latina: educe, “fazer sair”. Como o conhecimento já existia inato no indivíduo, restava responder à seguinte pergunta: de que modo o estudante era conduzido da ignorância ao saber? [49] Como o aluno aprendia? Essa era a questão básica dos educadores medievais. Preocupados com a forma da aquisição, os pedagogos de então tiveram uma importante consciência: cabia ao professor “acender uma centelha” no estudante e usar seu ofício para formar e não asfixiar o espírito de seus alunos [50]. Muito moderna a educação medieval! [51]


Notas:

[1] Este artigo é dedicado ao meu amigo e colega de trabalho, Prof. Josemar Machado Oliveira (UFES), que certa vez presenteou-me com um belo livro (GIMPEL, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977) e aproveitou o ensejo para dizer-me que não existiu ciência na Idade Média!

[2] Um excelente livro que apresenta estes mitos e os destrói completamente é HEERS, Jacques. A Idade Média, uma impostura. Porto: Edições Asa, 1994.

[3] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. II, p. 44.

[4] ARIÈS, Philippe. L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime, Paris, 1960.

[5] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval, op. cit., p. 45.

[6] LE GOFF, Jacques. “Os marginalizados no ocidente medieval”. In: O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, p. 169.

[7] Le Goff recupera o tema da criança como não-valor em sua biografia São Luís (Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 84), citando uma farta bibliografia como apoio à sua tese mas somente uma fonte: João de Salisbury (“Não há a necessidade de recomendar muito a criança aos pais, porque ninguém detesta sua carne” - Policraticus, ed. C. Webb, p. 289-290), justamente uma passagem de um texto medieval onde se afirma o amor dos pais em relação aos filhos como algo comum!

[8] Utilizarei minha tradução feita a partir da edição de Gret Schib. RAMON LLULL. Doctrina pueril. Barcelona: Editorial Barcino, 1957.

[9] MARQUES, A H. de Oliveira. A Sociedade Medieval Portuguesa - aspectos de vida quotidiana. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1987, p. 105.

[10] BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2002, 71-72.

[11] Interessante afirmação do antropólogo Jack Goody. Citado em GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 18.

[12] ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.): História das Mulheres no Ocidente. A Antigüidade. Porto: Edições Afrontamento / São Paulo: Ebradil, s/d, p. 363.

[13] VEYNE, Paul. “O Império Romano”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 23-24.

[14] “Limitar o número de filhos ou matar algum dos recém-nascidos é crime; assim seus bons costumes podem mais que as boas leis em outras nações. De qualquer modo, eles crescem desnudos e sem asseio até chegarem a ter esses membros e corpos que admiramos. Os filhos são nutridos com o leite de suas mães, nunca de criadas ou amas-de-leite. Não há distinção entre o senhor e o escravo em nenhuma delicadeza de criança. Passam a vida entre os mesmos rebanhos e na mesma terra até que a idade e o valor distingam os nobres.”― TÁCITO. “Germania”. In: Obras Completas. Madrid: M. Aguilar, Editor, 1946, p. 1026.

[15] GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 24.

[16] GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 28.

[17] DE CASSAGNE, Irene (PUC - Buenos Aires - Argentina). Valorización y educación del Niño en la Edad Media, p. 20 (artigo consultado em www.uca.edu.ar)

[18] ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”, op. cit., p. 364.

[19] Um dos melhores ensaios a respeito é de JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001, especialmente as páginas 11-148.

[20] DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 20.

[21] ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 442-443.

[22] Essa idéia - da indiferença como conseqüência do mau hábito - está muito bem expressa no conceito de banalização do mal criado por Hannah Arendt em sua obra Origens do Totalitarismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1990).

[23] Tradução de Edmar Checon de Freitas (doutorando em História Medieval pela UFF) a partir da versão francesa de R. Latouche (GRÉGOIRE DE TOURS. Histoire des Francs. Paris: Les Belles-Lettres, 1999, p. 295-296)

[24] “Fredegunda foi concubina de Chilperico (neto de Clóvis). Ele casou-se com Galasvinta, filha do rei visigodo Atanagildo, e sua irmã, Brunilda, desposou Sigisberto, meio-irmão de Chilperico (Hist., IV, 27-28). Galasvinta acabou assassinada por ordem de Chilperico, ficando Fredegunda como sua primeira esposa (Hist., IV, 28); Gregório insinua uma influência de Fredegunda na morte da rival. Chilperico e Fredegunda figuram nas Historiae como um casal malévolo e sanguinário. A passagem sobre a morte de seus filhos tem de ser lida nesse contexto. Contudo, é importante destacar a forma escolhida pelo autor para sublinhar o castigo divino: a perda dos filhos e herdeiros. O tema da morte das crianças era caro a Gregório. Por sua vez, no capítulo V (22), é narrada a morte de Sansão, outro filho pequeno de Chilperico e Fredegunda. Nascido durante um cerco sofrido por Chilperico - em guerra com o irmão Sigisberto - ele foi rejeitado pela mãe (que temia sua morte). O pai salvou-o e Fredegunda acabou batizando a criança, que morreu antes dos 5 anos. Mais tarde nasceu um outro filho do casal, Teuderico, ocasião na qual o rei libertou prisioneiros e aliviou impostos (Hist., VI, 23, 27). Novamente a desinteria vitimou a criança, com cerca de 1 ano de vida (Hist., VI, 34). O único herdeiro de Chilperico, Clotário, nasceu já no fim de sua vida (Hist., VI, 41; ele foi assassinado em 584). Tornou-se ele rei sob o nome de Clotário II, tendo unificado o regnum Francorum. Chilperico teve outros filhos, de sua primeira mulher, Audovera. Teodeberto morreu no campo de batalha (Hist., IV, 50); Clóvis e Meroveu (Hist., V, 18) foram mortos a mando do pai, o primeiro sob a instigação de Fredegunda. Na ocasião, ela suspeitara de malefícios contra seus filhos, recentemente mortos, nos quais Clóvis estaria envolvido; ela também ordenou a tortura de algumas mulheres suspeitas (Hist., V, 39).” ― FREITAS, Edmar Checon de.

[25] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. I, p. 58-60.

[26] JOHNSON, Paul. História do Cristianismo, op. cit., especialmente as páginas 167-188.

[27] DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 21.

[28] “Sabe-se que as escolas dos mosteiros acolhiam tanto os nobres rebentos da aristocracia quanto os pobres filhos dos servos.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. São Paulo: EDUSP, 1979, p. 113.

[29] Mesmo Manacorda, um crítico do período, afirma que “...devemos reconhecer que, na pedagogia cristã, ela (a maxima reverentia) é um elemento novo de consideração da idade infantil” ― MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 1989, p. 118.

[30] Por exemplo, em sua Guerra Gótica, o historiador bizantino Procópio de Cesaréia († 562) nos conta que “...nem Teodorico permitira aos godos enviar os filhos à escola de letras humanas, antes dizia a todos que, uma vez dominados pelo medo do chicote, nunca teriam ousado enfrentar com coragem o perigo da espada e da lança (...) Portanto, querida soberana - diziam a ela - manda para aquele lugar esses pedagogos e põe tu mesma ao lado de Atalarico alguns coetâneos: estes, crescendo junto com ele, o impelirão para a coragem e a valentia segundo o uso dos bárbaros (I, 2)” ― Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135-136.

[31] ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”, op. cit., p. 446.

[32] Regra de São Bento (depois de 529 d.C.), cap. 70.

[33] “O que retém a vara aborrece a seu filho, mas o que ama, cedo o disciplina.” (Prov. 13:24); “Não retires da criança a disciplina, pois, se a fustigares com a vara não morrerás. Tu a fustigarás com a vara e livrarás a sua alma do inferno.” (Prov. 23.13-14)

[34] “Os meninos e adolescentes ou os que não podem compreender que espécie de pena é, na verdade, a excomunhão, quando cometem alguma falta, sejam afligidos com muitos jejuns ou castigados com ásperas varas, para que se curem.” ― Regra de São Bento, cap. 30

[35] “As crianças por tal falta recebam pancadas” ― Regra de São Bento, cap. 45.

[36] Mesmo nesse aspecto, o das surras, há de se relativizar: um dos maiores sucessos editoriais no Brasil, o livro Meu Bebê, Meu Tesouro, de DELAMARE, defendia que as crianças deveriam levar uma surra todos os dias!

[37] MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 119. Naturalmente Manacorda se refere ao sadismo por parte de quem aplicava o castigo, isto é, os monges. Falo isso porque, certa vez, ao ler parte desse texto em sala de aula na UFES, uma aluna ficou em dúvida se o sadismo era por parte de quem batia ou de quem apanhava!

[38] “Pode haver, com efeito, alguns casos particulares desses tipos. Mas os monges são pessoas que fizeram e fazem livremente a sua opção pela vida silenciosa e penitente, por amor a Deus que transborda na caridade para com o próximo.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 91-92.

[39] San Cesáreo de Arles, Sermo ad monacho, CCXXXVI, 1-2, Morin, t. II, p. 894. Citado em DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 22.

[40] Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135. Esse belo texto medieval também é analisado em NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 157-159 (SÖHNGEN, C. J. De medii aevi puerorum institutione in occidente. Diss. Amsterdam 1900).

[41] TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 69-84.

[42] “O comércio de escravos fora rigorosamente interdito em 779 e 781 (...) mas continuou, não obstante (...) Agobardo mostra-nos que este comércio vinha de longe (...) conta-nos que no começo do século IX chegara a Lião um homem, fugido de Córdova, onde tinha sido vendido como escravo por um judeu de Lião. E afirma a este propósito que lhe falaram de crianças roubadas ou compradas por judeus para serem vendidas.” ― PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno. Lisboa: Publicações Dom Quixote, s/d., p. 228.

[43] Christopher Brooke analisa a história do casamento (O casamento na Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d) sem, contudo, tratar da ética conjugal dos espelhos carolíngios, preferindo fazer seu recorte nos séculos feudais (XI-XII).

[44] “O modelo conjugal que a elite religiosa procura então impor como regulador da violência social implica, além disso, um reconhecimento da mulher enquanto pessoa, enquanto consors de pleno direito na sociedade familiar (...) A perfeita igualdade entre os cônjuges é um dos temas mais constantes da literatura matrimonial, em plena concordância com a legislação que, desde meados do século VIII, não cessa de proclamar que a lei do matrimônio é uma só, tanto para o homem como para a mulher.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87. Também é desnecessário dizer que a violência sexual da época era contra a mulher.

[45] “Esta temática deverá ser relacionada com a luta que nessa época se travava contra as práticas contraceptivas, o aborto provocado e o infanticídio. Comporta igualmente um dever de educação cristã que tem como resultado, em Teodulfo de Orleães, uma definição do officium paterno e materno.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87.

[46] “Que ajuntem e reúnam ao redor de si não só filhos de condição servil, mas também filhos de homens livres.” ― Da Admonitio generalis, cap. 72. In: BETTENSON, H. Documentos da Igreja cristã. São Paulo: ASTE, 2001, p. 168.

[47] Todos esses avanços jurídicos em relação à mulher e à criança foram acompanhados, paradoxalmente, por um discurso clerical anti-feminino! Para esse tema, ver especialmente DUBY, Georges. Eva e os padres. Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. De qualquer modo, é fato que a mulher moderna ocidental hoje desfruta de uma posição social melhor que no Oriente, especialmente nos países de cultura islâmica.

[48] “O gosto que os autores medievais tinham pela etimologia derivava de uma atitude com relação à linguagem bastante diferente da que geralmente temos hoje. Na Idade Média, ansiava-se por saborear a transparência de cada palavra; para nós, pelo contrário, a linguagem é opaca e costuma ser considerada como mera convenção (e nem reparamos, por exemplo, em que coleira, colar, colarinho, torcicolo e tiracolo se relacionam com colo, pescoço).” ― LAUAND, Luiz Jean. Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 106.

[49] Esse é um ponto no qual a pedagogia medieval difere enormemente da moderna, pois é quase senso comum hoje afirmar que as crianças são receptáculos vazios (tabula rasa) e o educador enche-as de conteúdo.

[50] PRICE, B. B. Introdução ao Pensamento Medieval. Lisboa: Edições Asa, 1996, p. 88.

[51] Este trabalho é a primeira parte da palestra intitulada "Reordenando o conhecimento: a educação na Idade Média e o conceito de ciência expresso na obra Doutrina para Crianças (c. 1274-1276) de Ramon Llull" proferida na II Jornada de Estudos Antigos e Medievais: Transformação social e Educação - 10 e 11 de Outubro de 2002 - Universidade Estadual de Maringá (UEM), evento coordenado pela Profª Drª Terezinha Oliveira.

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Leia mais em A Pedagogia Medieval

Leia mais em Música e a Educação da criança



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A Matemática é para sempre

Captura de tela do filme A Árvore da Vida (2011), dirigido
por Terrence Malick, Diretor de Fotografia: Emmanuel Lubezki.

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Tempo de leitura: 11 minutos.

Apresentamos a transcrição traduzida do vídeo [LINK]: Las matematicas son para siempre, palestra feita por Eduardo Sáenz de Cabezón. Crédito do texto: Tradutor: Claudia Sander e Revisor: Leonardo Silva.

Esta palestra foi dada em um evento local do TEDx, produzido independentemente pelas Conferências TED. Como usar a matemática para expressar seu amor por alguém? Eduardo Sáenz de Cabezón dá-nos uma resposta muito inesperada.

Eduardo Sáenz de Cabezón combina ciência com humor e histórias. Ele é formado em Teologia e doutor em Matemática e já deu diversas palestras informativas sobre sua área em universidades e escolas de ensino médio. Ele é um contador de histórias para crianças, jovens e adultos. Ele nasceu em Logroño, Espanha, em 1972. Formou-se na Pontifícia Universidade de Comillas em 1996 e também obteve seu bacharelado e doutorado em matemática pela Universidade de La Rioja.

Ele é professor de Ciência da Computação, Sistemas de Informação, Matemática Discreta e Álgebra na Universidade de La Rioja desde 2010. Ele também é tutor de projetos de graduação e mestrado nos programas de Ciência da Computação e Matemática. Ele publicou artigos de pesquisa e é autor do espetáculo matemático "El baúl de Pitágoras", exibido em teatros e bares de diversas cidades espanholas desde 2012. Ele venceu o concurso de monólogos científicos FameLab, na Espanha, em 2013. É um dos fundadores do grupo de monólogos científicos "The Big Van Theory", que se apresentou mais de 200 vezes na Espanha entre 2013 e 2014.

Sobre o TEDx, x = evento organizado de forma independente. No espírito de ideias que valem a pena disseminar, o TEDx é um programa de eventos locais e auto-organizados que reúne pessoas para compartilhar uma experiência semelhante à do TED. Em um evento TEDx, o vídeo das TEDTalks e os palestrantes ao vivo se combinam para estimular discussões profundas e a conexão em um pequeno grupo. Esses eventos locais e auto-organizados são denominados TEDx, onde x = evento TED organizado de forma independente. A Conferência TED fornece orientações gerais para o programa TEDx, mas os eventos TEDx individuais são auto-organizados.* (*Sujeito a certas regras e regulamentos)

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Eduardo Saenz de Cabezon: Imagine que você está em um bar ou em uma boate. Você começa a conversar com uma garota e logo surge esta pergunta: "Com o que você trabalha?" Como você acha seu trabalho interessante, responde: "Sou matemático". Nessa hora, 33,51% das garotas simulam uma ligação urgente e se vão. Outros 64,69% das garotas tentam, desesperadamente, mudar de assunto e se vão. Há algo como 0,8% que são sua prima, sua namorada e sua mãe, que sabem que você trabalha em algo incomum, mas não se lembram em quê, e há 1% que continua a conversa. Quando a conversa segue, inevitavelmente, aparece uma destas duas frases: A) "Eu era péssima em matemática, mas não era minha culpa. O professor é que era péssimo." B) "Mas pra que serve matemática?" Vou tratar do Caso B.

Quando alguém pergunta para que serve a matemática, ele não quer saber quais são as aplicações das ciências matemáticas. Ele está perguntando: "Por que tive que estudar esta droga que nunca mais usei na vida?" É isso que está perguntando realmente. Por isto, quando os matemáticos são questionados para que serve a matemática, costumamos nos dividir em grupos: cerca de 54,51% dos matemáticos vão tomar uma posição de ataque, e 44,77% deles ficarão na defensiva.

Há uma exceção de 0,8%, na qual eu me incluo. Quem são os que atacam? São aqueles matemáticos que irão te dizer: "Esta pergunta não faz sentido, porque a matemática tem um significado próprio. É um bela estrutura que se constrói com a sua lógica própria, e que não precisa que estejam sempre buscando todas as aplicações possíveis. Para que serve a poesia? Para que serve o amor? Para que serve a própria vida? Que tipo de pergunta é esta?"

[GH] Hardy, por exemplo, era um expoente deste tipo de ataque. E os que ficam na defensiva vão dizer: "Mesmo que você não perceba, amigo, a matemática está por trás de tudo". Estes caras sempre vão citar pontes e computadores. "Se você não sabe matemática, sua ponte vai desabar." Realmente, os computadores são matemática pura. E esses caras também vão dizer que por trás da segurança da informação e dos cartões de créditos estão os números primos.

Estas são as respostas que o seu professor vai lhe dar se você perguntar. Ele é do time dos defensivos. Tudo bem, mas quem está certo então? Os que dizem que a matemática não precisa ter um propósito, ou os que afirmam que a matemática está por trás de tudo? Na verdade, ambos estão certos. Mas lembra que eu disse que pertenço aos 0,8% que alegam outra coisa? Então vá em frente e me pergunte para que serve a matemática.

Plateia: "Pra que serve a matemática?"

Eduardo Saenz de Cabezon: Certo, 76,34% perguntaram para que serve, 23,41% não falaram nada e 0,8% que não sei o que está fazendo. Bem, queridos 76,34%... É verdade que a matemática não precisa servir a um propósito. Realmente ela é uma estrutura bela, lógica, provavelmente um dos maiores esforços coletivos já realizados na história da humanidade.

Mas também é verdade que lá, onde cientistas e técnicos estão à procura de teorias matemáticas e modelos que os permitam avançar, está a estrutura da matemática que permeia tudo. É verdade que devemos nos aprofundar para ver o que está por trás da ciência.

A ciência funciona através da intuição, da criatividade. E a matemática controla a intuição e comanda a criatividade. Quase todo mundo que nunca ouviu isto antes se surpreende ao saber que, se pegar uma folha de papel de 0,1 milímetro de espessura, das que usamos normalmente, e se ela for grande o suficiente para ser dobrada 50 vezes, a espessura final ocuparia a distância da Terra até o Sol. A sua intuição diz que isso é impossível. Faça os cálculos e verá que ela está certa. A matemática serve para isso. É verdade que a ciência, todos os tipos de ciência, só faz sentido porque nos ajuda a entender melhor o belo mundo em que vivemos. E ao fazer isso, ela nos ajuda a escapar das armadilhas deste mundo doloroso em que vivemos.

Há ciências que nos ajudam nessa direção claramente. As ciências oncológicas, por exemplo. E há outras que olhamos de longe, com inveja às vezes, mas sabendo que somos o seu suporte. Todas as ciências básicas são a base daquelas, incluindo a matemática.

Tudo o que faz a ciência ser ciência é o rigor da matemática. E esse rigor existe porque seus resultados são eternos. Você já disse ou ouviu dizer, em algum momento, que um diamante é eterno, não é? Isso depende da sua definição de eterno. Um teorema, isso sim, é eterno. O teorema de Pitágoras continua verdadeiro, eu garanto, apesar de Pitágoras estar morto. Mesmo se o mundo desabasse, o teorema de Pitágoras ainda seria verdadeiro. Onde quer que um par de catetos e uma boa hipotenusa se reúnam, o teorema de Pitágoras estará lá, funcionando como um louco.

Bem, nós, matemáticos, nos dedicamos a fazer teoremas, verdades eternas. Mas nem sempre é fácil saber o que é uma verdade eterna, um teorema, e o que é uma simples hipótese. Você precisa de uma demonstração. Por exemplo: imagine que eu tenho aqui um campo grande, enorme, infinito. Eu quero cobri-lo com peças iguais sem deixar espaços. Eu poderia usar quadrados, não é? Eu poderia usar triângulos; círculos não, eles deixam lacunas. Qual é o melhor formato para usar? Um que cubra a mesma superfície, mas com uma borda menor.

Pappus de Alexandria, no ano 300, disse que o melhor era usar hexágonos, assim como as abelhas. Mas ele não provou. O cara disse: "Hexágonos, ótimo! Vamos com hexágonos!" Ele não provou, permaneceu uma hipótese. Disse: "Hexágonos!" E o mundo, como você sabe, se dividiu entre Pappistas e anti-Pappistas. Até que, 1.700 anos depois, em 1999, Thomas Hales provou que Pappus e as abelhas estavam certos: o melhor é usar hexágonos. E isso se tornou um teorema, o "teorema da colmeia", que será verdadeiro para todo o sempre. Mais que qualquer diamante que você tenha.

Mas o que acontece se formos para a terceira dimensão? Se eu quiser preencher o espaço com peças iguais, sem deixar espaços, eu posso usar cubos, certo? Esferas não, elas deixam lacunas. Qual é o melhor formato para usar? Lord Kelvin, dos famosos "graus Kelvin" e tudo mais, disse que o melhor era usar um octaedro truncado. Que, como todo mundo sabe. É esta coisa aqui.


Qual é? Quem não tem um octaedro truncado em casa? Mesmo de plástico. "Querida, traga o octaedro truncado, temos visitas!" Todo mundo tem. Mas Kelvin não provou. Permaneceu uma hipótese, a "conjectura de Kelvin". E o mundo, como você sabe, se dividiu entre Kelvinistas e anti-Kelvinistas. Até que cento e poucos anos depois. Cento e poucos anos depois, alguém descobriu uma estrutura melhor. Weaire e Phelan. Weaire e Phelan descobriram esta coisinha aqui. Esta estrutura, à qual deram o criativo nome de: "estrutura de Weaire-Phelan".


Parece uma coisa rara, mas não é tão rara. Também está presente na natureza. É bem curioso que esta estrutura, devido a suas propriedades geométricas, foi usada para construir o Centro Aquático para os Jogos Olímpicos de Pequim. Lá, Michael Phelps ganhou oito medalhas de ouro e se tornou o melhor nadador de todos os tempos. Bom, de todos os tempos até que apareça alguém melhor, não é?

Assim como a estrutura de Weaire-Phelan é a melhor até que apareça outra melhor. Mas cuidado! Pois esta tem uma chance real, mesmo que passem cento e poucos anos, ou mesmo 1.700 anos, de alguém provar que ela é o melhor formato possível. Então ela se tornará um teorema, uma verdade para todo o sempre. Mais que qualquer diamante. Então, se você quiser dizer para alguém que o amará por toda a vida, dê-lhe um diamante. Mas se você quiser dizer que o amará para todo o sempre, dê-lhe um teorema! Mas espere um pouco! Você terá que provar que o seu amor não é apenas uma hipótese. Obrigado.

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Leia mais em A Matemática leva a Deus: Euclides, Hilbert e o futuro da Matemática

Leia mais em Algumas filosofias da Matemática



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Fé, razão e universidade: Recordações e reflexões

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ENCONTRO COM OS REPRESENTANTES DAS CIÊNCIAS

DISCURSO DO SANTO PADRE BENTO XVI

Aula Magna da Universidade de Regensburg
Terça-feira, 12 de Setembro de 2006

Fé, razão e universidade: Recordações e reflexões.

Eminentíssimos Senhores Cardeais, Magníficos Reitores, Excelentíssimos Senhores Bispos, Ilustríssimos Senhores e Senhoras!

Provo grande emoção neste momento em que me encontro de novo na universidade para dar mais uma lição. Ao mesmo tempo, voltam ao pensamento aqueles anos em que, depois dum belo período no Instituto Superior de Frisinga, comecei a minha atividade de professor acadêmico na Universidade de Bona. Estávamos no ano 1959, vigorava ainda na universidade o antigo regime dos professores ordinários. Nas diversas cátedras, não existiam assistentes nem datilógrafos, mas em contrapartida havia um contato muito direto com os estudantes e sobretudo entre os professores. Antes e depois das aulas, encontrávamo-nos nas salas dos professores. Os contatos com historiadores, filósofos, filólogos e naturalmente entre as duas faculdades teológicas eram muito estreitos. Uma vez por semestre havia o chamado dies academicus, no qual se apresentavam diante dos estudantes de toda a universidade professores de todas as faculdades, tornando assim possível uma experiência de universitas – realidade esta a que há pouco se referiu também nas suas palavras, Magnífico Reitor – isto é, a experiência de que, não obstante as múltiplas especializações que por vezes nos tornam incapazes de comunicar entre nós, formamos um todo e trabalhamos no todo da única razão com as suas várias dimensões, encontrando-nos assim unidos também na responsabilidade comum pelo reto uso da razão – esta realidade tornava-se uma experiência viva. A universidade era, sem dúvida, orgulhosa também das suas duas faculdades teológicas. Via-se claramente que também estas, interrogando-se sobre a razoabilidade da fé, realizam um trabalho que necessariamente faz parte do «todo» que é a universitas scientiarum, embora nem todos pudessem partilhar a fé, da qual os teólogos se esforçavam por mostrar a correlação com a razão comum. Esta coesão interior no cosmos da razão nunca foi turbada, nem mesmo certa vez quando correu a notícia de que um dos colegas tinha dito que, na nossa universidade, havia um fato estranho: duas faculdades que se ocupavam duma realidade que não existia, ou seja, de Deus. Ora, mesmo em presença dum ceticismo tão radical, permaneceu indiscutível a convicção de que, no conjunto da universidade, continua a ser necessário e razoável interrogar-se sobre Deus por meio da razão e que isto se deve fazer no contexto da tradição da fé cristã.

Tudo isto me voltou à mente, quando recentemente li a parte – publicada pelo professor Theodore Khoury (Münster) – do diálogo que o douto imperador bizantino Manuel II Paleólogo teve com um persa erudito sobre cristianismo e islão e sobre a verdade de ambos, talvez durante os acampamentos de inverno no ano de 1391 em Ankara.[1] Presumivelmente terá sido o próprio imperador que depois, durante o assédio de Constantinopla entre 1394 e 1402, escreveu este diálogo; deste modo se explicaria por que aparecem os seus raciocínios referidos de forma muito mais pormenorizada que os do seu interlocutor persa.[2] O diálogo cobre todo o âmbito das estruturas da fé contidas na Bíblia e no Alcorão, detendo-se principalmente sobre a imagem de Deus e do homem mas também – e repetidamente, como era de esperar – sobre a relação entre as três «Leis» ou três «ordens de vida», como então se designava o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Alcorão. Por agora, nesta lição, não pretendo falar disso; primeiro gostava de acenar brevemente a um assunto – aliás bastante marginal na estrutura de todo o diálogo – que me fascinou no contexto do tema «fé e razão» e vai servir como ponto de partida para as minhas reflexões sobre este tema.

No sétimo colóquio (διάλεξις – controvérsia) publicado pelo Prof. Khoury, o imperador aborda o tema da jihād, da guerra santa. O imperador sabia seguramente que, na sura 2, 256, lê-se: «Nenhuma coação nas coisas de fé». Esta é provavelmente uma das suras do período inicial – segundo uma parte dos peritos – quando o próprio Maomé se encontrava ainda sem poder e ameaçado. Naturalmente, sobre a guerra santa, o imperador conhecia também as disposições que se foram desenvolvendo posteriormente e se fixaram no Alcorão. Sem se deter em pormenores como a diferença de tratamento entre os que possuem o «Livro» e os «incrédulos», ele, de modo surpreendentemente brusco – tão brusco que para nós é inaceitável –, dirige-se ao seu interlocutor simplesmente com a pergunta central sobre a relação entre religião e violência em geral, dizendo: «Mostra-me também o que trouxe de novo Maomé, e encontrarás apenas coisas más e desumanas tais como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava».[3] O imperador, depois de se ter pronunciado de modo tão ríspido, passa a explicar minuciosamente os motivos pelos quais não é razoável a difusão da fé mediante a violência. Esta está em contraste com a natureza de Deus e a natureza da alma. Diz ele: «Deus não se compraz com o sangue; não agir segundo a razão – «σὺν λόγω» – é contrário à natureza de Deus. A fé é fruto da alma, não do corpo. Por conseguinte, quem desejar conduzir alguém à fé tem necessidade da capacidade de falar bem e de raciocinar corretamente, e não da violência nem da ameaça... Para convencer uma alma racional não é necessário dispor do próprio braço, nem de instrumentos para ferir ou de qualquer outro meio com que se possa ameaçar de morte uma pessoa...».[4]

Nesta argumentação contra a conversão através da violência, a afirmação decisiva está aqui: não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus.[5] E o editor, Theodore Khoury, comenta: para o imperador, como bizantino que cresceu na filosofia grega, esta afirmação é evidente; mas não o é para a doutrina muçulmana, porque Deus é absolutamente transcendente. A sua vontade não está vinculada a nenhuma das nossas categorias, incluindo a da razoabilidade.[6] Neste contexto, Khoury cita uma obra do conhecido islamita francês R. Arnaldez, onde este assinala que Ibn Hazm chega a declarar que Deus nem sequer estaria vinculado à sua própria palavra e que nada O obrigaria a revelar-nos a verdade. Se fosse a sua vontade, o homem deveria inclusive praticar a idolatria.[7]

Aqui gera-se um dilema, na compreensão de Deus e consequentemente na realização concreta da religião, que nos desafia hoje de maneira muito direta: a convicção de que o agir contra a razão estaria em contradição com a natureza de Deus, faz parte apenas do pensamento grego ou é válida sempre e por si mesma? Penso que, neste ponto, se manifesta a profunda concordância entre o que é grego na sua parte melhor e o que é a fé em Deus baseada na Bíblia. Modificando o primeiro versículo do livro do Gênesis, o primeiro versículo de toda a Sagrada Escritura, João iniciou o prólogo do seu Evangelho com estas palavras: «No princípio era o λόγος». Ora, é precisamente esta a palavra que usa o imperador: Deus age «σὺν λόγω», com logosLogos significa conjuntamente razão e palavra – uma razão que é criadora e capaz de se comunicar, mas precisamente enquanto razão. Com este termo, João ofereceu-nos a palavra conclusiva para o conceito bíblico de Deus, uma palavra na qual todos os caminhos, muitas vezes cansativos e sinuosos, da fé bíblica alcançam a sua meta, encontram a sua síntese. No princípio era o logos, e o logos é Deus: diz-nos o evangelista. Este encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento grego não era simples coincidência. A visão de São Paulo – quando diante dele se estavam fechando os caminhos da Ásia e, em sonho, viu um macedônio que lhe suplicava: «Passa à Macedónia e vem ajudar-nos!» (cf. At 16, 6-10) – esta visão pode ser interpretada como a «condensação» da necessidade intrínseca de aproximação entre a fé bíblica e a indagação grega.

Na realidade, há muito tempo que esta aproximação se tinha iniciado. Já, na sarça ardente, o nome misterioso de Deus – que O separa do conjunto das divindades com múltiplos nomes, afirmando d’Ele apenas «Eu sou», o seu ser – apresenta-se, face ao mito, como uma contestação, que está em íntima analogia com a tentativa de Sócrates para vencer e superar precisamente o mito.[8] Ora, o processo iniciado na sarça ardente alcança, no âmbito do Antigo Testamento, uma nova maturidade durante o exílio, quando o Deus de Israel, agora privado da Terra e do culto, se anuncia como o Deus do céu e da terra, apresentando-se com uma fórmula simples que prolonga a frase da sarça: «Eu sou». Em paralelo com este novo conhecimento de Deus, cresce uma espécie de iluminismo que se expressa drasticamente na derisão das divindades como sendo apenas obra das mãos do homem (cf. Sal 115). Assim, durante a época helenista, a fé bíblica – não obstante o desacordo em toda a sua dureza com os soberanos helenistas que queriam obter pela força a sua adequação ao estilo grego de vida e ao seu culto idolátrico –, estava interiormente caminhando ao encontro da parte melhor do pensamento grego até chegar a um contato recíproco que se verificou depois especialmente na literatura sapiencial tardia. Sabemos hoje que a tradução grega do Antigo Testamento realizada em Alexandria – a «Setenta» – é mais do que uma simples (no sentido de avaliar de modo pouco positivo) tradução do texto hebraico: de fato, trata-se de um testemunho textual único no seu gênero e um passo específico e importante da história da Revelação, no qual se realizou de tal forma o referido encontro que acabou por ter um significado decisivo para o nascimento do cristianismo e sua difusão.[9] Trata-se, no fundo, do encontro entre fé e razão, entre iluminismo autêntico e religião. Ora, o imperador Manuel II, verdadeiramente partindo da natureza íntima da fé cristã e, ao mesmo tempo, da natureza do pensamento grego já fundido com a fé, podia dizer: Não agir «com o logos» é contrário à natureza de Deus.

Por honestidade, temos de referir aqui que, na teologia da baixa Idade Média, se desenvolveram tendências que rompem esta síntese entre o espírito grego e o espírito cristão. Em contraste com o chamado intelectualismo agostiniano e tomista, Duns Escoto deu início a uma orientação voluntarista que, no termo de sucessivos desenvolvimentos, havia de levar à afirmação segundo a qual, de Deus, só conheceremos a voluntas ordinata. Para além desta, existiria a liberdade de Deus, em virtude da qual Ele teria podido criar e fazer inclusivamente o contrário de tudo o que efetivamente realizou. Vemos esboçarem-se aqui posições próximas, sem dúvida, das de Ibn Hazm e que poderiam levar à imagem dum Deus-Arbítrio, que não está dependente sequer da verdade e do bem. A transcendência e a diversidade de Deus aparecem tão exageradamente acentuadas, que inclusive a nossa razão e o nosso sentido da verdade e do bem deixam de ser um verdadeiro espelho de Deus, cujas possibilidades abismais permaneceriam, para nós, eternamente inatingíveis e ocultas por detrás das suas decisões efetivas. Em contraste com isto, a fé da Igreja sempre se ateve à convicção de que entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito criador e a nossa razão criada, existe uma verdadeira analogia, na qual por certo – como afirma, em 1215, o IV Concílio de Latrão – as diferenças são infinitamente maiores que as semelhanças, mas não até ao ponto de abolir a analogia e a sua linguagem. Deus não se torna mais divino pelo facto de O afastarmos para longe de nós num voluntarismo puro e impenetrável, mas o Deus verdadeiramente divino é aquele Deus que se mostrou como logos e, como logos, agiu e age cheio de amor em nosso favor. Certamente o amor, como diz Paulo, «ultrapassa» o conhecimento, sendo por isso capaz de apreender mais do que o simples pensamento (cf. Ef 3, 19), mas aquele permanece o amor do Deus-Logos, motivo pelo qual o culto cristão, como afirma ainda Paulo, é «λογικη λατρεία» – um culto que está de acordo com o Verbo eterno e com a nossa razão (cf. Rm 12, 1).[10]

A recíproca aproximação interior, a que aludimos, entre a fé bíblica e a indagação a nível filosófico do pensamento grego é um elemento de importância decisiva sob o ponto de vista não só da história das religiões, mas também da história universal – um dado a que estamos obrigados ainda hoje. Considerando tal encontro, não surpreende que o cristianismo, apesar da sua origem e de qualquer desenvolvimento importante no Oriente, tenha no fim de contas encontrado a sua fisionomia historicamente decisiva na Europa. E o mesmo se pode exprimir inversamente: o referido encontro, ao qual depois veio juntar-se o patrimônio de Roma, criou a Europa e permanece o fundamento daquilo que, com razão, se pode chamar Europa.

À tese segundo a qual o patrimônio grego, criticamente purificado, é uma parte integrante da fé cristã, contrapõe-se a reclamação de deselenização do cristianismo – um pedido que, desde o início da Idade Moderna, tem dominado de modo crescente a pesquisa teológica. Entretanto vendo-o mais de perto, podem-se observar três ondas no programa da deselenização: estas, embora interligadas, são claramente distintas uma da outra nas suas motivações e objetivos.[11]

Primeiro, a deselenização surge em conexão com os postulados da Reforma do século XVI. Ao considerarem a tradição das escolas teológicas, os reformadores achavam-se perante uma sistematização da fé condicionada totalmente pela filosofia, isto é, uma fé determinada a partir de fora em virtude de um modo de pensar que não derivava dela. Deste modo, a fé apresentava-se, não já como palavra histórica viva, mas como elemento inserido na estrutura dum sistema filosófico. Pelo contrário, a sola Scriptura busca a pura forma primordial da fé, tal como se apresenta originariamente na Palavra bíblica. Aparecendo a metafísica como um pressuposto derivado de outra fonte, é necessário libertar dela a fé para fazê-la voltar a ser totalmente ela mesma. Quando Kant afirmou que teve de pôr de lado o pensar para dar espaço à fé, ele procedeu fundado neste programa e com um radicalismo imprevisível para os reformadores. Foi assim que ele ancorou a fé exclusivamente na razão prática, negando-lhe o acesso ao conjunto da realidade.

A teologia liberal dos séculos XIX e XX trouxe uma segunda onda ao programa da deselenização: o seu representante eminente é Adolf von Harnack. Tanto durante o tempo dos meus estudos como nos primeiros anos da minha atividade acadêmica, este programa estava fortemente ativo também na teologia católica. Como ponto de partida, utilizava-se a distinção de Pascal entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacob. Na preleção que fiz em Bona, no ano de 1959, procurei analisar este assunto,[12] e não pretendo retomar aqui por inteiro o discurso. Mas gostaria de tentar pôr em evidência, embora brevemente, a novidade que caracterizava, relativamente à primeira, esta segunda onda de deselenização. Como ideia central temos, em Harnack, o regresso ao Jesus meramente homem e à sua mensagem simples, que viria antes de todas as teologizações e, concretamente, antes das helenizações: tal mensagem simples constituiria o verdadeiro apogeu do desenvolvimento religioso da humanidade. Jesus teria deixado de lado o culto em favor da moral. Em última análise, Ele é representado como pai duma mensagem moral humanitária. O objetivo de Harnack é fundamentalmente trazer o cristianismo à harmonia com a razão moderna, libertando-o precisamente de elementos aparentemente filosóficos e teológicos, como, por exemplo, a fé na divindade de Cristo e na trindade de Deus. Neste sentido, a exegese histórico-crítica do Novo Testamento, com esta sua visão, insere novamente a teologia no cosmos da universidade: para Harnack, a teologia é essencialmente algo de histórico e por conseguinte de estritamente científico. O que ela indaga, por meio da crítica, sobre Jesus é, por assim dizer, expressão da razão prática e consequentemente sustentável também no conjunto da universidade. No fundo, temos a autolimitação moderna da razão, com a sua expressão clássica na «críticas» de Kant, mas ulteriormente radicalizada pelo pensamento das ciências naturais. Em poucas palavras, este conceito moderno da razão baseia-se numa síntese entre platonismo (cartesianismo) e empirismo, que o sucesso técnico confirmou. Por um lado, pressupõe-se a estrutura matemática da matéria, por assim dizer a sua racionalidade intrínseca, que torna possível compreendê-la e usá-la na sua eficácia operacional: este pressuposto básico é, por assim dizer, o elemento platónico no conceito moderno da natureza. Por outro lado, trata-se da utilização funcional da natureza para as nossas finalidades, onde só a possibilidade de controlar verdade ou falsidade através da experiência é que fornece a certeza decisiva. O peso entre os dois pólos pode, segundo as circunstâncias, oscilar para um lado ou outro. Um pensador estritamente positivista como J. Monod declarava-se um platônico convicto.

Isto encerra duas orientações fundamentais e decisivas para a nossa questão. Só o tipo de certeza que deriva da sinergia entre matemática e experiência nos permite falar de cientificidade. Tudo o que pretenda ser ciência deve confrontar-se com este critério. E assim as ciências que dizem respeito à realidade humana, como a história, a psicologia, a sociologia e a filosofia, procuravam também aproximar-se deste cânone da cientificidade. Entretanto, para as nossas reflexões, é ainda importante o fato de o método como tal excluir o problema de Deus, apresentando-o como problema acientífico ou pré-científico. Mas, aqui estamos perante uma redução do espaço próprio da ciência e da razão, fato este que é obrigatório pôr em questão.

Voltarei mais adiante ao assunto. Por agora, basta ter presente que, numa tentativa de conservar, segundo esta perspectiva, o caráter de disciplina «científica» na teologia, do cristianismo restaria apenas um mísero fragmento. E mais grave ainda: se a ciência no seu conjunto é apenas isto, desse modo então o próprio homem sofre uma redução. Porque nesse caso as questões propriamente humanas, isto é, «donde venho» e «para onde vou», as questões da religião e do ethos não podem ter lugar no espaço da razão comum, tal como a descreve uma «ciência» assim entendida, devendo ser transferidas para o âmbito do subjetivo. O sujeito decide, com base nas suas experiências, o que lhe parece religiosamente sustentável, e a «consciência» subjetiva torna-se em última análise a única instância ética. Desta forma, porém, o ethos e a religião perdem a sua força de criar uma comunidade e caem no âmbito da discricionariedade pessoal. Trata-se duma condição perigosa para a humanidade: constatamo-lo nas patologias que ameaçam a religião e a razão – patologias que devem necessariamente eclodir quando a razão fica a tal ponto limitada que as questões da religião e do ethos deixam de lhe dizer respeito. O que resta das tentativas de construir uma ética partindo das regras da evolução ou da psicologia e da sociologia, é simplesmente insuficiente.

Antes de chegar às conclusões para as quais tende todo este raciocínio, devo ainda aludir, brevemente, à terceira onda de deselenização que se difunde atualmente. Em ordem ao encontro das culturas na sua multiplicidade, facilmente se ouve hoje dizer que a síntese realizada na Igreja Antiga com o helenismo teria sido uma primeira inculturação, que não deveria vincular as outras culturas. Mas, estas deveriam ter o direito de remontar até à etapa anterior a tal inculturação para aí descobrirem a mensagem pura e simples do Novo Testamento e, depois, inculturá-la novamente nos respectivos ambientes. Esta tese não é errada de todo; mas é superficial e imprecisa. É que o Novo Testamento foi escrito em língua grega e traz no seu seio o contato com o espírito grego – um contato já maturado anteriormente no decurso do Antigo Testamento. Existem, sem dúvida, elementos no processo formativo da Igreja Antiga que não devem ser integrados em todas as culturas. Mas, decisões de fundo, como as que se referem precisamente à relação da fé com a busca da razão humana, fazem parte da própria fé, constituem o seu crescimento, de acordo com a sua natureza.

Dito isto, chego à conclusão. Esta tentativa, feita apenas em linhas gerais, de crítica da razão moderna a partir do seu interior não inclui de forma alguma a opinião de que agora se deva voltar atrás, para antes do iluminismo, rejeitando as convicções da Idade Moderna. Tudo o que é válido no desenvolvimento moderno do espírito, há-de ser reconhecido sem reservas: todos nos sentimos agradecidos pelas grandiosas possibilidades que isso abriu ao homem e pelos progressos que nos foram proporcionados no campo humano. Aliás, o ethos da cientificidade – como acenava nas suas palavras, Magnífico Reitor – é vontade de obediência à verdade e, consequentemente, expressão duma atitude que faz parte das decisões essenciais do espírito cristão. Portanto, a intenção não é retirada, nem crítica negativa; pelo contrário, trata-se de um alargamento do nosso conceito de razão e do seu uso. Porque, juntamente com toda a alegria face às possibilidades do homem, vemos também as ameaças que resultam destas mesmas possibilidades e devemos perguntar-nos como poderemos dominá-las. Consegui-lo-emos apenas se razão e fé voltarem a estar unidas duma forma nova; se superarmos a limitação autodecretada da razão ao que é verificável na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua amplitude. Neste sentido, a teologia não só enquanto disciplina histórica e humano-científica, mas como verdadeira e própria teologia, ou seja, como indagadora da razão da fé, deve ter o seu lugar na universidade e no amplo diálogo das ciências.

Só assim nos tornamos capazes também de um verdadeiro diálogo das culturas e das religiões – um diálogo de que temos necessidade muito urgente. No mundo ocidental, é largamente dominante a opinião de que são universais apenas a razão positivista e as formas de filosofia dela derivadas. Mas, as culturas profundamente religiosas do mundo vêem, precisamente nesta exclusão do divino da universalidade da razão, um ataque às suas convicções mais íntimas. Uma razão, que diante do divino é surda e repele a religião para o âmbito das subculturas, é incapaz de inserir-se no diálogo das culturas. E no entanto a razão moderna, própria das ciências naturais, com a sua dimensão platônica intrínseca traz consigo, como procurei demonstrar, uma questão que a transcende a ela juntamente com as suas possibilidades metódicas. Ela própria tem simplesmente de aceitar a estrutura racional da matéria e a correspondência entre o nosso espírito e as estruturas racionais operativas na natureza como um dado de fato, sobre o qual se baseia o seu percurso metódico. Mas, a pergunta sobre o porquê deste dado de fato existe e deve ser confiada pelas ciências naturais a outros níveis e modos do pensar – à filosofia e à teologia. Para a filosofia e, de maneira diferente, para a teologia, a escuta das grandes experiências e convicções das tradições religiosas da humanidade, especialmente da fé cristã, constitui uma fonte de conhecimento; recusá-la significaria uma inaceitável redução do nosso escutar e responder. Isto traz-me à mente uma frase de Sócrates a Fédon; nos colóquios anteriores tinham sido citadas muitas opiniões filosóficas erradas, e então Sócrates diz: «Seria facilmente compreensível que alguém, irritado por causa de tantas coisas erradas, detestasse pelo resto da sua vida todo e qualquer discurso sobre o ser, ou o denegrisse. Mas, desta forma, perderia a verdade do ser e sofreria um grande dano».[13] Ora, desde há muito tempo que o ocidente vive ameaçado por esta aversão contra as questões fundamentais da sua razão, mas o único resultado seria sofrer um grande dano. A coragem de abrir-se à vastidão da razão, e não a rejeição da sua grandeza – tal é o programa pelo qual uma teologia comprometida na reflexão sobre a fé bíblica entra no debate do tempo atual. «Não agir segundo razão, não agir com o logos, é contrário à natureza de Deus», disse Manuel II, partindo da sua imagem cristã de Deus, ao interlocutor persa. É a este grande logos, a esta vastidão da razão que convidamos os nossos interlocutores no diálogo das culturas. Reencontrá-la nós mesmos sempre de novo, é a grande tarefa da universidade.

Notas:

[1] Da totalidade dos 26 colóquios (διάλεξις – Khoury traduz: controvérsia) que compõem o diálogo («Entretien»), Th. Khoury publicou a 7.ª «controvérsia» com notas e uma ampla introdução sobre a origem do texto, a tradição manuscrita e a estrutura do diálogo, juntamente com breves resumos das «controvérsias» não publicadas; ao texto grego juntou uma tradução francesa: Manuel II Paléologue, Entretiens avec un Musulman: 7e Controverse, Sources Chrétiennes n.º 115 (Paris 1966). Entretanto Karl Förstel publicou, no Corpus Islamico-Christianum (Series Graeca. Redacção A. Th. Khoury – R. Glei), uma edição greco-alemã comentada do texto: Manuel II Palaiologus, Dialoge mit einem Muslim, 3 volumes (Würzburg – Altenberge 1993-1996). Já, em 1966, E. Trapp tinha publicado o texto grego com uma introdução como vol. II dos «Wiener byzantinische Studien». As citações que farei em seguida são tiradas de Khoury.

[2] Quanto à origem e à redação do diálogo, veja-se Khoury pp. 22-29; também nas edições de Förstel e Trapp se encontram amplos comentários a tal respeito.

[3] Controvérsia VII 2c: Khoury, pp. 142-143; Förstel, vol. I, VII Dialog 1.5, pp. 240-241. Infelizmente, esta citação foi tomada, no mundo muçulmano, como expressão da minha posição pessoal, suscitando assim uma indignação compreensível. Espero que o leitor do meu texto possa depreender imediatamente que esta frase não exprime a minha apreciação pessoal face ao Alcorão, pelo qual nutro o respeito que se deve ao livro sagrado duma grande religião. Eu, ao citar o texto do imperador Manuel II, pretendia unicamente evidenciar a relação essencial entre fé e razão. Neste ponto, estou de acordo com Manuel II, sem contudo fazer minha a sua polêmica.

[4] Controvérsia VII 3b-c: Khoury, pp. 144-145; Förstel, vol. I, VII Dialog 1.6, pp. 240-243.

[5] Foi unicamente por esta afirmação que citei o diálogo entre Manuel e o seu interlocutor persa. É nesta afirmação que surge o tema das minhas afirmações seguintes.

[6] Cf. Khoury, op. cit., p. 144, nota 1.

[7] R. Arnaldez, Grammaire et théologie chez Ibn Hazm de Cordoue (Paris 1956) p. 13: cf. Khoury, p. 144. Mais adiante, no desenvolvimento do meu discurso, aludirei ao fato da existência de posições semelhantes na teologia da baixa Idade Média.

[8] Para a interpretação do episódio da sarça ardente, objeto de ampla discussão, veja-se o meu livro «Einführung in das Christentum» (Mônaco 1968), pp. 84-102. Penso que as minhas afirmações lá feitas continuam, não obstante os sucessivos desenvolvimentos do debate, a ser ainda válidas.

[9] Cf. A. Schenker, «L’Écriture sainte subsiste en plusieurs formes canoniques simultanées», in: A interpretação da Bíblia na Igreja. Actas do Simpósio promovido pela Congregação para a Doutrina da Fé (Cidade do Vaticano 2001), pp. 178-186.

[10] Tratei este tema, de forma mais pormenorizada, no meu livro «Der Geist der Liturgie. Eine Einführung» (Friburgo 2000), pp. 38-42.

[11] Dentre a vasta literatura sobre este tema da deselenização, apraz-me citar antes de mais: A. Grillmeier, «Hellenisierung-Judaisierung des Christentums als Deuteprinzipien der Geschichte des kirchlichen Dogmas», in: Id., Mit ihm und in ihm. Christologische Forschungen und Perspektiven (Friburgo 1975) pp. 423-488.

[12] Foi publicada de novo e comentada por Heino Sonnemanns: Joseph Ratzinger–Benedikt XVI, Der Gott des Glaubens und der Gott der Philosophen. Ein Beitrag zum Problem der theologia naturalis, Johannes-Verlag Leutesdorf, 2.ª edição aumentada, 2005.

[13] 90 c-d. A propósito deste texto, veja-se também R. Guardini, Der Tod des Sokrates. (Mainz-Paderborn 51987) pp. 218-221.

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